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Oleg Dyakonov

 

Coronel Percy Harrison Fawcett:

Cem anos de solidão

 Em defesa do explorador 

 

"Aos poucos desmancharemos todo esse chorrilho de mentiras que, ha tanto tempo e impunemente, se divulga sobre o desaparecimento de Fawcett".

(Romildo Gurgel, 1952)

  

Por Oleg I. Dyakonov*

De Moscou/Rússia

Para Via Fanzine

05/11/2018

 

O major P. H. Fawcett em Pelechuco, Bolívia, durante sua 5a expedição (1911). Registro fotográfico mais famoso do explorador.

Leia também:

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Teria o Egito herdado a cultura dos atlantes? - Eduardo Miquel

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Parte 2: Entre a ciência e Hollywood

 

Na primeira parte deste trabalho nos ocupamos principalmente de analisar e responder às acusações caluniosas dirigidas ao coronel Fawcett por parte do Dr. John Hemming, historiador e antropólogo britânico, ex-diretor da Royal Geographical Society (RGS). Ainda não terminamos com aquela análise e, em virtude da composição do nosso relato, as restantes acusações lançadas pelo Dr. Hemming serão analisadas por nós no prosseguimento desse trabalho. Mas nessa altura temos que nos centrar em três sucessos marcantes da 'fawcettologia' moderna, precisamente aqueles que desataram propriamente toda a recente polêmica em torno da figura de Fawcett. Todos pertencem à 'corrente' americana; trata-se da descoberta das chamadas "cidades perdidas da Amazônia" pelo Dr. Michael Heckenberger, antropólogo americano, um achado que culminou, a nível público, no livro "The Lost City Of Z" ("Z, A Cidade Perdida") do jornalista David Grann e do homônimo filme hollywoodiano baseado neste, produzido e dirigido pelo diretor James Gray. Por razão de conveniência, vamos iniciar pelo livro de David Grann.

 

David Grann e a mentira do determinismo ambiental

 

Em 2005 o jornalista americano David Grann (n. 1967), funcionário efetivo de The New Yorker, publicou uma fundamental reportagem sobre o coronel Fawcett e suas explorações, titulada "The Lost City of Z – A quest to uncover the secrets of the Amazon" ("Z, A Cidade Perdida – uma busca para descortinar os segredos da Amazônia"). Em 2009, expandindo o mesmo artigo, converteu-o em um livro, sob o título "The Lost City of Z: A Tale of Deadly Obsession in the Amazon" ("Z, A Cidade Perdida: Um relato sobre a obsessão mortal na Amazônia"). Publicado pela editora Doubleday em fevereiro de 2009, o livro logo debutou na lista de bestsellers de "New York Times" no #4.

 


David Grann, em 2010.

Autor/Fonte: Larry D. Moore/Wikimedia Commons

 

Não é possível deixar de notar aqui que o jornalista e escritor brasileiro Hermes Leal, autor do livro "Coronel Fawcett – A verdadeira história do Indiana Jones" (1a edição em 1996), pouco depois de publicado o livro de Grann, acusou o americano de ter tomado dele a ideia geral da pesquisa e atribuir a si todos os méritos de pesquisador no tema (ainda que não acusasse Grann de um plágio direto). Segundo Leal, "O colonialismo age em nossa cultura até hoje de outra forma. Principalmente não reconhecendo a nossa cultura.  Agora o fato de um americano [David Grann] pegar sua história e dizer que foi ele quem descobriu tudo isso é uma forma de não reconhecer um trabalho já feito. Essa posição é colonialista. Só tem valor se for feito por eles, nada que temos tem importância para o lado de cinema do planeta" (Mohn, 2009).

 

Ainda admitindo a razão de Leal, há que constatar uma diferença fundamental entre os dois livros: a obra de Grann, ao contrário da de Leal, tem um propósito estratégico e ideológico muito preciso, como veremos adiante.

 

Para a análise da visão 'grannista' de Fawcett, vamos fazer uso principalmente das três fontes originais, a saber: o artigo de 2005 e o livro de 2009, mencionados anteriormente, e também do vídeo da conferência "The Lost City of Z", lida por Grann em 25 de fevereiro de 2009 no Museu da Ciência de Boston, logo após a publicação do livro (veja o link de Youtube em "Fontes e referências").

 

Segundo afirma o próprio Grann, seu encontro com o tema Fawcett teria sido puramente casual: ao realizar uma outra pesquisa jornalística, relacionada com Sir Arthur Conan Doyle, topou com a menção de que Fawcett foi o principal inspirador da ideia de "O Mundo Perdido"; passando logo a ler mais sobre o coronel, Grann, em suas próprias palavras, "ficou intrigado pela noção fantástica de Z: que uma civilização sofisticada com arquitetura monumental pudesse ter existido na Amazônia" (Grann, 2009: 29).

 

A pesquisa de Grann abrangeu três países – Estados Unidos, Grã-Bretanha e Brasil – e múltiplos arquivos, inclusive os privados, que continham documentos inéditos do próprio Fawcett e sua família, amigos, colegas, companheiros e até dos "seus rivais mais amargos" (ibid.: 283). Segundo se pode julgar pela seção de "Agradecimentos" no livro "Z, A Cidade Perdida", o projeto de Grann dificilmente pode ser considerado uma pesquisa pessoal inspirada por puro interesse, pois envolveu demasiadas pessoas que o assistiram e trabalhavam para ele. Finalmente, o autor empreendeu a tradicional peregrinação – completamente inevitável dentro do marco da "Febre Fawcett" desde os tempos da expedição Dyott de 1928 – aos supostos lugares do desaparecimento da expedição Fawcett, ou seja, ao Parque Indígena do Xingu, para os povos Kalapalo e Kuikuro, ligados ao desaparecimento do coronel segundo a velha tradição muito firmemente consolidada.

 

Enquanto na Grã-Bretanha, Grann encontrou na cidade de Cardiff, no País de Gales, Rolette de Montet-Guerin, neta de Fawcett, que lhe mostrou os chamados "papéis secretos" do coronel. A partir destes, segundo explica Grann em um vídeo de promoção do seu livro na tradução portuguesa ("Z, A cidade perdida ‒ David Grann", veja o link deste e outros vídeos citados em "Fontes e referências"), ele pôde colher "enormes pistas tanto sobre o mistério da vida de Fawcett quanto sobre o mistério de sua morte e também muitas pistas sobre para onde Fawcett tinha realmente ido na selva enquanto procurava pela cidade de Z". Foi quando encontrou esta informação, relata Grann, que ficou "realmente obcecado com a história de Fawcett" e decidiu fazer algo "muito estranho" para ele, "muito arriscado, e talvez até um pouco estúpido": mergulhar ele mesmo nas profundezas da Amazônia para seguir os passos do lendário explorador e ver se poderia desvendar o mistério.

 

David Grann (de camiseta vermelha) e os moradores locais perto do Posto Indígena Simões Lopes (antigo Posto Bakairi), antes de partir para a floresta (2005).

Autor/Fonte: Simon and Shuster/fawcettadventure.com

 

Grann está construindo a dupla narrativa do seu livro (a história de Fawcett e a história de sua própria viagem à Amazônia) sobre o contraste e a oposição de si mesmo – um cidadão moderno com "parcos atributos físicos", jornalista fraco de corpo e espírito – e o magnífico Fawcett, grande e inquebrantável desbravador, a própria personificação de invulnerabilidade, vontade inabalável e coragem. Tanto no livro quanto oralmente, Grann gosta repetir que não é pesquisador, nem aventureiro, escalador, caçador ou fã de caminhadas, tem medo de cobras, sofre de ceratocone, não se orienta no espaço e se perde mesmo no metrô; e tal homem como ele de repente encontrou-se na selva amazônica, tentando resolver "o maior mistério relativo às expedições do século XX" – o destino do coronel Fawcett e sua busca pela cidade perdida de "Z".

 

Apesar das constantes declarações de Grann sobre sua "obsessão" com Fawcett, sua atitude em relação ao explorador, apesar da primeira impressão, dificilmente pode ser definida como positiva. Para salvar as aparências, Grann tenta manter a objetividade, notando formalmente também os aspectos positivos da personalidade do explorador, mas sua tendenciosa posição anti-fawcetteana acaba por se revelar quando Grann lança a típica acusação politicamente correta de Fawcett, culpando-o de seguir servilmente os padrões racistas vitorianos. Obviamente, no interior Grann não gosta, nem pode gostar por definição do seu personagem: ambos realmente pertencem não apenas a mundos diferentes, mas a mundos diametralmente opostos; e, portanto, não pode haver na realidade qualquer tipo de "obsessão". O antagonismo inicialmente irônico do moderno filisteu racionalista e do herói-sonhador de outrora acaba adquirindo um significado muito mais profundo do que pode parecer à primeira vista. Intencionalmente ou involuntariamente, Grann procura subjugar moralmente a Fawcett à nossa modernidade, com seu materialismo, estereotipagem de pensamento e desejo de simplicidade; ganhar a vitória moral de um típico filisteu ortodoxo de nossos dias sobre uma individualidade extraordinária do passado, completamente incompatível com quaisquer noções leigas, subordinando-a e forçando-a a servir a uma determinada corrente da atual ciência arqueológica.

 

Para entender esse super objetivo de Grann, devemos encarar, pelo menos superficialmente, o paradigma moderno da arqueologia amazônica, através do prisma do qual Grann está interpretando as pesquisas de Fawcett.

 

A velha escola arqueológica – a dos "tradicionalistas" – era chefiada pela Dra. Betty J. Meggers (1921-2012), afamada arqueóloga americana, cientista da Smithsonian Institution, que por décadas era considerada a "primeira dama" e até mesmo "mãe" da arqueologia amazônica. Segundo o conceito da ecologia cultural desenvolvido por ela, as limitações impostas pelo ambiente da Amazônia ao potencial agrícola, mais severas do que em qualquer outra parte do mundo, impossibilitaram o desenvolvimento de uma civilização elevada, os povos amazônicos ficando definitivamente no nível da primitiva "cultura da floresta tropical". A relativa complexidade da cultura material, expressa especialmente nas cerâmicas elaboradas, segundo ela, foi resultado das migrações andinas, que fracassaram por causa da pobreza do ambiente amazônico. É a Meggers a quem pertence à famosa definição da Amazônia como "paraíso ilusório" (formulada em 1971): segundo ela, apesar de toda a luxuriante vegetação, o solo deste ecossistema é largamente infértil, altamente ácido e, portanto, incapaz de suportar agricultura intensiva e produzir a quantidade de mantimentos necessária para manter grandes populações sedentárias.

 


Betty Meggers examinando um antigo vaso indígena juntamente com o seu marido Clifford Evans, grande colaborador do seu trabalho, com quem realizou várias expedições arqueológicas à América do Sul.

Fonte: Smithsonian NAA

 

No entanto, a partir da primeira metade da década de 1980, o conceito começou a mudar: a partir dos trabalhos de outra arqueóloga americana, a Dra. Anna C. Roosevelt, da Universidade de Chicago, os representantes da nova escola dos "revisionistas" têm obtido fortes evidências da existência de sociedades complexas e alta densidade populacional na antiga Amazônia. Muitas das velhas ideias foram então literalmente viradas de cabeça para baixo: descobriu-se que a selva amazônica não era de todo uma imensa floresta virgem, como acreditavam Meggers e seus seguidores, mas foi o resultado de mudanças fundamentais no ambiente que foram realizadas pelo homem. Uma das principais evidências veio a ser a presença na Amazônia de vastas áreas da chamada terra preta de índio – um solo antropogênico extremamente escuro, único pelas suas características, sendo as fundamentais destas, sua extraordinária fertilidade e presença de uma enorme quantidade de fragmentos de cerâmicas, sinal da residência prolongada de uma grande população sedentária.

 

Segundo dados recentes (Johnston, 2015), resultantes do novo estudo do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), com sede em Manaus, a terra preta teria coberto uma área de mais de 150 mil quilômetros quadrados – cerca de 3,2% da floresta total. A equipe internacional de pesquisadores concluiu que a população mínima na região, ao momento da descoberta das Américas, seria de oito milhões de pessoas, com um 'improvável' topo de 50 milhões (!). A grande maioria dessa população teria sido exterminada, em primeiro lugar, por doenças trazidas pelos brancos, chegando a floresta a ser desabitada novamente.

 


Geoglifo pré-colombiano na Amazônia Brasileira, no Estado do Acre. Recentes descobertas arqueológicas têm evidenciado vestígios de sociedades complexas e numerosa povoação no que se considerava anteriormente o "paraíso ilusório".

Fonte: dostoyanieplaneti.ru

 

Eis como David Grann define no seu livro a essência da disputa entre as duas escolas:

 

"Enquanto olhava para Z, descobri que um grupo de antropólogos e arqueólogos revisionistas têm cada vez mais desafiado essas visões de longa data, acreditando que uma civilização avançada poderia de fato ter surgido na Amazônia. Em essência, eles argumentam que os tradicionalistas subestimaram o poder das culturas e sociedades para transformar e transcender seus ambientes naturais, da mesma forma que os humanos estão agora criando estações no espaço sideral e cultivando plantações no deserto de Israel. Alguns afirmam que as ideias dos tradicionalistas ainda carregam uma mancha das visões racistas dos nativos americanos, que uma vez infundiram teorias redutivas do determinismo ambiental. Os tradicionalistas, por sua vez, afirmam que os revisionistas são um exemplo da correção política e que perpetuam uma longa história de projetar na Amazônia uma paisagem imaginária, uma fantasia da mente ocidental. O que está em jogo no debate é uma compreensão fundamental da natureza humana e do mundo antigo, e a disputa colocou os eruditos ferozmente uns contra os outros. Quando liguei para Meggers na Smithsonian Institution, ela descartou a possibilidade de alguém descobrir uma civilização perdida na Amazônia. Muitos arqueólogos, disse ela, 'ainda estão perseguindo o El Dorado'" (Grann, 2009: 30).

 

Naturalmente, ao final de sua pesquisa, Grann, de acordo com o cenário da sua narração, compenetra-se da razão dos "revisionistas". E este é o único ponto em que eu estou prestes a concordar com ele. De fato, as últimas descobertas arqueológicas confirmaram plenamente as informações claras e inequívocas sobre a enorme população da Amazônia deixadas a nós pelos cronistas espanhóis e portugueses dos séculos XVI-XVII – informações tão coerentes, consistentes e tão bem alinhadas que é quase impossível duvidar de sua veracidade até pela mesma forma em que estão registradas. As mais conhecidas e importantes destas descrições estão contidas na Relação do frei Gaspar de Carvajal, cronista da famosa expedição do capitão Francisco de Orellana, que descreveu as vastas aldeias e até cidades ao longo do grande Rio das Amazonas.

 

Mas eu me coloco categoricamente contra ao que está fazendo Grann, isto é, divulgando as novas verdades científicas, reveladas a nós pelos "revisionistas" da arqueologia amazônica, refazendo e reinventando Fawcett para tal fim. A relação existente entre as cidades perdidas da Atlântida Amazônica de Fawcett e as descobertas dos "revisionistas" é puramente indireta; mas, como veremos a seguir, alguns dos "revisionistas" procuraram ligar o lendário pesquisador e seu objetivo com esse "El Dorado científico", usando deles, de fato, como se uma placa publicitária para suas descobertas – com a ajuda de David Grann e outros divulgadores.

 

David Grann na selva amazônica, com seus acompanhantes brasileiros.

Fonte: travelreader.net

  

Apesar do título do livro de Grann – "Z, A Cidade Perdida" – o paradoxo mais surpreendente é que esta obra realmente não diz nada sobre a cidade perdida que constituiu o Objetivo Principal do coronel Fawcett. Mais precisamente, há duas referências superficiais à ela: no capítulo 1, onde são citadas apenas duas frases da detalhada descrição da "Z" contida numa carta do coronel ao filho caçula Brian (ibid.: 11; vamos tomar conhecimento detalhado desta carta na última parte do presente trabalho); e no início do capítulo 17, onde o autor diz literalmente o seguinte: "Mas Fawcett, consultando registros de arquivos e entrevistando membros das tribos, havia calculado que uma cidade monumental, possivelmente junto com remanescentes de sua população, ficava na floresta que cercava o rio Xingu, no Mato Grosso brasileiro [N. A.: na realidade, Fawcett jamais localizou "Z" nas imediações do Xingu]. De acordo com sua natureza reservada, ele deu à cidade um nome enigmático e sedutor, aquele que, em todos seus escritos e entrevistas, nunca explicou. Ele a chamou simplesmente de Z" (ibid.: 161).

 

Isso é tudo. No restante do livro, todo o conceito da antiga civilização sobrevivente elaborado por Fawcett é simplesmente deixado à margem, sendo de fato substituído pelo conceito dos modernos "revisionistas" da arqueologia amazônica, atribuída falsamente a Fawcett. Tal seria, de fato, o obvio objetivo geral de Grann: popularizar através da figura do lendário explorador as descobertas dos arqueólogos modernos na Amazônia, manipulando a história e retratando Fawcett como um precursor deles, portador de suas ideias.

 

Para começar, Grann está afirmando diretamente que o fundamento de todo o conceito de Fawcett foi se formando precisamente a partir do determinismo ambiental. Assim, o autor americano diz no seu livro, ao se referir à primeira jornada de Fawcett ao rio Verde, em 1908: "Foi apenas a segunda expedição sul-americana de Fawcett, mas demostraria ser fundamental para sua compreensão da Amazônia e para sua evolução como cientista (...). Foi então que Fawcett descobriu o que os exploradores desde Orellana aprenderam e o que se tornaria a base da teoria científica do paraíso ilusório: na floresta mais densa do mundo, era difícil encontrar um pedaço para comer" (ibid.: 94, 98).

 

Mas Grann 'esqueceu' um 'pequeno' detalhe: o caso do rio Verde foi muito peculiar, pois esse rio ‒ como vimos na parte anterior deste trabalho, ao tratar os detalhes da expedição em questão, ‒ tinha águas venenosas num determinado trecho do seu curso, portanto, estava impróprio para qualquer vivente. Daí precisamente surgiu o grave problema da fome e sede para a comitiva Fawcett e não por outra causa qualquer. Portanto, vista essa qualidade tão específica do Verde, não seria possível tirar daquela experiência qualquer regra geral para toda a imensa região amazônica (pois afirmar que todos os rios amazônicos são venenosos seria uma tolice), até mesmo para a elaboração da teoria do "paraíso ilusório" que, por certo, seria lançada apenas em 1971.

 

Nos capítulos a seguir, Grann, sempre operando no âmbito das noções de duas escolas da arqueologia amazônica, tenta combinar o incompatível, retratando Fawcett ao mesmo tempo como um típico e medíocre racista vitoriano, que compartilhava a preconcebida visão dos índios, própria da escola dos "tradicionalistas"; e como um portador das ideias da correção política moderna, que já estava se acercando às apalpadelas ao "revisionismo" da nova escola. Segundo Grann, Fawcett, apesar de todo o seu racismo vitoriano, não teria podido deixar de ver que os índios, todavia, eram capazes de superar as restrições impostas pela natureza, e, portanto, realmente havia condições para a existência de uma grande população e sociedades complexas na Amazônia.

 

Mas tal versão não apenas tem nada a ver com a verdade histórica, mas também revela um dos piores defeitos de Grann como pesquisador – sua constante inclinação pelos anacronismos, que poderia ser explicada ora pela falta total do sentido interno da história, ora, mais provavelmente, pela sua necessidade de cumprir a todo custo com o objetivo proposto, isto é, ligar artificialmente Fawcett aos "revisionistas".

 

Para provar isso, bastaria ouvir com devida atenção e siso ao seguinte trecho da conferência pública de Grann lida em fevereiro de 2009 no Museu da Ciência de Boston, sendo esta uma apresentação do livro publicado naquele mesmo mês. Essa conferência resulta ser útil ao nosso propósito por ser uma recontagem sintética dos postulados básicos do livro.

 

Eis o que disse literalmente o Sr. Grann (vídeo da conferência em 21:19 – 23:03; 23:19 – 23:40) (grifo meu):

 

"De fato, muitos cientistas assumiram que nenhuma civilização complexa poderia ter se desenvolvido na Amazônia. Em 1971 Betty Meggers, que era, talvez, a arqueóloga mais influente que trabalhou na Amazônia, resumiu a região como um paraíso ilusório, um lugar que, apesar de toda sua fauna e flora, é realmente inimigo da vida humana. Ela argumentou que, devido ao seu forte sol, inundações e chuvas, o solo sofria de lixiviação de nutrientes, tornando-se muito infértil, e por isso era muito difícil, praticamente impossível, desenvolver a agricultura nessas áreas. E então eles [N. A.: os cientistas "tradicionalistas"] argumentaram que os índios não podiam produzir suficiente alimento para sustentar uma grande população, e uma grande população é o precursor de qualquer sociedade complexa com divisões do trabalho e hierarquia política, como cacicados ou reinos.

 

Mas Fawcett, que explorou esta área a partir de 1906, durante quase duas décadas até a sua expedição final em 1925, começou a acreditar que essas suposições eram falsas. Ele entrou em contato com várias tribos que nunca tinham sido contatadas antes no sertão, e quanto mais avançou, quanto mais profundo foi ao tentar se retirar do assalto dos colonos, tanto maiores ele encontrava as populações, tanto mais ele descobria que as culturas eram robustas, que não foram dizimadas pelas doenças, que tinham culturas vibrantes. Mais importante ainda, ele descobriu que elas muitas vezes eram capazes de gerar grandes estoques de comida, enquanto ele muitas vezes entrava nesses assentamentos encontrando-se faminto. (...) Rapidamente Fawcett ficou impressionado com a quantidade de comida que eles tinham e a forma brilhante em que eles se adaptaram às condições da selva. Muitas vezes eles usavam as várzeas amazônicas, que eram mais férteis que a terra firme, para cultivar, e inventaram maneiras engenhosas de caçar e pescar, muitas vezes usando venenos e outros jeitos muito deste tipo, e a comida, disse ele, nunca os preocupou".

