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Página de Marcelo Sguassábia em Via Fanzine

 

Todos os textos:

Por Marcelo Sguassábia*

De Campinas-SP

Para Via Fanzine

© Direitos Reservados

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* Marcelo Sguassábia é redator publicitário e colunista de diversos jornais e revistas eletrônicas.

É colaborador de Via Fanzine.

   Seu blog: Consoantes reticentes. E-mail: msguassabia@yahoo.com.br.

 

 

Memorabília americana

 

 

Paletó à bolonhesa

 

Sim, é certo que até hoje se discute de onde e de quem partiram os disparos. O que não se discute é o fato de que é mesmo de JFK a carne moída respingada nos ombros do motorista que conduzia o presidente pelas ruas de Dallas. Mais de 50 anos depois, o sangue de Kennedy permanece tão reconhecível geneticamente no paletó quanto o esperma de Clinton no vestido daquela mocinha, frequentadora assídua do salão oval.

 

Perambulando pelo mundo com o laudo de DNA debaixo do braço, o filho do dono da relíquia promete para breve o lançamento de um blazer styled by Stella McCartney, com estampas reproduzindo fielmente as manchas de miolo espatifado do modelo original. Estima-se que pelo menos um em cada quatro cidadãos americanos deverá abrir espaço em seu closet para a nova peça, que já nasce cult e objeto de desejo até mesmo entre os não apreciadores de molho à bolonhesa – caso do vegetariano pai da estilista.

 

Após o desfile de apresentação da novidade prêt-à-porter para convidados, autoridades e imprensa internacional, o histórico paletó será leiloado, com lance mínimo presumido de três milhões e seiscentos mil dólares. O citado lance inicial só perde para as pantufas utilizadas por Abraham Lincoln na Guerra Civil Americana, bordadas artesanalmente com motivos cherokees, item arrematado por um magnata saudita de identidade até o momento desconhecida.

 

Módulo lunar de papel alumínio

 

O homem esteve, de fato, na lua? Definitivamente, não. Em www.afraudedoseculo.com.br os crédulos de plantão irão encontrar evidências contundentes do maior embuste de que se tem notícia, que por décadas vem logrando toda a humanidade.

 

Mas a verdade vai aos poucos aparecendo, não por bombásticas revelações, mas graças a pequenas peças de quebra-cabeças que, coletadas aqui e ali, vão formando o nada edificante quadro dessa falcatrua histórica.

 

Veja o caso de Thelonious W. J. Donaldson. Residente no Colorado e funcionário aposentado da agência espacial norte-americana, Thelonious guarda na garagem de sua casa, junto a um velho cortador de grama John Deere e a um feixe de tacos de golfe, exatos quatrocentos e sessenta e cinco cilindros de papelão – desses onde são enrolados papel alumínio. Afirma Donaldson que esse entulho acumulado tem valor documental incalculável, pois as folhas que os envolviam confeccionaram o módulo lunar da Missão Apolo 11.

 

Segundo testemunhos de funcionários da própria NASA na época, e que preferem não ser identificados, o trabalho era feito por três pessoas. Uma ia desenrolando o papel alumínio dos rolinhos, outra ia desamassando imperfeições na superfície e uma terceira afixava com fita adesiva as folhas metálicas no suposto módulo. Um procedimento tão cientificamente embasado quanto a montagem de alegorias na Marquês de Sapucaí.

 

Marcelo Sguassábia© - 03/01/2014.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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De menor

 

 

A menor AFS foi detida pelas autoridades alfandegárias brasileiras enquanto tentava atravessar a Ponte da Amizade com 150 arrobas de algodão doce, disfarçadas como enchimentos de travesseiros. A ré, que mordia nervosamente sua chupeta enquanto era interrogada pelo investigador JLB, trazia ainda duas marias-moles escondidas no meio de suas marias-chiquinhas.

 

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Mais um caso de falsidade ideológica vem se somar aos dezessete já registrados na cidade, somente neste mês. Desta vez, o palco da contravenção foi o Buffet Infantil Pequerruchos. ZBG, também conhecido no submundo da contravenção mirim como RT, foi flagrado na tentativa de subornar o palhaço VH para que este lhe fornecesse um suprimento extra de bolinhas pula-pula. Nos bolsos do meliante foram encontradas dezenas de falsas cadernetas de vacinação, para provável uso em variados golpes, com nomes como RSU, ELL, TMWO, XNH, WILG, MM, entre outros.

 

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Com a cara mais lambida desse mundo, o maior de idade Antonio de Souza, 89, tentava dar à polícia explicações que justificassem sua repugnante atitude de assistir ao "Homem de Ferro 2", no cinema da cidade. Barbado, grisalho e manco de uma perna, fazia papel caricato em sua frustrada intenção de passar pela catraca mascando um pirulito- chiclé e com boné de aba virada para trás. Aos gritos de "Pega maior, pega maior!!", a bilheteira TLCP foi a primeira a notar o golpe do velhote, que levou uma voadora no rosto e foi prontamente imobilizado por dois meninos judocas até a chegada dos policiais.

 

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Anda dando o que falar o ensaio fotográfico da Barbie nua, no Hopi Hari, para uma revista masculina. Não tanto a edição em si, cujos exemplares se esgotaram nas bancas em questão de horas, mas o making of das fotos. Os cliques do consagrado fotógrafo RGH se sucediam maravilhosamente, da montanha russa ao chapéu mexicano, até que alguém teve a ideia de clicar a Barbie como veio ao mundo no barco viking. Após sucessivos acessos de vômito, o médico do parque foi acionado e, procedendo a minucioso exame clínico, constatou a gravidez da boneca. Medicada, ela permanece desde então em casa, aos cuidados de uma enfermeira particular.

 

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Na última quarta-feira, a Sessão Ordinária da Câmara Municipal rendeu homenagem às vítimas do atentado terrorista ocorrido em 12 de outubro passado, quando um delinquente fantasiado de Bicho-Papão matou de susto mais de 80 cidadãozinhos em tenra idade. As famílias dos mortos receberam buquês de rosas, após realizarem manifestação no plenário pedindo prisão perpétua para o Papão de pelúcia. O malvado LPO cumpre atualmente pena em regime semiaberto, e por ordem do juiz distribui todos os sábados papinhas de legumes às crianças da periferia.

 

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Marcelo Sguassábia© - 21/12/2013.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

 

Made in China

 

 

Guarda-chuva à prova d’água

Um avanço sem precedentes, fruto de 14 anos e meio de pesquisas e testes exaustivos na região da Manchúria.

 

Nikei Mouse

Idêntico ao camundongo orelhudo licenciado pela Disney, que custa uma fortuna por aí. Além de mais em conta, já vem com leptospirose.

 

Controlador Remoto de Voo

Os profissionais que controlam o tráfego aéreo não precisarão mais estar fisicamente alocados em suas bases de operação. Nas suas casas, confortavelmente acomodados às suas redes e cadeiras-do-papai, eles poderão desempenhar suas tarefas com segurança e sem o stress típico dessa atividade. O artefato funciona com quatro pilhas médias. Embalagem com 29 mil pés, tamanho 41 e sem unha encravada.

 

Água do Rio Jordão (Jordan River Water)

Na verdade, ela não é proveniente do Rio Jordão, mas de um ribeirão próximo à cidade de Shangai, cuja água tem propriedades físico-químicas semelhantes à do famoso rio bíblico. Segundo Jing Ling Long, Gerente de Produto, “o que vale é a fé do crente”.

 

Comida Chinesa

Assim como os brasileiros não ingerem feijoada e acarajé todos os dias, também os chineses não se alimentam exclusivamente de yakisoba e rolinhos primavera. O chinês comum, ou seja, aquele igualzinho aos outros, come rotineiramente arroz, feijão, bife e batata frita. E é isso o que o consumidor encontra nesse lançamento, em caixas de 500g.

 

Grande Muralha de bolso

Miniatura em escala da única obra do engenho humano que pode ser vista do espaço a olho nu. Aparentemente essa muralhinha de resina não tem serventia determinada, o que nos autoriza afirmar que se trata de um artigo multiuso.

 

Rapadura

Concebida numa prisão de segurança máxima, por um chinês que pegou 20 anos de cana. A exemplo da similar nacional, ela é doce mas não é mole, não.

 

Negócio da China

Kit completo para montar sua loja de 1,99. Custa 1,99.

 

Caixão de defunto

Feito em isopor imitando madeira, sua constituição é mais frágil que as cestinhas de morango vendidas na beira da estrada. A grande vantagem é que, caso o defunto venha a despertar depois de enterrado, poderá libertar-se rapidamente de sua urna mortuária.

 

Motosserra

Produto ecologicamente correto. Ao contrário dos modelos conhecidos, que serram os troncos, essa apenas quebra o galho.

 

Fogão Meia-Boca

Depois dos congêneres de seis e quatro bocas, o mercado ganha agora essa versão desenvolvida especificamente para anões, pigmeus e velhinhos em fase de encolhimento. O consumo de gás, garante o fabricante, é reduzido pela metade.

 

Sacolinha de supermercado

Basta de esperar a sacolinha ficar cheia para arrebentar. Muito mais prática, essa já vem arrebentada, dispensando o penoso processo de enchimento.

 

Foto do Che

A mesma que ornamenta as paredes das repúblicas de estudantes e ilustra 97,3% das camisetas das feiras de artesanato. A única diferença são os olhos, ligeiramente puxados.

 

Mao Tsé Tang

Líder chinês em sucos concentrados de preparo instantâneo. Nos sabores mexerica, uva-passa e macaúba.

 

Marcelo Sguassábia© - 14/12/2013.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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Bandido Noel

 

 

Entalado em chaminé, velhote obeso é detido à meia-noite do dia 24.

  

Após o constrangedor flagrante e identificando-se apenas como Noel – que não sabemos ainda tratar-se do nome verdadeiro, apelido ou codinome – , o suspeito não portava documento algum, vestia roupas de cetim vermelho e foi imediatamente encaminhado à Terceira Delegacia Seccional da Zona Norte para interrogatório e demais averiguações. O enorme saco que trazia às costas, também em cetim vermelho, comportava uma incalculável variedade de mercadorias, em sua maioria brinquedos, todas elas sem Nota Fiscal. A evidente suspeita de contrabando levou o delegado a acionar a Polícia Federal. Interrogado pela autoridade aduaneira competente, o septuagenário não se defendia das acusações e se limitava a articular, de quando em quando: “É Natal, é Natal… Ho, ho, ho…”.

 

O detetive Lampreia, que costuma assessorar o delegado local nesse tipo de investigação, deduziu que Natal, a capital do Rio Grande do Norte, talvez seja ponto de receptação da muamba.

