|
HOME | ZINESFERA| BLOG ZINE| EDITORIAL| ESPORTES| ENTREVISTAS| ITAÚNA| J.A. FONSECA| PEPE MUSIC| UFOVIA| AEROVIA| ASTROVIA
Página de Marcelo Sguassábia em Via Fanzine
Todos os textos:
Por Marcelo Sguassábia*
De Campinas-SP
Para Via Fanzine
© Direitos Reservados
* Marcelo Sguassábia é redator publicitário e colunista de diversos jornais e revistas eletrônicas.
É colaborador de Via Fanzine.
Seu blog: Consoantes reticentes. E-mail: msguassabia@yahoo.com.br.
|
Natal de Araque
- E então, como foi na entrevista? - Vou ter que engordar uns 22 quilos se quiser pegar a vaga de Papai Noel. O recrutador disse que a barba está boa, mas meu rosto está muito chupado. - Só que pra você engordar vai ter que comer, e se tivesse o suficiente pra comer não tinha que procurar esse bico. Não dá pra colocar uns enchimentos debaixo da roupa? Um almofadão, um edredon fofo? - Não adianta... Papai Noel tem cara gorda, tem braço gordo. E nos gordos de verdade até a voz é diferente. A minha é um fiapo, Maria... parece aquelas de Pato Donald quando entrevistam bandido no Jornal Nacional.
********
Bem, analisamos todos os candidatos e apesar da magreza optamos por você. O esquema é o seguinte: você acomoda o peste nos joelhos e faz o interrogatório, observando rigorosamente esta sequência: . Você é um bom menino? . Se comportou durante o ano? . Obedece papai e mamãe? . Vai bem na escola? . Come toda a chicória do prato?
Depois de ouvi-lo mentir em todas as respostas, você pega a cartinha da mão dele, lê em voz alta, coloca ela no saco, dá um beijo na testa do ranheta e enfia dentro do envelope o folheto da loja que tem o brinquedo que ele pediu. Aí você diz pro melequento entregar o envelope pro pai dele, falando que é a resposta do Papai Noel, ok? O que converter em venda você leva meio por centro. Feito, meu velho?
********
O turno era de 14 horas ininterruptas. O assento do trono tinha uma pequena tampa que dava direto para um outro trono, da Celite, pra que Papai Noel não precisasse sair dali pra nada. A fila tinha de andar, fazer o quê. E calculando a conversa de cada pentelho com o bom velhinho, mais a pose pra foto, tínhamos a média de 2 minutos e meio por peralvilho.
********
- Gui, olha só o Papai Noel!!! - Ô mãe, é Natal ou primeiro de abril? - Por que a pergunta, Gui? - Papai Noel chega de trenó, não de helicóptero como esse aí. Não tem tatuagem da Harley Davidson e do Che Guevara perto do cofrinho. Não fede cachaça. Ah, e na roupa desse velhinho aí tem uma etiqueta escrito “Casa das Festas”. Estranho, não? Esse não é Papai Noel. É um mentiroso sem vergonha. - É isso mesmo, o senhor é um impostor. A gente passa o ano todo dizendo para os filhos que mentir é feio, que se disser mentira não ganha presente de Natal. Aí chega aqui no shopping e encontra um Papai Noel fajuto, mais suspeito que brinquedo chinês. Nem criancinha lactente cai nessa esparrela. O senhor não passa de um artigo de 1,99! - É, vamos processá-lo por falsidade ideológica, mãe. Esse Papai Noel cover não tem nada a ver. O verdadeiro Nicolau deve estar indignado com esse rascunho genérico. - Chuta o saco dele, Gui, chuta. Isso!
********
O escândalo do Noel desmascarado espalhou-se mais rápido que as renas do Noel de verdade. Tiveram de arrumar um substituto às pressas, este afiançado pela administração do shopping como legítimo. O risonho, bonachão e desta vez suficientemente gordo Santa Claus distribuía ho-ho-ho’s por onde passava. No mais, os piscas, as bolas multicores, as guirlandas e os sinos badalando anunciavam um natal a preceito, como deve ser. Contudo, um guri capcioso, na hora de subir ao colo do obeso acetinado, viu o que não devia ver: uma fitinha do Senhor do Bonfim amarrada no punho do Papai Noel. Do verdadeiro Papai Noel. - Ô manhêêêêêêêêêêêêêê! Vem cá ver uma coisa!
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 24/12/2016. * * *Agora com amplo estacionamento
Bem-vindo. Retire seu ticket de estacionamento e boas compras.– Ali era o banheiro da suíte, bem onde está o Santana prata. Quando é que o Doutor Ribeiro, fazendo a barba ou tomando banho, lá pelos idos de 1976, iria imaginar que uma porcaria de uma lata velha acabaria atropelando a sua banheira de granito e o bidê da sua senhora… É um carro antigo hoje, né? Mas em 76 essa geringonça ainda nem existia. Coisa doida. Dá nó na cabeça e angustia a gente.– Você conhece bem a planta. Até parece que fez o projeto da casa.– Não, eu era só um amigo da família. Aliás, esse carro, o Santana, é quase do tempo do Opala. Nos últimos anos eles tinham um Opala lindo na garagem, só vendo que beleza de automóvel. Eu era colega de classe do Serginho, filho do casal.– Tudo acaba, queridão. De pouquinho em pouquinho, a vida vai matando tudo o que encontra pela frente. Não poupa nada nem ninguém.Oferta-relâmpago imperdível pra você aproveitar: margarina Doriana, pote 500 gramas, só R$3,78.– Alguns lugares não poderiam ter direito ao fim. A casa dos Ribeiro era uma instituição da cidade. É uma amputação urbana, uma coisa antinatural e desrespeitosa ela não existir mais. Está vendo aquela Pajero, do lado do Onix? Ali ficava a sala de jantar, que dava em “L” pra de televisão. Um pouco mais pra lá tinha a porta principal, ladeada por enormes vitrôs de correr, que do ponto de vista dos meus oito anos aparentavam ter uns quinze metros. Olha, vou te falar… pra quem entrou tantas vezes naquela casa linda, era mais fácil ver tudo em ruínas do que dar com isso o que estou vendo agora. Esse pátio imenso de cimento, com essas faixas amarelas demarcando as vagas, esse barulho horroroso de carrinho de supermercado vindo pra lá e pra cá. Não é justo. Não é digno do que foi aquela família, nem da história que viveram nesse chão aqui, sabe?– Ih, caramba. A gente aqui conversando e olha só… o Pinho Sol vazou bem em cima das peras.Omo Dupla Ação. Deixa o branco mais branco, tira as manchas mais difíceis. Remove toda a sujeira sem estragar suas roupas.– Tem tantos anos tudo isso, já era pra ter apagado da lembrança. Daqui a pouco o Doutor Ribeiro vai ser só um nome de rua. E mais um pouco, ninguém vai saber quem foi o Doutor Ribeiro e porque a rua tem esse nome. É triste.Para sair, insira o seu ticket de estacionamento. Volte sempre!- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 17/12/2016.
* * *
Quixote Moderno S/A
– Recebemos uma denúncia de Quixote Moderno S/A, que o acusa de extrair mogno nativo para confecção de seus bonecos de ventríloquo.
– Ah, então foram eles… nada me espanta, vindo dessa gente. Essa Quixote Moderno S/A não tem autoridade moral para denunciar e nem acusar ninguém. Seu imenso latifúndio de geradores eólicos provocou uma catástrofe ambiental na região, e nada de punição até hoje. Teve até uma turma do Greenpeace fazendo protestos e se amarrando às hélices dos moinhos. Ou melhor, dos aerogeradores. Todos viram, deu no Jornal Nacional semana passada. E os responsáveis aí, soltos. Eles me perseguem porque um dos meus bonecos deu a entender, em um programa de auditório, que a Quixote Moderno é uma verdadeira desgraça ambiental. Depois disso eles botaram detetive atrás de mim, para flagrar qualquer passo em falso e destruir minha reputação.
– O erro da Quixote Moderno não justifica a ilegalidade cometida pelo senhor. Essa questão não vem ao caso.
– Mas o meu delito é pequeno demais perto do crime ecológico deles. Para fazer seu fabuloso parque de 9.000 geradores, em duas semanas foram para o chão 5.700 hectares de mata que a natureza levou milênios para formar. Várias espécies de animais e plantas foram extintas e até o clima foi afetado por aqui. E vocês me enchendo a paciência por causa dos meus bonecos!
– Se tantas árvores foram derrubadas para montar o latifúndio eólico, por que o senhor não as aproveitou como matéria-prima de suas criaturas?
– Ah, então quer dizer que se eu me servisse das toras ceifadas criminosamente estaria tudo certo? Olha, na época da devastação eu até pensei em pedir um ou outro toco para a Quixote Moderno. Mas minha produção de bonecos é tão pequena, mas tão pequena que fiquei até envergonhado. Forneço meus bonecos para ventríloquos de circos, teatros e TVs de todo o Mercosul, mas mesmo assim são pouquíssimas unidades. O ventriloquismo não encanta mais as crianças de hoje. Sem falar que a Quixote Moderno só venderia aquela quantidade colossal de madeira a quem levasse tudo de uma vez, para desocupar rapidamente a área. E pagando uma fortuna, é lógico.
– Entendo o seu ponto de vista. Mas se por um lado eles exterminaram um patrimônio florestal enorme, por outro eles se redimem produzindo energia limpa, gerada pelo vento.
– O senhor está defendendo aqueles criminosos? Quanto é que está levando nisso, heim?
– Faça o favor de me respeitar, posso prendê-lo.
– Então, não perde tempo. Melhor me prender agora, porque se eu sair daqui vou correndo fazer dois novos bonecos de ventríloquo – um com a sua cara e outro com a cara do CEO da Quixote Moderno. E nem queira o senhor saber as falas que eu vou botar na boca de vocês dois!
– Ô Denilson!…
– Pois não, Dr. Sancho.
– Liga pra Quixote Moderno, diz que o homem tá aqui comigo e que eu estou aguardando instruções.
– Sim senhor, Dr. Sancho.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 05/12/2016.
* * *
O “Patriota Elegante” fecha suas portas
A notícia é triste e a perda é irreparável. Com lágrimas nos olhos, moradores dizem que não conseguem imaginar a cidade sem as coloridas vitrines do “Patriota Elegante”.
Há motivos para essa nostalgia. Rara era a casa que não tinha no quintal, entre uma jabuticabeira e um pé de graviola, um mastro para se hastear a bandeira nos dias cívicos – transmitindo aos nossos guris belos exemplos de amor à pátria. Havia sorteio na família para eleger quem teria a honra de ir puxando a cordinha até colocar o lindo pendão da esperança lá em cima, ao mesmo tempo em que um parente encarregado da sonoplastia mandava ver na sonatinha um compacto com o hino nacional, interpretado pela Banda dos Fuzileiros Navais.
Mas nada é para sempre. A extrema sazonalidade da demanda (basicamente Proclamação da República, Dia da Independência e Dia da Bandeira), aliada à atual crise econômica em que antipatrioticamente nos meteram, explicam o fato do “Patriota” perder de vez a elegância, a freguesia e o fôlego para continuar na praça.
O 19 de novembro deste ano marcou o estrebuchamento final desse herói da resistência varejista. Cheia de dívidas com bancos e agiotas, a casa tinha como última esperança de salvação aproveitar o Dia da Bandeira para desencalhar pelo menos 950 unidades do nosso símbolo augusto da paz. É claro que nem implorando à alma do Duque de Caxias eles iriam conseguir isso, e a consequência aí está.
O tempo áureo para o segmento foram os 21 anos do governo militar, especialmente quando dos festejos da Semana da Pátria. Todos os alunos das escolas públicas eram obrigados a alfinetar na blusa do uniforme uma fitinha verde e amarela ou uma espécie de broche semelhante a uma medalha, só que de pano. Eram centenas de milhares de quilômetros de fita assimilados compulsoriamente pelo mercado, que fizeram a fortuna dos proprietários das grandes redes de artigos patrióticos.
À medida em que a demanda por esse tipo de produto ia perdendo força, maiores eram os lampejos criativos dos donos de lojas para tirar do vermelho a produção verde e amarela. Já não tinham grande saída os pins de lapela com o retrato de Floriano Peixoto, nem as gravatas modelo José Bonifácio de Andrada e Silva, nem as caixas de charuto baiano fumados por Getúlio Vargas. O upgrade veio com a inclusão de serviços voltados aos novos perfis de consumidor, como tatuagens com o brasão da República ou com a célebre frase de Tiradentes: “Dez vidas eu tivesse, dez vidas eu daria”. Na tentativa de seduzir o público feminino, as lojas introduziram em seu portfólio a chamada “Nail Art”, ou design de unhas, com a pintura de miniretratos da Imperatriz Leopoldina e da Princesa Isabel. Aproveitando o recente revival da barba cheia e bem cuidada, os rapazes passaram a contar com o Dom Pedro II Style como mais uma opção no catálogo patriótico.
Nada disso, porém, adiantou. O “Patriota Elegante” sai de cena, levando à fila do seguro-desemprego cerca de 35 funcionários e deixando saudade em sua minguada clientela. Pelas esquinas da cidade, comenta-se que seu tradicional prédio da Avenida 15 de Novembro será locado para mais uma unidade da Pastelaria do China.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 26/11/2016.
* * *
Keith Richards – A Regeneração
O Keith Richards que o mundo conhece, ou imagina conhecer, é mais que uma celebridade que tem simpatia pelo capeta. Faz muito tempo que esse Keith, um modelo de perdição física e espiritual, já não existe mais. Acreditem: essa é a pura verdade. Mais pura que o pó branco que quase arruinou sua vida e por pouco não o levou, ainda nos anos 60, para os quintos dos infernos.
Há um novo homem vivendo dentro de uma carcaça carcomida, totalmente liberto do pecado, mas que é obrigado – por contrato – a fingir que é um coquetel ambulante de cocaína, álcool e barbitúricos. A sua libertação foi tão completa que hoje não suporta nem mesmo aquele cigarro no canto da boca, que é forçado a ostentar em todos os shows. Uma encenação mesquinha, uma blasfêmia aos olhos do Criador.
O que ele queria mesmo, para a glória dos céus, era transformar a “Satisfaction” em “Ressurrection”. Mudando, é claro, aquela letrinha tola e egoísta e fazendo dela um hino de louvor. Forte e poderoso, capaz de exorcizar tudo quanto é coisa ruim. Seria uma espécie de acerto de contas entre o novo e bem-aventurado Keith e aqueles excessos loucos do passado.
Quando eu falo em “novo Keith” é preciso deixar claro que ele não é tão novo assim. A grande mudança de vida aconteceu mais ou menos na época em que “Start me up” estourava nas paradas, lá no começo dos 80. Imaginem vocês o conflito entre o eu limpinho, regenerado, totalmente liberto do pecado e das drogas e aquela imagem de devassidão libertina que ele precisava manter para que os Stones continuassem sendo os Stones.
Deus sabe quantas foram as vezes em que tudo o que ele queria era passar horas ajoelhado em fervorosa oração, mas era coagido a subir em diabólicos palcos pelo mundo afora, fazendo turnês atrás de turnês e mostrando ao show-business uma imagem que não era mais a dele. Keith tentava convencer o Mick a transformar o grupo em uma superbanda Gospel, oh Senhor, como seria divino se isso um dia acontecesse… Mas aquele ateu incorrigível ria e debochava toda vez que ele tocava no assunto. Mostrava a língua, as nádegas e o maldito contrato que o obrigava a ir em frente com o teatrinho.
É claro que, ao assumir uma imagem de regeneração, os Stones perderiam grande parte dos fãs acumulados em mais de 50 anos. Mas ganhariam certamente uma legião de fiéis convertidos à causa da caridade cristã. E essa atitude talvez os redimisse do erro de terem tomado a estrada errada, onde quanto mais enchiam sua conta bancária mais se esvaziavam como seres humanos.
Lembro que uma vez, numa madrugada chuvosa, Keith ligou para o Mick falando da visão que acabava de ter, onde incorporavam em seus gigashows uma enorme piscina de 250x250m, cheia de água abençoada, na qual batizavam milhares de ovelhinhas a cada apresentação. Só que Mick mais uma vez não levou Keith a sério, dizendo que a sua visão devia ser efeito retardado de alguma viagem de heroína. Mandou um rouco “fuck you” e bateu o telefone na cara dele. Mas deixa estar. O Todo-Poderoso, em sua misericórdia, há de levá-lo um dia ao caminho da salvação.
* Esta é uma obra de ficção. Por mais que o Keith jure ser verdade.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 19/11/2016.
* * *
Revolução de isopor
Antes de mais nada, agradeço a presença de toda a diretoria do shopping a esta convocação extraordinária.
Bem, indo direto ao assunto: por meio de pesquisas, detectamos que mais de 90% dos homens odeia aquilo que 100% das mulheres adora: experimentar roupas. Para eles, é tortura chinesa entrar e sair de loja, e dentro de cada loja entrar e sair do provador, e dentro de cada provador entrar e sair de ternos, jaquetas, camisas, calças, sapatos… fora isso tem aquela vendedora excessivamente prestativa, em geral comissionada, que fica atrás da cortina perguntando a toda hora se ficou bom. Se não ficou, sem problemas – ela já está a postos com outras nove peças na mão, prontinhas para entrar e sair da máscula carcaça.