 

David Grann, na sua conferência no Museu da Ciência de Boston (25 de fevereiro de 2009).

Fonte: You Tube/reprodução.

 

Resumiremos, leitor: de acordo com Grann, em 1971 Betty Meggers apresentou sua teoria do "paraíso ilusório", mas Fawcett, que estava explorando a Amazônia de 1906 a 1925, já naquela época pretérita tinha começado a pensar que as suposições de Meggers eram falsas! Que significa isso? Que o autor americano é incapaz de se orientar no tempo, antepondo o futuro ao passado? Ou é porque Grann pretende mostrar-nos um Fawcett viajando na máquina do tempo a seis décadas adiante, tomando conhecimento da teoria de Meggers, e depois, ao retornar à sua época, começando a duvidar desta?

 

Falando mais precisamente, no trecho citado, Grann se refere aos encontros de Fawcett com os povos Guarayo, Echoja e Mashubi, todos acontecidos, como vimos na primeira parte, no período de 1910 a 1914. Significaria isso que, segundo Grann, a teoria do "paraíso ilusório" já tivesse sido apresentada ainda antes da segunda década do século XX? Mas neste caso por que teria citado Grann a Meggers e sua teoria de 1971 e não aos cientistas contemporâneos de Fawcett?

 

Se olharmos para o livro de Grann, efetivamente, veremos que o autor americano pretende dizer precisamente isso – que a teoria do "paraíso ilusório" já teria surgido na época de Fawcett e que o coronel supostamente já teria estado contestando-a. Mas é curioso notar que a versão do livro não é igual àquela que foi apresentada posteriormente pelo autor na conferência: nesta última, como já vimos, afirma-se de forma implícita que a teoria do "paraíso ilusório" já seria dominante na primeira metade da década de 1910 – como Fawcett, em meio às suas expedições desta época, "começou a acreditar que essas suposições eram falsas", – entretanto, no livro Grann afirma claramente que a teoria de "Z" passou a ser contestada a partir das posições do determinismo ambiental somente após a Primeira Guerra Mundial, isto é, desde 1919, quando Fawcett voltou da frente, retomando suas pesquisas e projetos. O surgimento deste novo conceito, segundo Grann, se devia à vinda da nova geração de cientistas logo após a guerra.

 

Vejamos o correspondente trecho do livro (grifo meu):

 

"Colegas já tinham duvidado [N. A.: antes da guerra] de sua teoria de Z em grande parte por razões biológicas: os índios eram fisicamente incapazes de construir uma civilização complexa. Agora, muitos da nova geração de cientistas duvidaram dele por razões ambientais: a paisagem física da Amazônia era muito inóspita para que as tribos primitivas construíssem qualquer tipo de sociedade sofisticada. O determinismo biológico cada vez mais dava lugar ao determinismo ambiental. E a Amazônia – o grande "paraíso ilusório" – foi a prova mais vívida dos limites malthusianos que o meio ambiente colocava nas civilizações (...). Um artigo em Geographical Review concluiu que a bacia amazônica estava tão desprovida de humanidade que era como 'um dos grandes desertos do mundo... comparáveis com o Saara'" (Grann, 2009: 171).

 

Em outras palavras, segundo a direta afirmação de Grann, em 1919 os cientistas da nova geração já se referiam explicitamente à Amazônia como a um "paraíso ilusório". Mas como isso pode ser possível? Afinal, tanto no livro quanto no artigo e na conferência, Grann claramente indica que a teoria do "paraíso ilusório" foi apresentada por Betty Meggers apenas em 1971 – o que, efetivamente, corresponde à realidade!

 

Quanto ao artigo em Geographical Review (edição periódica da American Geographical Society), – única evidência apresentada por Grann a favor da suposta existência, naquela época, da teoria do determinismo ambiental, a partir da qual Fawcett teria sido contestado, – esse é um ponto particularmente interessante. Trata-se do artigo de um tal W. L. Schurz, "The Distribution of Population in the Amazon Valley" ("Distribuição da população no Vale do Amazonas"), publicado em 1925. Ao indagar a questão, eu encontrei esse artigo, seguindo a referência bibliográfica no livro de Grann e, para minha maior surpresa, descobri que o tal Shurz jamais foi um cientista, mas o adido comercial dos Estados Unidos no Rio de Janeiro! E, obviamente, nem sequer tinha em mente descrever a região amazônica em perspectiva histórico-ambientalista, mas, conforme o seu perfil profissional, descreveu-a do ponto de vista das estatísticas econômicas e demográficas contemporâneas. Vejamos a citação referida por Grann mais extensamente, não fora do contexto (como costuma fazer esse astuto autor), mas dentro deste:

 

"A Bacia Amazônica é um dos maiores desertos do mundo. Uma área de 2.000.000 milhas quadradas suporta uma população de menos de um para a milha quadrada. É comparável com o Saara. Paradoxalmente, a Amazônia é uma região de grande riqueza natural. (...) ...o maior obstáculo ao desenvolvimento da Amazônia está na própria riqueza de produtos naturais e facilmente exploráveis. As indústrias extrativistas, das quais a borracha é fundamental, absorveram a população em detrimento da agricultura, que fomenta a colonização permanente. Por outro lado, é a busca pelo 'ouro negro' que levou ao povoamento da grande parte da bacia" (Schurz, 1925: 206).

 

Assim, segundo Shurz, o caráter "desértico" da Amazônia foi influenciado não pelo falado determinismo ambiental (como deseja Grann), mas pelo 'boom' da borracha, que causou, primeiramente, a colonização da grande parte da Bacia Amazônica e, segundo, atraiu todos os recursos humanos para os centros da extração de borracha, em detrimento da agricultura, necessária para um assentamento permanente, ficando a maior parte da região ainda deserta.

 

Resumindo: Grann não consegue provar de forma alguma a realidade das supostas "disputas de Fawcett com os deterministas ambientais" nem antes, nem depois da Primeira Guerra Mundial, deixando nos seus textos uma inteira confusão a respeito e atolando-se nas contradições cronológicas gravíssimas. A razão disso não há de ser procurada longamente: na época de Fawcett, simplesmente não existia ainda qualquer teoria científica sobre as restrições ambientais que impõe a natureza da Amazônia sobre a vida do homem e das sociedades; não surgira ainda não apenas a escola dos "revisionistas", mas até mesmo a dos "tradicionalistas". Podemos constatar aqui, por parte de Grann, um franco e rude anacronismo (por certo, longe de ser o único nos seus textos), o qual, no topo de tudo, constitui o fundamento de toda a sua visão de Fawcett.

 

Para aclarar de uma vez por todas qual era a opinião da ciência do primeiro quarto do século XX a respeito do ambiente da Amazônia, faremos uso de uma indicação clara e inequívoca de um daqueles peritos que são das autoridades principais para o próprio Grann, isto é, modernos cientistas americanos. A geógrafa Antoinette Winklerprins, da Universidade Estadual de Michigan (uma cientista não citada por Grann), analisando especificamente as noções sobre o solo amazônico existente ao longo da história, estabeleceu os seguintes períodos: "the 'Victorian Bounty'" ("Profusão Vitoriana"), "the 'Period of Modernist Thinking'" ("Período de Pensamento Modernista"), e "Post-Modern Interpretations" ("Interpretações Pós-Modernas"). Basta que nos familiarizemos apenas com o primeiro destes, já que, cronologicamente, cobre o período da vida de Fawcett.

 

Tem, então, a palavra a professora Winklerprins (grifo meu):

 

"A era vitoriana talvez seja melhor exemplificada pelos escritos de Henry Walter Bates, intrépido naturalista/explorador de meados dos anos 1800. Ele iniciou um mito muito perpetuado sobre a fertilidade percebida dos solos da floresta amazônica, incluindo as áreas da várzea (Bates, 1864). Sua descrição da verdejante e exuberante floresta tropical lançou a ideia de que os solos da floresta amazônica devem ser muito férteis e possuem um grande potencial para a exploração agrícola. Suas ideias foram fundadas no contexto europeu, onde as florestas foram associadas com terras agrícolas férteis uma vez limpas. Como Bates o encarava, o 'problema' do uso da terra na região eram os modos preguiçosos da população local, que precisava usar métodos agrícolas mais civilizados. Herbert Smith oferece interpretações semelhantes, tiradas de suas viagens no Baixo Amazonas (Smith, 1879).

 

Até mesmo, embora o reconhecimento de os solos da floresta tropical não serem tão férteis quanto primeiramente assumido, ocorreu já no final da década de 1920 (por exemplo, Marbut e Manifold, 1926), a ideia de bons solos para a agricultura sob a exuberante floresta tropical persistiu bem na segunda metade do século XX. Este mito da luxúria é em parte responsável pelos enormes esforços de desenvolvimento por parte do governo brasileiro para ocupar a Bacia Amazônica com camponeses sem terra deslocados das áreas agrícolas do sul..." (Winklerprins, 2002: 322-2-3).

 

E assim vem o momento da verdade: pela primeira vez, a ideia de o solo amazônico não ser tão fértil como se tinha pensado anteriormente surgiu apenas em 1926 (!), no artigo de C. F. Marbut e C. B. Manifold "The Soils of the Amazon Basin in Relation to Agricultural Possibilities" ("Os solos da Bacia Amazônica em relação às possibilidades agrícolas"), também publicado em Geographical Review. (Não vamos profundar no conteúdo deste artigo, já que, no presente contexto, apenas nos interessa a data do surgimento do novo conceito; o leitor interessado facilmente poderá encontrar o artigo inteiro em acesso livre na Internet). E como bem sabemos, na altura de 1926 Fawcett havia desaparecido em Mato Grosso já por um ano.

 

Deve-se acrescentar também que o padrão da "cultura da floresta tropical" em relação aos indígenas amazônicos como sendo incapazes de desenvolver uma alta cultura devido às limitações naturais do ambiente foi apresentado pela primeira vez apenas em 1948 pelos antropólogos estadunidenses Julian Steward e Robert Lowie no 3o volume de "Handbook of South American Indians" ("Guia dos Índios sul-americanos"), editado por Steward; o mesmo título desse volume –  "Tropical Forest Tribes" ("Tribos da floresta tropical") – já introduzia a nova noção. O trabalho sobre este particular volume se estendeu por 12 anos, de 1936 a 1948.

 

Em 1954, o mesmo conceito foi desenvolvido pela Dra. Betty J. Meggers no seu clássico artigo "Environmental Limitations on the Development of Culture" ("Limitações ambientais sobre o desenvolvimento da cultura"), também argumentando que a floresta tropical não seria capaz de suportar sociedades complexas por causa das limitações ambientais sobre o potencial agrícola. E, como já sabemos, em 1971 a "mãe" da arqueologia amazônica apresentou um conceito renovado – o do "paraíso ilusório" – no seu livro "Amazonia: Man and Culture in a Counterfeit Paradise" ("Amazônia: homem e cultura no paraíso ilusório"): comparado com a sua visão de 1954, essa teoria revisada já foi muito menos extrema.

 

Vista aérea da selva amazônica, considerada durante décadas como um "paraíso ilusório".

Autor/Fonte: Jorge.kike.medina/Wikimedia Commons.

 

Todos esses marcos cronológicos, referentes ao desenvolvimento de um conceito científico, nos mostram de forma patente que durante a vida de Fawcett simplesmente não existia – nem mesmo podia existir – qualquer escola dos "tradicionalistas amazônicos" que teriam podido contestar sua hipótese sobre as cidades perdidas a partir do determinismo ambiental. Consequentemente, o próprio Fawcett não teria podido elaborar seu conceito de uma desenvolvida civilização nas profundezas das selvas, baseando-se na capacidade dos indígenas de produzir abundante alimento (o que de fato seria antecipar as teorias dos "revisionistas" modernos). Claro, ele estava perfeitamente ciente, por experiência própria, da quantidade de trabalhos e penas necessárias para obter comida na selva – e não deixava de render homenagem às tribos indígenas que encontrava, assombrando-se com sua capacidade de adaptação às condições da floresta amazônica; mas, dada a visão da Amazônia imperante naquela época – a visão da "profusão vitoriana", –  ninguém então jamais poderia imaginar haver lá um "paraíso ilusório", já que a inteira região, coberta de vegetação luxuriosa, era percebida como sendo constituída por terras férteis. Assim, o fato de os indígenas serem capazes de se prover de comida em abundância não poderia se tornar, na época, a base para uma teoria científica revolucionária, muito menos para qualquer "revisionismo", que chegaria muitíssimo mais tarde.

 

Também pode-se argumentar que, afinal, a capacidade dos índios amazônicos de se prover de abundantes mantimentos foi testemunhada, na época, não apenas por Fawcett. Como exemplo, podemos citar ao Barão Erland Nordenskiöld, cientista e explorador sueco e uma das maiores autoridades na etnologia sul-americana, contemporâneo e conhecido de Fawcett (já nos encontramos com ele na primeira parte deste trabalho). Ele, em 1904 e início de 1905 visitou as tribos da floresta nas imediações do lado oriental dos Andes, na região fronteiriça entre o Peru e a Bolívia: os Guarayo-Tambopata, no rio Tambopata (os mesmos visitados em 1910 e 1911 por Fawcett, quem os conheceu sob o nome de Echoja), os Yamiaca, no rio Inambari, e os Atsahuaca, residentes entre os dois rios mencionados. Vamos dar a palavra ao Barão Nordenskiöld, quem compartilhou suas observações numa conferência proferida na Royal Geographical Society (RGS) em 26 de fevereiro de 1906:

 

"Todos esses índios da floresta primordial são agricultores, embora não tenham lugar de residência estabelecido [N. A.: itálico de Nordenskiöld]. Eles são pessoas que cultivam o solo e ainda são constantemente ambulantes. Cada tribo possui campos espalhados por um grande território, que eles visitam, por sua vez, para semear e colher. (…) Em quase todas as clareiras, as bananas são cultivadas... Outras plantas são cultivadas entre elas, as que precisam de muito sol, no entanto, [acontece] nos campos onde a banana não é cultivada, ou as bananeiras são bem pequenas. Um cuidado especial é dedicado aos canaviais, sendo vedados e providos de suportes. Além das bananas, vi as seguintes plantas cultivadas: mandioca amarela e branca, batata-doce, calabresa, algodão, uma variedade estreita e muito palatável de cana-de-açúcar e milho. Além destes, os Tambopata-Guarayo cultivam hualusa (Colocasia esculenta) e tabaco, os Atsahuaca, aji, e os Yamiaca, o pinheiro, que é obtido dos brancos. De todas essas plantas, a banana é a mais importante, depois a mandioca e o milho. (…) Quando levado para o acampamento, o produto dos campos se torna propriedade privada. Esses índios sustentam a vida, não só pela agricultura, mas também pela caça e pesca. Os Yamiaca e Tambopata-Guarayo são pescadores muito ardentes; os Atsahuaca são os melhores caçadores. A pesca é feita com arco e flecha. (…) Os espólios da caça e da pesca tornam-se propriedade comum sempre e quando é feita uma grande matança ou boa captura" (Nordenskiöld, 1906: 123-5).

 


Cabana dos índios Atsahuaca, residentes entre os rios Tambopata e Inambari e visitados pelo Barão Nordenskiöld em 1904/1905.

Fonte: Nordenskiöld: 1906.

 

Não apenas, segundo podemos ver, se encontra Nordenskiöld infinitamente longe de qualquer tipo de ideia de "paraíso ilusório", mas também, por meio da citada descrição, oferece-nos um dado chave em relação a Fawcett: a próspera e desenvolvida agricultura, encontrada pelo menos em várias tribos amazônicas na época, não esteve ligada de modo algum com o modo sedentário de vida, pelo contrário, foi praticada pelas tribos errantes. Afinal, o próprio Fawcett pôde observar a mesma curiosa combinação – uma agricultura a larga escala, manifestada por grandes plantações, e o modo de vida errante – entre os Guarayo do rio Heath, em 1910. Portanto, simplesmente não teria sido possível para Fawcett encontrar aqui qualquer fundamento para o conceito de "Z", uma clássica civilização urbanística no coração da Amazônia.

 

Por que, então, o Sr. Grann está apresentando um panorama completamente falso e anacrônico tanto das teorias de Fawcett como dos padrões científicos gerais do primeiro quarto do século XX? Por que está transpondo as visões científicas da segunda metade do século XX e começos do XXI para a época de Fawcett, fazendo do coronel um "revisionista" ao modo dos nossos dias? A resposta a encontramos justamente no final tanto do artigo de Grann, de 2005, como do seu livro de 2009: está fazendo isso para poder declarar solenemente que a "Z" de Fawcett seria nada menos que os sítios pré-históricos xinguanos descobertos a partir da década de 1990 pelo antropólogo americano Dr. Michael Heckenberger, um dos mais notáveis "revisionistas". E também um cientista de quem Fawcett, segundo Grann, seria o direto precursor.

 

As "cidades perdidas" do Xingu, ou a "Z" do Dr. Michael Heckenberger

 

Como a principal novidade científica da pesquisa de Grann consiste precisamente na identificação do Objetivo Principal do coronel Fawcett com os vestígios da civilização xinguana, publicamente declarada descoberta em 2003 pelo Dr. Heckenberger, vamos ver em continuação os detalhes essenciais desta descoberta, obtidos por este cientista e seu grupo de colaboradores no período de 1993 a 2008 (seguindo Heckenberger et al., 2003; Heckenberger et al., 2008, prioritariamente; Heckenberger, 2009; Pivetta, 2003; e o documentário "Secret Cities of the Amazon", da National Geographic, 2008).

 


Dr. Michael J. Heckenberger, na aldeia Kuikuro, em 2008.

Fonte: "Secret Cities of Amazon" (print do vídeo).

 

De acordo com o Dr. Michael J. Heckenberger, antropólogo da Universidade da Flórida, ele conseguiu descobrir no território do Parque Indígena do Xingu, não muito distante das três aldeias contemporâneas dos Kuikuro (uma das principais tribos indígenas da reserva), vestígios de uma avançada civilização protourbana. Mais precisamente, o cientista americano parece estar ambíguo em definir essa civilização como urbana ou protourbana, mesmo como em designar os antigos centros desta como cidades – assim, em uma das suas entrevistas ele disse claramente que "não são cidades, mas sim é urbanismo" (BBC Mundo, 2008); contudo, nos seus artigos com detalhadas descrições dos achados ele faz uso precisamente do termo "cidades" ("towns"), e até mesmo sem aspas. Na realidade, as "cidades muradas" ou "fortificadas" de Heckenberger devem-se entender como super-aldeias, ou protocidades que, segundo o pesquisador americano, seriam umas 10 ou até 15 vezes maior que uma aldeia Kuikuro atual – tanto que os Kuikuro são a maior comunidade entre os xinguanos de hoje.

 

O Dr. Heckenberger e seus colaboradores identificaram 28 sítios residenciais pré-históricos, de formato circular, classificados por eles em três categorias: "grandes" (40 hectares ou mais) e "médias" (menos de 30 hectares) "cidades com praça", "vilas menores com praça" (menos de 10 hectares), bem como por "pequenas aldeias sem praça", similares em tamanho e forma às maiores das aldeias contemporâneas.

 

Nos grandes assentamentos, a praça central circular tinha de 120 a 150 m de diâmetro e, mesmo como nas aldeias contemporâneas, servia como centro político-ritual e, provavelmente, cemitério do grupo local. Mais surpreendentemente, as praças foram dispostas ao longo de pontos cardeais, de leste a oeste, e as estradas foram posicionadas nos mesmos ângulos geométricos retos. A elaborada estrutura das "cidades muradas", ou "cidades com praça", também incluía portões, estradas e praças secundárias (possíveis áreas de encenação ritual). Essas "cidades" eram protegidas por robustos muros de paliçadas e cercadas por grandes valas (500 a 2000 metros de comprimento), definindo limites de assentamentos e, em alguns casos, ocorrendo dentro de assentamentos. As valas variam de 1 a 3 metros de profundidade e de 5 a 10 metros de largura.

 

 

Acima, a aldeia Kuikuro atual, maior comunidade entre os xinguanos de hoje; abaixo, reconstrução da aldeia fortificada pré-histórica xinguana, 15 vezes maior que a atual.

Fonte: "Secret Cities of Amazon" (prints do vídeo).

 

Geralmente, os assentamentos eram separados por uma distância de 3 a 5 km e ligados por um sistema de estradas de terra batida, largas e retas, com montes lineares, ou "passeios", posicionados nas margens das principais estradas e praças. A largura dessas estradas varia de, no mínimo, 10 metros até 40 metros, o que seria a largura das autoestradas modernas de quatro pistas, ainda que os índios não transportassem nada de tão grande como para justificar tamanha largura: de acordo com os pesquisadores, esta seria explicada pela tradição de efetuar rituais em procissões coletivas passando de um assentamento para outro como símbolo da união entre as comunidades.

 

Os assentamentos estavam ligados entre si, segundo as mesmas orientações pelos pontos cardeais – assim, cada cidade tinha uma "estrada oficial" que conduzia sempre para leste ou oeste do assentamento. Tal sistema de orientação, próprio das praças e estradas, se prolongava por toda a região, fenômeno considerado pelo Dr. Heckenberger uma das coisas fascinantes dos antepassados dos Kuikuro, construtores das "cidades".