 

Somada à suspeita de contrabando, o idoso foi ainda indiciado por invasão de domicílio, sendo o delito testemunhado por centenas de moradores das vizinhanças da casa invadida. Questionado sobre a razão que o motivou a praticar tão reprovável ato, Noel respondeu: “É o nascimento de Jesus”.  Foi quando o Cabo Jonas comentou com o detetive Lampreia lembrar-se de um meliante, que há oito anos fora detido e fichado na mesma delegacia sob acusação de latrocínio, cujo nome era Deoclécio Nascimento de Jesus. Estabelecia-se assim mais uma conexão suspeita, que complicaria ainda mais a situação do barbudo e também envolveria Deoclécio como provável cúmplice ou co-autor da façanha.

 

O interrogatório, ou a tentativa de, prosseguiu madrugada adentro e ao longo de todo o dia 25, mas o misterioso caso permanece inconclusivo até o momento. O que mais intriga os investigadores é o fato de que, fosse Noel realmente um bandido, não vestiria traje tão berrante e espalhafatoso, pois obviamente sua ideia seria a de não chamar a atenção.

 

Nesse meio tempo, o Cabo Jonas levantou a hipótese de formação de quadrilha entre Nascimento de Jesus, Noel e o dono da residência, que até então mantinha-se a salvo de maiores suspeitas. Argumentou o Cabo que o envolvimento do morador era muito provável, pois era em sua casa que Noel tentava adentrar com o contrabando. E que se, ao invés de entrando, Noel estivesse saindo com as mercadorias pela chaminé (o que a princípio contraria a lei da gravidade), teríamos o dono da casa indiciado como receptador de produtos sem procedência, e o velhote Noel acusado de ladrão de muambeiro.

 

Aos munícipes que tiverem alguma pista ou informação que ajude a elucidar o caso, pedimos a gentileza de encaminhá-las, ainda que anonimamente, às nossas autoridades.

 

Marcelo Sguassábia© - 07/12/2013.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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Necrópole News

 

 

VENDO JAZIGO LINDO DE MORRER

Vista privilegiada. De frente para o mausoléu dos três anjinhos barrocos (família Ponce de Lutierre), sol da manhã, bela área de jazer para descanso eterno. Capelinha com varanda e gavetas com capacidade para 16 defuntos em decomposição simultânea. Financiamento CEF – Caixão Econômico Federal, em 30 anos, com recursos do Programa “Minha cova, minha vida”.

 

GALINHA MORTA NO CEMITÉRIO DE ANIMAIS. SÓ HOJE!

Na quadra dos tamanduás. Lugar tranquilo, floricultura a 50 metros. Morra perto de tudo o que você precisa. Visite decorado, confira as facilidades e feche negócio antes que seja tarde demais.

 

ALÇAS DE CAIXÃO SOBRESSALENTES

Para aqueles entes queridos mais queridos que a média. Não deixe faltar alguns pares a mais, especialmente para os advogados que chegam ao velório doidos para pegar, além da alça, o inventário do finado. Disponíveis em bronze e prata maciça.

 

e-PÊSAMES

Com o corre-corre do dia-a-dia, é impossível estar em vários enterros ao mesmo tempo. Envie coroas de web-flores e acenda velas virtuais por intenção do falecido, do seu tablet ou celular. As mensagens são transmitidas real time e assistidas pela família em telão, no recinto do velório.

 

CELULAR COM BATERIA PERPÉTUA

O smartphone fica com a tela acesa o tempo todo, bem próximo aos olhos do defunto, sendo o dispositivo acionado alguns minutos antes do sepultamento. Caso venha a ressuscitar debaixo da terra, o decujo terá a chance de chamar alguém em seu socorro. O fabricante não se responsabiliza se a pessoa do outro lado da linha vier a morrer de susto.

 

CARRO FUNERÁRIO

Veraneio preta, ano 71. Único dono, nunca bateu. Jamais pegou estrada de terra e só anda em ponto morto. IPVA pago e licenciado 2013. Faço desconto por só ter o banco do motorista. Seguro muito barato – pouco visado pelos ladrões.

 

MÉDICO LEGISTA – ATENDE A TODOS OS CONVÊNIOS

Necrópsias e laudos periciais em geral. Forneço atestado de óbito para justificar faltas no trabalho.

 

AQUI JAZZ

O seu barzinho mal assombrado, ao lado do crematório. Música ao morto de segunda a sábado.

 

EXCURSÃO – FERIADÃO DE FINADOS

Três dias e duas noites com café da manhã e traslados para os cemitérios inclusos nos pacotes.

Confira os roteiros: Cadáveres Espetaculares. Tour paulistano pelos cemitérios da Consolação, do Araçá, de Itaquera, da Penha, da Saudade e do Gethsêmani. Macabros Inesquecíveis. Tour carioca pelos cemitérios do Caju, de São João Batista, de Jacarepaguá, do Realengo e de Irajá.

 

SENSOR DE PRESENÇA DE ENCARNADOS

Invenção com patente requerida, este maravilhoso produto possui tecnologia baseada nos populares sensores “fiu-fiu” vendidos pelos camelôs – aqueles que assobiam quando alguém passa na frente. Instalado no túmulo, o sensor identifica o ser vivente que chegue para uma prece. A diferença é que, ao invés do “fiu-fiu”, o sujeito escuta uma saudação de boas- vindas gravada pelo morto, que cumprimenta o visitante e agradece a reza.

 

Marcelo Sguassábia© - 30/11/2013.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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Alexanderplatz

 

 

I

Me diz: quando é que eu ia imaginar topar contigo em Berlim, se na minha cabeça aquele você de ontem, com gosto amanhecido de cerveja e de preguiça, ainda estava lá onde havia te deixado, montando cavalo de carrossel e de aparelho nos dentes? Como é que pode me aparecer assim, sem me dar chance de aparar a barba, re-nata de sítio extinto?

 

II

Meio fêmea-fúria, meio mulher-nirvana, contigo no carro roubado. A cada troca de marcha a minha mão roçando o vestido, do joelho para a coxa. Sentia que te levava às nuvens que inexistiam no céu daquele dia, doida varrida envolta em pouca vergonha. À falta de boas moitas, ia no acostamento mesmo, o sol sem pena fervendo a lata. A carne exposta. O almíscar vencido.

 

III

Brincou comigo, te encontrar tão fora de contexto. Alta, linda, senhora da vida. Sem lembrança nenhuma da mão boba do câmbio e dos cavalos do parque. Agora, os dois defronte, querendo se livrar da falta do que dizer. E o teu quase sorriso, de esquálido protocolo, feria o meu desajeito. Estátuas em Alexanderplatz.

 

Marcelo Sguassábia© - 23/11/2013.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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O não ser

 

 

Eu sei que foi mais ou menos desse jeito, querendo jogar uma água sanitária no mofo acumulado, que saí pra rua sem rumo nenhum. Pensando em não pensar em nada, só ouvindo um ou outro estalinho de graveto no caminho e deduzindo: isso é um estalinho de graveto no caminho.

 

Eu sei que a intenção era boa e honestamente me empenhei, mas ao primeiro graveto estalado me chega sorrateiro o chato interrogativo e suas vãs divagações. E me fala do abismo entre a finitude do ser e a infinitude do tempo/espaço, diz que é da natureza humana colocar termo, ordem e dimensão a tudo. Argumenta sobre o cabimento, pois tudo há de “caber” em ensaios demonstráveis.

 

Eu sei do inapelável desalento desse ponto de vista. Considerando-se que a vida seja mesmo uma só, ela é um ridículo intervalo entre a eternidade que passamos não sendo e a eternidade vindoura onde continuaremos a não ser. Ao invés de seres, na verdade somos “não seres”, a não ser por algumas décadas. E tem gente que não aproveita essa rara exceção que o caos nos abre. Pior: há os que se matam, voltando prematuramente ao nada. É muito desapego, é quase fazer troça com o acaso ou com o Todo Poderoso.

 

Eu sei o quanto é difícil imaginar o que quer que seja sem um começo. Você saber que o tempo vai prosseguir indefinidamente a partir de agora, ainda vá lá. Mas você aceitar o infinito de tempo que houve antes de agora, fica bem mais complicado. Algo sem fim é algo mais fácil de conceber que algo sem começo. Uma coisa é começar do zero, como todas as coisas aparentemente começam. Outra é não ter zero. Como é que pode?

 

Não é razoável supor que a nossa cachola abrigue, em tão reduzido espaço, a explicação do universo. Ainda assim, astrônomos se debatem e agendam simpósios internacionais para deliberarem, soberanamente, se Plutão continua planeta ou se é rebaixado a aspirante. Como se isso diminuísse o peso das interrogações que há milênios levamos às costas.

 

Eu sei que entrei na primeira igreja que me apareceu na frente. Um grupo de oração seguia desfiando seu rosário. Beatas de véu, homens de terno, como que prontos para uma Festa do Divino. Rezei uma Ave-Maria e um Pai-Nosso, rogando a todos os santos que me tirassem da aflição inútil. Com o perdão dos céticos, que às vezes perdem a razão pelo excesso dela, eu quero é nuvenzinhas, tronos celestiais, trombetas de serafins, mantos diáfanos. E faço questão que a autenticidade do Santo Sudário seja confirmada pela ciência. Que divina delícia esse conforto das abóbadas repletas de anjos gordinhos com cabelos encaracolados, os ecos de uns poucos sapatos na catedral vazia, às duas da tarde de uma segunda-feira. Ou os ofícios dos domingos, os estandartes, cálices bentos e andores das procissões, os tapetes de serragem e palha de arroz tingidos de anilina para o Corpus Christi. O céu e o inferno, Adão e Eva, o bem e o mal. Quero o padre de aldeia, que vem dar comunhão em casa e acaba ficando para o frango com polenta.

 

Marcelo Sguassábia© - 16/11/2013.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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O livro dos segredos do taco

 

 

O título da obra, ao contrário do que o senso comum poderia supor, não é uma compilação de receitas baseadas na iguaria mexicana. Muito menos trata-se de um manual de regras e jogadas ensaiadas daquele jogo de rua, tão comum nos anos 60 e 70. Temos aqui uma publicação única e de valor incalculável, através da qual a humanidade finalmente tem acesso a um dos mais impenetráveis mistérios de todos os tempos: a 12ª profecia de Mazzaropi, tida como perdida há muitas décadas, a despeito das inúmeras expedições empreendidas por arqueólogos do mundo inteiro a Taubaté, onde o genial caipira passou boa parte da vida.

 

Deu-se a descoberta por acaso, com um golpe de picareta no chão da casa em que vivia o ilustre cômico. A residência passava por uma reforma geral, e a equipe que removia os tacos do living para trocá-los por carpete de madeira descobriu, cuidadosamente acondicionado abaixo de um deles, o precioso documento dobrado em oito, assinado e autenticado por Mazzaropi no ano de 1967. Isolada a área por forte aparato policial e impedido o trânsito num perímetro de doze quarteirões adjacentes ao precioso achado, os peritos atestaram a autenticidade da relíquia mas se abstiveram de qualquer comentário quanto ao seu conteúdo.