Diante dessa constatação surgiu a ideia, que motivou essa nossa reunião. O negócio funcionaria da seguinte forma: o sujeito vem até o shopping, tira a roupa em uma sala reservada e é escaneado em 3 dimensões. A partir disso um software faz todos os cálculos e cria virtualmente um clone do físico da pessoa. Os dados são transferidos para uma máquina modeladora – que irá produzir um manequim em isopor do macho em questão. Todo o processo não leva mais que dez minutos.
Finalizado o boneco, nossos funcionários saem batendo perna pelo shopping procurando os itens solicitados pelo cliente, de acordo com a predileção por marca, cor, numeração, estilo, etc. Encontrando em alguma loja um produto que tenha a cara do nosso amigo, o funcionário põe no boneco e vê se ficou bom. Se sim, nosso cliente é avisado por celular que na loja tal, por tantos reais, tem uma calça x que cai com perfeição no corpo dele. A foto do produto vai junto, e o sujeito só tem que aprovar ou não a compra.
Logicamente que alguns itens ficam fora do serviço. Roupas íntimas, por exemplo. Os lojistas não deixariam experimentar, ainda que o boneco seja de isopor. Com óculos a coisa também não funciona, pois são milhares de armações disponíveis. Além do mais, o rosto não será detalhado no processo de escaneamento, por uma questão de privacidade. Vai que algum credor da pessoa de carne e osso reconhece o seu modelo de poliestireno e resolve atrapalhar a compra ou esquartejar o boneco? O mesmo pode acontecer com um oficial de justiça ou até com alguém da polícia que esteja no encalço de um eventual consumidor foragido… Então, decidimos que o rosto da estátua terá aquela feição padrão de manequim de butique, para não termos problemas.
Enquanto isso o contratante do serviço fica no cinema, toma um chopp ou aproveita para comer um negócio – ele só não pode comer ou beber muito, sob pena do boneco de isopor, ao final da compra, não corresponder mais à silhueta do original.
Resumindo: ao mesmo tempo em que a gente tem a chance de empurrar mais produtos no cliente, ele segue consumindo na praça de alimentação e nos setores de entretenimento. Isso não é um diferencial, é uma revolução mercadológica! No início, podemos causar estranheza e até alguma rejeição, com os nossos funcionários andando pra baixo e pra cima com os bonecos de isopor debaixo do braço. Porém, com o tempo, a conveniência vai vencer a resistência. Podem ter certeza.
Bom, em linhas gerais, é esse o projeto. Perguntas? Dúvidas?
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 12/11/2016.
* * *
Nem queira saber o que acontece lá dentro
A nossa sociedade secreta pode ser tudo, menos secreta. Paradoxalmente, só nos popularizamos a partir do momento em que alguém começou a inventar e a espalhar que tínhamos um rol infinito de segredos guardados a sete chaves. Ou seja, aquilo que presumivelmente calávamos é que fez com que caíssemos na boca do povo.
A especulação sobre quem somos e o que fazemos não cessa. Falam de fantasiosos símbolos, adereços, elementos com significados ocultos. Dizem que o que se faz em nossa sede, dos rituais de iniciação (nem sabemos o que é isso) ao conselho magno sacerdotal (heim???), inclui derramamento de sangue e lágrimas, sacrifícios de animais em altares de marfim e até uma misteriosa escrita em código, da qual se tenta inutilmente desvendar a sintaxe.
Com toda a sinceridade, é desconcertante e vexatório ter que revelar a esses bisbilhoteiros – gente que chega aqui em nossa sede arfando por revelações bombásticas e decifrações de enigmas – que não existe segredo algum naquilo que fazemos. E quanto mais afirmamos essa simples e cristalina verdade, mais esse povo pensa que estamos despistando e guardando insondáveis mistérios somente para nós.
Queremos apenas ajudar ao próximo, e essa missão de servir é vista pelos maledicentes como uma espécie de “falso propósito”, de conversa pra boi dormir. Se não cobramos nada de quem quer que seja, inventam que é porque somos tão ricos e não temos mais onde enfiar dinheiro. Se nos reunimos às quartas-feiras, às 7 da noite, começam a elocubrar significados cabalísticos e numerológicos, relacionando aritmeticamente o dia da semana ao horário: o 4 da quarta mais o 7 da noite é igual a 11, assim como 11 é a numeração da sede, da mesma fora que 11 lembra as duas palmeiras plantadas simetricamente em frente ao templo, de onde se deduz que o 11 do Palmeiras entrou no time por influência de alguém graúdo do templo, eleito por 11 encapuzados para cumprir um mandato de 11 anos, renováveis por mais 11.
Enfim, chegamos à conclusão de que é inútil qualquer tentativa nossa de rebater tantas imbecilidades e calar a boca dos desocupados que as formulam. Até mesmo este texto será motivo para que criem uma maluca teoria da conspiração, na qual algumas palavras contidas nele formam uma mensagem ultrassigilosa, que só uns poucos eleitos saberão decifrar. Algo ligado ao fim do mundo ou coisa parecida. Tsc, tsc. Melhor parar por aqui.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 05/11/2016.
* * *
Pedra na consciência
“Um casal de turistas americanos, arrependido por ter levado embora uma pedra do Coliseu há 25 anos, resolveu devolver o “souvenir” para as autoridades romanas, acompanhado de um pedido de desculpas”. http://www.bbc.com, 7 de maio de 2009.
Se o Coliseu, o Fórum Romano e adjacências formam um imenso conjunto de ruínas a céu aberto, é claro que com tempestades, tremores de terra e outros flagelos geológicos e meteorológicos a fragmentação das paredes e colunas só vai aumentando com o passar do tempo. E isso aumenta também o acúmulo das pequenas pedras pelo sítio histórico, resultantes desse desgaste.
Tomando como fato ser impossível manter centenas de arqueólogos e restauradores trabalhando de sol a sol para repor cada pedacinho de mármore ou reboco milenar ao seu lugar de origem, tão logo venham a se desprender, é razoável supor que os fragmentos espalhados pelo chão sejam tão valiosos para a humanidade quanto as colunas às quais pertenciam.
Milhões de turistas passeiam todo ano por essas ruínas. Justo ou injusto, lícito ou ilícito, ético ou não, o fato é que eles olham para um lado, depois para o outro, assobiam uma cançoneta napolitana com cara de quem não quer nada, agacham-se sutilmente, fingem que estão amarrando o sapato e… pronto. Do chão direto para o bolso. Uma pedrinha de nada a menos no Coliseu vai virar uma gema de valor incalculável na estante de casa. Imagina só o espanto dos amigos e vizinhos quando olharem aquela relíquia!
Fará falta? Há controvérsias. Para cada milhão de turistas não haverá um bilhão de pedrinhas a roçar por seus sapatos, que jamais serão recolhidas? Ou, ao contrário, o correto será deixar que essa farofa arqueológica continue intocável, ainda que não mais faça parte de muros, esculturas e monumentos?
Estava em frente ao Templo de Saturno, e era sua vez de decidir o que fazer. O casal americano acabou se arrependendo, mas ninguém viu o que fizeram e nem deu pela falta da pedra que surrupiaram. Mas e se hoje houvesse alguém da polizia amoitado atrás de uma coluna jônica, a postos para dar ordem de prisão assim que se abaixasse para amarrar os sapatos? Ou uma câmera de segurança entre o polegar e o indicador de uma daquelas estátuas sem cabeça? Talvez o flagrante acontecesse na saída das ruínas, com a imprensa italiana com seus holofotes e microfones pronta para registrar o momento em que fosse detido e algemado.
Por todos os deuses romanos, o que fazer? Debatia-se nesse dilema quando sentiu o chão tremer, ao mesmo tempo em que se ouvia um ensurdecedor toque de sirene, vindo dos lados do Arco de Constantino.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 29/10/2016.
* * *
Bobo, sim, retardado, não
Estavam os dois, o tempo todo, a um passo da morte. O provador oficial do rei, que de um copo d’água até faisão à doré, deveria degustar de antemão tudo o que se destinasse às goelas monárquicas; e o bobo da corte, que por conta de uma piada mal-contada poderia virar bobo ao molho pardo – bastando para isso um estalar de dedos na direção do carrasco.
– Meu caro bobo, você é mesmo um sujeito de sorte. Fica aí com essa roupa de coringa de baralho, saracoteando e cheio de ha-ha-ha enquanto eu levanto todo dia achando que vai ser o último, pedindo aos querubins e serafins para que eu não mande pro bucho nenhum canapé estragado.
– Tá achando que a minha vida é fácil… E quando o maldito do rei acorda de ovo virado, depois de broxar com a rainha? Não tem pantomima, micagem, careta ou anedota que dê jeito. O panaca aqui tem que rebolar para arrancar um risinho meia-boca do patife de sangue azul. Se acontecer a desgraça dele não dar risada, tenho que rogar a Deus para que meu castigo seja uma temporada no calabouço ao invés da forca ou da fogueira. Isso se não optar pelo empalamento.
– Ah, mas o meu infortúnio é maior. Como todo reizinho devasso, há tempos atrás ele juntou 18 mulheres na cama e saiu de lá com um tipo raro e devastador de sífilis. O médico prescreveu uma poção pior que jiló com jatobá. Que eu tive que tomar junto com ele, mesmo não tendo participado da orgia.
– Não é fácil, não. Comigo, são quatro gerações de bobos na família. Do meu bisavô até este infeliz que vos fala, vamos requentando os mesmos e desgastados xistes, trocadilhos infames, frases de efeito duvidoso, tortas na cara, suspensórios que caem mostrando cuecas ridículas e mais um imenso repertório de baboseiras. Mas a sua função tem mais responsa, né. Pelo risco de morte iminente, imagino que o amigo receba um polpudo adicional de insalubridade.
– Que nada. Com essa crise grassando pelos feudos, o que não falta é gente querendo o meu lugar ganhando a metade do salário, e isso me sujeita a aceitar condições inóspitas de trabalho. Fora que o gosto culinário do rei não coincide em nada com o meu. Carne, por exemplo. Para mim tem que ser bem passada, e ele só come sangrando e pingando gordura, o que me dá ânsia de vômito. Mas, fazer o quê. São ossos do ofício. Ou melhor, carnes.
– Compreendo o seu infortúnio, amigo, mas você é feliz e não sabe. Ponha-se no meu lugar e imagine-se fazendo piruetas, dando cambalhotas e tendo que tirar da cartola um gracejo inédito a cada meia hora, que agrade aos instáveis humores desse déspota adiposo.
– Você falou em se colocar no lugar, o que me sugeriu uma ideia… pode parecer absurda a princípio, mas se der certo nos garantirá alguns meses de sobrevida.
– Diga.
– Eu me disfarço de você, e você se disfarça de mim. Vamos inverter os papéis. As piadas e gracinhas que eu conheço você ainda não contou, o que fará o monarca rir. Por outro lado, seu estômago certamente está bem melhor que o meu para provar o que vier pela frente. O que acha da ideia?
– Meu caro provador, eu posso ser bobo, mas não retardado. Quando a minha piada dá chabu, eu ainda consigo arriscar uma cosquinha no sovaco para tentar livrar minha pele. Mas se pego uma coxa de frango com cianureto, é óbito instantâneo. Me desculpe, mas terei que declinar do convite. A propósito, está tocando o sininho. Hora da ceia…
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 22/10/2016.
* * *
Dublê de Chaplin
O cara nunca teve graça nenhuma. No começo era até meio gordo, desajeitado, nem sabia segurar a bengala direito. A criação do personagem foi dele, sim. Mas entre a concepção do vagabundo e a tentativa de dar vida a ele, vai uma desastrosa diferença. Charles bem que tentou, mas Carlitos na pele dele foi, essa sim, uma ridícula piada.
Não é que eu substituía eventualmente o Carlitos, em uma ou outra cena, como os dublês geralmente fazem. O Carlitos era eu, cem por cento do tempo. Vinte e quatro quadros por segundo. O acordo estabelecido com Chaplin me rendeu extraordinária independência financeira, que perdura até este entendiante 1936. Mas chega uma hora na vida em que dinheiro já não significa tudo. Melhor dizendo, chega uma hora em que ele passa a significar nada, onde o relevante mesmo é tão imaterial e provisório quanto uma comédia muda projetada numa tela rasgada de um pulgueiro de Varsóvia.
Não me interessa qualquer outro pacto lucrativo com ele hoje, nem com seus herdeiros daqui há alguns anos. Quero a verdade e a glória que me cabe, e preciso disso em vida. O contrato que fizemos, ainda em 1914, prevê pena pesada pela quebra de sigilo, mas nunca estive tão disposto a pagar por ela. O vagabundo que incorporei é a figura mais imitada do entertainment mundial, e eu fico tentando imaginar Charles Spencer Chaplin, esse embusteiro glorificado injustamente com um Oscar honorário, na fila dos indigentes para pegar sua sopa em algum gelado natal novaiorquino. Sim, porque assim seria se não fosse eu.
Sendo eu o vagabundo nas telas, o vagabundo na prática acabou sendo ele. Um vagabundo milionário, parasita do talento alheio, um sujeito que não sabe como criar meios de tornar ainda mais extravagante e perdulária a sua vida. Que tenta mas não consegue dar vazão às montanhas e mais montanhas de dinheiro que chegam de Hollywood para abastecer sua conta. E dá-lhe flashes, entrevistas, biografias autorizadas e não-autorizadas, paparazzi, verbetes de enciclopédia que dão a coroa de gênio a quem de genial não tem nada.
Isso é o que ele é: um usurpador desengonçado, que mal equilibra um chapéu coco na cabeça enquanto anda, e que na frustrada tentativa de encarnar Carlitos não lograva arrancar risos nem da própria mãe.
Para ele, só existe uma coisa mais ameaçadora do que o medo da verdade vir à tona: é o receio de que algo me aconteça. Por isso me mantém em uma bela mansão no Kentucky, bem longe das luzes da ribalta e dos tapetes vermelhos, que é como um casulo asséptico a me resguardar do mundo real. E dessa redoma só estou autorizado a sair para o set de filmagem, ao qual chego de madrugada e anonimamente, como reles figurante.
Agora são 20h35 de uma noite estrelada de agosto, e enquanto coloco no papel esse desabafo não posso ainda afirmar se terei coragem de torná-lo público amanhã. Talvez as doze novas cenas programadas, as centenas de autógrafos que darei entre uma tomada e outra e a garantia do dinheiro fácil me façam pensar melhor, mudar de ideia e tocar fogo nesse papel. Estão batendo na porta do camarim. Deve ser o gin-tônica que pedi.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 01/10/2016.
* * *
Estranha máquina de devaneios
Habituais ou esporádicos, todos somos lavadores de louça. Lúdico passatempo, esse. Sim, porque ninguém vai para a pia e fica pensando: agora estou lavando um garfo, agora estou enxaguando um copo, agora estou esfregando uma panela. Não. Enquanto a água escorre e o bom-bril come solto, o pensamento passeia por dobrinhas insuspeitas do cérebro. Numa aula de história, em 1979. O professor Fausto e a dinastia dos Habsburgos, a Europa da Idade Média e seus feudos como se fosse uma colcha de retalhos. O Ypê no rótulo do detergente leva ao jatobazeiro e seu fruto amarelo de cheiro forte, pegando na boca. Cisterna sem serventia. Antiga estância de assoalhos soltos. Rende mais, novo perfume, fórmula concentrada com ação profunda. A cidade era o fim da linha, literalmente. O trem chegava perto, não lá. Trilhos luzindo ao meio-dia. Inertes e inoperantes. As duas tábuas de cruzamento/linha férrea dando de comer aos cupins. Crosta de queijo na frigideira, ninguém merece. Custava deixar de molho? Arranco o pâncreas pela goela desse um. O mingau de maizena vinha fumegando, polvilhado de canela. Nas mãos de Parkinson da velha Dita, que perigo. Agasalho doce antes de dormir, prêmio de quem fez lição direito. Diga às suas pernas que fico. E assim foi, ao me pedir para ficar só mais um pouco. Para mais uma. E outra. Torneira aberta e celular com toque baixo é jogo duro. Deixa fechar essa disgrama um pouco… Não, acho que é no vizinho. É, não tocou aqui, não. Fosse coisa séria ligavam no fixo também, notícia ruim chega logo. Tanta briga por causa de um escroto de um patinho de borracha. Pensar que aquilo era o conflito, quando havia. Professor Fausto lá, traçando na lousa seu tabuleiro feudal, falando da colcha de retalhos e da monarquia de Habsburgo. Tá demorando muito pra escoar essa água, cadê o diabo verde? Só queria o segredo de lidar contigo, juro mesmo. Esse inquérito todo, pra quê… não ganharia nada te escondendo a verdade, procura compreender meu lado. Ah, dessa vez acho que é o meu celular.
A louça, agora seca. A alma, agora lavada.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 24/09/2016.