 

A maioria ou todos dos assentamentos estão associados a dois "agrupamentos galácticos" (segundo a denominação dada pelos cientistas), que representavam pequenas entidades políticas territoriais: Ipatse, aglomerado do norte, melhor estudado, e Kuhikugu, aglomerado do sul, principal centro político-ritual e maior centro residencial. O território de cada um era de aproximadamente 250 km2. Cada aglomerado tinha um "centro exemplar de praça". A posição em relação a este centro constitui outra notável característica das "cidades muradas", além do seu tamanho maior e elaboração estrutural: os maiores centros residenciais estão localizados aproximadamente a uma equidistância (3 a 5 km) do "centro exemplar" para o noroeste e sudeste e centros de tamanho médio, para o nordeste e sudoeste, cerca de 8 a 10 km do centro. A área delimitada pelos satélites primários representa a área central de cada entidade política, com assentamentos menores sem muralhas situados em uma área do interior.

 

Extensas ocupações residenciais foram identificadas através de porções interiores de assentamentos murados, incluindo restos estruturais (áreas domésticas e de lixo) e utensílios de cerâmica, cobrindo mais de 20 hectares em assentamentos de primeira ordem. Dentro de cada agrupamento, os cientistas estimaram de 100 a 150 hectares ou mais de espaço de assentamento e uma população em meados de milhares (entre 2.500 e 5.000 pessoas), distribuída entre "cidades muradas", que se estima terem 800 a 1000 ou mais pessoas (como conhecido etnograficamente em áreas adjacentes), e aldeias menores não muradas (de 250 a 100 pessoas).

 

Tendo composto o mapa das comunidades de toda a região, os pesquisadores se deram conta de que todos os assentamentos estavam interligados, apresentando um padrão disperso e multicêntrico de uma rede de "cidades" e aldeias, organizadas em uma hierarquia aninhada, que gravitava em direção a um centro político-ritual exemplar. A distribuição de grandes centros indicava a existência de um sistema igualitário do poder regional, composto de 15 ou mais aglomerados esparsos por toda a região da bacia do Alto Xingu, em uma área de aproximadamente 20.000 km2, incluindo locais distantes ao norte e ao sul da área de estudo, e com uma população regional estimada em 50.000. Dentro deste sistema, as unidades políticas teriam sido geograficamente e socialmente articuladas, mas independentes, compartilhando características básicas de tecnoeconomia, organização sociopolítica e ideologia.

 

Tais aglomerados de "cidades muradas" e aldeias não muradas teriam sido mantidos por sistemas semi-intensivos de gestão de recursos. Similarmente às aldeias de hoje, seriam provavelmente focadas na agricultura da mandioca, com diversas culturas menores (incluindo a arboricultura), como sugerido pela continuidade no uso da terra e tecnologia utilitária, como também pela gestão extensiva de zonas úmidas (como piscicultura), segundo indicado pela presença de outros tipos de terraplenagens, como pontes, obstruções artificiais nos rios e lagoas, caminhos elevados, canais, lagoas artificiais e fundações de açudes. Muitas dessas estruturas, formidáveis obras de engenharia e construção, ainda se encontram em uso.

 

É notável que Heckenberger em geral não relaciona a civilização xinguana com a presença das terras escuras antropogênicas, que, segundo ele, não abundam na região (ainda que estejam presentes nos terrenos compostos dentro dos assentamentos), já que a população nativa até o dia de hoje depende principalmente do cultivo da mandioca e dos pomares, que não necessitam de solo muito fértil.

 

Cronologicamente, o período de existência dos "agrupamentos galácticos" data de 1250-1700 d.C., com subdivisão no "galáctico inicial" (1250-1400) e "galáctico terminal" (1400-1700), começando a partir de 1700 o período histórico xinguano, que continua na atualidade. A causa do extermínio desta complexa sociedade indígena, segundo Heckenberger, teriam sido as epidemias trazidas pelos exploradores e colonizadores europeus. O despovoamento catastrófico teria se dado desde aproximadamente 1600 até 1700, levando ao abandono dos assentamentos pré-históricos e resultando em extensos reflorestamentos em muitas áreas.

 

Segundo Heckenberger contou a Grann, "Todos esses assentamentos foram definidos com um plano complicado, com um senso de engenharia e matemática que rivalizava com qualquer coisa que estivesse acontecendo em grande parte da Europa na época" (!) (Grann, 2009: 273). Uma asserção muito atrevida, por certo, que, no caso de ser correta, traz consigo novas e sérias incógnitas. Por exemplo, essa: seria natural imaginar um alto nível de desenvolvimento de engenharia e matemática sem existência de uma escrita? Pelo menos, a experiência das civilizações do Velho Mundo – e até mesmo a simples lógica – nos diz que precisamente o surgimento da escrita, um meio para fixar os conhecimentos que vão se acumulando, é um fundamento imprescindível para o ulterior desenvolvimento das diversas esferas de conhecimento e as ciências como tais. Mas Heckenberger não diz nada sobre a possibilidade de existência de uma escrita xinguana. Outra pergunta: a Europa do Renascimento – contemporânea das "cidades" xinguanas – recorreu um longo e nada fácil caminho civilizacional, começando por antiguidade clássica, para atingir o nível de conhecimento matemático e de engenharia dos séculos XVI-XVII; mas quais seriam as condições específicas que determinaram um desenvolvimento semelhante ou até mesmo mais alto destas esferas de conhecimento na selva amazônica? E outro enigma: segundo Heckenberger contou a Grann, os próprios Kuikuro, ainda sabendo da existência dos assentamentos pré-históricos, não tinham qualquer ideia sobre a possibilidade de serem construídas pelos seus antepassados: nas palavras de Afukaká, o cacique Kuikuro, eles acreditavam que tudo aquilo fosse construído pelos espíritos (ibid.: 270). Foi Heckenberger quem estabeleceu o caráter sucessivo da história da região, identificando os construtores dos assentamentos como os antepassados diretos dos Kuikuro atuais. Contudo, não deixa de parecer paradoxal que, em um prazo historicamente bastante curto – três séculos, – os Kuikuro não apenas perderam completamente a inteira bagagem de conhecimentos científicos necessários para edificar tais assentamentos, mas até mesmo esqueceram por completo o grande e majestoso passado do seu povo, nem sequer conservando a mais leve memória dele nas tradições.

 


Índios da etnia Kuikuro na cerimônia de encerramento da nona edição dos Jogos dos Povos Indígenas (Olinda-PE).

Autor/Fonte: Valter Campanato/ABr/Wikimedia Commons

 

Mas o que há de Fawcett em relação às "cidades" xinguanas? Na opinião de Heckenberger, o fato de o coronel não ter descoberto esses assentamentos seria explicado facilmente: "Não há muita pedra na floresta, e a maior parte dos assentamentos foi construída com materiais orgânicos – madeira, palmeiras e terra – que se decompõem" (Grann, 2009: 271). Além disso, segundo ele, os monumentos da civilização xinguana não eram pirâmides, tendo, pelo contrário, umas feições horizontais, e por isso sendo tão difíceis de encontrar (ibid.: 273). Também segundo o colaborador brasileiro de Heckenberger, o antropólogo Carlos Fausto, do Museu Nacional, da UFRJ, o povo que construiu as "cidades" teria "uma monumentalidade horizontal" (Pivetta, 2003).

 


Mulheres da aldeia Kuikuro cuidando do preparo dos alimentos.

Autor/Fonte: Ras1193/Wikimedia Commons

 

Não é possível duvidar da importância, grandeza e caráter revolucionário das descobertas do Dr. Heckenberger e sua equipe. Como foi constatado recentemente na conferência "Amazon Frontiers", "A pesquisa de Heckenberger transformou a nível mundial a compreensão das relações homem-ambiente na Amazônia" (Amazon Frontiers, 2018). Na expressão de David Grann, "Heckenberger ajudou a pôr no avesso a visão da Amazônia como um paraíso ilusório que nunca poderia sustentar o que Fawcett previra: uma civilização gloriosa e próspera" (Grann, 2009: 273), ainda que realmente o autor americano não deveria envolver Fawcett no assunto: de fato, o coronel previra algo completamente diferente.

 

Pessoalmente, acho que as descobertas de Heckenberger tenham um valor incalculável para a reabilitação dos primeiros cronistas da Amazônia, em primeiro lugar, do já mencionado frei Gaspar de Carvajal – uma reabilitação que, em consequência, pode levar à reconsideração de várias outras coisas relatadas nessas antigas crônicas e ainda consideradas improváveis (como, por exemplo, a existência do grande império das amazonas sul-americanas).

 

Mas, a meu ver, Heckenberger atuou de forma inadmissível para um cientista ao misturar as suas descobertas com a cidade perdida de "Z" do coronel Fawcett. Contudo, essa identificação completamente injustificada constitui o objetivo geral pelo qual o livro de Grann foi escrito. Basta ler as derradeiras linhas deste para compreender esse objetivo: "Alguns dos músicos e dançarinos [Kuikuro] circulavam pela praça, e Heckenberger disse que em todos os lugares na aldeia dos Kuikuro 'você pode ver o passado no presente'. Comecei a imaginar os flautistas e dançarinos em uma das praças antigas. Imaginei-os vivendo em casas de dois andares em forma de monte, as casas não espalhadas, mas em filas intermináveis, onde as mulheres teciam redes e assavam farinha de mandioca e onde garotos e garotas adolescentes ficavam em isolamento enquanto aprendiam os rituais de seus ancestrais. Imaginei os dançarinos e cantores cruzando fossos e passando através das altas cercas de paliçada, passando de uma aldeia para outra ao longo de largas avenidas e pontes e caminhos.

 

Os músicos aproximavam-se de nós e Heckenberger disse alguma coisa sobre as flautas, mas eu não conseguia mais ouvir a voz dele pelos sons. Por um momento, pude ver esse mundo desaparecido como se estivesse bem na minha frente. Z" (ibid.: 277).

 

Mas essa conclusão não foi feita pelo próprio Grann, como pode parecer, senão foi induzida a ele por Heckenberger, seu principal consultor acadêmico. Vejamos a questão em detalhes.

 

Segundo conta o próprio Heckenberger (Heckenberger, 2009), quando se aventurou pela primeira vez na região do Xingu, em 1992, ainda mal ouvira falar de Fawcett. Mas para a altura da visita de David Grann à região, em 2005, Heckenberger já conhecia bem a história do coronel e até tentara conduzir sua própria investigação sobre o destino dele. Nas conversas com Grann, Heckenberger confessou estar fascinado por Fawcett e pelo que ele tinha feito no seu tempo; segundo ele, "Fawcett era fácil de descartar como um 'esquisitão'; faltavam-lhe as ferramentas e a disciplina de um arqueólogo moderno, e nunca questionou a crença obsoleta de que qualquer cidade perdida na Amazônia teria que ter origens europeias. Mas, apesar de Fawcett ser um amador, ele continuou a enxergar as coisas com mais clareza do que muitos estudiosos profissionais" (Grann, 2009: 269-70).

 

É aqui precisamente onde as discrepâncias começam. Em nenhum momento Fawcett teria afirmado que as cidades que buscava tivessem origem europeia: pelo contrário, o que buscava era o último remanescente de uma raça perdida e da civilização mais antiga do mundo, desaparecida muitos milênios antes de surgir a civilização europeia. E Heckenberger realmente está ciente disso, pois no seu artigo "As cidades perdidas da Amazônia" afirma diretamente: "O aventureiro britânico esquadrinhou o que denominou 'selvas não mapeadas', buscando uma cidade antiga – a Atlântida – na Amazônia, repleta de pirâmides de pedra, ruas de seixos e escrita alfabética" (Heckenberger, 2009). Por que, então, Heckenberger disse a Grann que Fawcett teria buscado "cidades europeias"? E, por certo, não seria o termo 'aventureiro' demasiado desprezível em relação a alguém a quem Heckenberger afirma ter em estima?

 

A mesma confusão ocorre também no documentário "Secret Cities of the Amazon" ("As Cidades Secretas da Amazônia", na versão subtitulada portuguesa), produzido pela National Geographic em 2008: o Dr. Heckenberger, entrevistado em pessoa, disse literalmente (31:14 – 31:25 do documentário, com grifo meu): "Percy Fawcett veio ao Alto Xingu à procura de algo muito específico: cidades europeias, arquitetura em pedra, templos, aquilo que a maioria imagina quando pensa em civilizações perdidas".

 

Uma curiosidade engraçada da batalha científica entre os "tradicionalistas" e "revisionistas" da arqueologia amazônica: no capítulo anterior, já vimos que, nas palavras de David Grann, os primeiros acusam aos segundos de "perpetuar uma longa história de projetar na Amazônia uma paisagem imaginária, uma fantasia da mente ocidental". Mas não seria esse o mesmo "pecado" que Heckenberger imputa a Fawcett, ao dizer que o coronel teria buscado "cidades europeias" na Amazônia?

 

Por certo, o jornalista David Grann parece ter aprendido com Heckenberger, seu principal consultor acadêmico, o uso indiscriminável dos termos "Europa" e "Atlântida": de fato, são para ele a mesma coisa! No seu artigo de 2005 Grann escreve: "Ele [N. A.: Fawcett] compartilhava a noção amplamente aceita de que qualquer civilização avançada na América do Sul, se alguma vez teria existido, devesse ter tido uma origem europeia – na Fenícia, digamos, ou mesmo na Atlântida" (Grann, 2005). No livro de 2009, tanto os atlantes, como os fenícios e israelitas são exemplos de "ocidentais" para Grann (Grann, 2009: 139). Seria preciso remarcar aqui que ainda não existiam na antiguidade fenômenos histórico-culturais que hoje nos são conhecidos sob os termos "Europa", "civilização europeia" e "Ocidente" (mais anacronismos de parte do nosso "erudito" Grann!)? Que em relação àquelas épocas longínquas devemos nos referir às civilizações do Médio Oriente e do Mediterrâneo e que tanto os fenícios, como os israelitas encontravam-se na encruzilhada destas duas grandes áreas civilizacionais? E que a Atlântida – se a considerarmos uma realidade pré-histórica e não uma ficção literária do filósofo grego Platão – de modo algum era a Europa, sendo de uma vez por todas apontada por Platão no centro do Atlântico, entre a Europa e a América? Segundo Platão disse claramente, os atlantes eram precisamente invasores no Velho Mundo, tendo conquistado a Europa até a Itália e a África até a Líbia. Contudo, Platão chamava os atlantes de "bárbaros", o que para os gregos significava portadores de uma cultura alheia, estranha, precisamente oposta à grega, ou "europeia", se o leitor preferir.

 

Enfim, chamar os fenícios e atlantes de "europeus" e "ocidentais" é tão de ridículo e anacrônico como chamar o Império Romano de OTAN e os hunos de Átila, de Pacto de Varsóvia. Vemos, pois, que Grann, além da cronologia, é mesmo incompetente na geografia e história.

 

Mas por que o próprio Heckenberger, cientista de tamanho nível, se permite tais incoerências – tanto mais que assegura ter grande estima por Fawcett? É difícil explicá-lo, mas, seja como for o caso, pode-se constatar que o que em verdade importa a Heckenberger, não são as matizes das teorias de Fawcett, mas o objetivo geral que o coronel perseguia: as cidades de pedra.

 

O documentário "As Cidades Secretas da Amazônia" revela-nos que Heckenberger não oculta sua intenção de ver suas "cidades muradas" xinguanas identificadas com a cidade perdida de "Z" do coronel Fawcett. Segundo o documentário (31:46 – 31:59; 38:14 – 38:23, com grifo meu), "Para o Prof. Heckenberger, o coronel inglês perseguia uma ilusão e a verdadeira cidade de Z estava muito mais perto do que Fawcett alguma vez imaginou. (...) O Prof. Heckenberger crê que a busca de Fawcett das cidades de pedra na Amazônia possuía uma falha fatal: aqui não há pedra".

 

"A verdadeira cidade de Z"? Significa isso que Heckenberger pretende fazer-nos crer que sabe da "Z" ainda mais que o próprio criador desta, o coronel Fawcett?

 

Aparece logo no documentário o próprio Heckenberger, negando qualquer possibilidade da existência de antigas construções de pedra na Amazônia (38:24 – 38:53):

 

"As civilizações têm de trabalhar com os materiais disponíveis e nesta parte do mundo, na Amazônia, a pedra, ou pelo menos a pedra usada na construção, é bastante rara. Assim, não é provável que construíssem estruturas de pedra. Percy Fawcett veio à Amazônia à procura de edifícios de pedra, templos de pedra, ruas pavimentadas, um sistema de escrita alfabética. Não contava encontrar outros tipos de urbanismo".

 

E quase no final do documentário aparece novamente, dizendo (45:34 – 45:53, com grifo meu): "Nunca vamos encontrar cidades de pedra na Amazônia. Mas se abrirmos a mente e a nossa imaginação e imaginarmos esta comunidade maior antes da despovoação, antes da destruição provocada pelo colonialismo europeu, talvez seja esta a cidade perdida de Z".

 

Que se pode dizer a respeito? Primeiro, que tal identificação é, no mínimo, completamente injustificada. O próprio Heckenberger diz claramente que suas "cidades" xinguanas, construídas com materiais orgânicos, são algo completamente oposto à genuína "Z" de Fawcett, "cidade de edifícios de pedra, ruas pavimentadas e um sistema de escrita alfabética". Como é possível, então, desunir o termo do seu significado genuíno, atribuindo-o a algo que não tem nada a ver com aquilo que foi idealizado por Fawcett? Tanto mais que assim o termo como o conceito foram inteiramente elaborados e usados exclusivamente pelo próprio coronel?

 

Não se deve esquecer em nenhum momento de que Fawcett foi um pesquisador 'alternativo', ou não-convencional; e Heckenberger está tentando  refazer Fawcett a seu gosto, o adaptando à ciência oficial, ao dizer que "faltavam-lhe as ferramentas e a disciplina de um arqueólogo moderno": Fawcett jamais foi um arqueólogo no sentido próprio da palavra, sem importar que a maioria absoluta dos leigos siga afirmando obstinadamente o contrário. Não se pode chamar de 'arqueólogo' alguém que estava à procura de uma civilização vivente. Na verdade, Fawcett foi, em primeiro lugar, um pesquisador esotérico, e fundava seu conceito de uma sobrevivente civilização perdida principalmente nas três bases – atlantologia, misticismo e teosofia. As principais evidências para a existência dessa civilização eram para ele as tradições indígenas e certas informações tiradas dos velhos documentos da época colonial, como também os estudos epigráficos (reconstrução de uma escrita pré-diluviana universal) que realizava durante quase toda a sua vida. Obviamente, valeu-se de dados científicos sempre que estes pudessem sustentar sua hipótese, destacadamente, dos da geologia. E os dados arqueológicos citados por Fawcett são bastante escassos, porque têm que ver com evidências raras, estranhas e até incríveis, que não se encaixam no quadro canônico da ciência. Dados estes que a arqueologia oficial não gosta, preferindo deixar de notá-los.

 

O fato de Fawcett ser um atlantólogo, místico e teósofo não significa que em princípio não poderia ter razão. Não há falta recordar que a ciência oficial em geral jamais mostrou ser desinteresseira, sempre estando na construção do seu próprio modelo da realidade, muito preciso e específico, preferindo deixar a um lado a enorme quantidade de dados 'inconfortáveis', para os quais não há explicação convencional. E eram precisamente esses dados que interessavam a Fawcett em primeiro lugar e que requeriam de alternativas vias do conhecimento. Como disse muito bem seu filho Brian, "Afinal, ele era um explorador – um homem de mente indagadora, cujo desejo pelo conhecimento o levou a explorar mais canais do que um" (Fawcett, 1953: ix).

 

De tudo isso, falaremos mais extensamente na derradeira parte do presente trabalho. Mas o que devemos perceber agora de forma muito clara é que o conceito de "Z" foi um ideal muito pessoal, muito específico do coronel Percy Fawcett; a "Z" não é denominação genérica para toda e qualquer cidade perdida, sendo este misterioso termo cheio de um conteúdo muito preciso e puramente fawcetteano: trata-se de uma hipotética cidade de pedra dos descendentes dos atlantes, que teria contado dez mil anos de antiguidade e ainda estaria habitada, encontrando-se num oculto vale escondido, cercado de altos montes nevados desconhecidos da ciência geográfica. Obviamente, não vamos encontrar tal lugar nos modernos mapas e imagens de satélite – mas isso não revoga o fato de que as ideias de Fawcett já são por si mesmas um fato histórico e um tema de estudo separado, sendo mesmo inadmissível falsificá-lo e deturpá-lo, como qualquer outro, ligando-o a algo, com o que pode ter uma relação notoriamente indireta.

 

Ou aceitamos a "Z" exatamente tal como foi idealizada por Fawcett, ou rejeitamos definitivamente tanto o conceito como o termo. Obviamente, para qualquer cientista acadêmico o inteiro conceito de Fawcett é absolutamente fantástico e inaceitável e inevitavelmente deveria ser rejeitado pela ciência como um todo – e em primeiro lugar, o próprio termo "Z".

 

Como cientista, Heckenberger deveria dizer: a "Z" jamais existiu na realidade, havendo em seu lugar a civilização protourbana xinguana. Mas, estranhamente, ele está se aferrando da forma obstinada ao sonoroso nome do grande objetivo de Fawcett. Heckenberger não quer deixar Fawcett aos atlantólogos e teósofos – o que seria não apenas honesto, mas muito mais conveniente do ponto de vista acadêmico; em vez disso, Heckenberger pretende apresentar Fawcett como seu próprio precursor, atribuindo-lhe certas ideias suas e afirmando: a "Z" realmente existiu, é aquilo que descobri eu, e Fawcett imaginava-a da forma completamente errada.

 

Mas não se pode tomar quaisquer vestígios arqueológicos e afirmar que sejam a verdadeira "Z". Nesse caso, não apenas se trata da falta de ética, mas também de uma intencional distorção de fatos. Assim, por exemplo, segundo a versão Heckenberger – Grann, os assentamentos descobertos pelo antropólogo americano se encontram exatamente na mesma região em que Fawcett acreditava que se encontraria a "Z" (Grann, 2009: 271); mas isso é completamente falso: afinal, Fawcett jamais revelou com exatidão o lugar para onde se dirigia, então, por que Heckenberger e Grann arrogam-se o direito de afirmar que foi precisamente no local dos assentamentos pré-históricos xinguanos? É verdade que dispomos de várias evidências documentais para tentar buscar a verdadeira localização da "Z", segundo Fawcett; mas nenhuma delas oferece-nos nem a mais leve indicação à bacia do Alto Xingu. Até mesmo quaisquer informações sobre a presença do grupo Fawcett nessa área são mais que duvidosas (o que se verá em detalhes na próxima parte deste trabalho).