 

Das 16 profecias deixadas pelo artista, 15 já eram de conhecimento público. A mais amplamente divulgada, catalogada como a de número 3, versava sobre o acidente de helicóptero sofrido por Ulisses Guimarães e dona Mora, fatidicamente previsto por Mazza 22 anos antes de acontecer. Outras bastante conhecidas tratam da extinção do Tigre de Java, em meados da década de 80, e do fim do longevo programa televisivo “Almoço com as Estrelas” apresentado por Ayrton e Lolita Rodrigues na TV Tupi, emissora tão finada quanto o citado Tigre de Java.

 

Todas, sem exceção, foram confirmadas nas datas previstas. Nenhuma delas, porém, causou tanta controvérsia quanto a nona. Nela, o lampejo profético do nosso Jeca cinematográfico predizia o extravio perpétuo da Profecia 12 – justamente a que estava sumida. Até aí, Mazzaropi continuava acertando em cheio; mas o fato de ter sido encontrada agora, de certa forma contradiz o enunciado da Profecia 9, colocando em sérias dúvidas a reputação de Mazza como profeta. Resta saber do que fala a Profecia 12, o assunto do livro em questão. Talvez seja, justamente, a resposta para este flagrante paradoxo. Comprem o livro, leiam e saibam.

 

Marcelo Sguassábia© - 09/11/2013.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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Companheira solitária

 

Cumprida a pena de 35 anos na solitária, pelo assassinato coletivo de 48 velhotas cambojanas, Emiliano Skud, também conhecido como O Perverso do Marrocos, surpreendeu a mídia mundial com a insólita decisão de não abandonar seu cubículo escuro.

 

“Por estranho que possa parecer, a solidão me proporcionou encontros memoráveis”, disse ele, comunicando-se de dentro da cela para uma multidão de repórteres com os ouvidos grudados à porta. “Fui finalmente apresentado a mim mesmo, e não estou disposto a abrir mão do autoconhecimento que ganhei nesses anos todos. Nos primeiros tempos, cada risquinho que fazia mentalmente nas paredes do meu cérebro eram os dias já vencidos cumprindo pena. Depois, esses mesmos risquinhos ganharam outro significado. Passaram a ser os dias ganhos nos meus mergulhos interiores de regeneração. Foram momentos de proveitoso tédio, que jamais serão esquecidos. A vida devassa que levei e os crimes que pratiquei nada mais eram que tentativas de fugir da minha verdade e ouvir tudo o que o silêncio e a escuridão precisavam me dizer”.

 

No decorrer dessas três décadas e meia, Emiliano teria sido por quatro vezes beneficiado com o regime de prisão semiaberto, por comportamento exemplar. Nunca se ouviu uma tosse, um pigarro, um bocejo que fosse vindo do seu compartimento. Declinava de todas as oportunidades de banho de sol no pátio do presídio e agradecia polidamente os incontáveis indultos de Natal, recusando-se a usufruir do benefício.

 

Ao que se sabe, uma única vez o ilustre detento rompeu a sua habitual e absoluta discrição. Há aproximadamente sete anos, Skud acionou a campainha chamando o carcereiro, para avisá-lo de que a goteira, instrumento de tortura psicológica, não estava mais pingando. Solicitava providências para que se procedesse ao reparo o quanto antes, pois sem ela não conseguia mais se concentrar em seus processos meditativos. Argumentava ser a goteira um direito seu, previsto na condenação assinada pelo juiz.

 

Sua conduta irrepreensível muitas vezes colocava em situação embaraçosa os delegados e juízes diretamente ligados ao seu caso. Certa ocasião, ao saber que seria levado à força para fora da colônia penal, Emiliano Skud anunciou, via bilhete passado por debaixo da porta da solitária, que praticaria um harakiri em frente às câmeras, no momento em que cruzasse os limites da prisão. Contradição das contradições: a faca conseguida por Emiliano, que todos os outros presos utilizariam para se libertar da cadeia, seria uma arma para mantê-lo lá.

 

Sem outra alternativa, a direção do presídio voltou atrás e decidiu mantê-lo em sua amada solitária. Foi por essa época que ocorreu a Skud a ideia de usar sua faca para assassinar alguns de seus colegas. O estratagema parecia perfeito: aceitaria finalmente sair para um banho de sol matinal e consumaria a chacina, o que o manteria por mais umas boas décadas em seu dolce far niente sombrio e gotejante. Porém, caiu em si e lembrou-se a tempo do novo homem em que havia se transformado. Deu um longo suspiro e mergulhou em sono profundo.

 

Marcelo Sguassábia© - 02/11/2013.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

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Supermercado Volte Sempre

 

Não tarda e chega de novo a hora dela: a compra de mês.

Lá vão os dois. No caminho, o marido vai pensando na série interminável de procedimentos à espera: da prateleira para o carrinho, do carrinho para o caixa, do caixa para o carrinho de novo, daí para o porta-malas, do porta-malas para o carrinho do prédio, do carrinho do prédio para a despensa de casa. Haja saco e saquinho de supermercado. Aliás, esses sim, resistem a tudo. Se você colocar mais que uma pasta de dente em cada um, a alça arrebenta.

É assim há 20 anos, todo santo dia 15, a melhor data para a fatura do cartão. Multiplicando-se os 20 anos por 12, temos a fantástica cifra de 240 compras de mês no decorrer do período.

Chegaram. É claro que o carrinho deles tem a roda enguiçada, que fica puxando pra um lado. Enquanto está vazio, tudo bem, quase não dá pra notar o incômodo. Mas à medida que o carrinho vai enchendo, o manobrista vai se enchendo junto.

Um carrinho vazio de supermercado nunca está vazio de tudo. Há sempre um raminho de brócolis esmagado, uma etiqueta de sutiã 54 e outras coisinhas do gênero, que podemos chamar de restos mortais da batalha anterior. Às vezes tem também a lista de compras da pessoa que usou o carrinho antes de você. Aquela listinha bem caseira, dobrada em quatro. Os ítens encontrados estão ticados ou riscados. Pode ser o contrário – o que está na lista é o que ainda tem em casa, pra lembrar de não comprar. Uma dica: se você estiver sem sua listinha pessoal, leia a do usuário anterior. Talvez você se lembre de alguma coisa que tinha esquecido.

Exemplo de lista típica, de autor anônimo:

Guardanapo – trazer 4 do + barato.

Pó de café – ñ comprar.

Bolacha de recheio – tem 2

Pipoca de microondas – pegar aquela do palhacinho, ñ lembro a marca.

E por aí vai. São todas mais ou menos assim.

O locutor anuncia uma oferta relâmpago. Ela lembra quando, em 1992, quase testemunhou o soterramento de uma velhinha num quiosque promocional de leite condensado. No empurra-empurra, entornaram a anciã no mar de latinhas, com as pernas pra cima e as anáguas à mostra.

Olha pra um lado, olha pro outro, ninguém está vendo. E ele devolve o Detefon Mata-Tudo na gôndola do grão-de-bico. Quem não faz isso? Mês passado ele encontrou um par de Havaianas tamanho 41 em cima de um filé de merluza, em oferta a 9,90 o quilo.

Por mais unido que seja, há o momento da separação do casal no supermercado, na seção de cosméticos. Ali a mulher vai passar pelo menos 45 minutos. Sabendo o tempo que vai perder, ele vai para aquele corredor perto das rações de cachorro, onde tem broca, estopa, cera automotiva e chave de fenda. É o habitat do macho de bermuda, camiseta regata, chinelão e barba por fazer.

Fim das compras, resta pegar a fila do caixa. Todas estão mais ou menos do mesmo tamanho, é preciso escolher uma. Meia hora depois eles percebem que é justamente essa uma que não anda. Todas as filas vão de vento em popa, menos a deles. É quando eles reparam no crachá da funcionária: “Em Treinamento”. Azar, agora é tarde pra entrar em outra fila.

Enquanto um vai colocando as coisas na esteira, o outro vai embalando. Mas aí a patroa lembra: “Nossa, esqueci o rodo!”

Que legal. Nada mais prático pra embalar e pra enfiar depois dentro do carro. Lá vai o maridão correndo feito um fugitivo da polícia, atrás do rodo esquecido. Chega lá e se depara com 16 tipos de rodos diferentes: com cabo de madeira, sem cabo de madeira, de alumínio, com borracha grande, com borracha pequena, com duplo borrachão, com triplo borrachão e exclusiva fita deslizante. Pega o que parece mais apresentável e nem olha o preço – a fila está parada, esperando por ele.

Mais surpresas. A água sanitária vazou bem em cima da baguete. O coalho do queijo fresco encharcou o sabão em pó. A cartela de danoninho, que estava lá no fundo, foi impiedosamente massacrada por uma PET Xereta de 2 litros. Acionado o fiscal do estabelecimento, o marido explica a história, diz que não foi culpa dele. Em vão. Vai ter que pagar pelo que fez e que não vai comer.

Na saída, cadê o carro? A3, C5, B4? Ficam zanzando a esmo pelo labirinto de automóveis. Encontrado o Corcelzinho, guardam as compras e chegam à cancela.

- Benhê, o cartão do estacionamento.

- Ué, pensei que estava com você…

Inspeção no porta-luvas, embaixo dos bancos, nos bolsos, na bolsa…

Pensa que acabou? Imagina. É como diz o saquinho – “Volte Sempre”. Dia 15 do mês que vem tem mais.

 

Marcelo Sguassábia© - 26/10/2013.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

*  *  *

Consultório sentimental

 

- Promete que fica só entre a gente?

- Lógico. Prometo, em nome da ética médica.

- Então tá. É que… estou tendo um caso clínico.

- Jura? Alguém da área?

- Ahã. Olha só essa radiografia que a gente tirou no último fim de semana prolongado.

- Nossa, que pulmões. E a faringe, então… Esse pomo de adão, tão proeminente. Que sorte a sua heim, colega. Isso aqui é objeto de estudo pra um simpósio internacional. Merece abordagem multidisciplinar.

- Quando olhei aqueles globos oculares, sem nenhum grauzinho de miopia ou astigmatismo, quase tive uma síncope. Foi adrenalina na veia. Observe essa ressonância magnética. Fala a verdade: que omoplata! Dá pra ficar assintomática? Você sabe que quadros dessa natureza provocam desde espasmos involuntários até a perda momentânea da consciência.

- É, ele é muito parassimpático.

- Parassimpático? Aquilo é uma aula de anatomia. Desequilibra o nível de estrógeno de qualquer mulher.

- E aí, conta. Partiu pra um exame mais detalhado? Na sua residência médica ou na dele? Conta, conta.

- Fiquei anestesiada. Quando dei por mim, já estávamos na maca.

- Nossa, assim na primeira consulta?