* * *
Reféns
Poderia apertar aquele parafusinho minúsculo e a coisa voltaria a funcionar perfeitamente. Bastaria um quarto de volta em sentido horário, com uma chave philips e pronto. Problema de mau contato. Mas olhei pra cara da freguesa e vi que ela devia usar Lancôme da testa à unha do pé, e que só aquele solitário na mão direita valia mais que a minha oficina inteira. Então pintei a coisa bem preta para valorizar o serviço. Pelo menos três dias na bancada, para testes no voltímetro. Provavelmente era o diodo do transistor com o relê de amperagem em corrente descontínua, e pra trocar a pecinha só substituindo a placa toda – importada do Japão. Seria uma das hipóteses, mas para ter certeza, só abrindo tudo e aferindo cada um dos componentes na oficina.
– Olha, dona, por enquanto a senhora acerta comigo a visita técnica. Pode ficar tranquila que só toco o serviço com a aprovação do orçamento. Mas se for isso mesmo que estou pensando, melhor vender como sucata e comprar outro. Também não vale a pena levar à Autorizada, eles vão querer cobrar umas três vezes mais da senhora. Mas olha, pode ficar à vontade, pelo amor de Deus, não estou querendo forçar nada, faça como quiser…
Daí a três dias ela liga perguntando se o orçamento está pronto. Valorizo um pouco mais, digo que tenho que baixar o manual de especificações atualizadas do produto no site do fabricante e peço que ligue de novo depois de amanhã, mas que provavelmente é aquilo que lhe disse. Ela torna a ligar no sábado às nove, eu prometo para segunda. Na segunda eu confirmo a morte prematura de todo o circuito impresso. Ela vende para mim mesmo o aparelho ainda na caixa por R$14,50 e já pede que eu encomende um novo. Falo com aquele meu brother da Santa Ifigênia, e combinamos 350% em cima do preço de custo. A título de honorários. Aperto o parafuso da belezinha que me caiu no colo por R$14,50 e passo pra frente pelo preço do novo, para outro cliente.
********
Está tudo esquematizado, Lontra. A gente começa falando em possibilidade de apendicite – pela alta ingestão de milho verde na véspera associada à estafa física causada por 16 voltas ininterruptas no pedalinho do lago municipal, conforme relatado pelo próprio paciente.
Mas vamos devagar para não assustar a família, até porque a gente sabe que o cara não tem nada. Se começar a meter muito medo, eles vão atrás de uma segunda opinião e aí a gente se encrenca.
Ratazana libera os trâmites necessários para os exames preliminares, os raios X e os laboratoriais de rotina. Esquema quinze/quinze/quinze pra cada um dos três, como acertado. Golfinho, homem de confiança do Pantera, coordena todo o processo de diagnóstico por imagem (lembrando que aí o esquema é sessenta/dez/dez/dez/dez e que é indispensável a rubrica do Potranca, para a perícia não pegar).
Daí pra frente a gente coloca o infeliz num tomógrafo e diz que o milho verde do quiosque reagiu quimicamente no duodeno e seus grãos transmutaram-se em quistos, um caso incomum mas não propriamente raro nos anais da medicina. Aí a gente diz que é necessária uma ressonância para sacramentar o diagnóstico. Como todos sabem, este exame tem de ser no cash. Mas tudo bem, sondei a ficha e vi que o infeliz é fazendeiro em Palmas. Quanto aos honorários fica 50% para mim e a outra metade para dividir com o zoológico, conforme organograma. Peço que o Avestruz envie cópia deste aos demais envolvidos, que deverão deletar esta mensagem assim que lida. Bom trabalho a todos.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 17/09/2016.
* * *
Dinheiro, seu sumido!
Acabou o dinheiro. Talvez uma das frases mais ouvidas no mundo, provavelmente a mais falada por aqui. Só que o assunto agora não é o caraminguá minguado, a escassez do saldo, o orçamento no vermelho. É o fim do papel-moeda mesmo. Não tem mais coisa que você entrega em troca de outra coisa. Aqueles papéis retangulares que o agiota emprestava para quem estava com a corda no pescoço, em maços amarrados com elástico e outrora feitos de átomos, hoje não passam de bytes.
O dinheiro que você tem, se tiver a sorte de ter, é um atestado eletrônico de veracidade validado pelo banco em que você tem conta. As notas mesmo, inexistem. Se você cismar de querer levar o que tem, e se o que você tiver ultrapassar os dois ou três mil reais, precisará avisar com 48 horas de antecedência para que o montante possa ser provisionado.
Vamos rastrear, a esmo, uma sequência qualquer de operações. Dutra & Póvoa Associados Serviços Administrativos S/C Ltda. deposita no dia 30 o salário de Benedito Orestes da Paixão. Benedito Orestes da Paixão deixa em conta o que em poucos dias irá desaparecer a título de débito automático. Da miséria que sobrou ele passa no crédito um maço de almeirão e outro de chicória, solicitados pela patroa no caminho de volta do trabalho. O dono da quitanda repassa o caixa do dia ao fornecedor de pescada, que lhe fiou um caminhão e meio na última Semana Santa. Sete Barbas ME transfere o que nem bem acabou de entrar para BestWall Pedras Decorativas, saldando serviço feito na casa do filho do dono da empresa. E assim se multiplicam as transferências de titularidade. Onde aparece de tudo, menos dinheiro de fato.
O sepultamento definitivo das notas e moedas é previsto por especialistas para 2030, em nível mundial. E não é preciso muita imaginação para adivinhar futuros comportamentos, necessariamente exemplares. Usuários de motel estarão em maus lençóis, pois serão imediatamente identificados, deixando registro do montante gasto, data e hora do bem-bom. O crime organizado estará também com os dias contados, assim como o tráfico de drogas. O “por fora” será necessariamente por dentro, o “sem nota” e o “sem recibo” definitivamente banidos. A Igreja Católica – com todo respeito – terá que substituir a cestinha pela maquininha na hora do Ofertório. As declarações de imposto de renda não farão o menor sentido, pois tudo será necessariamente declarado ao fisco no momento em que ocorrer, e a cobrança dos impostos será instantânea, assim que concluída a transação.
Cientes do que essa revolução pode representar para suas contabilidades oficiais e paralelas, os políticos se movimentam em dois sentidos opostos. De um lado, pela aprovação da lei de extinção do dinheiro, que garantirá um aporte de recursos nunca antes sonhado pela União, pelos Estados e pelos Municípios. De outro, para que o dinheiro em espécie permaneça circulando exclusivamente em Brasília. E, mais especificamente, nas dependências do Congresso, até que os parlamentares cheguem à conclusão de que a medida realmente será benéfica à sociedade.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 10/09/2016.
* * *
Sem meias palavras
Lá se vão mais de quatrocentos e oitenta invernos desde que McElysteen e Richards travaram duro embate pelo reconhecimento da invenção das meias. Embora muitos questionem a legitimidade de direitos autorais tanto de um quanto de outro, afirmando que os primeiros exemplares remontam ao ano 600 a.C. e teriam sido usados por mulheres gregas, o fato é que esses dois ingleses parecem ser os mais sérios candidatos à patente.
É bem verdade que McElysteen jamais contestou a invenção dessa indispensável peça de vestuário como sendo atribuída a Richards; mas sustentava que Richards havia inventado a MEIA, no singular, sendo ele, McElysteen, o inventor das MEIAS, no plural – concebidas para cobrir e proteger ambos os pés. Dessa forma, a Richards caberia MEIA patente, por ser o pai de meia invenção. Já o PAR, conforme atestam os croquis e o primeiro protótipo apresentado a alguns empresários ingleses do ramo têxtil, seria de fato ideia de McElysteen. E foi essa, incontestavelmente, a forma de uso consagrada em todo o mundo – exceção aos sacis e pernetas, que muito bem poderiam se virar a contento com uma meia só.
Centenas de anos mais tarde, já em meados da década de 80, um cabo-verdiano de nome Imeldo Angelyn entrou na disputa com uma ação judicial de reparação à memória de seu finado tio-avô, argumentando ser dele a concepção da chamada meia-luva. A exemplo da luva comumente utilizada nas mãos, a revolucionária meia envolvia separadamente cada um dos dedos dos pés. Argumentava o defunto inventor que o agasalhamento dedo a dedo favorecia um maior conforto térmico nos dias frios, além de prevenir que micoses presentes no dedão contaminassem também os dedinhos, e vice-versa. Ainda segundo ele, esse aprimoramento trazia à meia a sua forma evolutiva final, cabendo ao avô de Imeldo, portanto, o crédito da invenção em todos os almanaques e enciclopédias a serem impressos doravante. Pelo menos, era isso o que pleiteava. Não se conhece, até o momento, em qual instância de julgamento se encontra o seu pedido.
Na falta de elementos comprobatórios que encerrem de vez essa discussão, os processos, sentenças e recursos judiciais seguem tramitando por tribunais mundo afora. Ora favorecendo a família de Richards, outras vezes dando ganho de causa aos herdeiros de McAlysteen, e eventualmente admitindo a possibilidade de autoria a nenhum deles. Enquanto assistimos a essa secular queda de braço, a meia vai se transformando em objeto de fetiche. Virou moda, nos últimos anos, a realiação de leilões disputadíssimos para arremate de meias usadas por celebridades do futebol, da Fórmula 1, da política internacional e do mundo artístico. Comenta-se que o par de meias utilizado por Usain Bolt na prova olímpica dos 100 metros rasos será leiloado em breve, no salão de festas do Jockey Club do Rio de Janeiro.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 03/09/2016.
* * *
Abridores e fechadores
– Quando eu entrei por concurso no serviço federal, acumulava função. Olha o absurdo! Naquele tempo, quem abria tinha que fechar a porta também. Era uma escravidão, a gente ficava sobrecarregado. Depois de muita luta do sindicato, conseguimos criar a função comissionada de fechador de porta. Mas antes, não era mole. Tinha dia que encarava três, quatro maçanetas no horário do expediente. Dá pra imaginar? Chegava esgotado em casa, queridão. Só de lembrar daquela época, já me ataca a gastrite.
– Tenha dó, não queria estar na sua pele. Quatro maçanetas pra abrir num dia só, tem que ter Jesus na causa. É a treva.
– E além do desumano desgaste físico, já reivindicávamos mais segurança no desempenho da função. Isso sempre esteve na pauta da categoria. E convenhamos: nós, abridores, estamos muito mais expostos a riscos do que vocês, fechadores. É quando a autoridade entra em um ambiente novo que o risco é maior. Quando está saindo do recinto é tudo mais fácil. O evento, a audiência, a recepção ou sei lá o quê, já foi. É a hora da dispersão, se tivesse que ter algum atentado, já era pra ter acontecido.
– Não acho, não. O risco é o mesmo. Nosso adicional de insalubridade tinha que ser igual ao dos abridores. Isonomia já!! E tem outra, que o senhor está esquecendo: o que mais acontece por aqui é reunião a portas fechadas. E aí quem tem que dar conta de hora extra atrás de hora extra, varando conchavo de madrugada sem pregar o olho, são os tontos dos fechadores. Vocês, abridores, já estão em casa faz tempo.
– E a culpa é nossa? É o descanso dos guerreiros, meu amigo. Nós merecemos. Quantas vezes fizemos piquete na porta do Alvorada reivindicando puxadores de porta ergonômicos, para prevenir LER? E quantas vezes acampamos na porta da Presidência do Senado fazendo campanha pelo fim das portas automáticas, que tanto ameaçam o digno exercício da nossa função?
– E continuam ameaçando, né… Aquele senador, como é mesmo o nome dele? Vive falando lá na tribuna que a nossa função não tem cabimento, não tem amparo constitucional, não tem isso, não tem aquilo. Pois não é que o Dodô, o sub-tesoureiro do sindicato, levantou a ficha do bacana e descobriu que ele tem uma fábrica de sensores de presença, em Diamantina? Tá explicado o interesse do cara em querer acabar com a gente. Se ele ganha licitação pra automatizar portas, imagina quanto vai faturar só no Palácio do Planalto!!!
– Pensa que somos figuras decorativas. Imagina o Presidente da República, da Câmara ou do Senado ter que ficar abrindo e fechando portas por onde passa, e a vergonha para o país em ter essas imagens veiculadas pela mídia internacional! E no dia em que faltar energia elétrica? Serão centenas de portas que não abrem e nem fecham.
– E nós, aposentados compulsoriamente, não estaremos lá pra resolver a parada. Aí sim é que eu quero ver!
– Não é só isso. Veja, por exemplo, a tal H1N1, essa gripe que vira e mexe ameaça todo mundo. Maçaneta de porta é um verdadeiro depósito desse vírus aí, e é mais um risco de vida que corremos. Tinham que criar a função de passador de álcool gel, para desinfetar tudo antes da gente chegar com a comitiva.
– Escutou? Acho que estão batendo na porta. Será que tinha alguém escutando a nossa conversa?
– Abre logo de uma vez.
– Quem tem que abrir é você. Eu só fecho, esqueceu?
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 27/08/2016.
* * *
Minimalismo é o máximo
Até outro dia restrita ao mundo das artes, aos poucos ela vem virando a palavrinha da vez, nas rodas e nas bocas de emergentes-celebration, aqueles descoladíssimos que conquistaram seu lugar ao flash.
Em mínimas palavras, o minimalismo é a doutrina que entende a felicidade do ser humano como inversamente proporcional à quantidade de recursos ou bens materiais que se possui. Ou, numa definição despojadamente simples, à moda minimalista: quanto mais se livra daquilo que tem, mais rico e realizado o bípede se torna. Só o elementar é bom o bastante. Tão somente o essencial, a plenitude da existência compreendida como algo beirando a imaterialidade.
Por essas e outras diáfanas definições, conclui-se que só tem estofo cultural e filosófico para praticar o minimalismo quem já foi um dia “maximalista”, quem já teve do bom e do melhor vazando pelo ladrão. O endinheirado que entre uma festa e outra, por algum motivo, desencantou-se com tantos e tão confortáveis latifúndios, coberturas e iates onde cair morto. É assim que o minimalismo se entende como escolha – um voto de pobreza, e não o infortúnio de tornar-se pobre. Vá perguntar a um miserável que dorme debaixo da ponte se ele é minimalista por necessidade ou por convicção, e saberá o que estou dizendo.
O minimalista legítimo é o que se empapuçou de excessos, jamais o que não tem nada de nascença. Se acha cool vivendo com pouco mas mora no Jardim América, não em Belford Roxo. Escassez para ele jamais será privação; será clean. Excentricamente clean. No seu apê, há paredes sóbrias e monocromáticas sem quadro algum pendurado, mas o projeto é assinado pelo Sig Bergamin. Acelga e água frugalmente se equilibram no microscópico cardápio da semana. A acelga já chega picadinha pelo Pão de Açúcar Delivery, a água é San Pelllegrino.
Ter nada é tudo. O ouro que fique para os deslumbrados, para funkeiro-ostentação, para os que nunca entenderão que esconder é bem mais chic e valioso que mostrar.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 20/08/2016.
* * *
Urinoterapia
Pode ir tirando essa cara de nojo de cima do meu texto: não tenho culpa desse negócio existir e ser o assunto de hoje. Queixe-se com os egípcios, os chineses e os indianos, que mantêm o hábito vivo há milênios e não veem a hora da bexiga encher, abrir a torneirinha, servir uma boa dose com bastante espuma e mandar pra dentro – não sem antes derramar um pouquinho pro santo.
A ingestão do próprio xixi com fins medicinais, para curar doenças e fortalecer o organismo, é mais comum do que se pensa. E não é só lá no Oriente, não. Pode ser aí mesmo, nos domínios insuspeitos do seu vizinho.
A primeira urina, aquela da manhã, bem amarelada, é tida como a melhor. Suculenta e caudalosa, é riquíssima em melatonina e em uma série de outros hormônios importantes. Curtida na cama, no tonel da barriga, apresenta substâncias benéficas em alta concentração.
Alergias, doenças autoimunes, infecções, queimaduras e até câncer: nada escapa ao imenso leque curador desse dejeto nosso de cada dia. A popstar Madonna assegura que urinar nos pés é uma bênção contra frieiras, micoses, pé-de-atleta e moléstias congêneres, jurando que não há fungo que resista a um jato bem dirigido.
Entusiastas garantem que ela atua como hidratante, na falta de água potável. Nesse caso, o ciclo acaba tornando-se autossustentável, ou seja, urina-se, bebe-se a dita cuja para depois uriná-la de novo, e assim por diante. Curioso e econômico!
Muitos preferem deliciar-se com a iguaria em pequenos golinhos ao longo do dia, deixando um cálice ou copo sempre à mão, na mesa de trabalho, para ir sorvendo aos poucos. Já outros dizem que, geladinha, não há coisa melhor. Especialmente se acompanhada de um pratinho de tremoço ou de castanha de caju, enquanto se tricota ou se acompanha UFC pela televisão.
A suposta ação antisséptica e bactericida da urina traz, em alguns casos, situações constrangedoras. Como a de uma entusiasta dona de casa que, não contente com frascos de urina em seu armarinho de remédios, levou o mijo também para a cozinha em substituição ao álcool, à água sanitária e ao Veja Multiuso. A coisa terminou em divórcio após um ataque de nervos do marido, ao notar insuportavelmente enfedecidos os pratos, talheres e copos da casa.