 

Outro exemplo. Segundo Grann relata sua conversação com Heckenberger, "Por causa da noção prevalente de que a Amazônia era um paraíso ilusório, a maioria dos arqueólogos tinha muito tempo abandonado o remoto Xingu. 'Eles assumiram que era um buraco negro arqueológico', disse Heckenberger, acrescentando que Fawcett era 'uma exceção'" (ibid.: 269). Não me cansarei de repetir que Fawcett jamais tinha em mente buscar a "Z" no Xingu; também vale a pena notar que na época de Fawcett os arqueólogos simplesmente ainda não atingiram a região do Xingu. Mas esses não são os pontos mais interessantes da referida citação. O que vemos aqui é o mesmo anacronismo que analisamos detalhadamente no capítulo anterior: na época de Fawcett ainda não existia o conceito do "paraíso ilusório"; mas desta vez, julgando pelo contexto, parece que é o próprio Heckenberger que procura induzir-nos a crer essa falsidade! Será que Heckenberger, na sua qualidade de principal consultor acadêmico de Grann, foi o verdadeiro inspirador do livro "Z, A Cidade Perdida" e autor do deturpado quadro geral que oferece este livro? Tudo isso para se julgar no direito de chamar sua descoberta de a "verdadeira 'Z'"?

 

Mas por que, afinal, o Dr. Heckenberger se afinca tanto em chamar sua descoberta de "verdadeira cidade perdida de Z"? No mais, poderia ele muito bem inventar o seu próprio termo afim, como por exemplo, a civilização "X" ‒ um "X" tanto de "Xinguano", como de incógnita?

 

A única resposta possível, ao meu ver, é que Heckenberger está fazendo isso pela simples razão de publicidade: o sonoroso nome de "Z" e a ligação a Fawcett eram muito apropriados para que as descobertas de Heckenberger fossem divulgadas com êxito no seu tempo pelas mídias internacionais (o que, de fato, aconteceu), adquirindo suficiente grau de sensacionalismo na sua qualidade de "cidades perdidas da Amazônia". Ainda que não sejam cidades no sentido próprio da palavra.

 

Mas passemos agora ao principal argumento que lança Heckenberger contra as cidades perdidas de pedra na Amazônia: de que as florestas amazônicas carecem de pedra necessária para a edificação de urbes tradicionais.

 

É verdade, claro, que até o presente não foram encontradas ruínas de antigas cidades de pedra na Amazônia (ou, pelo menos, o público geral não dispõe de informações contrárias); mas isso não revoga o fato de que, no caso de outras florestas tropicais, semelhantes ruinas não são uma fantasia romântica a estilo de Sir Henry Rider Haggard, mas uma realidade arqueológica bem conhecida já durante quase 200 anos. As cidades maias nas selvas da América Central não apenas são mundialmente famosas, mas o número das descobertas destas aumentou bruscamente nos últimos anos. Não são menos emblemáticas as ruínas de Angkor Wat, na floresta tropical do Camboja. Por certo, foram precisamente esses dois precedentes absolutamente reais que avivaram no século XIX a esperança da descoberta das cidades perdidas nas selvas do Brasil; tanto as cidades maias, como Angkor Wat não têm nada a ver com a Europa, portanto, é inválido o argumento de Heckenberger e outros autores de semelhante retórica de que a busca pelas cidades de pedra na Amazônia foi uma simples transposição do modelo urbano europeu para as selvas da América do Sul.

 

Em segundo lugar, a afirmação de Heckenberger contradiz o evidente, concreto e inequívoco fato de que pelo menos em uma zona da Amazônia Brasileira realmente existem antigas construções de pedra: trata-se, em primeiro lugar, do imponente "Stonehenge do Amapá", já bastante conhecido, descoberto em 2006 no sítio arqueológico Rego Grande, no município de Calçoene, distante 460 km ao norte de Macapá, pelo casal de arqueólogos Mariana Petry Cabral e João Darcy de Moura Saldanha, então a serviço do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (Iepa). Representa um agrupamento de 147 blocos megalíticos de granito, alguns com 4 metros de altura chegando a pesar 4 toneladas, espaçados em intervalos regulares ao redor do topo de uma colina em forma de coroa, com 30 metros de diâmetro. Poderia ter sido um observatório, como muitas das pedras possuem alinhamento astronômico, marcando os solstícios de inverno e verão. Segundo datações de carbono 14 realizadas pelos descobridores, esse sítio foi ocupado entre 700 e mil anos atrás. Do mesmo período também foram datados outros dez sítios do Amapá, três destes também com megalitos.

 


O "Stonehenge Amazônico", ou Cromlech brasileiro em Calçoene, no Estado do Amapá.

Autor/Fonte: Mariana Petry Cabral/Revista Pesquisa Fapesp.

 


Outro detalhe do "Stonehenge Amazônico".

Autor/Fonte: Leandroisola/Wikimedia Commons.

 

O mesmo David Grann teve que admitir no seu livro que "em 2006, surgiram evidências de que, em algumas partes da Amazônia, os índios construíam com pedra" (ibid.: 275). E até o próprio Heckenberger comentou a descoberta do "Stonehenge Amazônico" da seguinte forma: "Ninguém nunca descreveu algo assim antes. Este é um achado extremamente novedoso – um tipo único de coisa" (Lehman, 2006). Porém, mais paradoxalmente, no citado documentário de 2008, segundo vimos, ele continuou afirmando que "não é provável que construíssem estruturas de pedra na Amazônia", obviamente, ignorando a descoberta do "Stonehenge do Amapá" em 2006. Por que?

 

Vemos, então, que, apesar de ter feito grandes descobertas arqueológicas, Heckenberger, ao mesmo tempo, fez várias afirmações duvidosas e contraditórias, que não deixam de causar sérias perguntas. Aparentemente, no que se refere ao tema da cidade perdida de "Z", o cientista americano deixou se sucumbir à tentação do sensacionalismo, proclamando seu achado o mesmo objetivo que o coronel Fawcett perseguiu.

 

O filme "Z, A Cidade Perdida", ou Um Fawcett refinado, imposto pelo establishment

 

Em fevereiro de 2009, o cineasta hollywoodiano James Gray foi contratado pelo estúdio de cinema Paramount Pictures e pela produtora de filmes Plan B Entertainment para escrever e dirigir o filme baseado no livro de David Grann, publicado no mesmo mês. O filme permaneceu em desenvolvimento por seis anos; sua estreia mundial ocorreu em 15 de outubro de 2016, como a seleção de encerramento da noite no New York Film Festival. O lançamento do filme em diversos países do mundo deu-se ao longo de 2017.

 


James Gray na conferência de "Z, A Cidade Perdida" no 67o Festival Internacional de Cinema de Berlim (Berlinale 2017).

Autor/Fonte: Maximilian Bühn/Wikimedia Commons

 

O filme foi estrelado por Charlie Hunnam como Fawcett, Sienna Miller como sua esposa Nina e Robert Pattinson como Henry Costin, ajudante de campo de Fawcett. Os episódios na Amazônia foram filmados, em vez das selvas bolivianas e brasileiras, na selva colombiana.

 


Capa e cartaz do filme "Z, A Cidade Perdida" na versão portuguesa. Protagonistas principais: ao centro, Percy Fawcett (Charlie Hunnam); Nina Fawcett (Sienna Miller) e Henry Costin (Robert Pattinson).

Fonte: Internet.

 

É interessante notar que a produtora Plan B escolheu Gray para realizar a adaptação cinematográfica do livro de Grann bem antes de este ser publicado. Com base em sua experiência em projetos anteriores, Gray, segundo suas afirmações, nem sequer tinha certeza de por que ele foi escolhido para levar à tela esse livro precisamente. Segundo explicou Gray, "Quando recebi o livro no outono de 2008, ainda não havia sido publicado. Eu não sabia o que era e não tinha ouvido falar da história. (...) Então eu não tinha ideia de por que as pessoas da Plan B decidiram me enviar este livro, porque nada no meu trabalho anterior mostrou que eu poderia fazer algo assim. Talvez tenha sido um ato de loucura da parte deles" (McKittrick, 2017).

 

Em uma entrevista de 2015 com o IndieWire (um site de opinião sobre a indústria cinematográfica), Gray admitiu que ele havia desenvolvido o roteiro por um tempo, antes de passar para a produção. Ele explicou que o filme era (grifo meu) uma "produção muito complicada e a história é incrível, mas é uma história complicada. E você quer fazê-la certa. É uma proposta muito, muito assustadora para ir à selva e tudo mais. Mas ao mesmo tempo é ótimo. É por isso que você faz filmes" (Jagernauth, 2015).

 

Mas realmente teria desejado Gray "fazer a história certa"?

 


James Gray dirigindo a filmagem de "Z, A Cidade Perdida" na selva colombiana.

Fonte: slickstermagazine.com.

 

Em primeiro lugar, o filme não é uma adaptação da verdadeira história de Fawcett, senão uma mera adaptação do livro de Grann – o que já em si pode servir de recomendação suficiente, visto as falsidades desta obra já denunciadas por nós na presente parte deste trabalho. De modo que, ainda antes da estreia, poderia se supor, com todo fundamento, que o objetivo desta produção cinematográfica seria a popularização da versão Grann–Heckenberger, imposta pelo establishment oficial e destinada a fazer Fawcett servir à ciência oficial. De fato, assim aconteceu.

 

No ideal, um filme biográfico sobre Fawcett deveria ser feito com base no livro "Exploração Fawcett", o qual, ainda que fosse escrito por Brian Fawcett e longe de ser uma autobiografia, contudo, reflete, em geral, fatos verdadeiros. Mas o ponto é que Hollywood jamais conseguiu obter os direitos para a adaptação deste livro, portanto, o establishment, interessado em fazer de Fawcett um popular letreiro para as recentes descobertas arqueológicas tratadas ideologicamente, atuou de forma mais simples, mandando escrever o livro a Grann e, em seguida, mandando Gray escrever o roteiro e dirigir o filme.

 

O próximo que um leitor sinceramente interessado em Fawcett deve saber é que o filme em questão de modo algum pode ser qualificado como sendo 'biográfico' ('biopic'). Nem sequer pode ser qualificado como uma peculiar versão da história de Fawcett – trata-se simplesmente de uma fantasia do diretor e roteirista James Gray, uma improvisação em base a poucos, separados e tergiversadamente interpretados fatos da biografia de Fawcett, já passados através do filtro de David Grann.

 

Há que admitir que Gray encontrou-se perante a tarefa nada fácil de condensar a vida e as expedições de Fawcett em 141 minutos. Na entrevista à CNN, ele lembra que, após ler o livro de Grann, pensou que "isso seria essencialmente impossível". E acabou por reduziu o número das expedições de Fawcett (oito pela conta oficial e onze na estimativa real) apenas a três (!). É mesmo curioso que, segundo Gray, "Alguns episódios foram omitidos – não porque eram prosaicos, mas porque, dentro do contexto de um filme, eles eram muito notáveis para serem críveis" (?). Também confessou francamente de se desfazer de qualquer pressão ou obrigações que o tema poderia lhe impor: "Tentei não pensar nas pessoas obcecadas por Fawcett. Isso me levaria pelo pânico de que estragasse tudo... Se eu pensasse sobre isso, iria me destruir. É quase como se você tivesse que fazer o filme sem reconhecê-los. Porque, por mais rude que pareça, neste caso você fica pego nisso – na mitologização – e esse não era meu interesse" (Page, 2017).

 


James Gray (último à direita) e o elenco principal de "Z, A Cidade Perdida" (da esquerda para a direita: Charlie Hunnam, Sienna Miller e Robert Pattinson) na estreia do filme no Berlinale 2017.

Autor/Fonte: Maximilian Bühn/Wikimedia Commons

 

Francamente, a lógica de Gray é difícil de ser percebida. Reconhecer as "pessoas obcecadas por Fawcett" não significaria na realidade "cair na mitologização", mas simplesmente render homenagem ao Fawcett histórico e seus múltiplos admiradores, tratando com respeito os dados biográficos do herói. Mas esse não era seu interesse, segundo confessa Gray: realmente poderia destruir não a ele, senão todo o seu projeto se ele pensasse na fidelidade histórica. Porque, sob a cobertura de "glorificação" de Fawcett, tanto David Grann, no seu livro, como James Gray, no seu filme (e em um grau até maior que Grann), estão deturpando a verdadeira história e a verdadeira imagem de Fawcett a ponto de não poder reconhecê-lo. Ainda antes de assistir ao filme, ao autor deste trabalho bastou saber, para entender a natureza do projeto, que o número das expedições cinematográficas foi reduzido a três e que Raleigh Rimell, o terceiro membro da expedição final, foi simplesmente excluído da trama.

 

Há que notar também que a verdadeira biografia do coronel Fawcett é muito mais 'cinematográfica' do que a trama do filme: Gray teve razão, ao dizer que muitos episódios dela "eram muito notáveis para serem críveis" (ibid.). Mas deveria dizer "heréticos", porque a ciência oficial jamais reconhecerá qualquer verdade nos episódios do encontro de Fawcett com a anaconda gigante ou com os Maricoshi cabeludos, muito menos na descoberta por Fawcett da cidade perdida na Bahia – episódios declarados como sendo absolutamente reais pelo coronel e que fariam uma verdadeira glória para qualquer filme de aventura. E o sumiço da expedição final – um mistério que, segundo os verdadeiros aficionados do gênero, faz o sangue gear nas veias? Poder-se-ia fazer um filme verdadeiramente cativante se o objetivo fosse retratar o verdadeiro Fawcett, o atlantólogo. Mas a triste realidade foi que muitos dos espectadores o encontraram no filme francamente aborrecido (eu mesmo li vários pareceres neste sentido) – realmente, James Gray teria que se esforçar muito para transformar a fascinante história do desbravador mais misterioso da Amazônia em uma coisa enfadonha, pelo menos, para uma grande parte dos espetadores! Mas a causa disso é bem simples: o filme não é uma biografia fiel do coronel, que "irá introduzir à nova geração no mistério de Fawcett", mas uma propaganda ideológica do establishment oficial, destinada a ensinar à essa nova geração uma compreensão "correta" de uma manipulada história da percepção arqueológica e ambiental da Amazônia.

 

Uma odisseia através do filme "Z, A Cidade Perdida"

 

Para provar o dito acima, vamos encarar em continuação os episódios chave do filme "Z, A Cidade Perdida", prioritariamente aqueles relacionados às expedições de Fawcett, o objetivo das suas buscas e os aspetos arqueológicos. Vamos contrapor a versão cinematográfica com os fatos históricos, sem analisar quaisquer outros aspetos desta produção hollywoodiana, o que cabe aos críticos de cinema, ‒ o que nos interessa dentro do marco do presente trabalho, é a mera verdade histórica, como também o rumo da distorção desta que pode ser observado dentro do marco da atual 'corrente' americana de encarar a Fawcett.

 

Certos pontos essenciais, contudo, serão tratados, por razões de conveniência, na derradeira parte deste trabalho. O mesmo se refere aos detalhes da história da família Fawcett, nos quais não iremos profundar pelo momento.

 

a) Onde fica a Bolívia e quantas são?

 

A trama começa em Cork, Irlanda, em 1905, o que de fato corresponde à realidade, como Fawcett estava a serviço do War Office no Spike Island, parte do condado irlandês de Cork, de 1903 a 1906 (contudo, a visita do Arquiduque Francisco Fernando de Áustria-Hungria está relacionada à estada de Fawcett no Ceilão e não na Irlanda). Esses iniciais episódios do filme protagonizados na Irlanda teoricamente poderiam ser um bonito começo para uma verdadeira saga cinematográfica sobre Fawcett; mas o estrago começa logo, já durante a primeira visita do Fawcett cinematográfico à Royal Geographical Society (RGS).

Eis o fragmento mais eloquente do diálogo entre Fawcett e Sir George Goldie, presidente da RGS:

 

G.: "Major, o que sabe sobre a Bolívia?".

F.: "Na América do Sul, senhor?".

G.: "Isso mesmo".

F.: "Somente o que eu li".

G.: "Então não pode saber muito".

 


"Major, o que sabe sobre a Bolívia?": Sir George Goldie, presidente da Royal Geographical Society (à esquerda, interpretado por Ian McDiarmid) entrevistando a Fawcett cinematográfico antes de lhe incumbir a sua primeira missão na América do Sul.

Fonte: "The Lost City Of Z" – "Z, A Cidade Perdida" (prints).

 

Por acaso existe uma outra Bolívia no mundo? E se o Fawcett cinematográfico teria lido alguma coisa sobre o país em questão, então, para que perguntar se fica na América do Sul? Esse diálogo, além de falseado, é absolutamente ridículo, parecendo estar destinado ao auditório americano de massas, com conhecimentos geográficos suficientemente vagos como para não saber localizar imediatamente no mapa um país como a Bolívia. Há que se dizer que o verdadeiro diálogo entre essas personalidades foi completamente distinto. Consultemos o livro "Exploração Fawcett" para compreender a grande diferença:

 

"'Sabe algo da Bolívia?', perguntou-me o presidente da Royal Geographical Society. Sua história, como a do Peru, sempre tinha me fascinado, mas afora disso não conhecia nada do país, e assim lhe respondi" (Fawcett, 1953: 23).

 

Um Fawcett real sentindo-se fascinado pela história da Bolívia do Peru e um Fawcett cinematográfico até mesmo inseguro com localizar a Bolívia na correspondente parte do mundo. Seria preciso algum comentário a mais?

 

b) A Fazenda Jacobina, ou O amorfo espaço sul-americano de James Gray

 

A primeira expedição cinematográfica, ainda que coincida cronologicamente com a primeira expedição real (1906-1907, jornada ao Acre), é copiada principalmente da segunda expedição real (1908, primeira jornada ao rio Verde), amplamente tratada por nós na anterior parte deste trabalho. O Fawcett cinematográfico é enviado para efetuar o mapeamento da fronteira entre a Bolívia e o Brasil para evitar a guerra que já está por estalar entre as duas nações; mas a verdade histórica foi exatamente contrária: a Guerra do Acre já tinha acabado com a derrota da Bolívia, e a missão de Fawcett nas suas duas primeiras expedições consistia em traçar as novas fronteiras entre ambos países estabelecidas pelo Tratado de Petrópolis, de 1903, resultante da Guerra do Acre.

 

Vemos a Fawcett e Costin, seu principal assessor (quem na realidade entrou ao serviço de Fawcett apenas na quarta expedição, de 1910, primeira jornada ao Heath) em julho de 1906 entrando no "Leste da Bolívia inexplorado", segundo a legenda que aparece na tela, para começar logo a exploração do rio Verde; mas, independentemente da legenda, a dupla repentinamente encontra-se num surreal espaço amazônico pseudo-brasileiro.

 

Em geral, a América do Sul na interpretação de James Gray é um espaço amorfo, sem fronteiras nem geografia precisa. Os dois exploradores atingem logo um assentamento fictício chamado de Fazenda Jacobina, onde ostenta domínio absoluto um tal Barão de Gondoriz, poderoso magnata da borracha (na verdade, um personagem mais apto para a época do Segundo Império do Brasil do que para a do auge da borracha) em parceria com a Companhia de Mineração Inca (Inca Mining Company). Aqui, o protótipo é bastante obvio: em 1908, a caminho ao rio Verde, a comitiva Fawcett visitou, perto da cidade da Vila Bela da Santísima Trindade, o posto de Casalvasco, antiga residência do Barão de Casalvasco, título esse já extinto para a época de Fawcett. Mas provavelmente o diretor James Gray misturou aqui duas noções – o 'barão da borracha' com o título aristocrático de Barão. Por certo, Casalvasco era na época um assentamento quase abandonado e muito menos foi um centro da borracha, sendo essa indústria ainda não bastante desenvolvida na região do Guaporé e seus afluentes.

 


O Barão de Gondoriz (interpretado por Franco Nero), imagem genérica dos 'barões de borracha' do primeiro ciclo de borracha (1879-1912) no filme.

Fonte: "The Lost City Of Z" – "Z, A Cidade Perdida" (print).

 

Quanto à Companhia de Mineração Inca, jamais operou no Brasil, senão na região fronteiriça entre o Peru e a Bolívia, nos Andes e parcialmente na selva amazônica, na região do rio Tambopata: o verdadeiro Fawcett passou pelos domínios da Inca Mining Company apenas em 1910, enquanto se dirigia para o rio Heath.

 

Na fictícia Fazenda Jacobina, também vemos uma das coisas mais cômicas, surpreendentes e surreais de todo o filme: a chamada "Grande Casa de Opera", de fato, uma paródia do imponente e luxuoso Teatro Amazonas em Manaus, construído durante o auge da borracha e cuja descrição realmente encontramos no livro de David Grann (Grann, 2009: 77), a partir de onde foi adotada pelo diretor James Gray. Mas no livro de Grann, essa descrição está completamente fora de propósito: não apenas o Fawcett real em nenhum momento da sua vida pisou o terreno do Estado do Amazonas, mas também trabalhou infinitamente longe dos grandes 'boomtowns' do auge da borracha (como Manaus ou Iquitos) – nas regiões fronteiriças entre a Bolívia e o Brasil (bacias dos rios Acre e Guaporé), onde a única instituição social era o barracão de borracha, isolado no meio da selva e permanecendo sob o absoluto controle pessoal do patrão.

 


Apresentação da trupe na "Grande Casa de Opera", na Fazenda Jacobina.