- Pra você ver. Confesso que no começo foi difícil me manter estável. A pressão chegava a 25 por 13, o coração a 140 por minuto.

- E daí pra frente? Qual a posologia?

- No mínimo três vezes ao dia.

- E nada de repouso entre uma e outra?

- Nadinha, menina. Uma febre que não passava. Depois os sintomas foram desaparecendo, e toda aquela convulsão toda evoluiu para uma forte e inexplicável letargia. Parecia uma espécie de maleita, com frequentes episódios de apneia.

- É, já vi relatos semelhantes. E aí, deixou de apresentar sinais vitais?

- Falência múltipla. Estado terminal, ao que tudo indica.

- Marcou retorno?

- O pior é que não. Ele me usou, não vou me conformar em ser mais uma na história clínica dele.

- Não estressa, não. E se por acaso ele agendar um horário, faz um charme. Dá uma de difícil, deixa o bonitinho na sala de espera. Como eu fiz com aquele judoca tarja preta, que me causava dependência. Eu sei como são essas coisas. Precisando de um ombro amigo, estou aqui de plantão.

- Valeu, obrigada mesmo.

- Só me promete uma coisa.

- Fala.

- Se der enjôo, manda ele pro meu consultório. É sempre bom uma segunda opinião…

- Sua Hipócrates!

 

Marcelo Sguassábia© - 18/10/2013.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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Cuidado: não-venenoso!

 

 

- Quero todo mundo na minha sala agora. Eu disse agora!

- Nossa, o que é que aconteceu?

- Recebemos um lote enorme de veneno vencido, ou seja, não fatal. Estamos rastreando todo o processo para detectar onde foi o erro e processar o fornecedor.

- E como é que a gente faz agora? A história é contada milhares de vezes por dia… se não tiver maçã envenenada, como é que vai ser?

- Pelas barbinhas dos sete anões, chefe! Isso aí é uma catástrofe de dimensões mundiais.

- Cala essa boca, vai, não precisa ficar me lembrando disso. Eu sei o quanto estou ferrado, os acionistas vão me cobrar explicações.

- Olha só, ligação de Singapura informando que o filme travou bem no ponto em que a madrasta entrega a maçã para a Branca de Neve. Houve confusão no cinema, tiveram que chamar a polícia, a plateia queria os ingressos de volta. Tá feia a coisa por lá.

- Calma, calma pessoal. A gente sabe que, na história, o veneno não é pra ser tão fatal assim. É só um nana-neném suficiente pra Banca ferrar no sono até a chegada do príncipe. Podemos tranquilamente substituir o veneno por uns dois ou três Lexotan de 6mg que dá no mesmo…

- Tá, mas o estrago está feito. Ou seja, onde quer que a história tenha sido contada nos últimos dias, a coisa ficou sem pé nem cabeça. A responsabilidade é nossa!

- Bom, aí já não é da alçada do meu departamento. Mas, daqui pra frente, se acharem a ideia do Lexotan boa, eu conheço um pessoal que fornece o genérico. Fica bem mais em conta. Até onde eu sei, eles têm um galpão lotado pra pronta entrega, e a data de validade é pra 2016. Resolve o problema por um bom tempo.

- Como saída emergencial, acho que pode ser. O problema é que a tolerância da mocinha ao medicamento tende a aumentar. Mesmo dando mais sossega-leão pra ela, a expectativa depois de algumas semanas é que ela desperte antes da chegada do príncipe.

- Gente, notícias frescas do norte da Itália. A história estava sendo contada hoje de manhã, para um grupinho de jardim da infância de uma aldeia. Estão dizendo que a porca da princesa traçou a maçã até o talo, deu um baita de um arroto, cuspiu as sementes na rua e foi multada por um fiscal da limpeza urbana. A situação está fugindo do controle. Estamos desmoralizados. Os Irmãos Grimm devem estar se virando nas catacumbas.

- Tem mais. Chegou um email de São Félix do Araguaia informando que a Branca comeu a maçã, saiu pra rua e se enrabichou por um atendente do Subway local. Ficaram conversando num banco de praça e tomando energético com tequila, enquanto o príncipe chegava a todo galope. Ele arrombou a porta da casa dos anões e, claro, não viu caixão nenhum. Começou a esbravejar, dizendo que aquilo não estava no script e que ia pedir uma indenização milionária por danos morais.

- Mais essa… cancela a compra do lote de Lexotan, ou então não vamos ter grana para o acerto com o sacana do príncipe. Vamos tentar uma conciliação no juizado de pequenas causas.

- Pequenas causas? Só se a pendenga fosse com os anõezinhos. No caso do príncipe, grandalhão do jeito que é, vai ser difícil. Fora que ele tem uma renca de advogados reais.

- Se o advogado dele fosse bom mesmo, ele já teria escapado da história. Ou conseguido um Habeas Corpus.

- Bom, lá isso é.

 

Marcelo Sguassábia© - 12/10/2013.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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Sorveteria Drummond

 

 

Tome aqui uma pazinha, experimenta o de nozes com coco queimado. Ninguém em Itabira faz deste sabor, olha como é cremoso. Um pingo de cobertura de chocolate caiu sobre o original de "Tardes de Maio", outro dia. Sinal dos deuses de que devo descartá-lo, é a mancha da reprovação de alguém que lá de cima é melhor em crítica literária do que eu em poesia. Vai, Carlos, ser sorveteiro na vida. Darei ao "Tardes" o mesmo e infeliz destino da "Máquina do Mundo" - o cesto de casquinhas espatifadas.

 

Sigo vagaroso, de mãos pensas, apertando o passo e olhando tenso para o relógio. Daqui a pouco acaba a missa, e Deus deu a este magricela uma sorveteria bem no caminho de volta dos fiéis para suas casas. Escalda, sol, nos cangotes dos meninos que imploram picolés a todo custo, me arruma aí um bom faturamento para compensar a baixa inspiração. Imagina, dona, isso acontece. Já vou mandar passar um pano de chão rapidinho, fique tranquila. Cachorro não sabe quando e onde pode mijar...

 

Para de uma vez com esse negócio de escrever, Carlos, bota todas as palavras pra gelar. Que se resuma a escrita, no seu caso, a anunciar os sabores na lousinha, a banana split em oferta, a calda de caramelo grátis pra quem escolher pistache de segunda a quarta.

 

João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que amava todos os nossos sundaes repletos de cerejas ao maraschino e farofa de nozes. Façam como a Lili e venham se deliciar, com a família e com os amigos, no mais refrescante oásis da cidade.

 

E agora, José? E agora nada, é abanar as moscas e congelar os dias nesta pasmaceira que mal dá pro gasto. O aluguel vai vencer, a matéria-prima vai subir, a conta de energia está pela hora da morte. Itabira é mais que um retrato na parede, é o ganha-pão deste um que não teve peito de trocar o ferro das montanhas pelas espumas do mar. Mas saio no lucro, com meus sorvetinhos melados e nada necessários. Pelo menos não viro estátua e nem me roubam os óculos.

 

Marcelo Sguassábia© - 08/10/2013.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

 

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Testamento de Hypólito Rufino Peixoto

 

 

Eu, Hypólito Rufino Peixoto, no gozo de meus direitos e de minhas plenas faculdades mentais, com o intuito de coibir litígios e desavenças acerca do meu espólio, venho de livre e espontânea vontade, por meio deste instrumento, deixar disposta a partilha a meu gosto, conforme abaixo descrito.

 

À Justina, companheira abnegada e fiel em minha longa enfermidade, deixo uma imensa gratidão, todo o meu afeto, o São Francisco de gesso que fica no corredor, o monóculo com a Nossa Senhora Aparecida, a certidão de casamento e o retrato da lua-de-mel em Poços de Caldas.

 

Ao meu cunhado Leléu, tido e havido nesta terra como um burro pronto e acabado, deixo minha sela e respectivo arreio, que lhe cairão bem sobre o lombo. À minha irmã Cinira, que gastou a vida a serviço desse viciado em truco, lego rédea e um par de esporas, já que um burro com livre arbítrio é a pior das ameaças à sociedade organizada.

 

À minha sogra, junto a quem tenho tantas dívidas morais e espirituais, transmito também as dívidas materiais – as já vencidas, as presentes e as que doravante venham a surgir em meu nome, seja como compromissário ou como avalista.

 

Não abandonarei à própria sorte aqueles que as más línguas chamam de “frutos de união carnal espúria”, ou seja, os bastardinhos que espalhei por essas plagas. Saibam todos que o seu genitor não lhes negará o amparo e o devido quinhão, ainda que hipotecado, na forma de um alqueire e meio de capim-napiê (Pennisetum purpureum), cultivados no sítio.

 

O celular pré-pago, juntamente com os R$ 4,36 de crédito remanescente, fica para meu capataz Onofre. Uma liberalidade de minha parte para recompensá-lo pelos valorosos préstimos ao longo de 38 anos. Ele que ouviu de mim tantos desaforos, xingamentos intempestivos e acusações levianas, agora merece falar um pouco.

 

Quanto ao aquário da sala, alvo certo de acirrada disputa, proponho aos herdeiros que amigavelmente se dêem mútua quitação da seguinte forma: Justina fica com os peixes ornamentais, Cinira com a bombinha de ar, Onofre com o filtro, Leléu com o recipiente de vidro e os bastardos com os pedriscos que ficam no fundo.

 

OUTROS BENS E HAVERES

 

Suínos e bovinos

 

Três gomos de linguiça (de procedência insuspeita e com carimbo do SIF), dois quilos e meio de carne de segunda e mais meia panela de coxão duro duplamente moído, que estão no gavetão de baixo do freezer. Façam disso o melhor e mais rápido proveito que puderem.

 

Aplicações

 

Inseticidas, fungicidas e fertilizantes devem continuar sendo aplicados na minha hortinha de almeirão e couve, à proporção de 1:1000. O pulverizador encontra-se na tulha, e não compõe este testamento por estar com a tampa do tanque girando em falso.

 

Ações

 

Tanto a ação de despejo, da qual minha família será vítima devido aos aluguéis atrasados, quanto as ações trabalhistas, provavelmente a serem movidas pelo Onofre e seus subordinados, deverão ser administradas pelo meu advogado – que para tanto será regiamente remunerado pela providência divina, em encarnação vindoura.

 

Grãos estocados em minha propriedade

 

Uma embalagem de milho para pipoca da marca Yoki, com prazo de validade a esgotar-se em 25 do corrente.

 

Um tupperware rachado transversalmente, acondicionado em geladeira, contendo feijão preparado na véspera da elaboração deste documento.

 

Ambos os bens serão partilhados igualmente entre meus herdeiros, legítimos e ilegítimos, em frações ideais de 1/35 (um trinta e cinco avos) para cada um, com escritura definitiva lavrada e registrada em cartório.