Apresenta a urina notável eficácia cosmética, rejuvenescendo a pele e dando brilho e sedosidade aos cabelos. Uma tal Soninha de Xerém desenvolveu estranha neurose a partir de seu hábito de pincelar urina ao longo da comprida cabeleira. Chegavam a dezesseis demãos por dia. Após cada uma delas, Soninha aguardava vinte minutos (para as substâncias agirem, segundo ela) e em seguida aplicava secador. Depois de um pequeno descanso a operação se repetia. Testemunhas dão conta que seu cabelo chegava a ofuscar os olhos de tanto brilho, porém ganhavam uma desagradável textura de laquê, craquelando-se facilmente ao toque.
Não são poucos os relatos de dependência e até mesmo ameaças com armas de fogo de urinoviciados a parentes e vizinhos, exigindo micção imediata dos mesmos para poderem dar vazão à chamada urofissura – patologia onde a demanda por quantidades cavalares de urina obriga o indivíduo a consumir baldes e mais baldes de excreção alheia.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 13/08/2016.
* * *
Sonho olímpico
“O melhor emprego do mundo: salva-vidas da Olimpíada tem visão privilegiada.
Uma lei estadual que determina que todas as piscinas do Rio tenham um salva-vidas criou um posto incomum na história olímpica. Além de não ter muito o que fazer, o salva-vidas tem a melhor vista da competição.” (Folha de S. Paulo, 2 de agosto de 2016).
O que ele mais desejava na vida era também o sonho de quase todo descendente de Adão: ter um emprego com garantia absoluta de não precisar trabalhar. E conseguiu. Só por alguns dias, mas conseguiu.
Juntando os aquecimentos, os treinos, as etapas classificatórias e as provas propriamente ditas, eram horas e mais horas ao dia de proveitoso ócio ao abrigo do sol, deixando a mente fluir por onde bem entendesse e descartando definitivamente a possibilidade de precisar pular na água para livrar o Phelps e outros golfinhos humanos do afogamento.
Foi fácil se acostumar ao dolce far niente e a não querer jamais outra coisa. Bebida, só pedir. Comida, idem. Aborrecimento, nenhum. Cansaço, nem pensar. Quem tinha que trabalhar duro e romper os limites da própria carcaça e dos adversários eram aqueles infelizes ali, curtidos em cloro. Sobrava ócio até para meditação transcendental. As idas e vindas dos nadadores, de uma ponta a outra da piscina, funcionavam como um mantra quase hipnótico. Mas tinha que se policiar para não fechar os olhos, pois aí seria demais – alguém poderia acusá-lo de negligência no exercício da profissão.
Como nenhuma água é tranquila para sempre, de uma hora para outra o nosso folgado guardião tombou para trás. Alguns membros do staff olímpico acharam que tinha, enfim, sido vencido pelo sono. Mas a coisa mudou de figura quando um espesso cordão de sangue vazou pela caixa craniana fraturada. Bala perdida. Morte instantânea em uma das provas de classificação mais disputadas – a dos 50 nado livre. Não era a competição final, mas estava sendo televisionada. O corre-corre chamou a atenção dos nadadores, que lançaram-se quase ao mesmo tempo fora d’água para tentar dar salvação ao salva-vidas, numa surreal e trágica inversão de papéis. Expectadores, juízes, repórteres, preparadores físicos – todos cercando a vítima feito baratas tontas, sem saber se acreditavam na versão carioca da bala perdida ou na versão terrorista da bala certeira.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 06/08/2016.
* * *
Abbey Road remixado
- Ok, boys. Já que a ideia é mesmo essa e parece que não há jeito de vocês voltarem atrás com essa tolice, tenho algumas sugestões para deixar o resultado final um pouco menos ruim. Pra começo de conversa, sugiro que vocês quatro se virem pra câmera dando tchauzinho. Sei lá, penso que assim a coisa ficará mais amistosa e interativa do que todo mundo sério e alinhado, olhando pra frente e atravessando a rua.
- Mas afinal de contas, o que você tem em mente é uma capa de disco ou um cartaz de circo? Só falta você sugerir que o Ringo fique fazendo chifrinho no George na hora do clique...
- Calma, Paul. Eu sei que a ideia é sua, mas vocês contrataram um fotógrafo profissional e eu me sinto na obrigação de orientá-los pra que o resultado fique realmente bom e funcione comercialmente. Uma coisa é certa, rapazes: nenhuma capa de disco entra pra história com quatro sujeitos atravessando uma faixa de pedestres como se fossem uns anônimos e inexpressivos súditos da rainha. Caramba, vocês são os Beatles!!!
- Veja bem, por mim você e Paul decidem o que acharem melhor nessa peleja capitalista de vender mais ou menos discos. A única coisa que peço é que a Yoko atravesse a faixa ao meu lado. Caso contrário, não tem negociação, vamos embora agora mesmo. Vocês sabem que não desgrudo um minuto dela, e isso inclui travessias de rua, partidas de rugby e até exames de próstata.
- John, isso é efeito da maconha, do LSD ou do sol na cabeça? Estamos falando de um disco dos Beatles, e não de Yoko e sua banda. Compreende?
- Espera aí, gente. Se este pobre baterista pode dar um palpite, recomendo que continuemos a discussão num pub ou algo assim. O trânsito está ficando engarrafado e daqui a pouco começam a buzinar. A intenção era perder no máximo vinte minutos com esta merda de foto. Não temos o dia todo e precisamos gravar mais um take de “Come Together” ainda hoje, esqueceram?
- Eu insisto: tá faltando alguma coisa bombástica, arrebatadora, que dê uma sacudida nessa capa. Ou então, sei lá, um toque de humor britânico, mesmo que bem sutil. Por exemplo, um de vocês é o guarda de trânsito, orientando os outros três na travessia. Heim, que tal? Aí sim vai ficar bacana.
- Tudo bem, mas e a Yoko?
- Sugiro que o guarda se distraia e um carro passe por cima dela.
- Por esta gracinha eu poderia te enfiar a mão na cara, Paul. Mas não vou fazer isso porque, independente de como fique essa maldita capa, no final das contas vão achar que o morto é você, e não Yoko. Pode apostar. Babacas do mundo todo vão esquadrinhar cada centímetro da foto, procurando pistas que confirmem a sua morte. O que mais lamento é que ela não passe de um boato.
- Gente, por favor, vamos dar uma trégua na troca de afagos. Daqui a pouco começa a juntar gente pra pedir autógrafos, a imprensa aparece e aí a foto já era.
- Pensando bem, acho que o Ringo está certo. Vamos voltar para o estúdio, terminar “Come Together” e esquecer essa história de capa de disco na faixa de segurança. Temos mais um tempo pra pensar numa solução melhor.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 30/07/2016.
* * *
Queremos um purgatório mais justo e racional
O conhecido purgatório, esse limbo que acomoda quem ainda não tem direito ao céu, porém não é merecedor do inferno, é cenário de situações esdrúxulas e até cômicas - se não fossem trágicas em sua estranheza.
Manda a lei divina que o que se fez ou se desejou a outrem seja pago na mesma moeda pelo pecador. Assim, ações e maledicências veniais, quando não infantis, acabam sendo impostas àquele que praguejou. Um corriqueiro "vá lamber sabão", dito impensadamente ao coleguinha em uma partida de futebol mirim de 1972, condenou um recém-defunto a onze anos e oito meses de infindáveis lambidas em uma barra sebosa de 500g, com cheiro enjoativo e sabor intragável. O pobre coitado já devorou cinco sabões em pedra, e tudo leva a crer que mais umas cinco mil o aguardam, até que o tempo da pena se complete. Consta, porém, que outros três amiguinhos do condenado teriam sido por ele "mandados à merda" em outra partida do campeonato. Vai daí que algo bem pior o espera, tão logo os sabões sejam devidamente lambidos.
Há um consenso em todas as esferas espirituais de que esses pequenos delitos precisam ser anistiados, e que os critérios na relação pecado-castigo devem ser reavaliados com a máxima urgência, para que o espaço disponível consiga abrigar os que possuem culpas mais significativas no cartório. Já os responsáveis pelos círculos purgantes argumentam que só as almas absolutamente puras fazem jus ao paraíso, e que mesmo contravenções tolinhas não escapam do pente fino dos guardiões celestes. É necessária, segundo eles, a convocação de uma assembleia extraordinária com representantes do céu, do inferno e do purgatório, para que as milenares regras de purificação e admissibilidade sejam alteradas.
Algumas facções do paraíso defendem a descriminalização do xingamento "Vá plantar batatas", por entenderem que soa anacrônico, nos dias que correm, condenar tantas almas a meses de sol a sol no cultivo do tubérculo, para ficarem em dia com a justiça divina. Isso sem falar nas centenas de milhares de hectares necessários para assentar em lavoura todos os que, na Terra, foram simpatizantes do insulto.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 23/07/2016.
* * *
Conta comigo!
Contar os milhares de maços de dinheiro guardados em casa era ao mesmo tempo seu trabalho, sua diversão e sua paranoia. Cada maço perfazendo dez mil, em cédulas de valores variados. Quando a contagem chegava ao fim, cismava que alguém - não se sabe quem, já que nem faxineira entrava em seus domínios - poderia ter mexido nos primeiros montes conferidos, e a contagem recomeçava do primeiro bolo ao último, num ciclo doentiamente interminável.
Banheiro rima com dinheiro. E não por acaso, dizia ele. Pisos e azulejos eram apenas revestimentos de fachada, que escondiam cofres e mais cofres milimetricamente alinhados e abarrotados de bufunfa. Os quartos e a ampla sala em L jamais viram cor de tinta. Sobre o reboco dos cômodos, ele mesmo foi aplicando um peculiar papel de parede, feito de lindas e sortidas cédulas, capazes de levar o Tio Patinhas a orgasmos múltiplos.
O bloco de notas próximo ao telefone era literalmente um bloco de notas, com recados e lembretes escritos sobre o dinheiro. As anotações se referiam, invariavelmente, a questões financeiras: o total amontoado em junho, julho, agosto, setembro e assim por diante - mês a mês, ano a ano, ao longo das décadas de acumulação.
Tinha, é claro, dinheiro rendendo no banco em diversificados fundos. Tão logo creditados os juros do mês ao saldo, ia até a agência, sacava a quantia relativa aos rendimentos, contava para ver se conferia com os índices divulgados nos jornais e corria em seguida para devolver a dinheirama ao caixa, a fim de juntar o juro devidamente aferido ao total acumulado. Desconfiava que o banco pudesse um dia lhe passar a perna. E dá-lhe esponjinha molha-dedo, dia e noite, noite e dia.
Quando achava que a inflação estava corroendo demais o poder de compra do seu feudo de dinheiro, pegava uma boa parte e operava como agiota, emprestando em espécie e recebendo também em espécie, com acréscimo de juros imorais. Sua montanha monetária ganhava então valores a mais, a serem contabilizados assim que recebidos.
Em quase meio século de desmedida poupança, havia testemunhado várias trocas de moeda. Cada ocasião dessas era para ele motivo de imensa satisfação íntima. Juntava tudo o que tinha em comboios de caminhões-baú, alugados exclusivamente para o transporte dos valores, e procedia à troca pelas cédulas novas, mesmo que as antigas continuassem valendo ainda por um bom tempo. Tinha com isso o pretexto para contar tudo outra vez, agora em papel novinho e cheirando a tinta fresca. Em questão de poucos dias seus cofres ganhavam novo suprimento, o papel de parede do lar-rico-lar era atualizado e o bloco de notas, gasto e todo rabiscado, modernizava-se em cédulas virgens.
Tudo ia muito bem, até o dia em que, após meticulosa contagem, deu pela falta de R$1. Descartada a possibilidade de que houvesse entrado alguém em casa, ele começou a desconfiar de sua própria capacidade de contar com exatidão e eficiência. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, essa hora iria chegar. E junto com ela o impasse insolúvel de não poder confiar em ninguém para levar adiante a compulsão. Além de uma certa confusão aritmética, que subjetivamente atribuía à idade avançada, notava também um tremor anormal nas mãos, já sem impressões digitais de tanto contar dinheiro. Mas não procurou ajuda médica: teria que se desfazer de algumas notas para isso.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 16/07/2016.
* * *
Aí você descobre
Aí você descobre, fuçando naquela velha caixa de boletos religiosamente recolhidos desde 1995, que é usuário de TV por assinatura já há mais de 20 anos. Aí você descobre, assistindo a uma matéria em um dos seus 341 canais pagos, que os campeões de audiência na TV por assinatura são três emissoras abertas: Globo, Record e SBT, sendo que 60% do total de telespectadores só assistem a esses canais, que chegariam sem problemas até você com um chumaço de bom-bril. Aí você descobre que faz parte desses 60%. Ou quase, já que de vez em quando a empregada pede para assistir a missa no Santuário da Aparecida do Norte, transmitida em canal fechado. Aí você descobre, para compensar minimamente tanto dinheiro jogado fora, que o controle remoto lhe dá a espetacular opção de compor uma playlist favorite channels, o que significa economia de dedão, paciência e pilha do controle - por não ter que ficar pulando o tempo todo os canais que não quer assistir (por que você só se deu conta desse macete agora?). Aí você descobre que esses favoritos são, com muito boa vontade, uns oito. E isso incluindo o canal de meteorologia e aquele outro de leilão de gado. Aí você descobre que jamais poderá assinar só esses, pois a operadora não oferece opções de pacotes customizados. Aí você descobre que esses raríssimos canais a que de fato assiste estão disponíveis de graça e ao vivo, na internet. Aí você descobre, ligando para o Serviço de Atendimento ao Consumidor, que o lixo satelital disponibilizado 24 horas por dia não pode ser cancelado, sob pena de interromper também o sinal de telefone e a banda larga. Aí você descobre, fuçando um pouco mais na velha caixa de boletos, que tinha assinado um "combo" e que os três produtos não são desmembráveis, conforme consta no rodapé da página 12 do seu contrato. Aí você descobre que essa despesa mensal de que é refém há 20 anos é tão inútil quanto as cabines de telefone público de Londres. Aí você descobre que fica eleito o foro da comarca da sua cidade para dirimir quaisquer dúvidas relativas ao tal contrato. Aí você descobre que, se fosse 20 anos mais jovem, talvez ainda tivesse saco para comprar essa briga e tentar se livrar do que decidiu adquirir por livre e espontânea vontade.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 02/07/2016.
* * *
Como é que é a sua letra mesmo?
Ninguém sabe mais como é sua letra. Nem você. Por mais intelectualmente articulado que seja e por mais Pós-Doutorados que possua, se tiver que escrever alguma coisa você vai se pegar desenhando as palavras. De um jeito desengonçado, como se estivesse aprendendo a andar de bicicleta.
**********
O teclado da máquina de escrever, e depois o do computador, foram os primeiros culpados. Acabaram matando aos poucos o meio físico que ligava o que se quer dizer ao que saía escrito, ou seja, a caneta ou o lápis. Mas ainda havia algo entre a intenção e o resultado: o teclado. O frio e insípido teclado, essa coisa infestada de migalhas de bolacha entre as letras. Por questões de conforto nos textos de longo curso, ele ainda resistirá um pouquinho mais, embora tecnologicamente já esteja liquidado.
**********
Do toque ao touch na tela, diretamente no vidrinho sensível do tablet ou do celular. As teclas de pixels, espremidas. Esbarrões frequentes nas letras vizinhas resultaram no amaldiçoado corretor ortográfico, cybercausador de mal-entendidos, divórcios e demissões por justa causa. Dorretor mwtido a busta, và cuidar da sua fida!
**********
O número de mortes/ano por digitação em trânsito, dentro do carro ou atravessando a rua, dão sinal verde para o avassalador sucesso dos aplicativos de escrita por ditado. Por meio de reconhecimento de voz, transformam em texto o que se diz, liberando as mãos e a atenção do indivíduo. Fanhos, gagos e gente de língua presa devem tomar cuidado ao utilizá-los.
**********
A escalada tecnológica alcança níveis inimagináveis. Canetas, lápis, teclados, celulares, tablets e aplicativos que escrevem o que se fala também estão condenados à extinção. Em várias partes do mundo, testemunhas relatam ter visto gente falando diretamente com gente, sem intermediação de nenhum instrumento ou aparelho eletrônico. Conforme a pessoa vai falando, a outra já escuta, entende perfeitamente e responde na sequência. Um avanço sem precedentes na longa história da comunicação humana.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 25/06/2016.
* * *
Cabelos ao vento
Nem todo mundo sabe, mas o cabelo, se bem conservado, é eterno (não se animem os carecas, a eternidade é do dito cujo fora da cabeça, e não em cima dela). Pura proteína, pode manter-se intacto com o passar dos séculos, mesmo debaixo da terra e exposto aos vermes. Mais: tanto o cabelo quanto as unhas continuam crescendo após o sepultamento, por períodos que variam de organismo para organismo. Melhor dizendo, de cadáver para cadáver.
Com apogeu no século 19, o hábito de guardar mechas de cabelo vem da Grécia antiga. O mais comum era acondicionar em caixinhas, envelopes ou no interior de camafeus um cacho do primeiro corte ou do último, já da pessoa defunta, como recordação. Namorados também enviavam madeixas às suas caras metades, para diminuir saudades e distâncias. Enfim, era uma relíquia sem prazo de validade que entes queridos presenteavam-se mutuamente, e que literalmente significava ter a posse de um pedaço da pessoa.