Fonte: "The Lost City Of Z" – "Z, A Cidade Perdida" (print).

 

Mas James Gray adotou a ideia de um teatro de opera na Amazônia em forma de sátira, colocando o teatro no barracão e obtendo uma imagem verdadeiramente delirante: uma típica estação de borracha em meio da selva, com seringueiros trabalhando, e justamente entre as choupanas, em um improvisado palco feito de taquara, sob céu aberto mas com uma acústica formidável, uma trupe de ópera apresentando-se. A audiência é composta principalmente de indígenas (alguns até com plumagens e outros atributos de "índios ferozes"), com apenas um casal de brancos, aparentemente, fazendeiros locais. Um panorama burlesco e surreal, que nada tem em comum com a beleza e majestade do real Teatro Amazonas (o qual, por certo, após a reconstrução, continua sendo uma das principais atrações turísticas de Manaus) nem com a verdade histórica em geral.

 

c) Primeira expedição cinematográfica: exploração do Verde

 

Na Fazenda Jacobina, também aparece pela primeira o cabo Arthur Manley, o segundo dos dois assistentes permanentes de Fawcett. Na realidade, apareceu apenas em 1911, na quinta expedição, e até mesmo seu verdadeiro nome era outro: chamava-se Henry e não Arthur.

 


O cabo Arthur Manley (interpretado por Edward Ashley), cujo protótipo real, Henry Manley, antigo jardineiro na casa da família Fawcett, foi o segundo dos dois assistentes permanentes do major Fawcett nas expedições de 1911 e 1914.

 

O recém aparecido, Manley reporta a Fawcett sobre a recepção de um telegrama da Comissão de Limites aconselhando abortar a missão, quando esta se tornou demasiadamente perigosa. Mas Fawcett manda responder que eles não iriam recuar e continuariam como planejado. Ainda que na realidade não houvesse uma situação exatamente igual, esse episódio, contudo, não se pode qualificar como pura fantasia: como sabemos, a exploração do rio Verde não apenas foi uma iniciativa de Fawcett, mas foi até empreendida sem apoio da Comissão Brasileira de Limites, que compartilhava a noção comum da época de que tal exploração seria completamente impossível, tanto pelo perigo por parte dos índios, como pelos obstáculos naturais. Não em vão é que o verdadeiro Fawcett, ao narrar sua primeira jornada ao Verde (1908), diz: "Eu... chamei a atenção do comissário brasileiro para a oportunidade de explorar o Verde. Isso ele recusou a fazer com base na justificativa de que exigia mais organização" (Fawcett, 1910: 524); e ainda: "A Comissão Brasileira se recusou a fornecer um representante [N. A.: para a comitiva expedicionária de 1908] e, educadamente, nos considerou loucos" (Fawcett, 1909: 183). Apenas em 1909, após a expedição pioneira de Fawcett para as nascentes do Verde, a Comissão Brasileira decidiu seguir nos seus passos.

 

No filme, o mesmo imaginário comum sobre o "temível" rio Verde, corrente antes da expedição Fawcett de 1908, é expressado por um dos homens do séquito do Barão de Gondoriz: "Ninguém nunca volta lá de cima. Nunca!". Portanto, podemos colocar aqui mais um dos poucos pontos em favor da veracidade histórica do filme.

 

Segue logo a exploração cinematográfica do rio Verde, retomando alguns traços da real expedição de 1908, como a falta de comida e a matança a tiro de um animal para salvar as vidas dos membros da comitiva – no filme, o veado morto por Fawcett real foi trocado, por alguma razão, por um porco-montês. Contudo, a primeira expedição cinematográfica também recolhe certos detalhes da primeira expedição real, de 1906-07, como a presença, na comitiva, de Willis, o aventureiro jamaicano (personagem vivamente descrito no livro "Exploração Fawcett" e mencionado várias vezes no livro de David Grann), e a rajada de flechas atiradas pelos índios hostis a partir das margens do rio (a comitiva Fawcett realmente teve que passar por ataques como esse durante sua navegação pelo rio Abunã em 1907).

 

d) Cacos de antiga cerâmica em meio da floresta

 

Na versão cinematográfica, foi nessa expedição que Fawcett tomou pela primeira vez o interesse pela busca de civilizações e cidades perdidas.

 

Primeiro, o guia indígena lhe faz algumas alusões demais misteriosas (em espanhol, por certo, ainda que, segundo se supõe, eles encontram-se no Brasil), balbuciando: "O rio sempre é perigoso. Mas você verá muita gente que vive na selva, cidades bonitas, com ouro e milho, mais velhas que os ingleses. Dentro da floresta, tudo é feito de ouro, tudo brilha como ouro. Sinto-o, inglês! Eu serei livre – mas você nunca escapará".

  


"Mas você verá muita gente que vive na selva, cidades bonitas, com ouro e milho, mais velhas que os ingleses...".

Fonte: "The Lost City Of Z" – "Z, A Cidade Perdida" (print).

 

No princípio, Fawcett não acredita nas palavras do índio: "Até o índio está enlouquecendo agora. Ele estava me falando sobre cidades de ouro hoje. Parecia uma criança. Ele pensa que somos conquistadores sendo levados para a morte". Depois, já se encontrando perto das nascentes do rio Verde, o major descobre cacos de antiga cerâmica, um petroglifo e uma máscara ou rosto de um ídolo, convencendo-se assim da razão do guia (que para então tinha escapado, tal como prometia). Então, Fawcett diz para Costin: "É cerâmica... No chão. Olha, tem muitas! Olha isso. São antigas. Meu Deus, ele estava certo! O índio estava certo! O senhor disse que ninguém nunca esteve aqui antes. Acho que quis dizer nenhum homem branco, senhor Costin. Nenhum homem branco. E achamos que o índio estava louco! Já existiram moradias por aqui".

 

De tudo isso, apenas o episódio com o achado da cerâmica tem algum fundo real: após passar em 1913 pelas várzeas bolivianas das planícies de Moxos e tomar conhecimento de suas "alturas", ou lomas artificiais, Fawcett reportou posteriormente que "...cada 'altura', ou pedaço de terra acima do nível de inundação na província de Beni e Moxos, é cheia com cerâmica antiga e quebrada" (Fawcett, 1915: 220). O diretor James Gray, naturalmente, adotou o episódio do livro de David Grann, para o qual esse achado da cerâmica fragmentada constitui, por alguma razão, um episódio crucial, que deu início a todas as buscas arqueológicas de Fawcett. Vejamos como Grann narra esse achado na sua conferência de 2009, onde, comparado com o seu livro, é descrito com mais detalhes (vídeo da conferência em 24:47 – 25:56):

 

"E então, um dia ele [N. A.: Fawcett] estava percorrendo as várzeas bolivianas e encontrou esses grandes montículos de terra. Ele estava subindo por um desses montículos de terra e olhou para baixo e viu algo saindo do chão, um pouco brilhando ao sol, se inclinou, pegou-o e [viu que] era um pedaço de cerâmica. Começou a escarificar o solo por toda parte, e por toda parte onde ele escarificava, pelo menos de acordo com seu relato, encontrava pedaços de velha cerâmica quebrada. Agora, essa era uma época antes da datação por carbono, então ele não sabia quão velha era, mas para ele parecia muito antiga, e parecia-lhe tão refinada como qualquer coisa que ele tivesse visto da Grécia ou Roma antigas. E isso não foi tudo: ele começou a olhar para fora desses montículos de terra, porque não havia apenas um, havia muitos deles nas várzeas, e quando ele olhava para baixo deles, viu enterrado, justamente na proximidade de um bosque, saindo dessas terras pantanosas, algo que parecia ser linhas retas e ele podia jurar que pareciam estradas ou caminhos...".

 


A descoberta dos vestígios de uma antiga civilização pelo Fawcett cinematográfico (da esquerda para a direita): cacos de cerâmica; petroglifo; ídolo.

Fonte: "The Lost City Of Z" – "Z, A Cidade Perdida" (prints).

 

Assim foi, no relato vivo de Grann, como Fawcett teria descoberto os cacos de cerâmica antiga. Segundo o autor americano, seria essa descoberta precisamente, junto com as observações que Fawcett fez a respeito da incrível capacidade dos indígenas de se adotar ao ambiente inimigo da selva, que o levaria a idealizar o conceito de "Z".

 

Mas realmente o seria? Ou, mais precisamente, realmente teria lugar tal achado? O problema é que Grann é a única fonte que menciona tal episódio. Segundo a referência bibliográfica no seu livro, o autor americano está se fundando aqui num informe de Fawcett à RGS encontrado nos arquivos da Sociedade; neste, Fawcett escreveu: "Onde quer que haja 'alturas', que é um terreno elevado acima das planícies, existem artefatos" (cit. apud Grann, 2009: 142). Mas, como se pode ver, não resulta possível concluir a partir desta citação que foi o próprio Fawcett quem encontrou a cerâmica.

 

Nem tampouco há menção de tal achado no genuíno artigo de Fawcett de 1915, nem no livro apócrifo "Exploração Fawcett" de 1953.

 

O fato de cada "altura" estar "cheia com cerâmica antiga e quebrada" é mencionado por Fawcett no artigo de 1915 apenas de passagem, tão só para fundar sua afirmação de que a população das planícies de Moxos foi uma vez muito numerosa; não menciona a circunstância de encontrar ele mesmo os cacos de tal cerâmica.

 

Inserida na narração sobre a jornada de 1913 (sexta expedição Fawcett), no livro "Exploração Fawcett" aparece a seguinte descrição do povoado de Reyes, nas planícies de Moxos, Departamento de Beni, não muito longe do rio Beni:

 

"Reyes resultou ser uma coleção de tristes cabanas índias, sem nada de interessante, exceto que uma vez teve uma missão. Ele foi construído em um montículo artificial a mais ou menos doze pés acima do nível da planície circundante e, exceto na entrada, uma larga vala o cercava. O lugar deve ser muito velho, pois por todas essas planícies há remanescentes do trabalho de uma população grande e provavelmente antiga – extensos terraplenos conectados em lugares por milhas de calçadas. Durante o verão do sul, toda a planície é inundada; e essas áreas periodicamente submersas são conhecidas localmente como bañados" (Fawcett, 1953: 195).

 

Essa loma, ou montículo, artificial, sobre o qual Reyes foi construído, aparentemente seria a mesma à qual Fawcett subiu acorde o relato de Grann – pois vemos aqui a mesma descrição das antigas construções, calçadas e terraplenos. Não há outras menções semelhantes no livro "Exploração Fawcett", nem tampouco Fawcett visitou as planícies de Moxos mais alguma vez. Mas, novamente, não há qualquer indício à descoberta dos cacos da cerâmica no citado trecho de "Exploração Fawcett".

 

Seja como for o caso, até mesmo se aceitarmos a informação de Grann, vemos que Fawcett não mostrou interesse algum na antiga e quebrada cerâmica encontrada no lugar, nem na antiga e imponente infraestrutura existente no território beniano, partindo com seus companheiros para leste, na direção de Santa Cruz de la Sierra, deixando as planícies de Moxos para não voltar lá nunca mais. Isto é, não pretendeu em nenhum momento continuar as buscas no lugar e profundar nos estudos da civilização que tinha deixado todos aqueles vestígios. Esteve no departamento boliviano de Beni apenas de passagem e, como sabemos, as áreas onde concentrou suas pesquisas foram muito diferentes. Tudo isso não apenas vai absolutamente contra a interpretação de Grann, para quem o achado da cerâmica beniana seria o ponto crucial nas pesquisas de Fawcett, mas também confirma plenamente minha anterior afirmação de que o nosso herói jamais foi um arqueólogo, procurando na realidade por algo bem distinto do que os artefatos arqueológicos enterrados.

 

Por uma curiosa casualidade, a antiga civilização, criadora das cerâmicas, bem como das lomas, terraplenos, estradas, calçadas e valas nas planícies de Moxos, foi descoberta pela primeira vez no mesmo ano de 1913 em que Fawcett recorreu a região. Foi nenhum outro senão o Barão Erland Nordenskiöld, renomadíssimo etnólogo sueco, com que Fawcett encontrar-se-ia um ano depois no rio Mequens, quem deu início aos estudos arqueológicos nas planícies de Moxos, realizando em 1913 escavações em três grandes lomas perto de Trinidad, capital do Departamento de Beni. Em 1916, Nordenskiöld chegou a ser o primeiro cientista a apoiar publicamente a hipótese de que, no atual território beniano, algum tipo de agricultura em larga escala havia sido praticada em tempos remotos (Iskenderian Aguilera, 2014). Mas a verdadeira descoberta dessa civilização perdida começou muito tempo depois, somente a partir do final da década de 1950, quando foi possível efetuar observações da região a partir de aviões e mediante as primeiras fotografias aéreas tiradas na Amazônia Boliviana. Hoje, essa antiga e misteriosa civilização nos é conhecida como a Cultura Hidráulica das Lomas.

 


Vista aérea dos campos elevados, remanescentes da Cultura Hidráulica das Lomas, nas planícies de Moxos.

Autor/Fonte: Clark Erickson/uvicanthro.wordpress.com.

 

Mas isso já é outra história; pelo momento, nós, vistas todas as circunstâncias citadas, podemos, sem hesitação qualquer, qualificar como cem por cento falsa a versão Grann–Gray sobre os cacos de antiga cerâmica no meio da selva como ponto de partida das pesquisas de Fawcett. Contudo, dentro de um par de subcapítulos ainda prometo ao leitor uma grande surpresa em relação à citada cerâmica, e outra vez com a ajuda do Barão Nordenskiöld, cuja contribuição científica realmente é inapreciável nesta minha luta pela verdade histórica.

 

e) O aparecimento de James Murray, ou Os "selvagens" versus os "nativos"

 

Já de volta à Inglaterra, o Fawcett cinematográfico aparece no jantar de gala na mansão do biólogo James Murray, explorador polar, assistente de Sir Ernest Sheckleton na expedição antártica. Murray é um personagem absolutamente real, que na verdade participaria posteriormente de uma das expedições Fawcett, como o filme mostra, – mas, claramente, não da fictícia segunda expedição cinematográfica de 1912, senão da quinta expedição real de 1911. Também haveria que notar que os dois homens conversaram pela primeira vez não num jantar de gala em Londres, mas na selva da bacia do rio Tambopata, perto da linha fronteiriça entre a Bolívia e o Peru.

 

Na conversa com Fawcett durante o jantar, Murray chama os indígenas de "selvagens", termo não bem visto por parte de Fawcett, o qual retifica seu anfitrião, assinalando a palavra "nativos" na sua resposta a Murray.

 

Até o momento, as alterações feitas pelo diretor Gray na biografia real de Fawcett poderiam ser explicadas apenas pelas peculiaridades do gênero cinematográfico. Mas a partir daqui e até o final do filme é esse diretor quem está caindo constantemente no pecado da gravíssima distorção da história e rudes anacronismos.

 

Se consultarmos os escritos originais de Fawcett – em primeiro lugar, as duas conferências proferidas pelo nosso herói na RGS, em 1910 e 1911, – veremos que está fazendo uso precisamente do termo "selvagens" ("savages" em inglês). De fato, já vimos múltiplos exemplos disso ao recorrer às extensas citações desses escritos na anterior parte deste trabalho.

 

Ainda que pode parecer estranho à primeira vista, o fato de empregar o termo "selvagens" não denota de forma alguma que Fawcett foi um 'racista', o que tanto gostam repetir os senhores Hemming e Thomson. Para nós, no século XXI, a palavra "selvagens" obviamente já possui um caráter ofensivo; mas simplesmente não podia tê-lo no início do século XX, tanto para o verdadeiro Fawcett como para qualquer dos seus contemporâneos. Naquela época do sistema do colonialismo global, quando imperava um verdadeiro culto da civilização e do progresso ao estilo ocidental, considerados impecáveis e unicamente possíveis, o termo "selvagens" era visto como absolutamente normal, adequado e científico, denotando povos primitivos que se encontravam fora do âmbito da civilização, e seria simplesmente impossível encontrar um antropólogo ou etnólogo que não se referisse a tais povos como "selvagens". O termo começa a se extinguir tão só depois da Primeira Guerra Mundial, na época quando, apesar de se conservarem ainda os velhos impérios coloniais, a civilização ocidental foi atingida por uma profunda crise multifacetada, incluída uma profunda revisão de valores, o que, aparentemente, contribuiu também à reconsideração do conceito de "selvageria". Seja como for, nos escritos a partir da década de 1920 em adiante a frequência de emprego do termo "selvagens" em relação aos indígenas sul-americanos vai diminuindo, cedendo lugar ao atual termo "nativos", pelo menos, nas obras científicas (mas a imprensa internacional, ao tratar, por exemplo, do misterioso desaparecimento do próprio Fawcett, na década de 1930, ainda se referia amplamente aos "selvagens"). Mesmo nos escritos de Fawcett do período de pós-guerra encontramos bem poucas menções dos "selvagens", preferindo o coronel referir-se maiormente aos "índios" ("Indians").

 

Vemos, portanto, que o diretor James Gray está nos passos de David Grann, começando a cair nos anacronismos e fazendo de Fawcett um personagem com visão moderna. Já não se trata de adaptação cinematográfica da biografia de um personagem histórico: trata-se da distorção da história como tal, o que é muito mais sério e até perigoso para a percepção dos espetadores, pois está criando uma noção inteiramente falsa de toda uma época, com sua mentalidade e visão da realidade.

 

f) A briga com Keltie

 

Durante o mesmo episódio do jantar de gala, Fawcett, ao tocar, na conversa com Murray, o tema das suas descobertas arqueológicas, menciona a "cerâmica na floresta onde nenhum homem branco jamais esteve". Aqui, intervém na conversação Keltie, secretário da RGS, produzindo-se o seguinte diálogo entre ele e Fawcett:

 


Sir John Scott Keltie (interpretado por Clive Francis) no jantar de gala na casa de Murray.

Fonte: "The Lost City Of Z" – "Z, A Cidade Perdida" (print).

 

K.: "...sugiro que mantenha esse tipo de descobertas só para você. Uma coisa é defender o homem primitivo da floresta e outra é elevar suas capacidades além do razoável. Ninguém aqui irá questionar aquilo que o senhor acredita ter visto, mas tal viagem afeta demais a mente, demais mesmo!".

 

F.: "Senhor Keltie, eu tenho certeza de que a minha mente está perfeita e ainda aberta, graças a Deus!".

 

Sem falar de que dificilmente poderia se imaginar na realidade o lançamento de semelhante injúria entre tais pessoas em tais circunstâncias e em tal época, esse episódio não apenas é falso, mas diametralmente oposto à realidade. Longe de ser inimigo ou adversário ideológico de Fawcett, o Dr. John Scott Keltie, secretário da Sociedade, como vimos na primeira parte deste trabalho, não foi apenas seu único e grande amigo dentro da RGS, mas também seu mais fiel aliado, homem que sempre defendia Fawcett e advogava sua causa perante os demais dirigentes da Sociedade, até exercendo séria pressão para que lhe fosse outorgada a Medalha de Ouro do Fundador. É verdade que às vezes Keltie, como vimos, pedia a Fawcett certa reserva quanto às suas teorias ao dirigir pedidos sobre fundos expedicionários; mas essa reserva era relacionada não com a defesa das "capacidades do homem primitivo da floresta de construir uma civilização" (problema científico formulado e popularizado apenas 80 anos mais tarde por Anna Roosevelt e Michael Heckenberger), mas com a Atlântida ou o Manôa, verdadeiros pilares do conceito fawcetteano.

 

Posteriormente no filme, logo antes de iniciar a terceira e última expedição, Keltie, contudo, reconhece: "Admito meu erro por não ter aceitado as suas crenças tempos atrás".

 

g) A conferência de 1911

 

Segue logo a conferência proferida pelo Fawett cinematográfico na RGS em 6 de fevereiro de 1911; por certo, até essa data foi alterada, pois a segunda conferência do verdadeiro Fawcett foi lida em 13 de fevereiro de 1911. Um pormenor puramente insignificante visto que a conferência cinematográfica não tem nada em comum com a genuína.

 

Começa o Fawcett cinematográfico:

 

"Meus estimados colegas! Hoje é minha crença absoluta de que a Amazônia é muito mais de que um deserto verde que muitos de nós supunham. Estou sugerindo que na Amazônia existe uma civilização escondida – uma que pode ser mais antiga do que a nossa!".

 

O debate "deserto verde contra uma civilização escondida" não é o debate entre Fawcett e os cientistas de seu tempo. É o debate entre Betty Meggers e seus seguidores, os "tradicionalistas" da arqueologia amazônica, por uma parte, e entre Michael Heckenberger e seus afins, os "revisionistas", por outra. Simplesmente porque o "deserto verde" seria sinônimo do "paraíso ilusório", um lugar onde nenhuma civilização poderia se desenvolver por causa do seu ambiente inimigo, na visão de Meggers. O termo "deserto verde" ainda não se empregava no tempo de Fawcett (o que, claramente, não significa que a densidade muito baixa da sua população não foi evidenciada na época).

 


O Fawcett cinematográfico proferindo a conferência de 1911.

Fonte: "The Lost City Of Z" – "Z, A Cidade Perdida" (print).

 

A reprodução das teses do moderno "revisionismo" arqueológico continua na retórica da conferência do Fawcett cinematográfico. Assim, perguntado por um dos ouvintes, um tal Sr. William Barclay de Bedford (por certo, W. S. Barclay realmente participou da discussão da conferência de Fawcett, mas não da 1911, senão da 1910) se ele insistia na "história dos míticos reinos de ouro, essas fantasias que levaram os conquistadores à total destruição", Fawcett responde:

 

"São os conquistadores e nós que estamos destruindo a Amazônia! Eu vi com os meus próprios olhos provas da civilização deles e garanto ao senhor que é real! Talvez seja muito difícil para alguns dos senhores admitir que nós fomos impregnados pela intolerância da Igreja por tanto tempo que não podemos acreditar na existência de uma civilização mais antiga, particularmente de uma raça criada pelo homem branco para ser brutalmente condenada à escravidão e à morte!".