 

Coleções

 

Todos os meus gibis, do Carlos Zéfiro e do Cebolinha, as Seleções do Reader’s Digest de 1945 a 1961 e os Almanaques do Biotônico Fontoura deverão ser catalogados por bibliotecário habilitado e experiente. Em seguida, esse rico acervo deverá compor a “Fundação Hypólito Rufino Peixoto”, entidade que terá como missão o fomento cultural em nossa região.

 

Por fim, meu último, porém não menos valioso bem: Edileuza, enteada do Zózimo da botica. Teúda e manteúda desde as quartas-de-final da Copa de 70, com casa montada e conta no armazém, não pode ficar à míngua de uma hora para outra. Todos os meus demais pertences, aqui não arrolados, passam com o meu falecimento às suas mãos.

 

Perdão, Justina, pela fabulosa e imerecida galharia que fiz brotar em sua cabeça, mas não soube refrear os meus instintos frente a tão roliça criatura. Agora está tudo às claras, não há mais nada a esconder. Mas assim como não se chuta cachorro morto, também não se estapeia defunto, Justina. Releve e viva em paz o resto dos seus dias.

 

Marcelo Sguassábia© - 28/09/2013.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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Plano da operadora

 

Obra de ficção* 

- Vamos surrupiar dois centavos, além dos seis de cada ligação.

- Mas e se perceberem?

- A gente devolve só para quem der pela falta e reclamar. E pra reclamar vai ter que esperar a musiquinha enlouquecedora até cair a ligação.

- E se o lesado ligar de novo?

- Mais uma hora, uma hora e dez da mesma musiquinha. Tortura de solitária mesmo. Aí a gente programa para a ligação cair outra vez. Na terceira tentativa, é sinal que o sujeito está mesmo determinado. Então atendemos, assumimos a cobrança indevida como falha de sistema e fazemos o estorno em créditos. Mas essa medida extrema, pelas nossas projeções, corresponderá a 0,3% das tentativas. O resto desistirá no meio do caminho, por exaustão. É importante lembrar que o plano (o nosso, não o plano promocional do cliente idiota) entra em ação um mês após o início da promoção. Isso porque nos primeiros dias o cliente fica conferindo mesmo, pra ver se é debitada a quantia certa para cada ligação. Depois ele relaxa e não confere mais. Aí sim, podemos bater a carteira mais à vontade.

- Você diz aqui na descrição que esta é a fase 1 do estratagema. Como seria a fase 2?

- É quando começamos a deitar e rolar pra valer. Multiplicamos a tungada de 2 centavos para o equivalente a uns 3 dólares. Logicamente, quanto maior a perspectiva de ganho, maior o risco. Podemos dizer que, nessa etapa, aqueles 0,3% de reclamantes que seguem na luta passam para 4,2%, num cálculo conservador. Mais uma vez, atribuiremos o erro ao sistema e efetuaremos o reembolso após a terceira tentativa do otário. No decorrer do processo, a fúria do assaltado tende a aumentar, e orientaremos a atendente a passar a ligação para uma suposta superiora que dará uma atenção maior ao sujeito, de acordo com o script aprovado na nossa reunião anterior.

- Sei. É hora daquela lenga-lenga toda, de que “é através de pessoas como o senhor que podemos sanar nossos erros e aprimorar nossos serviços”…

- Perfeitamente. Se ainda assim o mané quiser mais briga – teimando em reaver o dinheiro referente a afanadas retroativas, o máximo que pode acontecer é ele chorar as pitangas nas redes sociais ou trocar de operadora. Entrar na justiça ele não vai, não compensa o custo com advogado.

- Bom, vamos em frente. Fase 3.

- A fase 3 é a nossa salvaguarda, mas ela tem seu preço.

- Bom, já vi que daqui pra frente o teor é sério. Alguém fez uma varredura antes da gente começar essa conversa?

- Fica tranquilo. Esqueceu que nós somos a operadora? Estamos conversando num private circuit de última geração.

- Então vai. Prossegue.

- O esquema vai dar dinheiro demais. Mais do que seria seguro para ratear unicamente entre nós.

- Vai daí que…

- Vai daí que uns 35% do total arrecadado no golpe vai pra instâncias superiores, caso estoure escândalo ou se algo muito fora do previsto acontecer. Digamos que essa parte seja um fundo de reserva anual. Findo o exercício, se nada sacarmos para eventual “operação abafa”, a sobra de caixa continua intocável. Nunca se sabe o dia de amanhã.

- Por mim, pode tocar. Só uma dúvida: qual o nome do plano?

- O nosso ou o dos otários?

 

*Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais é mera coincidência.

 

- Imagem: Public Pictures.

 

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A ordem secreta dos construtores de moinhos

 

Fazendo jus ao nome, quase nada se sabe sobre a OSCM, exceto que seus membros encontram-se trimestralmente em algum lugar da península ibérica para deliberações misteriosas.

 

Sobre o não sabido, no entanto, nunca se conjecturou tanto como agora. Simpósios são realizados, livros sobre teorias hipotéticas são escritos, documentários de duvidoso rigor científico são produzidos. Mas nada que se compare, como fonte documental, a um trecho de diário pertencente a uma amante de um dos membros, que transcrevo a seguir. Trata-se de uma única página, encontrada no porão de uma casa em Alcobaça, Portugal.

 

05-11-1975 – quarta-feira

 

Pássaro da Manhã chegou hoje. Tudo dentro do previsto. Quando me avistou na rodoviária, fez o gesto secreto e em seguida disse a senha sem titubear. Como se precisasse, depois de tantos anos e sendo ele o mentor da coisa.  Xis Ípsilon juntou-se a nós quinze minutos depois, trazendo debaixo do braço pelo menos quinze dos canudos vazios adquiridos para a operação. Disfarçamos por ali até que Calopsita se aproximasse conduzindo o basculante – o sinal para que Jota Dáblio, com seu walk-talk, instruísse os demais homens para a conclusão da Missão Beta ainda antes das onze e meia.

 

07-11-1975 – sexta-feira, por volta das nove da noite

 

Deus sabe o quanto tentei, mas não consegui conter as lágrimas ao abrir a mala com as onze diferentes perucas e as costeletas postiças. De imediato me veio à lembrança a imagem de Codorna com seu barulhento tamanco roxo, ainda um noviço na Organização. Não merecia sofrer tanto nas mãos daquele desgraçado. Lembrei da época em que ele queria sair do esquema e jurava não entregar ninguém, mas ele próprio não tinha ideia do quanto já estava envolvido. Se negava a aceitar que se metera num caminho sem volta, onde nem Papaléguas, nem Maritaca  poderiam evitar a sua (…)

 

O trecho encontrado termina neste ponto, junto a uma mancha de baunilha e traços de sangue O positivo. Há quem sustente a hipótese de que a página do diário não passa de tola invencionice, forjada para despistar possíveis investigações que levassem ao desmanche da Sociedade e o acesso aos seus misteriosos rituais e objetivos. De onde se deduz que a Ordem Secreta pode muito bem não ser de construtores. Muito menos de moinhos.

 

Marcelo Sguassábia© - 14/09/2013.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

 

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A heroica trajetória de um jornal

 

 

A um bom jornal compete informar, denunciar, ser voz e guardião dos justos anseios da comunidade. Até aí todo mundo concorda. Mas um jornal pode ter outros papéis. Bem menos nobres, é verdade, mas bastante oportunos dependendo da ocasião.

 

O fato é que um exemplar de jornal nem sempre tem comportamento exemplar. Não que ele se comporte mal – as pessoas é que geralmente se comportam mal com ele. E aí me refiro ao jornal como objeto de estranhas e incontáveis serventias, ou seja, ao que ele é capaz de se prestar depois de lido.

 

Marcador de livro, por exemplo. Prendedor de porta, tapa-goteira, embalador de copo em caminhão de mudança, aparador de vazamento de óleo no carro, tampa de panela, forro de casinha de cachorro e de gaiola de passarinho. Até pra cobrir defunto ele serve.

 

E que dizer daquela sua tia-avó, que faz o coitadinho de leque durante aquela visita rápida de 7 horas e meia em pleno sábado?

 

Acender fogo de churrasqueira é outro emprego comum. O primeiro caderno você encharca de álcool, o segundo você usa para abanar o braseiro.

 

Alguém leva o jornal para a mesa do escritório, ao lado do telefone. Pronto. É o que basta para que o abnegado matutino ganhe indecifráveis rabiscos. Anotações de telefones, endereços de sites e e-mails, rubricas, declarações de amor e até receitas de bolo anotadas em suas margens. Há os que prefiram preencher com caneta ou lápis as letras “O” das manchetes e subtítulos, enquanto em intermináveis conversas com a namorada.

 

Atire a primeira pedra quem nunca usou um jornal dobrado em oito pra servir de calço de mesa. Lembro do tempo de faculdade em que morava sozinho, numa quitinete. Meu calço era um José Sarney com bigodes ainda negros, então no auge da popularidade com o redentor “Plano Cruzado”. Nunca tive alguém tão poderoso aos meus pés, servindo-me gratuitamente durante anos.

 

E quando tem serviço de pintura em casa? O pintor chega de manhãzinha e, com ele, o aguardado jornal. Ele pede jornal velho pra forrar o chão. Velho não tem. Só o do dia, que você ainda não leu. Por eliminação, você fica com as partes das notícias, artigos, crônicas e classificados. E entrega a ele os balanços de empresas, editais de convocação, avisos de licitação e os obituários. Pronto, já dá pra ele se divertir enquanto você devora o que mais interessa. Na varanda ou no quintal, evidentemente, porque não dá pra suportar nem o cheiro da tinta nem o pagode que ele assobia.

 

Há de convir o leitor que é de praxe o jornal do fim de semana – ou o que restou dele – pernoitar de domingo para segunda no sofá da sala. E segunda é dia que a faxineira vem. Espana pó aqui, limpa azulejo ali e eis que o ás da piaçava vê um ser rastejante entre a copa e a cozinha. Corre pra sala, passa a mão no jornal e Paf !. Errou. Outro Paf. Quase. Mais um, uhhhh por pouco. Até que acerta na mosca, quer dizer, na barata. As vísceras da bichinha se estendem por todo o terceiro parágrafo das notas policiais. Lá vai o jornal amigo para a lixeira da lavanderia. A escala ali é de umas poucas horas para então cair no sacão preto do lixo do quintal, em meio a toda sorte de resíduos, orgânicos ou não.

 

No dia seguinte o jornal é recolhido, vai para reciclagem e volta para a porta da sua casa em forma de outras notícias, todas extremamente desagradáveis: os boletos de conta de água, de luz, de telefone. É quando você amaldiçoa o mandatário supremo que aparece todo dia no jornal. E sente até saudade do Sarney, estimado calço do pé da mesa.