Alguns, mais espertos, tinham acesso a defuntos ilustres e, disfarçadamente, davam um jeito de surrupiar um ou outro cacho para legar à posteridade. Visando, obviamente, fazer dinheiro com isso no futuro.
************
Viena, 2014, em uma casa de leilões
Separados em suas respectivas mechas e divididos por área de notabilidade - políticos, presidentes da república, reis, cientistas, músicos, escritores e filósofos, os cabelos aguardavam os novos donos, que os arrematariam em lances milionários. Dentre outros, ali estavam amostras capilares de George Washington, Chopin, Napoleão Bonaparte, Nietzche, Mozart, Oscar Wilde, Mussolini, Einstein e Picasso.
Então o improvável e espetacular desastre se deu, por conta de uma reles veneziana com o trinco enguiçado. Um vento encanado e pronto: as mechas todas em redemoinho, para sempre misturadas.
- Gente, e agora? Leilão marcado... Para saber que cabelo é de quem nós temos que enviar, fio por fio, à análise de DNA. Precisamos de novas certificações de autenticidade.
- Com resultados prontos até depois de amanhã? Tá fácil, heim. Estamos perdidos.
- Tanto melhor! Os cabelos são todos de grandes gênios da humanidade, não são? Quem arrematar a mecha do Oscar Wilde, por exemplo, vai levar cabelos de um monte de outras celebridades. Sem pagar nada mais por isso! Um grande negócio.
- Tá bom. Aí o dono do chumaço resolve fazer um DNA, para saber se o cabelo que ele comprou é o mesmo que ele levou...
- Repito: vai perceber que está na vantagem. Se fizer o DNA dos outros fios, terá uma grata e bombástica surpresa. Vai descobrir que possui metade da Enciclopédia Britânica em forma de cabelo.
- Vamos perder credibilidade como casa de leilões...
- Bom, a rigor, se alguém contestar, o problema é do laboratório que deu o laudo do DNA. Podemos falar que a culpa é deles, e nunca ninguém ficará sabendo desse acidente do vento entrando pela janela.
- Canalhice, velhacaria. Muito mau-caratismo para o meu gosto. A culpa foi do vento, temos que assumir isso...
- E perder milhões, cancelando o leilão?
(A portas e venezianas trancadas, fizeram um pacto de cumplicidade e silêncio. Vararam noite e madrugada juntando cabelos em mechas que se assemelhavam pela cor. Todas as relíquias foram arrematadas. Nunca ninguém contestou a autenticidade delas).
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 19/06/2016.
* * *
Desvio de finalidade
Viver em comunidade é viver com responsabilidade. Como nem todos pensam assim, abusos sempre acontecem. Mas chega uma hora em que é preciso colocar ordem na casa, para que prevaleça um mínimo de civilidade e observância a normas de boa e saudável convivência. E essa hora chegou para o nosso condomínio. Mais especificamente, refiro-me a irregularidades na utilização segura do playground, e à necessidade de estabelecermos a quem ele de fato se destina.
Não é novidade para ninguém que o gira-gira existe para turbinar o efeito da bebida, por isso está estrategicamente instalado próximo ao lazer dos adultos. É insano permitir que crianças se aproximem dele. Se a força do equipamento em alta velocidade pode derrubar gente de noventa quilos, que ali espairece responsavelmente entre uma mão e outra de carteado no salão de festas, o que dizer de gurizinhos mais leves que um saco de arroz Tio João? O desastre é tão certo quanto as horas de choro que o sucedem. E, em ocorrendo acidente, os condôminos respondem juridicamente pelas despesas do hospital. Ou da funerária.
Para evitar que menores de 21 se aproximem dos balanços, o subsíndico mandou instalar um engenhoso mecanismo de senha alfanumérica combinado com biometria de reconhecimento digital e leitura de iris. Qualquer tentativa de acesso indevido ao equipamento resultará, após três digitações incorretas da senha, no bloqueio do movimento pendular do balanço. Na eventualidade do infantiloide conseguir dar umas balançadas, em questão de segundos seu assento será ejetado. De castigo, acabará no mínimo com um traumatismo craniano. Bem feito. Se os pais não corrigem, a comissão administrativa do prédio saberá fazê-lo. Esses pequenos mal-educados aprenderão na marra a evitar a traquinagem.
Dizem que é "escorregador" o nome que a molecada dá ao escalador-fitness, adquirido para complementar a nossa já bem equipada academia de ginástica. Enquanto nós, adultos, utilizamos o aparelho para fortalecer as panturrilhas na subida da escadinha, os guris usam a escada para se jogarem aos berros na rampa metálica - o que é um contras-senso. Com essa brincadeira besta, impedem que as pessoas mais velhas utilizem o escalador para o fim que foi concebido: cuidar da forma física.
Em relação à gaiola-labirinto, as reclamações são quase diárias. Tal qual selvagens micos, a meninada em algazarra usa o emaranhando metálico para exercitar os bíceps. Outro flagrante absurdo, pois a gaiola foi feita para secar roupas (facilitando a vida das nossas prendadas condôminas), ou para espionar com binóculos as banhistas do prédio ao lado (caso dos respeitáveis condôminos).
Playground não é e nem nunca foi lugar de criança, mas a impressão que se tem é que a proibição exerce sobre elas um fascínio irresistível. A plaquinha "Proibida a entrada de menores", afixada com destaque ao lado do par de gangorras, parece aguçar ainda mais os pestinhas. Medidas extremas, ainda em estudos, serão necessárias. Contamos com a compreensão e o apoio de todos.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 11/06/2016. * * *
Prefácio ao livro inexistente
"Quando é que sai o livro?", perguntam-me isso sempre. Minha resposta, definitiva e inapelável: nunca. Se Deus quiser nunquinha, pelo menos no que depender de mim esse equívoco não será cometido.
É confortadora a ideia de que a publicação virtual pode ser editada a qualquer momento, e que a coluna de jornal, tão logo seja lida (se é que será), passará a forrar gaiolas de papagaio. Eu vejo uma espécie de segurança nessas plataformas, de reversibilidade da obra e, consequentemente, da reputação de quem a assina. Nada de volume, de editora, de noite de autógrafo, de virar adorno de prateleira ou encheção de linguiça no currículo.
O livro é um tijolo à prova de arrependimento, é obra catalogada na Biblioteca Nacional, passa de mão em mão e espalha-se mundo afora, ainda que seja pequena a tiragem. Se o escriba renega a cria, não há chance de reparar o erro. A menos que faça um recall, oferecendo recompensa por exemplar devolvido. Uma espécie de errata da obra toda.
Um livro é um negócio com aura de testamento, de coisa pronta e acabada. Não há o que possa ser feito depois de impresso, e essa perspectiva é uma sentença dura demais. Nega ao pobre do escritor a chance do control Z. A supressão de um advérbio mal empregado, um ponto-e-vírgula que poderia muito bem ser ponto, uma palavra repetida dentro do mesmo parágrafo, a troca de um substantivo que faria toda diferença. Dizem que o Graciliano Ramos acordava de madrugada, cismando de mudar uma palavra, corria à gráfica e mandava parar as máquinas para fazer a correção. E sendo ele quem era: o imortal Graça.
Mas o pior não são esses escorregões de forma, e sim os desarranjos de conteúdo. Um assunto escolhido na falta de outro melhor, um final sem charme, algo que na hora parecia bom mas que irá, lá na frente, macular o bom nome do autor e trazer constrangimento à descendência...
Para completar, o pior e mais humilhante dos riscos que um incauto escrevinhador pode correr: encontrar o seu rebento em um sebo, naquela banquinha de 1 real, autografado e tudo. E ainda ficar sabendo quem foi o amaldiçoado que vendeu, por quase nada, aquilo que um dia valeu tanto.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 04/06/2016.
* * *
Cálculos acadêmicos
Trabalhemos com números conservadores, para termos uma expectativa mais realista. O aluno chega para um curso de quatro anos. São cerca de duzentos dias letivos por ano, vezes quatro dá oitocentos. Se, nesses oitocentos dias, ele comer no intervalo uma coxinha da cantina (provavelmente vai comer mais, pois já chega para a aula com fome), junto com um refrigerante, temos aí de oitocentas a mil e seiscentas coxinhas e mais a mesma quantidade de refris no decorrer da graduação.
Vamos para as máquinas de venda automática. Em cada uma das alas principais do prédio, contamos com máquinas de preservativos, de snacks e de chocolates. Nossos repositores de estoques apontam para uma média de 32 camisinhas consumidas ao ano per capita, o que dá 128 escapulidas entre uma aula e outra para as urgências da carne. Lembrando que essa conta é por cabeça, independente de ser homem ou mulher. Os snacks e chocolates vendem bem mais, até porque depois do bem-bom bate mesmo aquela fome. Sem contar que os consumidores dos petiscos podem não ser necessariamente os praticantes de sexo, basta que sintam vontade de comer no intervalo entre uma coxinha da cantina e outra.
Os números mais impressionantes vêm dos nossos serviços de fotocópias. Incluindo o montante gasto no TCC, estima-se que cada graduando levará para sua repúbica ou pensionato uma montanha de 18.000 cópias ao longo do curso. Praticamente todas elas tiradas nos serviços de xerox da própria faculdade, a um lucro projetado de 600% por folha.
Esse Monte Everest de papel não caberia no quartinho do aluno se fosse acumulado todo lá. Mas acontece que boa parte disso acaba voltando aqui para a Universidade, na forma de trabalhos solicitados pelos professores. São milhares de toneladas de sulfite que a Universidade revende como reciclável e se transforma em receita. Expressiva receita.
As pesquisas de campo, as excursões para simpósios, palestras, semanas de estudos, ciclos de debates e o que mais aparecer como atividade de complementação acadêmica extra-muros tem toda a sua logística movimentada pela Universidade - do transporte à hospedagem dos participantes. Desnecessário dizer que essa desgastante operacionalização não é conduzida gratuitamente por jesuítas, e nem é penitência missionária. A Instituição cobra bem e fatura horrores com isso.
A fonte de lucros prossegue em patamares elevados e constantes no decorrer dos semestres letivos, até a formatura. É quando toda a parafernália de buffets, conjuntos musicais, cerimoniais diversos, viagens comemorativas, álbuns de fotografias e DVDs de festas e colações de grau são oferecidos aos formandos por valores extorsivos, embutidos neles as comissões da Universidade. Não havendo o repasse de pelo menos 25% para a Instituição, as propostas são barradas e nem chegam ao conhecimento dos alunos.
Tendo em vista o acima exposto, concluímos ser economicamente viável o "Programa Faculdade Grátis - Seu diploma com mensalidade zero e sem vestibular". Será a consagração definitiva da nossa marca no disputado mercado educacional.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 28/05/2016.
* * *
Abbey Road
LADO 1
- Vou começar bem fácil, depois a gente vai esquentando. - Manda. - Faixa dois do Let it Be? - Dig a Pony. - Quantas músicas tem o Álbum Branco? - Trinta. - Qual o fotógrafo da capa do Rubber Soul? - Robert Freeman. - Quem era a Martha, da música Martha My dear? - A cadela do Paul McCartney. - Quem inspirou Something? - Pattie Boyd. - O que Tia Mimi disse para John Lennon, quando ele comprou a primeira guitarra? - "Você nunca vai ganhar a vida com isso".
Não tinha jeito, ele sabia tudo. Era capaz de dizer nome completo e endereço dos avós da Barbara Bach, mulher do Ringo.
Gabava-se de conhecer e catalogar, num caderninho surrado com o selo da Apple na capa, todas as mensagens cifradas e alusões a drogas do Revolver e do Sargeant Peppers. As bem manjadas e as que ele, sozinho, jurava ter descoberto. Sabia também que Paul estava vivo, e bem vivo. Ele mesmo o tinha visto num show em 1990 no Maracanã. Ainda assim conhecia 72 pistas que indicavam o contrário.
Tal pai, tal filho. E o menino, de 8 anos, ia pelo mesmo caminho.
- Quanto é 64 dividido por 16? - Four. Como os Beatles. - A capital da Inglaterra? - Londres, uma cidade que fica perto de Liverpool. - Dê um exemplo de sujeito simples. - George Harrison. - E de sujeito composto? - Lennon & McCartney.
Dos discos todos, o favorito era Abbey Road - o célebre álbum com os quatro na rua homônima, passando pela faixa de pedestres. Se além de tocar o seu Abbey Road falasse, teria muito o que contar. Idas e vindas, festinhas na garagem, quedas nas mãos de bebuns, mudanças de casa. No tempo da faculdade, foi com ele pra república. Fiel escudeiro, trilha sonora de bons momentos e maus bocados. Era com ele que espantava o sono nas vésperas de prova e embalava os sonhos nas vésperas dos encontros. Cheio de estalinhos, riscado no começo do "Come Together" e no fim do "Golden Slumbers", era sempre ele que encabeçava a pilha, com o papelão da capa já esfarelando. Uma marca de copo, em cima da cabeça do Ringo, formava uma espécie de auréola. Santo Ringo, que soube segurar a onda nas brigas e ameaças de separação. De tanto entrar e sair do prato da vitrola, o furo foi abrindo, laceando, ficando quase oval. Lá pelos anos 80, quando tinha aquele 3 em 1 da National, cansou de gravar suas músicas em fitas cassete para os amigos. Uma vez foi de empréstimo pra casa de uma paquera. Voltou com uma carta perfumada dentro. Almíscar. O perfume durou pouco, a paquera menos ainda. Mas o velho Abbey continuou lá, igual aos Beatles - forever. Com o tempo, foi virando relíquia. Era a primeira prensagem brasileira, edição rara. Passou a guardá-lo no fundo do maleiro e comprou uma outra cópia mais recente. Em vinil, é claro.
LADO 2
Londres, 2004. - Não é essa a rua, pai. A gente deve ter errado o caminho. - Como não? Olha o mapa, é aqui mesmo. Abbey Road, aqui estamos nós! Não queria dar o braço a torcer, mas a dúvida do menino era sua também. Viu que o lendário fusca branco, placa 28 IF, estacionado à esquerda na foto da capa, não estava mais lá. Ele pensou alto: - E nem poderia estar... - Falou alguma coisa, pai? - Nada não, filho.
Notou que faixa de segurança era igual a todas as que ele já tinha visto. Que quase nada restava daquele cenário mítico. A maçaneta da porta do estúdio, que a Rita Lee lambeu com adoração devota, provavelmente já tinha sido várias vezes trocada. Com a capa do bolachão nas mãos, ele comparava a foto com aquilo que via agora. As árvores certamente deviam ser outras, o trânsito era mais intenso. O céu também não era azul como naquele agosto de 35 anos atrás. Tirou os sapatos, para sentir a textura do asfalto e alcançar o estado de graça que tanto ansiava. Estava lá, exatamente onde eles estiveram. Em frente ao estúdio onde gravaram quase toda a sua obra, e nada de atingir o nirvana. O coração não disparou, ele não suou frio, as pernas não tremeram. Percebeu que perto da sua casa existiam ruas mais parecidas com a Abbey Road do que a própria Abbey Road. Por alguns minutos ficou ali, parado, como que esperando uma resposta ao próprio desencanto. E deu-se conta que Abbey Road era uma rua que ele mesmo havia pavimentado, ligando os Beatles às suas vísceras.
Entregou a câmera para o filho e pediu que ele clicasse no momento em que atravessasse a rua. Esperaram que alguns carros passassem e fez o mesmo com o menino. Mas bem rápido, porque um bando de turistas barulhentos, trazidos por um guia de sobretudo marrom, já tomava conta de toda a faixa.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 21/05/2016.
* * *
Os nomes de ninguém
- Senhores vereadores, prosseguindo com a pauta da nossa sessão ordinária, vamos ao próximo item: discussão sobre os critérios da municipalidade para dar nome aos novos logradouros públicos. Com a palavra, o vereador Feitosa.
- O assunto é polêmico, senhores, e exige reflexão profunda...
- Precisamos rever os processos e encaminhamentos dessa questão pela Câmara. Tem vereador que passa o mandato inteiro só cuidando disso. E, mesmo fazendo tudo pelos mortos e nada pelos vivos, acaba garantindo sucessivas reeleições. Todos sabemos como a coisa funciona, inclusive temos três vereadores peritos na prática aqui mesmo, nessa sessão: acordar bem cedo, saber quem morreu, ir ao velório, chorar o finado e prometer à família um nome de rua para legar sua memória à posteridade. É claro que a parentalha toda vai votar nele no próximo pleito. E alguns desses nobres colegas são tão profissionais que só escolhem defunto de família grande, que rende mais votos. Os que têm poucos parentes eles deixam para a vereança iniciante.
- Um aparte! Nosso partido defende a bandeira da renovação, o que inclui os nomes de rua! A cidade foi fundada em 1686, e ninguém mais sabe quem são as pessoas que dão nome às nossas principais artérias. Só para citar alguns exemplos: Rua Dona Quitéria Bontempo, Avenida Sebastião Albino dos Sanches Pedreira, Praça Cônego Aristenes... É hora de substituir esses hoje desconhecidos por mortos mais frescos, que tenham relevância na sociedade atual. Ou pelo menos nos últimos 100 anos.