 

Mais anacronismos: a noção da "destruição da Amazônia" chegaria apenas na segunda metade do século XX, quando o problema ecológico começou a se tornar verdadeiramente grave. A tese sobre a "intolerância da Igreja que por tanto tempo não deixou acreditar na existência de uma civilização mais antiga" realmente é tomado dos escritos de Fawcett (Fawcett, 1953: 12). Mas a noção da "civilização de uma raça criada pelo homem branco para ser brutalmente condenada à escravidão e à morte", isto é, dos indígenas sul-americanos em geral, não corresponde às afirmações do verdadeiro Fawcett: pelo contrário, ele procurava por uma civilização perdida de uma raça ainda desconhecida, a dos "índios brancos", supostos descendentes diretos dos atlantes; contudo, de qualquer forma, essa hipotética raça teria contribuído, na sua opinião, para a etnogênese da população indígena do continente.

 

Por certo, não resta dúvida de que no imaginário mundo de Gray jamais existiu a grande e esplendorosa civilização incaica, criada, no mundo real, precisamente pelos indígenas sul-americanos e conhecida dos invasores brancos desde o início da Conquista; nem tampouco existiram para Gray as grandes civilizações maia e asteca, desenvolvidas por outros povos do Novo Mundo, também "brutalmente condenados à escravidão e à morte" pelos colonizadores europeus. O Fawcett fictício, junto com seu criador, obviamente 'esquece' dessas civilizações, cuja mesma existência por si só já faz inválido todo o seu discurso.

 

No livro de Grann, a civilização incaica é mencionada um par de vezes, mas essas menções não têm qualquer significado sério no contexto geral do livro e, de acordo com a versão do autor americano, essa grande e antiga civilização sul-americana não exerceu qualquer influência na percepção "vitoriana", nem nas teorias de Fawcett. O que, de fato, é muito errado.

 

Por certo, essa falsa interpretação já começou a se expandir. Assim, o site History vs. Hollywood, contrapondo o filme de Gray com a 'verdadeira história', observou, que "A antiga cidade de Z de Fawcett ameaçava abalar a compreensão do mundo...  Foi em parte por essa razão que muitos de seus colegas zombaram dele e o ridicularizaram. A descoberta de uma cidade antiga na América do Sul poderia alterar a percepção do Ocidente sobre o Velho Mundo e sacudir a missão civilizatória da Europa; provando assim que um império florescente pode existir sem intervenção ocidental ou colonização" ("The Lost City of Z vs. the True Story of Explorer Percy Fawcett"). Uma besteira completa, considerando o papel desempenhado pelo sul-americano império incaico, repleto de cidades e imponentes construções de pedra, e a enorme influência que a cultura incaica exerceu nos colonizadores, exploradores e pesquisadores desde Francisco Pizarro até hoje. Depois de semelhantes asseverações, posso congratular a Grann e Gray, mas não ao leitor e espectador geral.

 

Prossegue logo o diálogo entre Barclay e Fawcett:

 

B.: "O senhor insiste em dizer que esses selvagens são nossos semelhantes?"

 

F.: "Eu não sei, Sr. Barclay, mas pretendo muito descobrir".

 

B.: "O que? Selvagens na Abadia do Westminster?"

 

F.: "Desconsiderado seu desrespeito, senhor, mas o que está em jogo? Se nós encontramos uma cidade onde era considerada impossível a sua existência, poderemos escrever um novo capítulo na história da humanidade! Considere as minhas provas: trouxe descobertas arqueológicas, antiguidades tão sofisticadas quanto as da Ásia e Europa, todas no meio da floresta!".

 

Neste ponto, o conferencista mostra ao auditório os cacos de cerâmica que já nos são bem conhecidos; mas os honoráveis membros da RGS começam a escandir, no tom de desprezo extremo: "Potes e panelas! Potes e panelas! Potes e panelas! Potes e panelas!".

 

Um comovedor quadro de um esclarecido defensor de direitos iguais fazendo frente à uma multidão de obscurantistas e retrógrados elitistas, apologistas do racismo e do colonialismo. Tal é a ideia do diretor James Gray, tomada diretamente do livro "Z, A Cidade Perdida" de David Grann. Por certo, o episódio é adotado quase na íntegra de "O Mundo Perdido" de Sir Arthur Conan Doyle (capítulo V, discurso do professor Challenger no Instituto Zoológico).

 


William Barclay (interpretado por Harry Melling), o adversário ideológico de Fawcett durante a conferência cinematográfica.

Fonte: "The Lost City Of Z" – "Z, A Cidade Perdida" (print).

 

Tem, afinal, tudo isso algo de realidade? Definitivamente não. Nem em relação à história de Fawcett, nem às noções científicas da época em geral.

 

As perguntas do Barclay cinematográfico provêm das noções "vitorianas" sobre a população indígena do Novo Mundo – tal como elas são apresentadas no livro de David Grann. Ponho o termo "vitoriano" entre aspas porque Grann, novamente demostrando seu amor pelos anacronismos, adora empregar o termo para a época das expedições de Fawcett, apesar de a era vitoriana ter acabado ainda em 1901.

 

Em síntese, para Grann (Grann, 2009: 135-7), na época de Fawcett prevaleceram as duas noções sobre os indígenas americanos provenientes ainda dos espanhóis do século XVI – a do "semi-humano" e a do "bom selvagem". Somente que, na era do darwinismo, essas duas visões passaram a ser filtradas através da teoria evolucionista, cedendo lugar o velho determinismo religioso dos clérigos espanhóis ao determinismo biológico dos racistas vitorianos, sendo o retrato geral destes últimos no filme, William Barclay.

 

Não em poucas ocasiões, a vida manifesta grande amor pelas brincadeiras. E nesta ocasião, brincou muito forte tanto com David Grann, como, em especial, com James Gray. Trata-se, para nós, de um experimento realmente único e cem por cento limpo para provar a veracidade do apresentado no filme; uma prova com a qual nem sequer atreveríamos a sonhar se não existisse na realidade. Essa é precisamente a surpresa que eu prometi anteriormente ao leitor.

 

O ponto é esse: realmente houve na época um cientista (de quem, aliás, o diretor Gray não podia ter qualquer conhecimento) que declarou publicamente na sua conferência, proferida no mesmo salão da RGS, sobre a possibilidade de ter existido, nas florestas sul-americanas, uma desenvolvida civilização sedentária; sendo o seu principal argumento, o mesmo que o do Fawcett cinematográfico – massas de fragmentos de cerâmica e ídolos em meio da selva!

 

Não se trata de Fawcett: trata-se, novamente, do nosso velho conhecido, o Barão Erland Nordenskiöld, e da sua já citada conferência "Viagens pelas fronteiras da Bolívia e do Peru", proferida na RGS, em 26 de fevereiro de 1906, quando Fawcett nem sequer partiu ainda pela primeira para o continente sul-americano.

 

 

O Barão Erland Nordenskiöld, em 1924.

Autor/Fonte: Svenska dagbladets årsbok, 1924/runeberg.org/Wikimedia Commons.

 

Eis como descreve Nordenskiöld a sua descoberta, realizada durante suas viagens em 1904 e início de 1905 (grifo meu):

 

"Mais ao leste para o interior das florestas primordiais, nas densas florestas tropicais do Rio Tuiche (Buturo), 600 a 700 metros... acima do nível do mar, encontrei grandes moradias. Eles provam que as florestas primordiais agora desabitadas anteriormente tinham uma população numerosa. As coisas encontradas lá eram absolutamente diferentes de qualquer coisa descoberta nos vales caídos, e são derivadas de uma população que evidentemente ocupou um estatuto mais alto que os selvagens que vivem atualmente nas florestas primordiais do Rio Madidi, Rio Tambopata e Rio Inambari.

 

Assim, nas florestas primordiais são encontrados grandes mós, massas de fragmentos de cerâmica, decoradas com ornamentos totalmente diferentes daqueles vistos na cerâmica dos chulpas [N. A.: sepulcros quechuas descritos anteriormente por Nordenskiöld na mesma conferência], sendo a ornamentação feita pela imposição de filetes de barro, enquanto os ornamentos nos potes dos vales caídos são padrões de diamante, espiral e triângulo, pintados principalmente de preto. Os machados de pedra das florestas primordiais possuem uma forma característica. Rostos humanos, modelados em argila [N. A.: um rosto parecido também foi descoberto pelo Fawcett cinematográfico], também foram encontrados por mim, um com o lábio inferior e o superior perfurado, outro sendo simplesmente perfurado pela parte superior.

 

Não é fácil decidir de que tribo essas descobertas das florestas primordiais são derivadas. Por volta de 1670, parece que uma tribo Suquitunia vivia nesses distritos, mas é impossível saber se esses objetos lhes pertenciam ou não. Parece, a partir dos relatos dos missionários, que as tribos que falam Tacana e Lapachu, que se encontraram nessas partes, nem mesmo ferveram sua comida, mas simplesmente a assaram, afirmação que não concorda muito bem com a quantidade de cerâmica encontrada nas florestas primordiais. As figuras de barro poderiam possivelmente ser os ídolos mencionados pelos missionários, a menos que, como Ehrenreich supõe, estes últimos fossem simplesmente máscaras de dança. (…) Seria muito interessante instituir pesquisas com o objetivo de verificar se as faixas muito grandes a leste dos Andes, atualmente habitadas por tribos mais ou menos errantes, não eram anteriormente ocupadas por uma população sedentária de posição muito mais elevada do que a que agora habita lá. Também seria importante saber em que grau esses índios das florestas primordiais possuíam alguma civilização independente, ou até que ponto eles foram influenciados pela da baixada" (Nordenskiöld, 1906: 119-20).

 


Antigo mó encontrado por Nordenskiöld nas florestas de Buturo.

Fonte: Nordenskiöld, 1906.

 

Resta apenas assombrar-se perante o grau de coincidência que o Fawcett cinematográfico atingiu nesse ponto com o Nordenskiöld real. Não se pode duvidar de que se trata precisamente de pura coincidência, pois seria absolutamente impossível encontrar razões que obrigassem ao diretor Gray, francamente desinteressado no fundo histórico real, indagar na vida e descobertas de Nordenskiöld, que tem apenas uma conexão indireta com Fawcett.

 

E agora vêm as grandes perguntas: como foi a reação do auditório da RGS à semelhante declaração? Teve efeito de uma bomba? Os cientistas britânicos da época realmente ficaram indignados com o que ouviram? Começaram a escandir "Potes e panelas!" em voz alta, demostrando seu desprezo ao conferencista? Houveram algumas referências burlescas sobre "selvagens na Abadia de Westminster" ou algo de tipo?

 

A resposta para todas essas perguntas é categoricamente negativa! Durante a tradicional discussão que seguiu à conferência, foram ouvidas as seguintes opiniões.

 

O Dr. John William Evans, geólogo inglês que tinha realizado, em 1901-02, uma expedição à região boliviana de Caupolicán, comentou (grifo meu):

 

"O conferencista referiu-se a uma civilização que existia nas planícies além das montanhas ao nordeste. Neste contexto, posso mencionar que ainda existem relatos que descrevem a visita de dois franciscanos aos Toromonas e às tribos afins dessa região há quase exatamente cem anos. Eles dão um relato interessante da prosperidade e harmonia que então prevaleceu no distrito, que parece ter sido mais populoso e civilizado do que é atualmente. Só podemos lamentar que os índios estejam desaparecendo tão rapidamente; deveríamos ter ficado contentes em vê-los multiplicando e povoando aquelas vastas florestas que eles por tanto tempo fizeram seu lar, mas, infelizmente, parece que isso não é para ser" (Holdich, Suarez, Church and Evans, 1906: 129).

 

Em outras palavras, o Dr. Evans, longe de mostrar desconfiança, pelo contrário, encontrou razões para sustentar as conclusões de Nordenskiöld e lamentou muito a gradual extinção da população indígena na região.

 

O coronel George Earl Church, explorador americano, vice-presidente da RGS, ainda que com bastante reserva e, efetivamente, com uma retórica de desprezo em relação aos indígenas da região, também encontrou, contudo, certo argumento em favor da hipótese do conferencista (grifo meu):

 

"Eu não acho que alguma vez tenha sido desenvolvida sequer uma abordagem a uma civilização independente na região que é o objeto desta conferência. Os Tacanas poderiam ter sido, na verdade, um pouco mais altos na escala da barbárie do que seus vizinhos das terras baixas; e suas maneiras e costumes, roupas e rudes artes eram uma melhoria do puro selvagem" (ibid.).

 

Tal seria, na realidade, a verdadeira atitude de um racista cético quanto à possibilidade de existência de uma civilização indígena na selva: nem sequer ele pôde referir-se, na época, aos "selvagens" no sentido indiscriminado, mas teve que admitir pelo menos a existência de uma "posição mais alta na escala da barbárie".

 

O coronel Pedro Suárez, encarregado de negócios da Bolívia em Londres (e, posteriormente, muito amigo do próprio Fawcett), como representante da América do Sul, manifestou o empenho dos governos dos países da região de proteger os indígenas:

 

"Nossos governos, via de regra, não poupam esforços para proteger os nativos, e quando os abusos surgem, como precisa de ocorrer nessas imensas regiões, os governos os detêm assim que se tornam conhecidos. Posso afirmar com orgulho, falando em nome do meu povo, que a borracha e outros produtos que mencionei não estão manchados de sangue, nem foram arrancados dos aborígenes desamparados sem lhes dar algo de valor justo em troca, como é notoriamente o caso com a borracha vinda de outras partes do mundo" (ibid.: 127).

 

Essa asserção, claramente, pode ser posta em dúvida, mas o importante aqui é a tendência geral: a sociedade ocidental já se considerava suficientemente civilizada como para perseguir e deter os abusos em relação aos nativos, e a escravidão, ainda que formalmente, já estava posta fora do marco legal. As condições reais, obviamente, foram muito distintas, mas estamos falando agora da atitude geral imperante na sociedade.

 

Em qualquer caso, vemos um quadro totalmente diferente daquele mostrado tanto por Grann, no seu livro, como por Gray, no seu filme. Na realidade, a sociedade inglesa de então e, particularmente, sua comunidade científica, já era muito mais esclarecida do que é mostrado na versão Grann–Gray, tendo avançado muito mais longe em comparação com os espanhóis do século XVI na sua percepção da população nativa do Novo Mundo. E essa sociedade teria aceitado com mais benevolência as hipóteses de Fawcett se na realidade fossem idênticas às de Nordenskiöld – as quais, por certo, não causaram qualquer tormenta no mundo científico na época. De modo que, inevitavelmente, as bases do conceito de "Z" desenvolvido pelo verdadeiro Fawcett tinham que ser muito mais não usuais, 'heréticas' e fantásticas do que cacos de cerâmica e ídolos na selva para causar tamanha desconfiança e assombro entre seus contemporâneos – se for o contrário, então tocaria ainda ao mesmo Nordenskiöld a sorte de se converter num "fantasista" e "louco" marginalizado pela ciência.

 

Pelo momento, vamos deixar aqui a análise da conferência de 1911, para ainda voltar a ela brevemente na parte final deste trabalho.

 

h) Segunda expedição cinematográfica: visita aos Guarayo e o malvado Murray

 

Passando a encarar a segunda expedição cinematográfica, podemos constatar que, de ponto de vista da veracidade histórica, temos aqui o melhor trecho de todo o filme – ainda que, como de costume, estragado pelas graves falhas gerais, que provêm de orientação ideológica geral do diretor do filme.

 

Ainda que fictícia como tal, essa expedição unifica em si os detalhes da quarta e quinta expedições reais de Fawcett (1910 e 1911), mostrados com alto grau de certeza. Tais detalhes são, precisamente, a visita aos índios Guarayo, em 1910, e o fracasso da jornada por causa da inaptidão de James Murray, em 1911.

 


O Fawcett cinematográfico sai do rio ao encontro dos Guarayo.

Fonte: "The Lost City Of Z" – "Z, A Cidade Perdida" (print).

 

A comitiva dessa expedição é exatamente a da real expedição de 1911 (Fawcett, Costin, Manley e Murray). De acordo com a legenda no filme, a expedição está tendo lugar na "Amazônia inexplorada, em maio de 1912". O encontro com os Guarayo, já tratado por nós na anterior parte deste trabalho (a rajada de flechas a partir da margem do rio, melodia no acordeão tocada por um dos membros da comitiva e a entrada de Fawcett no rio para estabelecer contato pacífico com os índios, tentativa que, afinal, foi coroada de êxito) é mostrado de forma praticamente impecável do ponto de vista dos fatos. Da mesma forma, são bem mostrados alguns dos importantes detalhes da visita aos Guarayo relatados pelo genuíno Fawcett, como a oferta, de parte dos índios, de urucum, a pintura vegetal, e a forma muito peculiar da pescaria praticada por essa tribo. Eis como esta última foi descrita pelo genuíno Fawcett:

 

"Eles usam... o leite da árvore 'manuna' ou 'solimão', cujo nome científico é, creio eu, Hura crepitans, do gênero Euphorbia, para a captura de peixes. Na manhã seguinte ao encontro, fui com alguns dos índios a uma lagoa na floresta. Aqui, flutuando na superfície da água, perfeitamente vivos e ainda absolutamente incapazes de fugir, havia peixes de todos os tipos, grandes e pequenos, dos quais eles selecionavam os mais saborosos para a comida. O leite é simplesmente derramado na água e, à medida que se espalha, todo peixe que entra em contato com ele fica paralisado e, no entanto, não é afetado como alimento. Mais ainda, o efeito parece durar vários dias sem matar o peixe" (Fawcett, 1911: 389).

 

Por certo o Barão Nordenskiöld teve a oportunidade de observar a mesma maneira de pescar entre as tribos da região do rio Inambari, próxima à do Heath: "Os Yamiaca e os Atsahuaca têm uma maneira de pegar peixes envenenando a água com uma certa raiz" (Nordenskiöld, 1906: 124-5).

 

A pescaria Guarayo em etapas, reproduzida fielmente no filme.

Fonte: "The Lost City Of Z" – "Z, A Cidade Perdida" (prints).

 

O episódio da pescaria dos Guarayo narrado por Fawcett foi reproduzido fielmente no filme, encontrando-se o diretor Gray na altura aqui; é pena, contudo, que semelhante lealdade â verdadeira história constitui uma exceção e não uma regra para ele. Ainda assim, ele não se absteve de pecar contra a verdade representando os Guarayo como antropófagos – velho mito inventado ainda pelos espanhóis nos tempos coloniais e desfeito na modernidade pelo genuíno Fawcett. Mais provavelmente, o detalhe da antropofagia no filme veio dos Mashubi, uma tribo na qual Fawcett realmente presenciou tal costume, na sua expedição de 1914.

 

Nem tampouco o genuíno Fawcett indagava ao cacique Guarayo sobre as cidades perdidas, como o está fazendo no filme, – pelo menos, não dispomos de dados documentais que permitissem sustentar tal versão.

 

Apesar de toda a boa impressão que se pode tirar do episódio, o diretor Gray logo estraga tudo, ao colocar na boca do seu Fawcett o seguinte discurso, dirigido a Costin, ao momento de observar as plantações da tribo:

 

"Os chamados selvagens cultivaram a floresta onde ninguém pensou que fosse possível. Temos sido tão arrogantes e desdenhosos, eu me incluo nisso. Veja como tudo está disposto: é matematicamente preciso! Imagine como Z deve ser!"

 

A percepção de que "os chamados selvagens terem cultivado a floresta onde ninguém pensou que fosse possível" veio para os cientistas apenas no fim do século XX e começos do XXI, precisamente no marco da revalorização e revisão de todo o panorama ecológico e arqueológico da região amazônica (veja, por exemplo, Balée, 1993; Denevan, 1992; e Mann, 2006). E quanto à "precisão matemática" com que estariam dispostas as plantações, trata-se, sem dúvida, da asserção de Michael Heckenberger emitida na conversa com David Grann: "Todos esses assentamentos foram definidos com um plano complicado, com um senso de engenharia e matemática que rivalizava com qualquer coisa que estivesse acontecendo em grande parte da Europa na época".

 


Fawcett e Costin cinematográficos (interpretados por Charlie Hunnam e Robert Pattinson respetivamente) entre os Guarayo, com as caras pintadas de urucum, à maneira indígena.

Fonte: "The Lost City Of Z" – "Z, A Cidade Perdida" (print).

 

Com isso, não restam dúvidas de que o diretor Gray, de forma direta e inequívoca, está fazendo de Fawcett um "revisionista" do século XXI, indo contra toda a razão, verdade histórica e, principalmente, as genuínas ideias professadas por Fawcett. Enfim, estamos perante a mesma versão anacrônica e manifestamente falsa presente no livro de Grann, apenas mostrada de uma forma até mais radical, com a transformação de Fawcett num Heckenberger do ano 1912.

 

Vemos logo como a expedição colapsa por culpa de Murray: ele fica atrasado constantemente, não pode avançar com a carga sobre os ombros, rouba comida do estoque de mantimentos comuns e, finalmente, fica completamente incapaz de avançar por causa da ferida inflamada na perna e vai embora no último cavalo da expedição, acompanhado de um guia indígena. Contudo, como antes de partir ele preencheu os mantimentos com parafina, estragando-os assim, a expedição não pôde continuar o caminho, até mesmo encontrando-se já perto do objetivo (Fawcett até consegue ver algumas esculturas semelhantes às estelas maias).

 


James Murray cinematográfico (interpretado por Angus Macfadyen), colapsado durante a expedição à Z.

Fonte: "The Lost City Of Z" – "Z, A Cidade Perdida" (print).