 

Marcelo Sguassábia© - 07/09/2013.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

 

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A claque se revolta

 

Prosseguem em todo o país as passeatas e atos de protesto exigindo assistência médica para as claques de teatro, televisão, eventos e comícios.

 

Em Osasco, representantes dos movimentos reivindicatórios das claques foram saudados com aplausos pela população. Entretanto, alguns grupos de aposentados, que jogavam pega-varetas nas imediações, suspeitam que aqueles que aplaudiam seriam na verdade membros das próprias claques, numa demonstração forjada e fraudulenta de apoio. Confirmada a hipótese, teríamos o que se poderia chamar de claque da claque.

 

Polêmicas à parte, o fato é que os manifestantes distribuíram panfletos com as principais pautas do movimento, elencando os males a que estão sujeitos e contra os quais não contam com a mínima assistência:

 

. LER (Lesão por Esforços Repetitivos), ocasionada pelas sessões contínuas de salvas de palmas. Esta é a mais comum das moléstias enfrentadas pela classe.

 

. Afonia, provocada pelos gritos e exclamações nos programas de auditório, sendo os principais deles, por ordem de ocorrência: “ÊÊÊ”, “Mais um” e “Lindooooooo”. Esse esforço é redobrado sempre que a claque é incitada a abafar vaias. O que não é incomum nos quadros de calouros, em geral com transmissões ao vivo para todo o território nacional.

 

. Alergias diversas, em decorrência da infestação de fungos e bactérias nas mal-higienizadas poltronas dos estúdios de TV.

 

. Inanição. Alguns partidos políticos, por exemplo, alimentam suas numerosas claques de comício com apenas um croissant e um copo de limonada por pessoa, ao longo de jornadas que se arrastam por dezoito a vinte horas.

 

Além disso, o recrutamento informal de mão-de-obra e a não-regulamentação da atividade levam a expedientes abusivos, que comprometem inclusive o futuro do ofício. Por não mais que 99 centavos, qualquer cidadão leva para casa um CD coreano contendo um menu variado de palmas, urros, coros e gritos de guerra. Alguns desses CDs contêm até backgrounds de carpideiras aos prantos, para utilização em velórios. Ainda que o efeito desses templates vagabundos não se compare à performance de uma claque de verdade, o consumidor tende a preferi-lo, por aliar praticidade a um custo quase zero. Resultado: milhares de famílias à míngua e à margem da seguridade social, pelo desemprego em massa dos nossos queridos batedores de palmas.

 

A continuidade desta situação levará, certamente, a consequências desastrosas. Um dos participantes do protesto desabafa: “A claque existe desde que o mundo é mundo, e há relatos de sua decisiva influência na Roma Antiga como instrumento de manipulação das massas pelos imperadores. Teve ainda papel de relevo em importantes eventos no Coliseu e em festinhas privê do alto escalão – como a formatura do filho caçula de Nero, ocasião em que não menos de 600 claqueiros foram contratados para dar vivas à conquista do garoto.

 

Finalizando, afirmou que, caso não sejam atendidos em suas reivindicações, os claqueiros cruzarão os braços a partir do próximo dia 07. Já no dia 09, os manifestantes se dividirão em grupos de 50 pessoas para promover o que chamam de “Grande Vaião – 24 horas ininterruptas de vaias” dentro dos principais hospitais públicos do país.

 

Marcelo Sguassábia© - 31/08/2013.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

 

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Sexo asséptico

 

- Paiê!

- Chora, pequeno carrasco. Que é que foi dessa vez?

- Eu tô sabendo de tudo, o Rafa me contou e ainda me mostrou fotos. O jeito que eu nasci, que você nasceu, o jeito que todo mundo nasce. Eu sei que foi você, papai, que colocou aquele seu negócio de fazer xixi naquele outro negócio da mamãe, que é pra fazer xixi também. Achei essa história muito porca.

- Ahnn??

- Devia ser tudo online, o procedimento seria mais limpo, sem contato manual nem genital. Tudo começaria numa rede de relacionamentos, passaria pra uma conversa inbox, depois rolaria um clima numa área de acesso restrito e protegida por senha e aí os pixels do homem se misturariam com os bytes da mulher. Nove sessões de Windows depois, o menino estaria pronto.

- Esse seu senso prático realmente me espanta, garoto. Veja bem…

- Sem ter que ficar gemendo, fazendo caras e bocas, suando um em cima do outro. Eca!! Arghhhh! Sinceramente, pai, quando me disseram que o processo era desse jeito eu custei pra assimilar a ideia. Achei a coisa toda muito suja, o ritual é nojento. Um órgão excretor dentro de outro órgão excretor, tem algo muito errado nisso. Ah, tem.

- Ai, ai, ai, você diz isso porque mal está entrando na puberdade. Deixa os hormônios começarem a explodir nessa sua carinha lisa e depois a gente volta a conversar.

- Uma outra coisa que eu não consigo entender é que, geralmente, tudo começa dentro da tela, certo? O encontro entre duas pessoas de sexo oposto, no caso. Depois elas vêm pro mundo aqui fora, se conhecem pessoalmente, namoram, se casam e não demora muito para que de novo passem a ficar dia e noite com a cara enfiada no computador. Dá pra me explicar o sentido disso? Por que saíram de lá, então? Por que não deixam tudo virtual logo de uma vez?

- Filho, a atração entre os sexos é que garante a preservação da espécie. Olha só: a pessoa estuda, trabalha, junta algum dinheiro e depois o que faz? Arruma uma cara metade e começa a fazer nenê. É assim sempre, sem distinção de cor, credo ou classe social. Imagina um sujeito milionário, por exemplo. Ele compra uma mansão, um iate, uma Ferrari… e no fundo pra quê? Pra enfiar uma mulher dentro da Ferrari, mostrar a casa linda dele pra ela, arrastar a moça pro quarto, no quarto rolar pra cama e aí então fazer aquilo. O mundo gira em torno daquilo, menino. É a sonhada consequência de todos os esforços.

- Ok, mas depois que se emporcalham com aquilo, o que é que os dois fazem? Dão uma descansada, limpam os pentelhos e secreções alheias que grudaram em seus corpos e voltam, rapidinho, para os seus tablets e notebooks – loucos pra verem o que é que tem de novo, o que é que aconteceu enquanto perdiam tempo fazendo uma coisa sem nenhum sentido prático.

- Eu não acredito no que estou escutando. Se bem que, como pai, é até um alívio que você pense assim. Continue nessa, filhão. Papai dá o maior apoio.

- Me diz, pai, é tão irresistível assim a vontade de fazer filho?

- Não, não. Na maioria das vezes, filho é o que o casal menos quer.

- Então porque prosseguem com os movimentos ritmados de vai e vem?

- Porque é gostoso.

- Espera aí, tem alguma coisa que não tá encaixando. É gostoso fazer uma coisa que eles querem evitar?

- Eles evitam o filho, não o ato.

- Mas o ato não é pra ter filho???

 

Marcelo Sguassábia© - 24/08/2013.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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Fazendando-se

 

Ia abrindo a picada no facão. Pelo queimar do sol, meio dia e meia, se tanto. No verde fechado luziu a chave, a dourada chave-mestra dos lugares improváveis. Velha Dita benzedeira, dai-me caminho bom. Pai do mato e das estrelas, daqui não tem retornar nem arrependimento de ver coisas que não carecem ser vistas. Desse ponto por diante é por minha conta e risco. Lembrava a mãe que dizia: “do mato guarde distância”.

 

Limpou o achado no brim cáqui, e no retomar da trilha um jacarandá dos baitas se fez porta à sua frente. Nessa hora virou rosto, e dá-lhe Salve Rainha implorando proteção – o acorrido não era acontecência cristã. Temor de obra do cão, vontade de colo quente.

 

A dobradiça rangeu, e foi sugado num tranco para dentro da casa grande. Deu com a carcaça no gelo das pratarias, baixelas da mesa posta para um jantar de calendário incerto. Botou reparo no pedaço de varanda que se via da janela, e assim ficou tempo imenso até que um ruído de saias o trouxe, em saltos mortais, às anáguas e espartilhos da sinhazinha que ia entrando. E varava livremente as camadas todas de pano e de castidade, mas num remorso de incesto que não cabia explicar. Uma ancestral de si, ali a pleno frescor, quem não garante que era? Sinhazinha de respeito e jeitos misteriosos, empunhando livro e leque, o olhar mirando o caminho da entrada da propriedade.

 

De novo o efeito centrífuga, sem chance de escapatória. Foi sendo puxado de costas rumo ao carrilhão de mogno. Por entre molas e engrenagens, laçou o ponteiro de minutos e ali ficou bem montado até que o das horas viesse e o levasse são e salvo ao XII do mostrador. Um cheiro de óleo de máquina se misturou ao de tinta, no instante em que se deu conta que estava no quadro da sala, de moldura quebradiça, herança do engenho velho. Retrato de gente austera, ele era o homem da tela, e em frente a ele outro homem, paleta e pincel nas mãos, dava os últimos retoques. Um passo atrás para olhar melhor o todo da obra acabada. Vira a cabeça pra um lado, vira a cabeça pro outro. Falta um tonzinho de amarelo queimado na testa, acima dos cílios. Agora sim, a assinatura. Nome e data sobre tela. Ali ficará, imóvel, pelos séculos dos séculos, olhando quem se achegasse à sala da grande sede da Fazenda Santa Lúcia.

 

Marcelo Sguassábia© - 17/08/2013.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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Ao meu tataraneto

 

 

Querido, sei lá quem, sangue do meu sangue, obra de minha coautoria que leguei inadvertidamente à posteridade,

 

Espero que esta o encontre com saúde, se é que um dia irá encontrá-lo, e isso contando que você venha de fato a existir. Estava olhando umas fotos e de repente me pareceu interessante a possibilidade de comunicação entre mim, que há muito já estou morto, e você, que ainda está por nascer. São retratos da sua bisavó, desde os 3 meses até os 16 anos. Estão em porta-retratos de bronze, que enchem 2 prateleiras do meu escritório. Aliás, você não imagina o que essa veneranda senhora grisalha, de ares matriarcais e que seguramente implica com tudo aí na sua casa, vem aprontando agora que é novinha. Almoça e janta internet, algo que está para o seu cotidiano assim como o telégrafo está para o meu.

 

Talvez essas fotografias a que me refiro estejam aí no futuro, descoradas e quebradiças nos cantos, pegando mofo dentro de uma caixa de sapatos – embora essa seja uma forma de guardar recordações típicas do século 20. Já os porta-retratos, é duvidoso que tenham atravessado gerações. Algum ascendente seu e descendente meu, mal intencionado ou mal das pernas, na certa há de ter transformado todo esse bronze em uns bons cobres.