- Mas os descendentes dos ilustres mais antigos podem entrar na justiça, alegando direitos adquiridos. Afinal, alguma coisa de importante fizeram para merecerem nome de rua lá no tempo do onça. Imagine Vossa Excelência a pendenga jurídica.
- Podemos substiuir os nomes de ruas por números, para acabar com a discussão. Rua 1,2,3,4 e assim por diante. A vantagem é que a pessoa que está procurando um endereço já se orienta, pois sabe em qual zona da cidade fica determinada numeração. É um serviço que prestamos ao munícipe.
- Protesto! O que a gente ganha com isso?
- Concordo com o Vereador Josevaldo. É prático mas impessoal demais, é frio e não rende voto. Rua tem que ter nome de gente. E, mesmo com toda essa crise imobiliária, o que não falta é loteamento novo com um monte de "praca" esperando batismo.
- De fato, corre o risco de faltar finado para tanto logradouro. Mas devo alertar que os nobres legisladores se esquecem das ruas que têm datas como nomes. Quinze de novembro, sete de setembro, treze de maio. Poderíamos escolher algumas datas significativas para o município. O dia do início de um mandato, da inauguração de uma ponte, do aniversário do nosso digníssimo prefeito...
- Não, não, a imprensa vai cair em cima, pode mobilizar a opinião pública, vão alegar demagogia e autopromoção...
- E assim, o que acham: Rua desemprego zero, Rua segurança garantida, Rua educação para todos, Rua saúde e saneamento básico, Rua respeito ao dinheiro público. Imaginem Vossas Excelências! Em cada inauguração de rua, um tema para comício. E uma forma disfarçada de propaganda política para todos nós desta casa. Imaginem só, a rádio transmitindo o discurso: "Declaro inaugurada a Moralidade na Municipalidade", eita como soa bem isso!
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 14/05/2016.
* * *
Auxílio-jaquetão e outras providências
Bendita a hora em que tomei a deliberação de alocar o Jervoilson, Assessor D.A.S. 6 e apaniguado há sucessivas legislaturas do Bergoncildes Canastra, para organizar minha biblioteca da fazenda. O pobre andava mesmo enfastiado da chupação de lápis na sub-comissão de transcrição para braile dos discursos parlamentares, e com esse afazer pode ocupar melhor os seus dias e amealhar de lambuja umas horinhas extras. No total são 1.587.313 exemplares do “Marimbondos d’Água” entulhados no paiol, em edições patrocinadas pela Prefeitura de Santa Luz, pelo Governo do Estado do Maralhão e pela gráfica do Senado, que honrou-me com 38 edições anuais e consecutivas para distribuição a ONGs e escolas públicas brasileiras e do Mercosul.
No mais, devo admitir que foi bastante puxada a semana que passou, com variadas emendas apresentadas e favas contadas para aprovação. A primeira delas dispõe sobre a dispensa dos senhores senadores e suplentes de suas atividades legislativas no dia de seus respectivos aniversários. Permanecendo em suas bases eleitorais, os mesmos poderão receber, no recesso de seus lares, os merecidos parabéns dos correligionários.
A segunda emenda diz respeito à inclusão do Arroz de Cuxá, iguaria da qual não consigo me privar, no cardápio do restaurante do Senado. Já agendei uma degustação no plenário ao som de Alcione, glória maralhense, acompanhada da Banda de Pífaros de Coroatá.
Já a terceira emenda só passa em primeira votação à força de conchavo e de marcação homem a homem, com os aliados da base governista caçando apoiadores na unha: a criação do “Auxílio-Jaquetão”, com verba inicial de R$ 2.600,00 inclusa no contracheque e isenta dos descontos de praxe. Modéstia à parte, considerei memorável o meu discurso, onde defendi a indumentária como sendo alternativa salutar ao calorão do cerrado, facultando o seu uso em substituição ao terno e gravata protocolares. Foi deferido ainda o encaminhamento, sem necessidade de licitação, de estudo de figurino feminino do referido jaquetão, para que as senadoras também sejam contempladas pelo benefício. O ilustre senador Filinto Mangol fez um aparte muito a propósito, sugerindo que a versão feminina contivesse estampas de florzinhas nativas das regiões de onde as legisladoras são oriundas.
Por tratar-se de assunto correlato, fiz constar nas discussões do mesmo dia outro projeto de minha autoria: a “Licença-Abotoadura”, que torna não-obrigatório o uso do adorno nas sessões plenárias, pelos mesmos motivos expostos para adoção do jaquetão, quer seja, a tórrida temperatura brasiliense. Adicionalmente, nossa Casa de Leis ganharia um fortalecimento da sua imagem perante a opinião pública, já que sem as abotoaduras se tornará mais prático o procedimento de arregaçar as mangas no batente.
Concluindo, o projeto denominado “Seguro-Jeton”, que estabelece o recebimento do adicional por assiduidade ainda que o Senador ou suplente não seja propriamente assíduo às sessões. Ninguém desconhece que a existência do Jeton é expediente criado para reforçar a remuneração básica, e o seu não recebimento seria motivo de dissabor e desconforto, tanto na Câmara quanto no Senado. A apreciação da matéria se dará em caráter de urgência urgentíssima, havendo ou não o quórum regulamentar.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 07/05/2016.
* * *
Vem pra briga você também. Vem!
- "Omo faz, Omo mostra". Mas mostra o quê? Acho vago esse raciocínio.
- Queria que eu fizesse um tratado filosófico? Slogan bom tem no máximo seis palavras. Eu me virei com quatro. Tinha feito outras opções para apresentar, na verdade gostava mais de um outro. Mas o cliente escolheu esse.
- Não foi o meu caso. Quando criei "Danoninho vale por um bifinho", só mandei um e acertei logo de prima. Na convenção da empresa me fizeram uma homenagem, como autor de um posicionamento que iria diferenciar o produto nos próximos 20 anos. Foi muita responsabilidade. Pra você ter uma ideia, me deram de presente um Chevette GP Okm, daquele laranja com friso preto.
- Vai me desculpar, mas com esse slogan você convence a mãe, não a criança. Tá falando que é nutritivo, mas o pirralho não está nem aí com isso.
- Não, não. Eu falo pra criança que, comendo um Danoninho, ela escapa do chato do bife.
- Tá bom, mas deixa eu defender minha cria e explicar o meu "Omo faz...
- Se precisa explicar é porque não deu o recado. E depois, já faz uma cara que isso saiu do ar, pra que ficar ressuscitando defunto?
- Bom, o mesmo vale pro seu "Danoninho", meu velho. Aliás, estamos os dois com as chuteiras penduradas há bom tempo, não sei que diferença faz essa discussão.
- Pra mim é questão de honra. Olha só, o "bifinho" rima com "Danoninho", o jingle do comercial de TV utilizava "O bife", que qualquer criança sabia tocar no piano. Todo mundo entendia que aquilo não era guloseima, era alimento. E era gostoso! Pra ficar veiculando tanto tempo, a campanha tinha que ser muito boa, tinha que ter um conceito convincente.
- E tinha. Mas "Omo faz, Omo mostra" também durou um tempão. Eram comerciais testemunhais, tinha que ter veracidade. O slogan fazia uma releitura do "mata a cobra e mostra o pau". A dona de casa se convencia, tinha medo de arriscar com outra marca e deixar a roupa encardida. Acho que só a gente sabia da verdade. O pessoal de desenvolvimento de produto dava a entender que sabão em pó era commodity, tudo igual. Essa constatação acabou entrando até no briefing da campanha. Hoje eu fico imaginando, se eu tivesse gravado aquela reunião com o cliente, quando ficou quase explícito que sabão em pó era tudo a mesma coisa, eu mesmo - como criador - poderia ter processado a empresa por propaganda enganosa.
- Mas aí você poderia ser processado também. Como cúmplice!
- Você fica aí falando, falando, mas na época dessa sua campanha do bifinho, muita gente questionou a propaganda, dizendo que o valor nutricional não era equivalente. Além de ter muito açúcar, corantes, conservantes...
- Se todo mundo fosse ficar olhando o rótulo de tudo, ninguém comeria nada. E a gente perderia o emprego. Como diria o ministro da Fazenda, dos bons tempos do comercial do bifinho: "o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde". - Tem cara de slogan isso, heim. Outro seu?
- Não lembro, pode ser. Com Rexona, sempre cabe mais um.
Esta é uma peça de ficção. Qualquer semelhança com o mundo maravilhoso da propaganda terá sido mera coincidência. Promoção válida só até sábado, ou enquanto durar o estoque.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 29/04/2016.
* * *
O sexo à luz da doutrina duñesca
Antes de mais nada, à luz da nossa doutrina, o sexo é feito no escuro. A visão das vergonhas alheias, ainda que entre marido e mulher, é experiência hedionda e desaconselhável. Na impossibilidade de penumbra, o par se obrigará a praticar o chamado coito vestido, em traje esporte fino acrescido de luvas e tornozeleiras. Um edredon ou outro artefato do gênero carece de ser providenciado para cobrir o casal da cabeça aos pés, até que o ato se consuma da forma mais recatada e discreta possível.
A luxúria, ou seja, o comportamento libertino e pecaminoso, deve ser evitado a todo custo - mesmo que só em pensamento. Nas preliminares, nos finalmentes e especialmente durante a coisa e si. Essa instrução pode parecer a princípio paradoxal, já que para a maioria das pessoas o intercurso sexual é resultante do desejo recíproco entre as partes. Assim, recomenda-se, segundo o Venerável Duña, buscar excitação suficiente apenas para que os aparelhos reprodutores desempenhem satisfatoriamente sua função. Nem mais, nem menos que isso. E que essa excitação fique somente no terreno tátil, jamais no psicológico, na verborragia chula, nas variações de posição ou quaisquer outros artifícios de que se possa lançar mão para transfomar o ato reprodutivo em prazer bestial.
Homens e mulheres duñescos são seres irreversivelmente castos. O batismo nas águas da pororoca fazem dos seguidores de Duña uma casta moralmente exemplar. Se eventualmente colocam-se uns sobre os outros, em estranhos e ritmados movimentos, como se estivessem travando uma luta sem sentido aparente, é no intuito exclusivo de trazerem ao mundo novos seres iluminados. Crianças que, uma vez paridas, precisam ser imediatamente encaminhadas ao nosso imaculado Oráculo para a unção em óleo bento, conforme preconizam os cânones de iniciação no tatame consagrado.
Os fiéis de ambos os sexos que cumprirem aquilo que Duña, o Perfeito, orienta sobre o assunto, não precisarão provavelmente de qualquer ajuda externa ao longo de suas vidas, seja para dirimir dúvidas ou curar doenças nas partes baixas. Caso se faça necessária uma intervenção psicológica, clínica ou cirúrgica que restabeleça um sadio padrão de normalidade, o Duña em pessoa deverá ser consultado, nunca os ginecologistas, urologistas, sexólogos, terapeutas alternativos e assemelhados.
Sendo a prática sexual tolerada apenas para a perpetuação da espécie, ao atingir um número razoável de filhos a atividade deve cessar por completo. Um legítimo discípulo de Duña respeita e glorifica as tábuas sagradas que a beata Constantina Eufrózia recebeu das mãs do Mestre durante a décima-nona Pamonha Fest de Xique-Xique, no glorioso ano de 1941. Seus preceitos orientam o rebanho da Divindade Maior a lidar com o sexo de maneira cívica, sem sentimentos de culpa ou outros transtornos mais sérios de consciência. Observando, evidentemente, a abstinência total entre o nascer do sol e o poente, e do poente à aurora do dia seguinte.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 24/04/2016.
* * *
Manuscrito de Elantra
Não demorou muito para perceber que o mundo tinha acabado, e que aparentemente só restava o que sobrou de mim para fazer companhia às bactérias.
É impossível precisar como ou quando exatamente recobrei os sentidos após a hecatombe, e o que a desencadeou. Não houve aviso nem pânico que a precedesse. Seja lá o que tenha acontecido, foi muitíssimo rápido o golpe de extermínio. Enquanto tirava o pó dos olhos e ensaiava uns passos com o que supunha ainda serem minhas pernas, tentava adivinhar a causa entre as possibilidades mais plausíveis: o louco ditadorzinho de Oregons Lanontry em incontido surto megalômano, um meteoro em súbito desvio de rota, um insuspeito arsenal nuclear do Estado Setentrional, quem sabe a fúria da natureza em desastroso revide.
Nem a céu aberto (e é tudo a céu aberto agora), nem sob os escombros havia sinal de água ou comida. Nenhum inseto voador ou rastejante. O que se conhecia por matéria parecia afetada em seu nível molecular. Objetos e seres ganharam um contorno inédito e sem definição possível. Mas isso parecia ilógico, uma possibilidade que contradizia a minha relativa inteireza física e o meu raciocínio para escrever. Como somente eu não estava destruído ou transformado em outra desconhecida coisa, ainda mantendo sentidos e consciência, ao contrário de tudo ao redor?
Este relato, escrito com o que melhor se aproximava de um lápis sobre aquilo que melhor se aproximava de uma folha de papel, ficará guardado numa caverna, como os manuscritos do Mar Elantra, até que alguém o encontre, caso o mundo - contrariando meu aparente julgamento - não tenha acabado. Ou venha, de alguma forma, a ganhar vida de novo.
Uma nuvem ocre me alcança agora, com forte odor de amônia, trazendo junto um frio que em dois ou três minutos frustrará qualquer intenção de movimento, seja para escapar da caverna ou para esconder-me ainda mais no fundo dela. Encolhido em posição fetal, prendo o quanto posso a respiração até que a nuvem venenosa perca um pouco a densidade. E recordo, nostálgico, nosso acolhedor planetinha Júpiter em seus dias mais felizes.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 16/04/2016.
* * *
Elefante da sorte
- Senhor Alcindo, comecemos do começo. Consta dos autos que o senhor iniciou sua vida profissional como coletador de excrementos de elefantes. Confere?
- Isso mesmo, autoridade. Ganhava quase nada e trabalhava feito um condenado. Até que uma elefanta deu cria e eu fiquei com o filhote. Quando o filhote cresceu...
- Em que lugar o senhor criava esse filhote?
- Numa chácara de um amigo do meu pai.
- Pode nos dizer o nome dele?
- Usando o direito que a lei me garante, permanecerei calado. Desculpe, autoridade, o nome do dono eu não lembro mesmo... Mas, continuando. Quando o filhote cresceu, eu tive a ideia de ir pra rua com ele e levar as pessoas para dar voltas de elefante. Foi um sucesso extraordinário! Dez reais por cabeça, chegava a levar oito em cada voltinha de dois minutos.
- Deixa ver, fazendo aqui um cálculo aproximado, e chegamos à conclusão de que, mesmo se o senhor levasse a população inteira do país para dar voltinhas de elefante durante 3 séculos, ainda assim não conseguiria acumular nem 1% da fortuna que possui.
- Eu posso explicar, autoridade. Os passeios no lombo do elefante foram o começo de tudo. Enquanto ganhava dinheiro com isso, comecei a pesquisar os dejetos do bicho em nível laboratorial, e desenvolvi a formulação do superesterco. Uma invenção minha, capaz de aumentar a produtividade agrícola em 250%.
- Não diga? Que peculiar.
- Depois que a fórmula do superesterco estava pronta, fui procurado por uma grande empresa multinacional... Como é que era o nome mesmo? Algo parecido com Meu Santo, Seu Santo, sei lá, qualquer coisa assim.
- Prossiga, Sr. Alcindo.
- Então. Um grupo de executivos da matriz dessa corporação começou a me assediar, oferecendo um basculante de dólares para que eu vendesse pra tal da Monte Santo a patente do gigaesterco.
- O senhor mencionou há pouco que era super, e não giga.
- Tanto faz, autoridade, aquela merda não tinha nome ainda. E não tem até hoje, porque o fertilizante está em fase de testes.
- Onde?
- Em um laboratório na Groenlândia e também em uma fazenda de um primo-irmão do tio de um compadre do meu pai. Eles perceberam que a minha invenção tinha potencial para exterminar a fome no mundo em questão de semanas.
- Entendo. Mais uma vez, um providencial amigo do seu pai aparece na história para ajudá-lo, é isso? E essa fazenda fica perto da chácara do outro amigo do seu pai, onde o senhor criou o primeiro elefante?
- Como é que o senhor sabe?
- Dedução. Vá em frente.
- Bom, aí eu vendi a patente e entrou na minha conta uma grana mais preta que o estrume da minha manada inteira.
- Presumo que o senhor Alcindo poderá nos dizer onde se encontram os documentos dessa transação e os recibos do imposto recolhido...
- Usando o direito que a lei me garante, permanecerei calado.
- Certo, faça de conta que não lhe fiz essa pergunta. Continue narrando sua saga empreendedora.
- A autoridade sabe que dinheiro faz dinheiro. Foi quando, em sociedade com um outro amigo do meu pai, e usando os recursos da venda mundial da patente, eu comecei no ramo da exportação de marfim.
- Conte-nos mais sobre isso.
- Ao mesmo tempo em que produzia as fezes, 100% compradas pela Seu Santo, também extraía o marfim dos bichos, embarcados quinzenalmente para Hong Kong. Eram centenas de toneladas em cada remessa.