 

Na realidade, os eventos reais desse trecho da jornada cinematográfica pertencem à quinta expedição Fawcett (1911). Após concluir a demarcação das fronteiras na região dos Andes, Fawcett decidiu voltar para o rio Heath, para reverificar os resultados do levantamento topográfico de 1910 e, ao mesmo tempo, realizar por sua própria iniciativa um estudo mais profundo dos índios Guarayo, passando depois ao rio Madidi (aparentemente, com vista a encontrar o lendário "monstro do Madidi"). Obviamente, não se tratava ainda da busca pela "Z", como a área em questão é o Caupolicán (Apolobamba), na Bolívia.

 

Foi nesse estágio da quinta expedição que o Dr. James Murray, biólogo escocês, tomou parte.

 

A comitiva integrada por dois militares – o major Percy Fawcett e o cabo Henry Costin – e por dois civis, Henry Manley e James Murray, partiu a pé em 4 de outubro de 1911 do barracão de San Carlos sobre o rio Tambopata (seus animais de carga foram mordidos por morcegos vampiros, ficando inaptos para a viagem), navegando depois nas balsas pelo Heath, mas não conseguiram encontrar a tribo dos Guarayo visitada por Fawcett um ano antes (aparentemente, a tribo migrou para longe do rio na estação de chuvas). Decidiu-se continuar a viagem para o rio Madidi por terra firme, cortando o caminho através da floresta. No entanto, como era a estação das chuvas, eles se toparam com brejos intransitáveis estendendo-se aproximadamente em toda a extensão do rio. Por essa altura, visto que os suprimentos estavam quase esgotados e o estado dos dois membros da comitiva – Manley e Murray – era extremamente difícil, Fawcett decidiu abortar a jornada. Tendo passado a pé rio acima, eles chegaram à aldeia dos hospitaleiros índios Echoja, que lhes prestaram grande ajuda e deram guias até o barracão de San Carlos, o qual foi atingido pela comitiva em 17 de novembro.

 


Juliaca (Peru), 1911. Da esquerda para a direita: Henry Costin, Henry Manley, o comissário de polícia local e Fawcett (foto da 5a expedição Fawcett, detalhe). Segundo mencionam Jack e Brian Fawcett, filhos do coronel, seu pai considerava Costin e Manley como os melhores entre todos os companheiros das suas expedições, os únicos que estavam absolutamente aptos e adaptáveis. Os dois foram retratados no filme "Z, A Cidade Perdida".

Fonte: Fawcett, 1953.

 

Em todo o caminho efetuado a pé, Murray realmente ficava constantemente na retaguarda, atrasando o avanço da expedição, e não podia levar a carga (uns 23 kg aproximadamente) sobre os ombros, de modo que, no final, se livrou de todas as coisas, incluindo a mudança de roupa e linho e a rede, passando a dormir no chão. Seu joelho realmente estava inflamado por causa dos terríveis vermes "sututu", que cresciam de ovos colocados sob a pele humana; a mesma coisa aconteceu com o cotovelo do biólogo. Certa vez, ao cair da balsa no rio, Murray realmente agarrou sua borda, arriscando a virá-la, sem escutar instruções de Fawcett para nadar por si só.

 

 

Murray realmente roubou várias vezes a comida do estoque de suprimentos comuns, há muito esgotado (incluindo o fornecimento de caramelos cedido pela esposa de Fawcett), que já estava bastante esgotado, e constantemente entrava em confronto com Fawcett, não querendo admitir que sua inaptidão colocava em risco seus companheiros, dos quais um – Manley – também se encontrava em estado extremamente grave, tendo contraído a malária. Todos esses detalhes estão presentes de forma mais ou menos completa no filme, para o qual foram adotadas a partir do livro de David Grann, que realmente toma um grande gosto por Murray e lhe dedica 14 páginas inteiras do seu livro, até mesmo bastante pequeno (a metade do qual, aliás, é dedicado não a Fawcett, mas às próprias peripécias do autor na Amazônia).

 


James Murray com o filhote Adélie Penguin. Foto da Expedição Nimrod (1907-09) à Antártida, liderada por Sir Ernest Sheckleton.

Fonte: Archive of Alfred Wegener Institute for Polar and Marine Research/Wikimedia Commons.

 

A única coisa que Murray não fez foi regar os mantimentos com parafina (ação atribuída a ele no filme claramente para dar um maior efeito dramático): seu estado era tal que ele não conseguia nem ficar de pé, de modo que dificilmente seria capaz de fazê-lo. No barracão de San Carlos, a comitiva conseguiu encontrar um arrieiro com mula, com a qual Murray foi enviado de volta à civilização.

 

Voltando ao filme, a cena com as desculpas trazidas por Fawcett na presença dos dirigentes da RGS não a Murray, mas aos seus companheiros, realmente resultou forte e, na minha opinião, do ponto de vista moral, pode até ser considerado o melhor episódio em todo o filme. Na verdade, contudo, o quadro original de como foi liquidado o incidente ficou desconhecido para nós.

 

Enfim, a principal reclamação em relação a Murray vai dirigida não a Gray, mas a Grann, que no seu livro francamente faz alusão a que Fawcett supostamente teria podido deixar Murray morrer na floresta: "...os detalhes da contenda não foram tornados públicos, incluindo o quão perto Fawcett tinha chegado a abandonar seu compatriota na selva" (Grann, 2009: 123). Um absurdo total, até mesmo porque Murray em nenhum momento foi deixado sozinho, e na fase final da jornada constantemente permaneciam com ele dois índios Echoja, prestando-lhe todo tipo de ajuda, – fato do qual o astuto Grann, aliás, não faz nem a mais leve menção. Fawcett e Costin, no entanto, foram adiante porque era necessário levar o mais breve possível outro companheiro doente – Manley – para o povoado.

 

A impressão geral é que Grann na realidade simpatiza não com Fawcett, mas com Murray – assim como este último, Grann não se deu bem com a Amazônia, aparentemente encontrando em Murray algo como uma "alma gêmea". Como o autor americano pode falar, então, de uma "obsessão por Fawcett", que ele atribui a si mesmo? Como, afinal, é possível simpatizar com alguém como Murray, quem, no topo de tudo, não hesitou em lançar todo tipo de acusações àquele que fez tudo para lhe salvar a vida? O diretor Gray fez de Murray o vilão da história; a vida real, também. Os fatos não deixam dúvida de que Murray, afinal, permaneceu vivo graças ao modo de proceder de Fawcett – e o filme conseguiu mostrá-lo de modo patente.

 

i) Terceira e final expedição cinematográfica: o sumiço

 

Seguem logo no filme os episódios da atuação de Fawcett na Primeira Guerra Mundial, retratando o verdadeiro caso de intoxicação do coronel com gás de guerra, que teve lugar logo após o Natal de 1916. Dos acontecimentos posteriores à guerra, vale a pena mencionar as seguintes alterações dos fatos no filme: o repórter americano não visitou Fawcett na sua casa em Stoke Canon em 1923 – na realidade, o interesse por Fawcett nos Estados Unidos começou apenas no final de 1924, graças aos esforços iniciais do seu promotor George Lynch e depois, pela autopromoção do próprio Fawcett em Nova York; a condecoração com a Medalha de Ouro do Fundador da RGS ocorreu ainda em 1916 e não em 1924; e não houve qualquer "corrida" ou competição para encontrar a "Z" com o explorador americano Dr. Alexander Hamilton Rice (mais uma interpretação falsa de parte de Grann) – o verdadeiro objetivo de Rice não eram cidades perdidas, mas a exploração geográfica, mais especificamente, exploração fluvial: em sete expedições empreendidas de 1907 a 1925, ele cobriu 1.300.000 km2 da Bacia Amazônica, mapeando um número de rios anteriormente desconhecido na sua parte noroeste, dividida entre o Brasil e a Colômbia, e chegando até a Venezuela (regiões localizadas infinitamente longe de quaisquer das possíveis localizações da "Z" segundo Fawcett). Completado o trabalho de Rice, as fronteiras setentrionais da Bacia Amazônica foram definitivamente estabelecidas e incluídas em mapas precisos.

 

Segundo a versão do filme, a ideia da expedição final foi induzida a Fawcett pelo seu filho Jack, que, em um certo momento, lhe pergunta: "O senhor ainda acredita em Z? E que subestimamos os indígenas? É por isso que nós temos que voltar!". Outra vez a mesma interpretação anacrônica no estilo do "revisionismo" do século XXI: foi a escola da Dra. Betty Meggers, os "tradicionalistas", que na realidade subestimaram os indígenas, negando qualquer possibilidade da existência de uma civilização na Amazônia, enquanto os "revisionistas", nos finais do século XX, demostraram a capacidade dos indígenas de se adaptar ao ambiente amazônico e construir sociedades complexas.

 

A fictícia terceira expedição final, de fato, não possui qualquer similitude com a expedição final real (décima primeira pela contagem geral) – em primeiro lugar, não está presente nela, como em todo o filme, o terceiro dos seus integrantes reais, o jovem Raleigh Rimell, melhor amigo da infância de Jack Fawcett, personagem importante em vários sentidos. Mais ainda, a participação dele muito provavelmente teria desempenhado um papel chave no destino da expedição – como já sabemos, sua perna inchada já se tornou um obstáculo bem sério para continuar o caminho, ao tempo do sumiço do grupo.

 

Não há quase nenhum detalhe sobre essa expedição no filme: os dois Fawcett, pai e filho, passam no trem por uma certa localidade sul-americana e depois os vemos atravessando a selva já em abril de 1925. Por razão desconhecida, surgem na região do rio Verde, no lugar da antiga (e fictícia) Fazenda Jacobina e as ruínas da "Grande Casa de Opera"; demais é dizer que o verdadeiro itinerário da expedição final passava por uma região que não teve nada a ver com o rio Verde, afluente do Guaporé.

 

Logo antes de sumir na selva, o pai e o filho visitam uma tribo indígena, cujo protótipo são os Bakairi, do Posto Bakairi, realmente visitados pela comitiva de 1925. Segue logo a leitura da derradeira carta do Fawcett cinematográfico, reproduzindo um par de fragmentos textuais das últimas cartas reais; mas a frase "Ele [N. A.: o cacique indígena] me faz lembrar mais uma vez que somos todos feitos do mesmo barro" é de autoria de James Gray; uma frase chave, pela qual, segundo ele (como veremos mais abaixo), o filme inteiro foi produzido.

 

Tudo o que acontece com os dois Fawcett posteriormente, já é pura fantasia do diretor e roteirista, que não vamos analisar simplesmente pela falta, na verdadeira história, de objeto de comparação.

 

Imaginária captura dos dois Fawcett pelos índios – fantasia do diretor e roteirista James Gray (o personagem de Jack Fawcett é interpretado por Tom Holland).

Fonte: "The Lost City Of Z" – "Z, A Cidade Perdida" (print).

 

Já no final do filme, a maneira do epílogo, vemos a legenda por razão do qual toda essa produção, afinal, foi feita realmente:

 

"A crença de Fawcett numa civilização perdida foi ridicularizada por quase cem anos. Mas no início do século XXI arqueólogos descobriram uma surpreendente rede de antigas estradas, pontes e assentamentos agrícolas por toda a floresta amazônica. Entre estes lugares, estava o local proposto por Fawcett para a cidade de Z".

 

Obviamente, trata-se da mesma versão gratuita Heckenberger–Grann, já conhecida de nós, de que os assentamentos pré-históricos xinguanos no Alto Xingu, descobertos pelo antropólogo americano, teriam se encontrado na mesma região em que Fawcett acreditava que se encontraria a "Z". Uma afirmação cujo fundamento é o desejo pessoal de Michael Heckenberger – cientista conhecido por ser principal consultor acadêmico tanto de Grann, como de Gray, – de ver suas descobertas identificadas com a lendária "Z". De modo que as três poderosas instituições do establishment, personalizadas por Heckenberger (ciência oficial), Grann (mídia oficial) e Gray (Hollywood) uniram seus esforços e atuaram aqui unanimemente e com um objetivo especial para criar a versão falsa de Fawcett popularizada recentemente.

 

Os difamadores britânicos atacam, ou A guerra anglo-americana por Fawcett

 

Como já descrevemos na primeira parte deste trabalho, a estreia mundial do filme "Z, a Cidade Perdida", em 2017, desatou uma feroz crítica dirigida contra o filme e sua fonte, o livro de David Grann, como também uma desenfreada difamação do Fawcett histórico. Essa onda proveio especificamente de dois renomados britânicos: o historiador e antropólogo Dr. John Hemming, ex-diretor da Royal Geographical Society, e o escritor e explorador Hugh Thomson, membro da RGS, quem conduziu algumas expedições no Peru para estudar os vestígios da civilização incaica.

 

Segundo David Grann conta no seu livro, quando ele ligou pela primeira vez para John Hemming, com objetivo de indagar-lhe sobre Fawcett, o britânico perguntou-lhe em primeiro lugar: "Você não é um desses loucos por Fawcett, verdade?" (Grann, 2009: 48). Obviamente, Grann asseverou-lhe que não o era e, de fato, mostrou ter grande reverência a Hemming: além de lhe citar muitas vezes no seu livro, diz que, ao escrever este, ele "estaria perdido sem a história de três volumes de Hemming sobre o índio brasileiro". Mais ainda, a interpretação, por parte de Grann, de Fawcett como sendo um "racista" provém especificamente do Dr. Hemming, quem, como vimos, professa um ódio cego por Fawcett, contudo, qualquer opinião sua é considerada competente pela sua posição de um cientista de renome.

 

Contudo, o mais engraçado é, por mais que Grann procurou se manifestar como um fiel adepto e admirador de Hemming, este último ficou desgostoso e até enfurecido com o seu livro, desbaratando-o primeiro em uma resenha do Times Literary Supplement, com a seguinte conclusão condenatória, que já nos é conhecida parcialmente: "É uma lástima que um escritor tão bom quanto Grann escolheu para seu estudo a esse homem insignificante, desagradável e, enfim, patético. É uma pena ainda maior que ele tenha decidido inflar e distorcer tanto essa triste história" (cit. apud Thomson, 2017).

 


Os dois autores britânicos, críticos tanto de Fawcett histórico, como da obra de Grann e Gray: o Dr. John Hemming (à direita) e o explorador Hugh Thomson. Detalhe da foto coletiva dos exploradores britânicos dos Andes, 1º de novembro de 2010.

Fonte: Lee Foundation, Vince Lee/Wikimedia Commons

 

Em 2017, Hemming repetiu seus argumentos contra Grann no artigo "The Lost City of Z is a very long way from a true story ‒ and I should know" ("Z, a Cidade Perdida, é muito longe da verdadeira história – e devo sabê-la"), publicado no The Spectator e já analisado extensamente por nós na anterior parte deste trabalho, naqueles pontos onde Hemming dirigiu seus ataques contra o Fawcett histórico. Cabe-nos, em continuação, revisar brevemente as principais críticas de Hemming contra Grann, sem tomar definitivamente o partido de ninguém, claro, porque, como o leitor já pôde verificar, ambos partidos em realidade são igualmente inimigos de Fawcett – o qual é o nosso único e verdadeiro partido em todo este assunto.

 

Diz o Dr. Hemming:

 

"... [a história de Fawcett] foi esquecida até 2009 [N. A.: o que, de fato, não corresponde à realidade], quando David Grann, um talentoso escritor, publicou 'The Lost City of Z'. Infelizmente, Grann exagerou na história e retratou erroneamente Fawcett como um grande explorador.

 

Como ele alegremente admitiu, Grann não tinha experiência de florestas tropicais. Mas ele deixou sua imaginação correr descontroladamente, com páginas sobre piranhas ferozes, anacondas enormes, enguias elétricas (na verdade um peixe que nunca matou um homem), sapos 'com toxinas suficientes para matar 100 pessoas', pecari 'predador' parecido com porco, 'formigas saúvas que poderiam reduzir as roupas dos homens em fios numa única noite, carrapatos que se anexavam como sanguessugas (outro flagelo) e as larvas peludas vermelhas que consumiam tecido humano. Milípedes esguichando cianeto. Vermes parasitas que causavam cegueira...' e assim por diante. Todos que conhecem florestas tropicais, inclusive eu, sabem que quase cada palavra dessas é absurda".

 

Não é claro o que Hemming pretendia afirmar com isso. Que na Amazônia não existem espécies perigosas para o homem? Que as famosíssimas "piranhas ferozes" ou "larvas peludas vermelhas que consumiam tecido humano" – precisamente aquelas que atormentavam ao biólogo James Murray – são mera invenção? No mínimo, soa estranho. Os "sapos com toxinas", por exemplo, são as famosas rãs Phyllobates terribilis, ou rãs douradas, da família Dendrobatidae, consideradas os vertebrados mais venenosos do planeta, com veneno suficiente para matar várias pessoas (ainda que, mais provavelmente, não cem). Por certo, esta espécie é endêmica das florestas úmidas da costa do Pacífico na Colômbia, portanto, sua descrição não vinha ao caso de Fawcett, que nunca esteve naquelas áreas. É verdade que Grann está inclinado em alto grau às exagerações; mas dificilmente poder-se-ia lhe atribuir a invenção de espécies de animais.

 

Prossegue Hemming:

 

"O próprio Fawcett fez um relato simples de suas quatro viagens de levantamento para o governo boliviano. Mas para Grann, 'em expedição após expedição... ele explorou milhares de milhas quadradas da Amazônia e ajudou a redesenhar o mapa da América do Sul'. Fawcett admitiu que ele era 'um novato na selva' e não sabia nada sobre a natureza. Mas Grann escreveu que ele se moveu 'polegada a polegada pela selva, rastreando rios e montanhas, catalogando espécies exóticas... [até que] ele explorou tanto da região como ninguém".

 

Até acho possível concordar aqui com Hemming. Novamente vemos aqui a inclinação de Grann pelas exagerações, entretanto, Fawcett jamais se atribuiu méritos semelhantes, realmente deixando "um relato simples" de suas expedições bolivianas (o que é aplicável tanto às suas conferências e artigos quanto ao livro "Exploração Fawcett"). O que Fawcett ajudou a redesenhar, foram na realidade as fronteiras dos Estados da região (a Bolívia, o Brasil e o Peru); quanto à geografia, contribuiu para precisar alguns cursos fluviais e suas nascentes, mas realmente não é possível comparar sua contribuição à ciência geográfica com as do então coronel Cândido Rondon e o Dr. Alexander Hamilton Rice, seus contemporâneos. E jamais "catalogou espécies exóticas" ‒ ainda que encontramos várias descrições destas nos seus escritos.

 

Continua Hemming:

 

"Grann escreveu que, como autor, ele teria se perdido sem minha história de três volumes de 2.100 páginas de índios brasileiros e cinco séculos de exploração. Ele cita com bastante frequência meus livros. Portanto, ele não tinha desculpa para descrever as breves visitas de Fawcett a três aldeias indígenas como a 'descoberta de tantos índios anteriormente desconhecidos', dos quais 'ele aprendeu a falar uma infinidade de línguas indígenas' e adotou 'remédios fitoterápicos e métodos nativos de caça [de modo que] que ele era mais capaz de sobreviver fora da terra'. Igualmente absurdo era seu lixo sobre tribos canibais, zarabatanas com dardos envenenados, ou os Kuikuro ameaçando-o com 'lanças reluzentes cintilando' a partir do mato baixo (eles nunca usaram lanças ou tinham metal sequer antes de seu contato há 130 anos)".

 

A visita de Fawcett às aldeias Mashubi, onde ele colheu informações sobre diversos povos indígenas locais, realmente poderia se chamar de "descoberta de tantos índios anteriormente desconhecidos" ‒ na época, as selvas dos afluentes direitos do Guaporé ainda não eram aproveitadas pelos seringalistas, realmente sendo povoadas densamente pelos indígenas, exterminados em décadas posteriores à visita de Fawcett. O fato de Fawcett ser pelo menos um dos primeiros brancos a visitar essa região é cientificamente aceito (van der Voort, 2012). Contudo, Fawcett, claramente, não "aprendeu a falar uma infinidade de línguas indígenas", mas, segundo é possível concluir em base aos seus diferentes escritos, pelo menos três idiomas indígenas: o Chuncho, o Guarayo e o Mashubi (Arikapu). E em verdade veio também aprendendo várias coisas com os indígenas.

 

Novamente se torna difícil compreender porque as informações sobre as tribos canibais ou zarabatanas – tubos para atirar com sopro – são um "lixo" para Hemming, tanto mais que dificilmente poderia se negar a existência histórica tanto das primeiras, como das segundas. Quanto às "lanças reluzentes" dos Kuikuro, Hemming está errado, pois no livro de Grann trata-se, na realidade, das lanças dos Kalapalo ameaçando aos membros da Expedição Autan em 1996, e não a Fawcett em 1925 (Grann, 2009: 126).

 

Finaliza Hemming:

 

"Estas e muitas outras passagens são uma licença artística e propaganda de uma ordem absurda. Hollywood acreditou em tudo o que Grann escreveu, e depois aumentou ainda mais a campanha publicitária. As pessoas que desejam aprender sobre o coronel dissidente devem consultar seu livro de memórias bastante modesto – não o recente livro de fantasia e filme sobre ele. Mas eu poderia recomendar dezenas de escritos por exploradores reais".

 

E nessa conclusão, não apenas estou prestes a concordar cem por cento com o Dr. Hemming, mas é o único ponto que me faz reconciliar-me até certo ponto com esse cientista britânico. E não deixo de aconselhar insistentemente ao leitor desejoso de saber a verdade o mesmo: deixar de lado o "livro de fantasia" de Grann, sem falar do filme, e empeçar pela velha "Exploração Fawcett" (ainda que sempre tendo em mente que não foi escrito pelo próprio protagonista, mas pelo seu filho).