 

São precisamente 23 horas e 17 minutos do dia 7 de julho de 2013. Os galos ainda cantam de manhã, 99,9% das pessoas têm que trabalhar duro pra sobreviver e até o momento não se têm provas definitivas da existência de seres extraterrestres. Muitos dos grandes dilemas da raça humana continuam insondáveis, como a vida após a morte, a influência dos duendes na pressão atmosférica e o que fez Ronaldinho amarelar na final da Copa de 98. Ainda não descobriram as curas da Aids e de todos os tipos de câncer. Mesmo passados doze anos, as pessoas guardam bem vivas as lembranças do atentado que derrubou as torres gêmeas de Nova York, em setembro de 2001.

 

Um assunto na ordem do dia é a clonagem. Em larga escala, entretanto, só existem as de cartão de crédito e placas de carro. Gerar clones com certeza é corriqueiro aí. As cidades todas devem ter lojas ou centros de clonagem, algumas até abertas 24 horas e com serviço de leva-e-traz. Aposto que nas casas de classe média proliferam forninhos que cozinham, assam, fritam, douram e clonam alimentos. Fico imaginando que maravilha para as donas de casa. Bife, por exemplo. É fazer uma vez e clonar para o ano todo. E se a moda pega isso vale pra tudo: Scotch 12 anos e caviar, inclusive. Uau! Expressão antiga essa, né? Até pra esse seu provecto tataravô isso soa velho.

 

É inverno, faz frio onde estou e escuto Os Tribalistas – um disco que já deve ter uns dez anos e que, espero, possa desafiar outras décadas e chegar também aos seus ouvidos. Quem sabe exista uma máquina aí em dois mil e oitenta e tanto, que viajando à velocidade da luz, possa voltar ao passado e trazer você aqui, de presente ao meu momento. De repente você pode até escolher este instante em que escrevo pra fazer isso. A propósito, que plataforma terá a escrita no seu tempo? Talvez já existam mixers de palavras e frases, eletrodomésticos que processem livros inteiros e em estilos diversos num passe de mágica. Mas não tenho esperança, não. Quando garoto, imaginava o ano 2000 com as pessoas movidas a foguetinhos autopropulsores e curtindo férias em Júpiter. Passamos por ele e nada de mais aconteceu, à exceção de algumas toneladas extras de fogos em Copacabana. Até o bug do milênio foi um fiasco, tão frustrante quanto a passagem do Cometa Halley, em 1986. O século 21 chegou e as roupas continuaram de pano, os carros continuaram saindo de fábrica com os motores a explosão da época de Henry Ford, o homem continuou sendo o que sempre foi: um tubo processador de cocô.

 

Vou ter que parar por aqui porque a campainha está tocando. Algo que agora não vai dar tempo de te explicar o que é. Ou melhor, o que era.

 

Marcelo Sguassábia© - 10/08/2013.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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Cometa

 

 

Peço encarecidamente a vocês, meus conterrâneos, que contenham seus ânimos e mantenham a calma neste momento histórico. Trata-se de um marco não só para os anais da municipalidade, mas também para toda a vasta pastagem adjacente. A passagem de um cometa é acontecimento raro, e como tal deve devemos tirar dele, cada um a seu modo, o melhor proveito possível.

 

Já posso vê-lo despontando no horizonte, por enquanto um minúsculo ponto de luz, ainda bem distante. Muito em breve, porém, eu lhes asseguro que estará brilhando em todo o seu esplendor no escuro da noite, descrevendo sua incrível trajetória em alta velocidade e deixando um rastro por onde passar.

 

Sabemos que o alvoroço será grande com a novidade, porém precisamos estar atentos para que ela não cause transtornos – como pisoteamentos e outros acidentes graves, na ânsia de acompanhar seu percurso ou de encontrar um posto de observação privilegiado para contemplar a tão aguardada aparição.

 

Nem é preciso lembrar de tudo o que a passagem de um cometa traz consigo em matéria de presságios esotéricos e metafísicos – na forma de pressentimentos catastróficos, previsões cabalísiticas, suicídios coletivos e simpatias as mais variadas. Por isso mesmo, ao invés de sofrer com ansiedades, taquicardias e tremores devidos à insana expectativa, para alguns a ocasião talvez seja propícia ao recolhimento e à conversão sincera e definitiva. A um encontro consigo mesmo e a uma mudança de vida profunda, que reflita de fato em suas atitudes e pensamentos. Assim, sugiro que as pessoas que sofrem de problemas nervosos se abstenham da observação e façam um favor à própria saúde, permanecendo em oração nas suas casas.

 

Nossa progressista Macambúzios conta hoje com 256 almas – já contabilizando, claro, os quatro guris ainda em gestação, e que logo logo estarão correndo em desabalada carreira pelas nossas duas ruas sem saída. Diria que o acontecimento que estamos prestes a testemunhar será, para todos nós, o estopim de um tempo de conquistas e glórias nunca vistas. De mais empregos e oportunidades de empreendedorismo, de varandas com pintassilgos nas gaiolas e alpiste abundante nos cochinhos, de disputados campeonatos de fubeca envolvendo toda a população macambuzense e os forasteiros que aqui chegarem. Estamos a um passo, meus concidadãos, de exterminar de vez com o tédio que há centenas de anos nos assola, e que faz de nós um povo cujos únicos passatempos se resumem a abanar moscas no verão e a espremer cravos nas costas uns dos outros, ao longo das outras três estações do ano.

 

Macambúzios merece e terá tudo o que a passagem de um Cometão, novinho e reluzente, pode trazer de bom. A cada parada que fizer em nossa improvisada rodoviária, teremos pelo menos 40 viajantes ávidos por um caldo de cana, um quebra-queixo fresco, uma engraxada nos sapatos ou uma fezinha na rifa para as obras da igreja. As baldeações serão de apenas dez minutos, porém suficientes para que tenhamos, enfim, o que fazer da vida enquanto a morte não chega.

 

Marcelo Sguassábia© - 03/08/2013.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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Manifesto pela volta do tempo 

O sujeito que assina este mal-arrumado desabafo, em nome de toda a humanidade (à exceção, talvez, dos anciãos com mais de 100, bem servidos de saúde e paradoxalmente fartos de viver), vem a público exigir que o tempo volte o mais rápido que puder. E que fique claro que não me refiro à volta no tempo; o que reivindico é o retorno do próprio tempo, calmo e humilde, à vida das pessoas.

 

É espantoso como tudo, há uns poucos anos, levava muito mais tempo para ser feito. E quanto mais vagaroso era o processo, mais tempo, estranhamente, sobrava para o cidadão.

 

Criava-se o porco no quintal. Matava-se o bicho. Jogava-se água fervente sobre o pelo, a ser raspado na navalha. Abria-se a barrigada, separava-se as partes, temperava-se e deixava-se, da noite para o dia, o leitão esquartejado submerso em marinada. Providenciava-se a lenha, acendia-se o fogo, cozinhava-se lentamente e degustava-se mais lentamente ainda. Era um tempo de sobra que não acabava nunca mais, de enjoar de fazer nada. De botar cadeira na calçada, chamar o vizinho pra uma breja e fomentar o diz-que-diz-que. O tempo era artigo barato, era preciso arrumar um jeito de se livrar dele. Matá-lo de alguma forma antes que ele matasse a todos de tédio. Tempo havia para debruçar na janela, jogar paciência, montar quebra-cabeça. Fazia-se a sesta, lia-se pela satisfação de ler, não pela urgência de manter-se up-to-date.

 

Voltando à feijoada, dessa vez à rala, insípida e inodora versão de hoje – em lata e aquecida no microondas. Não presta-se atenção no que se está comendo, pois no tempo em que se engole a gororoba ao molho de flavorizantes vê-se a TV, fala-se ao celular, confere-se o extrato, pensa-se nos termos do relatório a ser entregue o mais tardar às 12h30. E são 12h20, meu Deus do céu.

 

Se aqui é assim, imagine lá, do outro lado do mundo. Valorizar o tempo é com os japoneses. Ninguém tem know-how mais apurado. Por algum mecanismo ancestral, sabem os nipônicos desde tenra idade que tempo é recurso não-renovável, e consequentemente precisam consumi-lo da mais produtiva maneira. Lá na placenta, enquanto espera ficar pronto pra vir ao mundo, o japonesinho deve aproveitar o líquido amniótico pra cultivar algum legume hidropônico. Ou já reserva aquela água que o rodeia pra abrir sua lavanderia quando nascer. Talvez ache oportuno estudar a anatomia da mãe e já ir se afiando para o vestibular de medicina.

 

Melhor ainda que voltar, amigo tempo, seria ver você parado. Isso mesmo. Nem correr, nem andar, nem se arrastar. Simplesmente parar, perder a função de tempo e eternizar-nos a todos.

 

E vamos ficar por aqui, porque o tempo do leitor é curto e seria uma lástima continuar a desperdiçá-lo. Ainda mais comigo.

 

Marcelo Sguassábia© - 27/07/2013.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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Óvulos penosos. Está servido?

 

Os veganos estão certos. Estão certíssimos. Não só pela determinação de não ingerir cadáveres de animais, mas também por, coerentemente, se recusarem a consumir os derivados deles. Especialmente o ovo, o mais nojento e abominável desses subprodutos.

 

Que não se conteste o valor nutricional do dito cujo, o que o coloca entre os alimentos mais completos que existem. Sem falar do sabor, que quando frito é, de fato, uma iguaria. Basta ele e um pouco de arroz branco, e teremos um dos mais estonteantes manjares já concebidos pela espécie humana.

 

O problema é quando você se põe a pensar na natureza daquilo que está comendo. E aí vem à mente alguns fatos e imagens não propriamente abridores de apetite – como o órgão excretor do produto, a cloaca, e os não raros ovos com suas cascas saindo de fábrica manchadas de sangue. Uma vez coletados, higienizados e enfileiradinhos em suas assépticas embalagens de supermercado, não revelam à dona de casa a suja e dura crueza de sua gestação. Reflita, analise, leve o assunto ao debate doméstico e em sã consciência não admitirá mais um único ovo em seu cardápio – nem mesmo aquela pinceladinha discreta em cima da empada.

 

Ovo é óvulo, o maior do reino animal. Gosmento e quase sempre mal-cheiroso, quando in natura, permanece microscopicamente alojado no ovário da galinha desde o nascimento do bicho, esperando na fila pra ser posto pra fora.

 

Sim, a aparente delícia é de revirar o estômago. Inverta a situação e compreenderá um pouco melhor o absurdo: imagine uma galinha ciscando um absorvente feminino. Usado, evidentemente. Não seria exatamente esse o comportamento dos comedores de ovos? Considerando-se a ínfima inteligência da galinha, é até admissível o despropósito de vê-la degustando um Carefree de procedência ignorada. Mas e nós, animais racionais, que justificativa podemos dar ao ato bárbaro de sentar à mesa e mandar um zoiudão para o bucho?