- Mostre-nos as guias da Cacex e as autorizações aduaneiras.
- Usando o direito que a lei me garante, permanecerei calado.
- Eu não pedi que o senhor fale nada. Apenas coloque sobre minha mesa os papéis solicitados.
- Usando o direito que a lei me garante, não vou pôr nada na sua mesa, não senhor. Só digo para o senhor que, a partir das minhas experiências na química das fezes elefantinas, eu criei uma modificação nos códigos genéticos dos animais para que eles passassem a ter uma média de 94 dentições de marfim ao longo da vida. Foi essa minha expertise que me deixou milionário, autoridade.
- Não há dúvida que sua ainda curta biografia é mesmo uma estonteante trajetória de sucesso. Um exemplo pra esse povo que tanto reclama da vida, não é mesmo? Parabéns. Está dispensado, por enquanto.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 09/04/2016.
* * *
Um de carne e dois de queijo
- Se você fosse assim, um grande vulto como diz, não estaria aqui vendendo pastel.
- Você fala de um jeito... Vergonha é vender pastel ruim. O pessoal vem aqui comprar ouro com recheio de carne, queijo e palmito, meu amigo. Estou muito bem com meus 50 mil por dia.
- 50 mil reais?
- Não, 50 mil pastéis. A 3 reais cada um. Faz as contas.
- Nossa! Tá de brincadeira…
- Tendo em vista que 100% da humanidade considera o pastel frito a iguaria das iguarias, e sendo eu o autor do melhor pastel do mundo, não tenho do que reclamar... Meu amigo, a verdade é que muitos buscam a Deus, mas a maioria acaba cansando, baixa um pouquinho a expectativa e vem buscar pastel comigo.
- Mas…
- Ainda assim, fazem pouco do nosso ofício. Por exemplo, quando as pessoas usam a expressão "fritar pastel" no sentido figurado, querendo significar algo realizado às pressas, que se faz de qualquer jeito. Nada tão longe da verdade, pelo menos no meu caso. Se bem que, por outro lado, eu até acho bom que os outros pasteleiros "fritem pastel" mesmo, assim eu me sobressaio ainda mais. Existem pastéis e existe o meu pastel, compreende?
- E a garapa da sua banca? Vai me dizer que também é a melhor do sistema solar?
- É a única à altura da minha obra-prima. Mais cremosa, impossível. Tem Certificação ISO desde 2002 e título de patrimônio imaterial da humanidade, pela Unesco.
- Espera aí, eu acho que…
- E digo mais: tá vendo aquele quadrinho do lado do alvará da prefeitura? É o autógrafo do Paul McCartney. Quando veio aqui pediu só de palmito, porque é vegetariano. Depois de se entupir, tirou foto com os empregados e saiu com dois rolos de massa de pastel debaixo do braço. Toda quarta, às quatro e meia da manhã, o Alex Atala aparece na minha barraca. Disfarçado, mas vem. Pede sempre dois de carne, um de palmito e se empapuça de garapa direto no bico da jarra, nem pede copo. Outra freguesa firme é a Glorinha Kalil. Mas essa eu nunca vi, a gente entrega a encomenda em casa. O Caetano, quando vem fazer temporada em São Paulo, liga pedindo uma boa remessa pro camarim dele. Aliás, numa das nossas conversas ele jurou que a minha banca fazia parte da letra de "Sampa", mas no fim ele teve que tirar porque não dava rima...
- Mas você concorda que eles não admitem publicamente o vício do pastel, certo?
- Olha, você pensa o que quiser. Sua inveja não vai diminuir minha fama e nem minha autoestima. No tempo em que você está aí me atirando pedra, a assessoria da Dilma me manda torpedo pedindo pra entregar duas dúzias no salão do Wanderley Nunes, pra Presidente dar uma forrada enquanto corta o cabelo.
- Tá, no seu caso a distinta freguesia é distinta mesmo. Então porque não faz uma versão "select" da banca, com pastel de caviar e Prosecco?
- Porque ia ser um fiasco. A graça está na comida suburbana, no delito que a celebridade comete comendo de pé, com o sol castigando a carcaça, mosca pousando no nariz e correndo o risco de ter uma intoxicação alimentar por causa do vinagrete vencido. Se você quer saber, usar palito de dente é quase um fetiche sexual pra esses endinheirados. Aqui eles ficam mais à vontade que no banheiro das casas deles. E ainda tem a perspectiva de serem pegos pelos paparazzi, o que aumenta a adrenalina da empreitada. Eles gostam de correr perigo… e aí, mais um de queijo?
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 26/03/2016.
* * *
Santa Cândida nos ajude
A Fazenda e Olaria Santa Cândida, cuja sede foi recentemente tombada pelo patrimônio histórico, protagonizou uma verdadeira saga empreendedora. Sua argila moldou os primeiros e mais bem acabados santos do Brasil colônia, ornando os altares de milhares de igrejas.
A manufatura santeira, porém, minguou com o fim do ciclo do ouro. A chamada "bateção de tijolo" passou a ser sua principal atividade produtiva dos idos do império até o início dos anos 50, quando a construção civil se modernizou e o famoso tijolão colonial foi sendo aos poucos substituídos por produtos com maior uniformidade dimensional. Abalada pela concorrência, a fazenda diversificou sua linha cerâmica para telhas romanas, portuguesas e francesas, ganhando mercado no Norte do Espírito Santo.
Embora não combine muito com a tradição secular da Santa Cândida e sua olaria, a onda mística e as múltiplas vertentes da medicina alternativa salvaram a propriedade da bancarrota nos primeiros anos do novo milênio. De 2002 a 2007, quase 90% da argila extraída era vendida a spas e clínicas de estética, para utilizações terapêuticas de discutível eficácia. A coisa perdurou até o dia em que um certo centro holístico no Mato Grosso do Sul adotou a ingestão do barro em seu rol de procedimentos, provocando verminose coletiva e alçando a ocorrência ao primeiro bloco do Jornal Nacional.
Igualmente mal sucedida foi a tentativa de lançar no mercado educacional a chamada massa de modelar orgânica. Embalada a vácuo, durante certo tempo a argila mantinha sua consistência original. Mas bastavam 10 minutos de manuseio para que as crianças tivessem em mãos toretes de cerâmica seca, causando choro e justificável ira mirim. A fabricante ainda tentou acalmar os ânimos dos pais e professores, publicando anúncios onde sugeriam que, se umedecida com água de dez em dez minutos, a massinha poderia manter sua característica maleável. Os compradores, porém, argumentavam que teriam de passar a vida molhando o barro seis vezes por hora, e que assim não poderiam mais trabalhar ou dormir.
Novos e promissores tempos chegaram para a Santa Cândida com a bendita crise hídrica. Digo bendita porque, quando tudo parecia ruir, a redenção veio na forma de filtros de barro, tão procurados quanto as cisternas e caixas d'água. Não vencia produzir para o sudeste, e a lei da oferta e da procura fez os preços dispararem. Tanta bonança financeira levou a família a apostar o que não tinha na quintuplicação da capacidade produtiva, assumindo um financiamento homérico em banco privado. Mas a chuva voltou forte e inundou a olaria de intimações judiciais, cobranças e oficiais de justiça, o que acabou por levar a leilão quase 40 dos mais de 500 alqueires de terra. Ou de argila, melhor dizendo.
Saldadas as dívidas, a Santa Cândida retorna agora aos seus fundamentos - ou ao core business, para abusar do marquetês moderno. Após trezentos e tantos anos, reassume a atividade santeira com ânimo renovado e modernas técnicas de produção. Diante da desesperadora situação econômica do país, as encomendas vêm crescendo a um ritmo de 25% ao mês, forçando a olaria a operar em três turnos, incluindo aí sábados e domingos. São Judas Tadeu e Santa Edwiges lideram folgadamente o ranking das imagens mais vendidas.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 20/03/2016.
* * *
Matrículas abertas!
"Às escondidas, MEC quer aprovar mudança na base nacional curricular". Fonte: jovempan.uol.com.br - 04/01/2016
Extraoficialmente, circulam informações desencontradas sobre a natureza e a profundidade de tais mudanças. Entretanto, alguns já afirmam como certa a incorporação dos conteúdos que seguem:
. A influência de Andrés Bellos e Eduardo Blanco no desenvolvimento da moderna literatura venezuelana.
. A Grande Rebelião de Túpac Amaru (nascido José Gabriel Condorcanqui Noguera) e sua relação com o aumento do descontentamento dos ameríndios no governo colonial do Vice-Reino do Peru.
. 1809 e o marco boliviano: Pedro Domingo Murillo lidera a revolta dos criollos.
. A bandeira e o brasão cubanos e os diferentes significados que assumem nas mais de 1.500 ilhas do arquipélago castrista.
. Aspectos étnicos e demográficos de Havana / A piña colada e o mojito como fundamentos de uma nova fase econômica, a partir da reabertura de fronteiras para os norte-americanos / Ensinando as crianças a diferenciar um Montecristo de um Cohiba à primeira baforada / Análise morfológica das letras do repertório de César Portillo de la Luz.
. "La gran farsa capitalista - versión para los niños de Sudamérica", tradução de frei Bartolo Entrañas Rojas.
. Ernesto Guevara, o "Che": antepassados, concepção, parto, infância, adolescência, convicções ideológicas, luta armada, emboscada, morte, idolatria, camiseta.
. Educação artística fundamentada em nova abordagem didática, a rubropedagogia. Esta prevê, para as três primeiras séries do Ensino Fundamental, o uso em sala de aula de lápis nas cores vemelho sangue, vermelho revolução, vermelho terra invadida, vermelho víscera de ianque, vermelho comunismo, vermelho estrela.
. "Deus não existe, e isso é divino", a educação religiosa à luz da antirreligião.
. O ateu praticante - definições e aplicabilidade no contexto educacional contemporâneo.
Com a incorporação obrigatória desses novos conteúdos à grade curricular de todas as escolas do país, consideram-se extintas disciplinas pouco relevantes e atreladas a um passado já anacrônico em relação à nova realidade socialista, tais como História Geral e do Brasil, Geografia e Português.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 12/03/2016.
* * *
"Vida de Santo"
Engana-se quem pensa que vida de santo é um infinito dolce far niente. Nem ao mais preguiçoso deles é dada a graça de ficar chupando chicabon eternidade afora. E aquele estereótipo de se recostar em nuvens, entre cânticos e cítaras, é mais coisa de anjo que de santo - e anjo de quadro barroco, idealizado e fora de contexto histórico.
Santo passa maus bocados, verdade seja dita. E nem por isso os devotos lhes tratam com o devido respeito, o respeito que o santo, justamente por ser santo, exige.
Por exemplo, esse estranho hábito terráqueo de entornar no mínimo 10% da cachaça no chão da venda, dizendo que é pro santo. Posso dizer com certeza que todos eles abrem mão da homenagem e passam muito bem sem ela. Se gostasse mesmo de água que passarinho não bebe, santo não seria santo. Muito pelo contrário.
Depois, tem outra: manda a Justiça Divina que, toda vez que se oferece algo pro santo, e não se especifica pra qual santo é o presente, a oferenda seja repartida por todos indistintamente. Vai daí que cada gole oferecido é dividido, em partes iguais, para a santosfera inteira. Sabendo-se que os santos são atualmente milhares, a cada um cabe geralmente uma gotinha de nada - e não é isso que vai desviar a santaiada do bom caminho. Até aí, nada de mais. Mas acontece que se a gente levar em conta que cada pinguço manda pra goela pelo menos uns três copos da marvada, e que só no Brasil temos milhões de alcoólatras, o estrago divino é grande, provocando em vários deles internações frequentes - quando não diárias. E as mais prejudicadas são as santas, que com um tiquinho de martini já estão trançando as pernas.
Outro problema sério são as imagens dos santos - tanto as pintadas quanto as esculpidas. Tem santo lá em cima que excomunga sem dó alguns dos displicentes artistas terrenos, pela falta de semelhança deles com as imagens que os representam. Esse tipo de episódio produz verdadeiras catástrofes estéticas. Outro dia mesmo toda a corte celeste saiu em passeata, com cartazes, faixas e gritos de guerra, protestando contra um lote de 250 estátuas de Santa Edwiges que saiu de fábrica com cara de Rita Cadilac. Um repulsivo sacrilégio, que merece punição exemplar. Para evitar novos contratempos, São Tomé propôs em assembleia a instituição do selo "Ver para Crer", que certifica a imagem beatificamente reconhecida, ou seja, aquela que tem a benção do respectivo santo e que guarda nítida semelhança com a sua figura dos tempos de carne e osso.
Além desse tipo de desrespeito, há também injustiças que agridem e irritam a turma de auréola. A maldosa e irônica expressão “Na descida todo santo ajuda” vem merecendo, de uns tempos para cá, um revide da parte dos ofendidos. Julgam eles que a frase denota uma certa acomodação, dando a entender que os santos têm braço curto e que não se empenham nas tarefas mais difíceis, onde só um milagre pode resolver a parada. “Não vamos ajudar mais na descida, ainda que o carro do sujeito esteja sem freio. Pois que se espafitem, aprendam a lição e vão para o inferno” desabafa um conhecido santo, que não quis se identificar.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 05/03/2016.
* * *
Colecionáveis
ELA JUNTAVA PARA TIRAR Ela era obcecada por batons, desde a precoce menarca, aos 11. Tinha de todos os tons, texturas, sabores e procedências possíveis. De Givenchy aos de rodoviária. Guardava-os alinhados, em filas intermináveis pela casa, a uma distância de 3cm entre um e outro. Como aqueles quilométricos caminhos de dominó do Guiness Book. Dispunha o acervo por cores, das mais claras para as mais escuras, numa escala que lembrava os leques de tonalidades das lojas de tinta. Era celibatária por opção. Aqueles batons aos milhares talvez servissem para lembrá-la de que não seria aconselhável usá-los. De fato, nenhum deles nunca chegara nem próximo da sua boca. Fálicos, pecaminosos, dão ideias indecentes. Deus castiga. Precisava muito proteger o mundo dessas armas ameaçadoras. Essas ogivas escarlates, de alto poder de destruição. Por isso ia recolhendo todos os que via e os que pudesse comprar, um serviço que fazia à moral e aos bons costumes. Também aceitava doações. Somava-os, a contragosto, para subtraí-los da santa obra do Senhor.
ELE TIRAVA PARA JUNTAR Ele era o que se poderia chamar de um colecionador ao contrário. Colecionava as mulheres que não teve. Às escondidas, tirava fotos de todas elas para depois fazer montagens com ele ao lado. Quanto mais indecente o flagrante, quanto menos roupa na hora do clique sem permissão, maior o gosto da conquista. Muito mais satisfatória a recompensa pela captura do impróprio, daquilo que nunca poderia ser dele. No porão da casa, ia crescendo a cada dia a sua montanha de caixas de sapato, com as fotos adulteradas e organizadas por critérios doentios, que só a ele faziam sentido.
E aconteceu que, num belo dia - e um belo dia sempre chega para todos, mesmo para os mais arredios colecionadores - ele, pela primeira vez, não teve que fazer montagem. E ela inaugurou aquele que, dos batons, lhe pareceu o menos vulgar. Rouge 301 Delight, de Helena Rubinstein. Juntaram-se, e de todo o resto se livraram sem remorso.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 27/02/2016.
* * *
Antes tarde do que não comprovado
Foram longos e exaustivos anos de pesquisa, mas a ciência finalmente comprovou a relação entre a utilização diária do fio dental e a diminuição do efeito "tchauzinho" nos músculos tríceps, especialmente os femininos.
Conheça um pouco mais sobre o chamado "Efeito Tchauzinho" ou "Teste do Tchauzinho":
Temido pelas mulheres a partir da quarta década de idade, o efeito caracteriza-se pelo excesso de flacidez nos braços, que faz a pelanca balançar em movimento de pêndulo, notadamente quando se faz o gesto de "tchau" a outra pessoa - daí o bem humorado nome. Objeto de investigação por diversos ramos da medicina, pela indústria cosmética, academias de ginástica e clínicas de fisioterapia, o estudo divulgado há cerca de duas semanas pela Universidade de Michigan aponta que o efeito tende a diminuir quanto maior e mais frequente for a limpeza com fio dental na higiene odontológica.
A descoberta, que até o momento não passava de conjectura teórica, agora está documentada laboratorialmente por uma série de ensaios conduzidos por equipes multidisciplinares da referida Universidade. Comprovou-se, com todo o rigor que a moderna metodologia científica exige, que os movimentos de vai-e-vem do fio nos espaços interdentais, por período ininterrupto de 43 ou mais minutos, tem a propriedade de fortalecer os tríceps braquiais e aumentar a massa muscular na região à razão de 0,06% ao dia. Se maior a pressão do fio contra as paredes dentais no processo de limpeza, observa-se um consequente incremento da musculatura desenvolvida, chegando a índices de 0,08% diários, número até o momento inimaginável para os especialistas da área.