 

Passemos agora ao artigo de Hugh Thomson "The Lost City of Z: How to Make Enemies in the Jungle" ("Z, A Cidade Perdida: Como fazer inimigos na selva"), publicado no seu blog e representando uma versão mais longa de seus artigos escritos para o London Evening Standard e o Washington Post quando o filme "Z, A Cidade Perdida" foi lançado.

 


Hugh Thomson.

Fonte: swhistlesoft.com

 

Para Thomson, o filme de Gray é "uma distorção bastante bizarra da verdade, como sabe qualquer um que tenha conduzido expedições para a América do Sul". Concordo plenamente com isso. Mas, como o leitor viu, para mim trata-se da distorção da verdade por retratar a Fawcett de um modo falso e anacrônico, atribuindo-lhe visões "revisionistas" do nosso século; entanto que para Thomson, a distorção provem do fato de que Fawcett é engrandecido imerecidamente no filme: "[A exploração da Amazônia] já viu muitas figuras heroicas. Mas Fawcett não era uma delas". Sim, porque para Thomson, Fawcett na realidade era "um incompetente que nunca conseguiu nenhuma descoberta" e "um estúpido racista até pontapés (a racist blunderer to boot)". Ou seja, literalmente os mesmos ultrajes lançados pelo Dr. Hemming, representando uma grosseria de um nível muito baixo, a qual, na verdade, não afeta Fawcett, mas apenas àqueles que a estão lançando, pois simplesmente revela o verdadeiro nível da cultura interna deles. Para sustentar esses ultrajes, Thomson simplesmente cita o argumento de Hemming, presentando o relato de Fawcett sobre os Maricoshi simiescos como prova do seu afamado 'racismo' (por alguma razão, Thomson pensa que os Maricoshi eram na realidade os Nhambiquara). Já analisamos esse 'argumento' na anterior parte deste trabalho. Mais ainda, para Thomson, Fawcett jamais reconheceu as qualidades dos povos indígenas, ao contrário de outros exploradores da Amazônia, seus contemporâneos. Obviamente, é a visão de um ignorante e incompetente no tema ou, mais provavelmente, de um que está fazendo "uma distorção bastante bizarra da verdade", ao seu próprio modo, atribuindo ao mesmo tempo aos outros o mesmo pecado.

 

Em certos aspectos posso concordar até certo ponto com Thomson; por exemplo, nesta colocação: "Igualmente equivocada é a maneira como ele [N. A.: Fawcett] é mostrado como sendo a única voz que defende os índios que encontrou, ao passo que, à sua volta, velhos esquisitões menos esclarecidos proclamam a selvageria deles. Ele faz um discurso apaixonado em defesa dos índios na Royal Geographical Society ('o nativo merece nossa simpatia') e aparece como sendo esclarecido e liberal em suas visões". Ainda que, como já mostrei na primeira parte deste trabalho, Fawcett de modo algum foi um racista e em verdade se manifestava em defesa dos indígenas, reconhecendo suas qualidades, não era esse o principal tema das suas atividades, nem tampouco ele foi o único nem o mais conhecido nesse campo: a maior fama na qualidade de defensor dos índios foi adquirida na época pelo irlandês Roger David Casement, cônsul-geral britânico no Rio de Janeiro, enviado a investigar em 1910 as atrocidades cometidas contra os índios do Putumayo, na fronteira entre o Peru e a Colômbia. Por certo, Casement seria um personagem muito mais apto para James Gray se o que o diretor hollywoodiano pretendia mostrar fosse a imagem de um defensor dos índios no início do século XX.

 

É curioso notar mesmo que Thomson discorda em certos pontos de Hemming: se para Hemming o livro de Grann é um "livro de fantasia", para Thomson trata-se de um livro "muito mais inteligente e nuançado do que o filme, como seria de esperar de um funcionário efetivo de New Yorker. Depois de analisarmos a obra de Grann, espero que o leitor seja bastante sagaz de tirar suas próprias conclusões a respeito.

 

Contudo, Thomson não deixa de manifestar certo desprezo até em relação a Grann, sempre e quando se trate sobre Fawcett (grifo de Thomson): "O próprio Grann é autodepreciativo. Ele admite que não sabe nada da selva e, para começar, pouco sobre Fawcett. Como escritor de viagens, ele adota a abordagem da ingénue: 'Ei, sou apenas de Nova York. Não sei muito sobre isso, mas vou lhe contar de qualquer maneira'. Isso permite que ele apresente algumas das alegações mais exageradas de Fawcett como se ele fosse uma criança curtindo as palhaçadas de um artista de carnaval no palco. Então, e se o cara alegar ser o homem mais forte do mundo? Quem se importa se isso é verdade ou não quando é muito divertido?". O próprio estilo de Thomson já fala por si só e não há muito que comentar aqui, pois nem sequer fica claro o que são as "alegações mais exageradas de Fawcett" para ele.

 

Se para Hemming o livro "Exploração Fawcett" é um "relato simples" e "bastante modesto" (o que, de fato, é assim), Thomson, se mostrando até mais radical, não oculta seu ódio até em relação ao livro (o qual, por certo, acompanhou sua infância, segundo ele mesmo menciona), ao dizer que Fawcett "se automitologizou em um nível incomum, apresentando jornadas bastante mundanas na selva como se fossem odisseias homéricas, mesmo que fossem rotas anteriormente percorridas". Uma conclusão absolutamente ridícula para qualquer um que leu o livro atenciosamente. Além disso, para Thomson, tanto as histórias de Fawcett como o recente filme "deram ao mundo uma versão de exploração na Amazônia que ela queria e poderia reconhecer a partir da ficção, não importando a verdade. O filme apresenta uma Amazônia dos desenhos animados onde os crânios humanos alinham a entrada ao acampamento indígena". No entanto, se excluirmos a sucuri gigante e os Maricoshi cabeludos do livro "Exploração Fawcett", não restaria qualquer coisa "fantástica” na descrição das expedições no livro.

 

E aqui vem a conclusão de Thomson sobre o filme (grifo dele):

 

"Quase tudo deu errado na adaptação desajeitada de Gray para a tela. Para começar, ele escreveu seu próprio roteiro e, em seguida, filmou-o com grande reverência – quase sempre com erro. (...) James Gray tem pretensões de ser um autor de filmes – mas este é um filme que quer ser Apocalypse Now e termina como Monty Python na selva. A única virtude desse monstro lumpen do filme é que ele chama a atenção para as descobertas que se estão desdobrando na Amazônia no momento. Pois embora Fawcett possa ter feito isso pelas razões completamente errôneas, sua suspeita de que pode ter havido civilizações anteriores na Amazônia se mostrou correta (e essa foi a graça salvadora do livro original de David Grann, que ajudou a chamar a atenção para descobertas arqueológicas recentes). (...) Hollywood, claro, quer ação e também quer heróis. Mas mesmo em um mundo pós-verdade, há apenas uma distorção dos fatos que é admissível. E neste caso também é desnecessária. (...) De um modo curioso, a ignorância intencional deste filme ecoa a ignorância intencional do próprio Fawcett. Por que se ater aos fatos quando você pode jogar com um mito? Mas mesmo que a verdade às vezes seja mais estranha que a ficção, isso não é uma licença para inventá-la. Pois esta é realmente uma história incrível. Mas não verdadeira".

 

Na verdade, a atenção para as modernas descobertas arqueológicas na Amazônia foi chamada ainda pelo livro de Charles Mann "1491" (2006). E a "ignorância intencional do próprio Fawcett" é algo inventado por Thomson, que não sabe muito sobre o personagem que tanto odeia. Mas na sua característica do filme, contudo, acertou bastante – ainda que não foi capaz de reconhecer a verdadeira distorção, que foi o objetivo tanto do livro de Grann, como do filme de Gray – a remodelação anacrônica de Fawcett para ser transformado num "revisionista" do século XXI, com as mesmas visões, retórica e objetivos. Contudo, a conclusão final de Thomson, a meu ver, merece todo o elogio: "Mesmo que a verdade às vezes seja mais estranha que a ficção, isso não é uma licença para inventá-la". Esse é exatamente o caso do Fawcett histórico por uma parte e de Heckenberger, Grann e Gray, por outra.

 

Resta, contudo, constatar que nenhum dos dois críticos britânicos percebeu a verdadeira natureza da distorção histórica presente na versão Heckenberger–Grann–Gray, ficando eles simplesmente indignados com o fato do pressuposto "engrandecimento" de Fawcett por Hollywood. O que, de fato, denota seu escasso conhecimento do tema e seu único interesse em relação a Fawcett, que consiste em deitá-lo ao eterno esquecimento, tratando-se para eles de um personagem nojento e insignificante.

 

James Gray contra-ataca os críticos britânicos

 

No início de abril de 2017 James Gray respondeu aos dois britânicos, durante a sua entrevista à revista digital americana Inverse (Zakarin, 2017). Para Gray, os "críticos históricos" resultaram ser "desmiolados" (brainless), entanto que ele, o cineasta, "não tem tempo para pessoas exigindo fidelidade de fatos". Contudo, considerando a notória posição dos críticos, ele encontrou tal tempo. Sua resposta foi muito curiosa, e vamos fechar com ela a presente parte deste trabalho.

 

Começa Gray:

 

"Eles foram ao ataque, e eu gosto disso porque se eles estão dispostos a te atacar e querem te atacar, isso significa que você ficou sob a pele deles. Ao mesmo tempo, acho que eles não têm o direito de serem críticos de cinema, e o que eles estão discutindo é tão absurdo e idiota, porque eu não estou fazendo um documentário".

 

A primeira defesa de Gray foi simplesmente surpreendente:

 

"O objetivo desse esforço [N. A.: produção do filme] não é acertar todos os fatos e, a propósito, você não pode fazer isso mesmo se quiser. Porque o conhecimento que temos de Fawcett é baseado em um punhado de coisas da Royal Geographical Society e, adicionalmente, um livro chamado Exploration Fawcett, que são seus diários. E nós não sabemos o quanto eles foram manipulados por Brian Fawcett, seu filho [que os publicou]".

 

Por uma parte, Gray acertou aqui de uma forma incrível, realmente mostrando um alto grau de percepção do caso – tanto mais que o livro "Exploração Fawcett" nem sequer são "diários" de Fawcett, senão, como já sabemos, uma obra escrita inteiramente pelo seu filho Brian. Que na verdade manipulou bastante os escritos do seu pai, ainda que não de uma forma crítica – em qualquer caso, o grau de verdade presente em "Exploração Fawcett" é infinitamente maior do que no livro de David Grann, que serviu de base para o filme.

 

Contudo, se realmente tivesse desejo de fazê-lo, Gray poderia reconstruir a maioria dos fatos verídicos da biografia de Percy Fawcett em base aos seus escritos genuínos – os quais, como também sabemos, ainda são bastantes, tanto mais para fazer um filme.

 

Em qualquer caso, o alegado por Gray não pode servir de escusa para efetuar uma completa remodelação de personagem de Fawcett, muito menos uma remodelação que vá num rumo muito preciso.

 

Quanto às críticas por parte do Dr. Hemming, Gray respondeu o seguinte: "O Sr. John Hemming é um grande homem em muitos aspectos e eu não estou diminuindo suas realizações, mas ele não é um crítico de cinema, nem é um crítico literário, e às vezes há uma verdade maior a que aspiramos. Não são os fatos no chão".

 

Significa isso que todas as distorções da verdade histórica presentes no filme de Gray são explicadas pela "aspiração a uma verdade maior"? Mas pode haver uma verdade maior que a própria história? Haveria que lembrar-se aqui de Miguel de Cervantes, quem brilhantemente chamou a História de "mãe da verdade". Se os fatos históricos não são de importância para Gray, então, para que produzir um filme sobre um personagem histórico? Por que precisaria Gray especificamente de Fawcett, se o seu objetivo fosse uma completa remodelação deste homem real que uma vez viveu neste mundo – e, por certo, teve suas próprias visões e aspirações a uma "verdade maior"? Não seria mais fácil para Gray inventar seu próprio personagem, puramente fictício e flexível aos propósitos do seu criador?

 

Obviamente, um criador tem licença de se expressar artisticamente. Mas o gênero histórico impõe suas próprias regras, e as pessoas reais do passado, ainda que já não disponham mais de seus direitos jurídicos, pelo menos ainda têm direitos morais e de modo algum são a pertinência pessoal do tal criador, o qual não tem direito de fazer deles o que lhe praz.

 

Mas continuemos com a resposta de Gray. Quanto ao ódio pessoal de Hemming em relação a Fawcett, ele sugeriu uma versão peculiar: as contradições de classe. John Hemming, ainda que nascesse no Canadá de pais britânicos, foi educado no Reino Unido e viveu lá nos últimos 50 anos, sendo membro da alta sociedade do país. Seus pais foram condecorados com a Ordem Mais Distinta do Império Britânico, e Hemming, diretor da RGS por um quarto de século, também foi homenageado pela Rainha por seus próprios feitos. Mas Fawcett, para Gray, pertenceu à classe média, o que, de fato, não foi assim: a família de Fawcett pertenceu à aristocracia provincial, seu pai estudou em Cambridge e até foi membro do círculo interno do Príncipe de Gales, futuro Rei Eduardo VII. Contudo, Gray apontou à "capacidade do Reino Unido de ignorar suas falhas e pecados passados" e a "atitude psicopata britânica para com a classe". Segundo ele, "Enterrado nisso, está algo repugnante: a superioridade moral. Enterrado dentro de que 'Fawcett foi racista' é 'somos melhores; sabemos mais; somos melhores'".

 

Contudo, discordo aqui de Gray: segundo já foi mostrado na anterior parte deste trabalho, a principal razão do ódio de Hemming e Thomson em relação a Fawcett é a inveja do explorador, porque nenhum dos dois atingiu semelhante fama, enquanto, em sua opinião, Fawcett, ao contrário deles, não fez nada importante – assim, como assinala Thomson, "sua realização mais dramática foi se perder". No caso de Hemming, como também sabemos, o ódio é alimentado ainda mais pela atitude do seu pai para com Fawcett, quem o conheceu em vida.

 

Entretanto, mais paradoxalmente, Gray acaba por aceitar a asseveração dos britânicos sobre o afamado 'racismo fawcetteano' (grifo meu): "Bem, Fawcett era racista – é claro que ele era racista. Mas você não pode julgar uma pessoa fora da história". Para Gray, simplesmente todos os ocidentais na época seriam racistas; deste modo, Fawcett não seria um racista singular, mas um racista comum. Nesse sentido, o diretor americano discute com Thomson, para quem Fawcett teria sido mais racista do que os seus contemporâneos. Eis o que Thomson refere exatamente: "O argumento de que ele era apenas 'de seu tempo' também não é admissível. Havia muitos exploradores contemporâneos da Amazônia que reconheciam as qualidades dos povos indígenas. Theodore Roosevelt, não menos que um explorador antes de se tornar presidente, fora impressionado precisamente pela mesma tribo indígena de Nambiquara [N. A.: por razão inexplicável, Thomson identifica os Nhambiquara com os Maricoshi cabeludos de Fawcett]".

 

A isso, Gray respondeu, conseguindo apanhar belamente o adversário:

 

"Teddy Roosevelt acreditava na esterilização para os povos menores. Teddy Roosevelt era um crente eugênico. Teddy Roosevelt se referiu aos povos da África como 'semelhantes a macacos'. Este é o seu exemplo de uma pessoa verdadeiramente progressista?"

 

Voltando novamente ao tema de precisão dos fatos históricos, Gray (grifo meu) "alegou licença artística e sugeriu novamente que capturar o espírito de uma história é muito mais importante que a fidelidade aos fatos literais". Citou muitos exemplos de histórias que exigiam licença artística; até se comparou a si mesmo ao próprio Shakespeare:

 

"Eu vou rescindir todas as minhas críticas aos escritores dessas peças se eles vão para apresentações de Ricardo III e vaiam Shakespeare por suas imprecisões históricas. E eu vou rescindi-lo apenas porque eles são consistentes, não porque eles são menos idiotas".

 

Contudo, afinal, o que significa exatamente "capturar o espírito de uma história"? Quem vai decidir se essa ou outra adaptação qualquer reflete o "verdadeiro espírito de tal história"? Quando passamos a falar de "espírito", perdemos qualquer terreno firme, entrando no campo de puro subjetivismo. E quanto a Gray, ele nem sequer tem direito qualquer de falar sobre a "captura do espírito da história", porque em nenhum momento era esse seu verdadeiro objetivo: simplesmente remodelou Fawcett à imagem e semelhança de Michael Heckenberger, atribuindo-lhe as mesmas ideias, visões e descobertas e expelindo todo espírito e conteúdo ideológico do Fawcett real, que viveu neste mundo um século atrás.

 

Ao falar, em outra ocasião, desse "espírito" ou "verdade maior" que ele pretendeu refletir no seu filme, Gray disse: "Trata-se de uma visão mais relevante do que nunca. Essa onda de nacionalismos está varrendo o mundo e é sempre importante lembrar que nós, seres humanos de diferentes culturas, somos feitos do mesmo barro" (Genestreti, 2017). A intenção soa boa claro, mas, como é bem sabido, de boas intenções o inferno está cheio; e a pergunta legítima é se é realmente justificável fazer uso de francas falsificações para instituir aquilo que você considera uma "verdade maior"? Por acaso a luta pelo bem não deixa de ser tal quando começa a se fundar na mentira e na falsidade? Se, afinal, Fawcett foi mesmo um 'racista' para Gray, então, para que apresentá-lo como portador dessa "verdade maior"? Se o que Gray pretendia mostrar fosse um defensor dos indígenas, seria mais apropriado para esse diretor fazer um filme sobre Roger Casement; se pretendia popularizar a recente descoberta das civilizações indígenas da Amazônia, o protagonista do seu filme deveria ser o próprio Michael Heckenberger. Mas a história de Fawcett, o infeliz e caluniado atlantólogo, é uma história diferente.

 

Como já disse, não estou contra o direito de um criador – seja este escritor ou roteirista e diretor de cinema – de se expressar artisticamente. Mas quando se trata de personagens reais e não fictícios, de acontecimentos concretos e não fantásticos, seria como mínimo um ato de simples respeito por parte do criador apresentar-lhes conscienciosamente ao seu leitor ou espetador. No caso do gênero histórico, já não mais se trata da licença, senão de responsabilidade – responsabilidade por transmitir às pessoas a verdade sobre o passado, sem importar se este nos goste ou não. E se o criador se sente constrangido pelos fatos históricos, então, que deixe o gênero histórico e passe a inventar seus próprios personagens e acontecimentos, que serão governados unicamente pelas leis de sua imaginação e sua moralidade. Mas é inadmissível mudar inteiramente não apenas o conteúdo e a imagem de personagens e acontecimentos históricos concretos, mas também de épocas inteiras, como o estão fazendo tanto Grann, como Gray, colocando a ideologia por cima da verdade. A manipulação da História inevitavelmente traz consequências fúnebres – todos os que leram Orwell podem imaginar isso; e não me estranharia se dentro de algumas décadas outro jornalista e outro diretor de cinema fizerem novas "criações" afirmando que Betty Meggers e sua teoria do "paraíso ilusório" jamais existiram na realidade e que Fawcett e Heckenberger eram, de fato, o mesmo homem que descobriu a cidade perdida de "Z" no Alto Xingu no século XXI, instituindo o "revisionismo" arqueológico na Amazônia. Se continuar a atual tendência de eliminar qualquer coisa que de repente possa parecer "ofensiva" dentro do marco da atual correição política, realmente não seria de se estranhar. Entretanto, a humanidade sem memória histórica verdadeira não é mais do que uma pessoa com amnésia; e com uma memória histórica falsamente induzida, algo muito pior.

 

Mas deixemos lá as disputas entre os criadores cosmopolitas e difamadores indignados. Falando a propósito do Alto Xingu, vimos que para Michael Heckenberger trata-se exatamente da mesma região onde Fawcett localizaria a "Z" – sendo este o principal argumento do cientista americano para a identificação do Objetivo Principal do coronel com os assentamentos pré-históricos descobertos por ele. Mas a própria presença de Fawcett na região do Alto Xingu em 1925 não foi um fato, senão rumores e fofocas muito mal verificadas. Para os senhores Hemming e Thomson, Fawcett e os seus companheiros teriam sido mortos lá pelos indígenas Kalapalo pela "rudeza", "racismo" e "falta de tato" do coronel. Mas essa versão faz muito tempo que já está obsoleta, tendo sua fonte inicial primeiro no comandante George Dyott e depois, nos irmãos Villas-Bôas, autores de todo um "romance policial" em torno aos presumíveis ossos de Fawcett.

 

Provavelmente, trata-se da maior conspiração em torno a Fawcett, trazendo um grande efeito nocivo para a sua reputação. Então, toca-nos agora, na próxima parte deste trabalho, investigar a fundo esse "romance policial", ou conspiração xinguana, para provar de uma vez por todas: Fawcett não apenas esteve infinitamente longe de fazer qualquer injúria aos indígenas, mas nem sequer pisou alguma vez o terreno do Alto Xingu, dirigindo-se na realidade para regiões muito diferentes.

 

* Oleg I. Dyakonov é licenciado em Diplomacia e Relações Internacionais, pesquisador em história alternativa. É correspondente e consultor para Via Fanzine em Moscou e editor do blog 'Desconhecida Pré-História Brasileira". Email: oligdy07_79@yahoo.com.

 

- Todas as traduções do inglês e espanhol foram feitas pelo autor do artigo.

 

- Optamos por preservar o português original da época nas transcrições.

 

- LEIA A PARTE 1 DESTE TRABALHO

 

OLEG DYAKONOV

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Fontes e referências

 

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Vídeos:

 

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Z, a cidade perdida – David Grann / Companhia das Letras – Youtube. Publicado em 8 de dezembro de 2009. URL: https://www.youtube.com/watch?v=Rcktu25b3-g (último acesso: 26 de agosto de 2018).

 

Z, A Cidade Perdida (filme dirigido e escrito por James Gray, dublado em português), 2016.

 

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