Temos aí um círculo virtuoso, com ganhos concomitantes para a saúde, a estética e a autoestima da pessoa, que transforma o que seria uma tarefa mecanicamente enfadonha em espetacular recompensa psicológica, eliminando traumáticos constrangimentos e até fobias sociais. Há registros de casos mais agudos onde o paciente evita qualquer forma de contato ou vínculo pessoal, por antever a eventual necessidade de um "tchauzinho" protocolar, o que poderia arrastá-lo a um quadro depressivo de consequências imprevisíveis. Resultado: fuga sistemática de toda e qualquer ocasião de despedida, ainda que seja remota a possibilidade de acenos.
Outro curioso comportamento detectado pelo estudo é que muitos "sabotam" o teste para enganar a si mesmos, rotacionando apenas as mãos e policiando o natural chacoalhar do braço, para não encarar a sua dura realidade fisiológica. Tamanha é a paranoia de fixar a atenção no braço, para que ele não se mexa, que a pessoa despede-se olhando para os próprios tríceps, e não para quem está indo embora.
Dois professores ligados ao MIT - Massachusetts Institute of Technology, criticaram duramente a utilidade da pesquisa e os milhões de dólares gastos na sua subvenção, argumentando que a simples escovação de dentes traria benefícios idênticos, e que a humanidade pouco tem a ganhar com a descoberta. Esta tese é contestada pela Ordem dos Cirurgiões Dentistas de Cascais, que vê na escovação uma eficácia discutível e não padronizada para o enrijecimento do músculo do braço, pela variação da consistência das cerdas.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 20/02/2016.
* * *
Betão in Concert
- Quero 32 toalhas brancas e bem felpudas no camarim. Uma para cada sonata que compus. Pode me chamar de supersticioso, mas é isso. O Mozart pede mulheres e caixas de absinto, antes e depois dos concertos, e ninguém fala nada. Eu até que exijo muito pouco, só as toalhas e uma travessa de arenque com batatas. Nenhuma excentricidade. - E o bis? Já escolheu o que vai ser? - Vai depender de como eu estiver na hora, não vou resolver isso agora, de jeito nenhum. - Mas Beethoven, a orquestra precisa saber para ensaiar. Como é que... - Eles que se virem. Todo mundo não me chama de louco? Deixa eu fazer jus à fama. Pode ser a Pastoral, mas não dou certeza. - Espera aí, uma sinfonia inteira como bis? O público vai cansar, são cinco movimentos. - Quem quer bis de dois minutos que vá assistir à Madonna. Chega de bisar com a "Pour Elise" e fazer merchandising gratuito pra Ultragas. Aliás, maldita a hora em que vendi os direitos dessa peça. Nem eu aguento mais aquele caminhão. - Tá, tudo bem. E quem abre o show? - Liga pro celular do Schubert e vê se ele está disponível, se bem que até anteontem ele estava em estúdio mixando uma trilha de novela. Mas fala pra ele pegar leve, alguma coisinha pouco barulhenta. O concerto é meu, não dele. Nada de roubar a cena e me entregar o público destroçado. - E a coletiva de logo mais, posso confirmar? - Contanto que os benditos repórteres falem bem perto do microfone, pode. Tô de novo com aquele zumbido estranho no ouvido, preciso marcar um horário no otorrino pra ver o que é isso. - Bom, mudando de assunto, estou aqui com o layout que a agência de promoções enviou, divulgando o concerto em Praga, no dia 12. - Olha, que não me venham com aqueles trocadilhos infames que andaram criando ultimamente... "Beetho ven aí" ninguém merece!! Não sei onde estava com a cabeça quando aprovei aquela merda. - É, mas veio gente pra caramba. - Daqui pra frente quero espaços menores, shows mais intimistas, tipo banquinho e violoncelo. No máximo um conjunto de câmara, uma coisa mais unplugged, sabe como é? - Mas não podemos mudar isso agora, no meio da turnê. Só na orquestra temos mais de 150 músicos, todos com contrato assinado até setembro do ano que vem. - Antes que me esqueça, aqueles backing vocals na nona estavam muito esganiçados. Pode pôr na rua todas as sopranos e me traga gente nova, que não assassine meus hits. Respeito à partitura é bom e eu gosto. Tem outra: a tietagem na fila do gargarejo fica puxando fumo demais. Até eu fico maconhado por tabela e acabo errando a regência. Reforço de segurança neles. E, pelo amor de Deus, não me deixa ninguém subir ao palco pra rasgar minha roupa. - É o preço da fama, Betão. - Não me chama assim, ou então vai pra rua também. E aí, meu filho, o que vai te sobrar é um ou outro freela com o Haydn. Tá a fim?
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 13/02/2016.
* * *
Obras quase primas
JESUS, ALEGRIA DOS HOMENS
Sr. Johann, Eu tentei falar ontem, antes de ir embora pra casa, mas quando eu terminei meu serviço o senhor já tinha saído pra tocar órgão na missa das cinco. É que pela manhã, arrumando sua mesa, esbarrei no tinteiro aberto, que estava em cima da partitura que o senhor vinha escrevendo. Desculpa, mas não sobrou uma semicolcheia pra contar a história. Sei que o transtorno não vai ser grande, pois o senhor compõe muito o dia todo e é capaz de ainda estar com a melodia na cabeça. Agora, se me permite o palpite, eu penso que Jesus não é a alegria dos homens coisa nenhuma. Achei esse título muito desrespeitoso, com todo respeito. Jesus é a salvação, o redentor, o refúgio, o escudo, a fortaleza. Mas alegria soa estranho, parece meio caricato, não acha? Sacrilégio. Mas também é só um palpite, o compositor é o senhor, longe de mim me meter onde não sou chamada... Desculpa qualquer coisa. Ingrid
DOM QUIXOTE
Foi um vento noroeste que chegou de repente, muito forte, abrindo com violência a porta da oficina onde o livro iria começar a ser impresso. Voaram todas as folhas manuscritas do original, sobraram só duas que se enroscaram na roda de uma carroça. Era como se os moinhos de vento do livro se pusessem todos a ventar ao mesmo tempo. E com aquelas milhares de folhas perdidas lá se foram também Sancho Pança, Dulcineia del Toboso e tantos outros personagens que, junto com o próprio Dom Quixote, provavelmente fariam do livro um fracasso retumbante, que a muito custo chegaria a 100 exemplares vendidos. E para os parentes do Cervantes, com toda certeza. Novelas de cavalaria não despertam interesse, é um gênero a que ninguém mais pode acrescentar algo de original.
MONA LISA
- Vicenzo, pra quando que é pra fazer a moldura desse aqui? - Joguei pra terça à tarde, tem mais uns doze quadros na frente. Semana tá puxada. - De quem que é? - Um barbudão que mora aqui perto. Tal de Da Vinci. Você já deve ter visto, vive trazendo quadros pra gente emoldurar. - Humm, sabe que essa mulher aqui do quadro não me é estranha... não lembra a esposa do mercador? - Mas será? Enquanto o marido tá mercadando por aí, ela ataca de modelo pro barbudo? Esquisito, heim. - Não sei, pode ser que eu esteja enganado, mas eu acho que é ela, sim. - Pintura esquisita, o sujeito quis dar um efeito esfumado nos olhos e na boca, só que acabou virando defeito. Não está nem séria, nem sorrindo. Ficou no meio do caminho, né? Coisa de mirim, essa pintura deve ser de algum aluno do velho. - Então, e encomendaram a moldura mais cara. Desperdício. - Ai, olha aí o que aconteceu... A gente se distrai na conversa, ô meu Deus do céu... - O que é que foi? - Derrubei café aqui, bem no nariz da mulher. E a tinta ainda estava fresca, vê só o borrão que ficou! - Perdeu grande coisa, não. Quando o cliente vier aí você explica a história, pede desculpa e dá duas telas novas pra ele, como forma de ressarcimento. Fazer o quê, acontece. E como deve ser mesmo trabalho de aprendiz, o barbudo vai ficar no lucro. A primeira tela vai servir para esse aluno ruinzinho ter a chance de fazer algo melhor. A segunda, ele usa pra treinar outro molecote. - Boa. Acho que ele vai entender.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 06/02/2016.
* * *
Bobo e sua corte
Já reparou como os termos “Bobo” e “Tolo” têm sinônimos? Dentre tantos, “Doidivanas” sempre me chamou a atenção. Acho que foi lendo algum romance de cavalaria ou livro de Julio Diniz que vi a palavra pela primeira vez. Recorri a um pequeno e nada confiável dicionário e encontrei lá: “Doidivanas: o mesmo que Estouvado”. Fui em “Estouvado” e li: o mesmo que Doidivanas. Ou seja, o pai dos burros me fez de bobo.
Ser bobo vai além de ser otário. Tem também o sentido de ignorante, que contempla como sinônimos uma extensa família de quadrúpedes: besta, asno, jerico, jumento, jegue e simpatizantes. Sem falar da anta e da toupeira.
Fora do reino animal, um dos meus favoritos é “Bocó”, quase um arcaísmo atualmente. Melhor ainda é “Bocó de Mola”, que sugere um upgrade na acepção original (ou um downgrade, no caso).
Igualmente em desuso está o “Monte”. Largamente empregado na zona rural de São João da Boa Vista e adjacências nos anos 70, o vocábulo com toda certeza é oriundo do sul de Minas. Não sei se continua vigindo. Monte é, basicamente, o mala de hoje. Tem o significado de empecilho, estorvo que fica no meio, atrapalhando tudo e empatando a f...
Vamos ao “Tonto”. Ele é parecido com o bobo, mas não é a mesma coisa. O bobo é menos bobo que o tonto. Historicamente o bobo tem ofício definido. Como todos sabem, era ele quem divertia os reis nas cortes medievais. O tonto, por sua vez, é um Mane-Quarqué (que me perdoem meus leitores Manoéis ou Manuéis), um “Girolas” inofensivo. Por falar em Mané, há que se mencionar aqui os derivativos “Mané-Coco” e “Mané-Jacá”, além do conhecidíssimo “Mané-Patola”, a quem algumas populações ribeirinhas denominam simplesmente de “Patola”.
Temos ainda o “Boboca”, que imagino um semi-bobo, aspirante a bobo ou algo que o valha. É mais do que um bobinho, mas é menos que um bobo 100% genuíno. Na mesma classe estão os “Parvos”, a bradarem suas parvoíces em qualquer tempo e lugar.
A letra “P” é rica em sinônimos de lesos: temos, entre outros verbetes, “Palerma”, “Paspalho” e “Pateta” – todos com sentido semelhante e QI idem.
Na letra “T”, além do tolo e da toupeira já citados, encontramos o “Tapado”. Por analogia, podemos caracterizá-lo como um surdo-mudo neurológico. Nada é capaz de permear sua couraça obtusa. Pra cantar a “Florentina” do Tiririca ele precisa olhar a letra.
Capítulo à parte merecem o “Doido de Pedra” e o “Doido Varrido”, mas não serei eu o maluco a atribuir-lhes o sentido. Só imagino um napoleão-de-hospício esculpido em mármore e um serzinho com camisa de força se debatendo entre ramos de piaçava.
O “Abestado” é tão inclassificável que nem é aceito pelo Aurélio. O insigne dicionarista o cataloga como “Abestalhado” – que particularmente considero um tanto quanto articulado para o caso. Abestado é infinitamente mais besta que abestalhado, concorda?
Muitos termos possuem a mesma raiz etimológica, mas gradientes peculiares de significado. Compare “burro” e “burraldo”. O leitor logo perceberá que o burraldo puxa a carroça com mais força. O burraldo é o burro xucro, incorrigível, que deixa o rastro das ferraduras por onde quer que passe. O burro é menos pretensioso na escala búrrica - de vez em quando é capaz de falar coisa com coisa. Muito de vez em quando, mas é.
“Babaca” e “Panaca”. Mesmo que a grosso modo não pareça, entre eles há uma notável diferença. A grafia semelhante esconde na verdade um abismo conotativo. Explico: o panaca é mais lorpa que o babaca. Panaca ri das cenas de torta na cara; já o babaca não acha mais graça nisso, não. Na escala evolutiva, está um degrau acima do panaca. O máximo que o babaca faz é chifrinho nas fotos de festa de aniversário, embora afirme aos mais chegados que já abandonou o vício.
Pouca gente se dá conta, mas “imbecil” e “idiota” não são propriamente xingos. Idiotia e imbecilidade são estados psíquicos – patologias catalogadas e estudadas pela psiquiatria moderna. Psiquiatria que já vem se debruçando sobre os “Sequelados” e os “Sem-Noção” – neo-zuretas desse insano início de século 21.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 30/01/2016.
* * *
Antes que a noite desça
Eu nunca mais vou comer um bife acebolado como aquele. Nem tudo o que vinha de guarnição, que era farta e servia dois, três ou até mais, dependendo da fome: um vinil meio empenado do Cat Stevens, uma jaqueta jeans com um botom pela paz e mais umas vinte páginas do "Diário de Dany" - que seriam devoradas logo após o bife. Já soava anacrônico o "Diário de Dany" naquele fim de linha permissivo para uns poucos e inocente para quase todos, o rincão que por costume amávamos por não nos caber nada melhor. Mas quem poderia, aos 14, parar de lê-lo? O Diário que era, além de livro, espelho das acnes minhas e da vizinhança inteira. Seria bacana se pudesse dar um jeito no All Star cano alto antes que ela chegasse, pois todas as estrelas da noitinha que ia descendo não ofuscariam, de jeito nenhum, a nhaca que não chegava a ser chulé, mas que tomava conta e poderia atrapalhar aquele beijo. Aquele longamente arquitetado e que não veio, mesmo com o All Star bem longe na hora em que ela apareceu e fincou estaca vitalícia com seu patchouli. A estaca dela fincada no drácula de mim, mas nem pensar a minha nela. Não era de se deixar fincar, sedentária e obediente, do jeito que vovó sonhava e mamãe fazia gosto. Ia e vinha, leve e livre, como a asa delta da abertura da novela. Asas ou velas, não lembro. Mas tinha um mar lindo de globopixels cocacólicos na tela da TV de tubo, tão calendário de quitanda, um avesso 100% de favela. De volume em volume da Barsa, de degrau em degrau de igreja à espera dos fiéis para mais uma protocolar cerimônia de batismo, era uma dormência distraída e inconsequente. De coçar até enjoar e ir pela enxurrada em pedras portuguesas, rolando com cuidado para não corromper inutilmente a vida quieta. Hoje fica claro que não havia razão nem propósito em desafiar o conformismo dos velhinhos de charrete, aguardando no ponto o que nunca vinha nem poderia chegar. Porque aonde se tentasse ir, tudo daria sempre no mesmo lugar.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 24/01/2016.
* * *
Abduzido
O abade Nathanael começou, de fato, a acreditar cegamente em Deus depois da primeira volta no disco voador. Até então, sua fé um tanto vacilante fazia-o crer burocraticamente no Ser Supremo em 3 pessoas, conforme os catecismos, sem maiores contestações. Mas no íntimo o incomodava saber que o que sentia estava longe de ser adoração convicta, a despeito dos 28 anos de abadia. Parecia estar enganando a Deus, se existisse, e a si, de cuja existência também tinha sérias dúvidas. Até que o pequeno ser ocre e pegajoso lhe apareceu no claustro, lhe tomou pela mão e o levou, por entre nuvens, ao cerne de todas as perguntas até então sem respostas.
Cada pequena luz do painel da nave disparava uma lembrança. O machado rachando a lenha para mortificar a carne e elevar o espírito. O ofício em oração e canto, o banco duro, a geada emudecendo o sino, o genuflexório. O olhar do ET era para ele uma homilia muda, havia um sermão interminável sendo dito e escutado naquele silêncio solene e sem gravidade. Atravessavam os dois, em segundos, nebulosas inteiras. A abadia, em todo o seu esplendor, cheirando a vela e incenso, talvez fosse um delírio de madeira e mármore, e toda sua vida uma distração momentânea da qual acordava agora. Talvez fosse a vida de verdade um voo a esmo junto ao ET, e que tudo o que imaginava ter vivido não passasse de uma soneca tirada ali, na poltrona de co-piloto. Mas explicar como aquele o hábito puído, o crucifixo e o olhar contrito refletido nos instrumentos de bordo?
Assim foi aquela volta, a primeira de tantas. Entre uma lua e um sol qualquer do calendário, lá estava o serzinho ocre, como que cumprindo uma missão celeste, pronto para de novo levar consigo o abade.
Um belo dia, foi a vez do abade tomar o ET pela mão e levá-lo, escondido debaixo do hábito, para assistir à missa matinal. Desobedecendo a recomendação de ficar calado, ele soltou um sonoro "Ele está no meio de nós" após o padre dizer "O Senhor esteja convosco". Lançou um olhar cúmplice para o abade e sacou da algibeira extraterrestre um retratinho de família, com ele pequenino na pia batismal, rodeado pelo pai, a mãe e os padrinhos. Todos ocres. Todos boa gente como ele.
- Foto: Divulgação.
Marcelo Sguassábia© - 09/01/2016.
* * * |
|
|
HOME | ZINESFERA| BLOG ZINE| EDITORIAL| ESPORTES| ENTREVISTAS| ITAÚNA| J.A. FONSECA| PEPE MUSIC| UFOVIA| AEROVIA| ASTROVIA
© Copyright 2004-2016, Pepe Arte Viva Ltda.