 

Só que é preciso determinação para levar a abstinência adiante: nove entre dez receitas doces ou salgadas levam ovos – inteiros ou só as gemas. Por que continuam assim tão indispensáveis, esses pintinhos que não vingaram, nas caçarolas, frigideiras e batedeiras de bolo? Como é que a tecnologia ainda não conseguiu providenciar um substituto sintético à altura, com as mesmas propriedades de liga, que dão ponto às receitas das tias velhas? Ou pelo menos encontrando uma alternativa no reino vegetal, capaz de acabar de vez com a primazia gineco-galinácea no mundo maravilhoso da culinária.

 

Por outro lado, se não fossem aproveitados pelo homem em sua dieta, seria necessário inventar o que fazer com eles, já que uma única galinha põe em média 265 ovos ao ano. Com expectativa de vida produtiva de dois anos em ambiente de granja, vamos arredondar para 500 peças o portfólio penoso ao longo da existência. Isso a galinha confinada, pois a de fundo de quintal chega fácil aos 15 anos. Com a palavra, os veganos…

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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O Chulé de Hitler

 

 

É triste e embaraçoso. Viram o rosto e tapam ostensivamente seus narizes com as mãos, à minha passagem. As pessoas se afastam, a repulsa vai me isolando até o limite do insuportável. No meio da multidão, quase sempre se abre uma clareira por onde ando, tamanho o efeito dessa bota malcheirosa. Mas curiosamente consigo antever, nesse caminho que se abre, um sinal de respeito e submissão pacífica. Uma reverência do povo para com seu líder. Vamos, vamos, deixem passar o rei dos fedidos.

 

No colégio, Fohenstein, aquele de bigodinho ridículo e cabelo repartido que veio de Auschwitz, é o mais perverso. Do alto de seus coturnos ele me olha com cara de nojo, como se dos meus pés saíssem gases letais. Meu Deus, até onde vai a crueldade humana! Eu não tenho culpa se os fungos proliferam mais em mim do que na maioria das pessoas. Isso não faz da minha uma raça inferior, nem de Adolph um ser humano abjeto.

 

Que foi que eu fiz para merecer tanta perseguição? O que me vale é a amizade de Takeshi e Albertini. Mesmo que todos se virem contra mim, pelo menos esses dois eu sei que estarão ao meu lado, nem que o mundo um dia caia sobre nossas cabeças.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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Duña explica

 

 

Abandonando o pedestal onde merecidamente repousa sobre louros, Mestre Duña, num assomo de humildade, se nivelou a nós mortais para dissecar alguns enigmas que há muito intrigam a alma humana.

 

Frases, comentários ou mesmo interjeições jocosas desse Aristóteles moderno transformavam-se instantaneamente em citações, máximas, enunciados, fórmulas e teoremas. Tais aforismos saíam desgovernadamente de seus lábios, ora em golfadas, ora aos borbortões, mas sempre com a chancela singular de quem é Doutor Honoris Causa pelas Universidades de Harvard, Oxford e Unip.

 

No intuito de testemunhar o inusitado torvelinho cultural, repórteres da BBC e da National Geographic, PHDs, filósofos e cientistas de todas as vertentes do conhecimento se espremeram por três dias defronte à choupana duñesca, alvo de peregrinação de muçulmanos e católicos, budistas e neo-pentecostais.

 

As aparições do Mestre se sucediam em intervalos regulares, à janela do seu quarto, onde o Iluminado se apresentava invariavelmente trajando sua túnica de lantejoulas cor de abóbora e azul celeste, a postos para dar vazão à sua cornucópia de saber.

 

Vamos agora a alguns excertos dessas 72 horas de bem-aventuranças.

 

Lan House

Trata-se somente de um nome afrescalhado para a conhecida loja de armarinhos e aviamentos, tão familiar às nossas prendadas titias e avós.

 

Galeorrinídeos

Mestre Duña relutou em elucidar esta questão, julgando-a por demais óbvia. Afinal, sentenciou o guru, quem não sabe que os galeorrinídeos pertencem à família de peixes elasmobrânquios precisa de cola para passar no exame psicotécnico.

 

Batatinha quando nasce

Obra basilar na formação poética de Drummond, trata-se de um divisor de águas da lírica em língua portuguesa. Recentemente Duña deu à lume um ensaio definitivo sobre o assunto, dele resultando um alfarrábio de 800 páginas que se detém sobre os sentidos recônditos dessa estrofe de quatro versos, aparentemente boçal e despretensiosa.

 

Garrida

A origem etimológica do termo é um tanto obscura, e se perde em tempos imemoriais. Tão imemoriais que, quando incluído no Hino Nacional, o vocábulo já era arcaico. Esse imemorialismo latente talvez explique porque tanta gente não se lembre da letra ao entoá-lo.

 

Maxilar

Grande loja de dois pavimentos localizada em Paraiponga, especializada em utilidades domésticas.

 

“O espelho da vida é a sombra do infinito” - Grafado no courvin da poltrona de um buzunga da Cometa, entre aspas mas sem crédito ao autor, Mestre Duña afirma que este paradoxo há 28 anos vem roubando o seu sono, no vão esforço de decifrá-lo. Se alguém sobre ele for capaz de lançar luz, que entre sem demora em contato pelo e-mail: msguassabia@yahoo.com.br.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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Genealogia quase ilustre

 

 

Ananias, um parente muito próximo dos descendentes diretos de Noé, gerou Jacó Jr., que depois da arca seca, em terra firme e com muita lábia, convenceu Lenora a gerar Alcebíades no então abandonado compartimento dos gorilas. De Alcebíades a Theodore Jonathan, mais conhecido como TJ, foram umas 230 gerações, das quais praticamente nada se sabe. Jonathan, o bocejador incorrigível, gerou Lucy, aquela que jamais perdia um comício. Lucy gerou Abelardo, o ser humano mais rápido do seu tempo na palitagem de dentes, cuja agenda de palestras sobre o assunto estava quase sempre lotada. Abelardo era funcionário público nas horas vagas, e em uma de suas viagens a trabalho acabou gerando Adolpha, que do pai só ganhava acenos distantes e uma ou outra bala de goma com validade vencida. Adolpha, embora com motivos de sobra para não ter libido nem ânimo de procriar, gerou os gêmeos Natan e Carolino, que juntos abriram cartório em conhecida cidade e passaram também a receber do avô, de vez em quando, as costumeiras balas de goma – agora enviadas por sedex. Natan optou pelo celibato, ao contrário de Carolino, que trouxe ao mundo extensa prole. Da prole de Carolino destacou-se o mal-humorado Rubão, comprador de ferro velho que 16 anos antes de morrer fabricou o próprio caixão, o único que se tem notícia construído em ferro galvanizado. Rubão deixou como herdeira a ruiva Pâmela, nascida com orelhas triplas. Pâmela gerou Quirino, dono da loja “Rei das Persianas” e eleito por três vezes, não consecutivas, segundo secretário do Clube dos Diretores Lojistas de Sertão Grande. Quirino gerou Jorgito, bom de saltos ornamentais mas retardado em controle de estoque. Em segundas núpcias com uma balzaqueana chamada Maria Dalva, Jorgito foi pai de oito crianças, sete delas vitimadas pelo escorbuto. Sabrina, a que sobrou, também morreu cedo – aos 22 – porém a tempo de dar a luz a Sergei, embaixo de uma mesa de pôquer. Do pano verde da mesa, Sergei talvez tenha herdado a inclinação para lidar com grandes extensões de soja, que lhe deram fortuna para contrair matrimônio com Deoclélia Antonia, filha do abastado Juan Pablo de Luccrétia, cujo conglomerado de fábricas de isqueiros abastecia toda a ilha de Cuba em seus dias de glamour. Dessa união, porém, não há descendentes conhecidos, o que leva a crer que a milenar linhagem ali conheceu o seu ponto final.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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Divã no divã

 

- Sim, pode falar.

 

- Por onde eu começo?

 

- Escolha o começo que lhe parecer mais interessante.

 

- Eu sou da área. Diria que dificilmente um profissional pode estar mais ligado à seara freudiana do que eu.

 

- Não diga, é mesmo? Você é psicólogo, psicanalista, psicoterapeuta?

 

- Nada disso. Eu produzo divãs. Trabalho numa fábrica deles há mais de vinte anos. Este divã mesmo, fui eu que fiz. Conheço cada um dos meus divãs, centímetro por centímetro.

 

- Que peculiar. Jamais analisei um fabricante de divãs, e arrisco afirmar que essa é uma experiência única nos anais da psicologia.

 

- Neste divã aqui está escrito “Diva” em baixo relevo, próximo a um dos pés do móvel. É minha marca registrada de autoria. Basta levantar um pouco ele do chão que já dá pra ver.

 

- Por que você escreveu “Diva” e não “Divã”?

 

- Tenho trauma de tio. Não de til, de tio mesmo. Irmão do meu pai, no caso. Era pequeno e peguei ele na lavanderia de casa, um pouco mais próximo da minha mãe do que seria conveniente a um cunhado com bons modos e castas intenções.

 

- Fale-me mais sobre isso.

 

- Por favor, pulemos essa parte. Acho que hoje já estou razoavelmente bem resolvido em relação a esse episódio.

 

- Será?

 

- Ah, sim. Depois que mamãe se foi, passei a administrar melhor o trauma.

 

- E o meu é o primeiro divã em que você se deita ou já passou por outros?

 

- Já deitei essa velha carcaça em cima de milhares de outros. Fazendo os testes de controle de qualidade na fábrica e também fora dela, testando a qualidade dos analistas.

 

- E eu? Já tenho uma avaliação preliminar?

 

- Ainda é cedo. Mas tive ótimas referências suas.

 

- Você é telegráfico. Parece que vai ser difícil arrancar coisas um pouco mais subjetivas suas.

 

- Acertou em cheio. Sou mesmo muito assertivo no que digo e no que pretendo fazer. E em cinquenta minutos de consulta dá para resolver muita coisa. Quero dizer, algo de prático, e não ficar nesse blá-blá-blá estéril.

 

- Por exemplo?

 

- Por exemplo, colocar os fantasmas para fora.

 

- Pois vamos a eles.

 

- O senhor me arruma uma faca?

 

- Faca?… Serve esta?

 

- Serve sim.

 

(…)

 

- Espera um pouco, o que está fazendo? Para com isso, você está rasgando todo o divã…

 

- É só uma incisão, estou libertando os fantasmas. Estou soltando mamãe de sua longa prisão.

 

- Fique calmo, não me faça pedir ajuda.

 

- Vem, mamãe, vem… saudade, minha velha.

 

- Que horror, o que são esses ossos?

 

- Então, eu poderia explicar tudo direitinho, doutor. Mas acho que não precisa, concorda? Foram alguns anos procurando pelo número de série do divã até encontrar o dono, que o vendeu para outro analista, que o revendeu para o senhor…

 

- Não pode ser. Você acabou de falar que tinha superado o trauma.

 

- Eu precisava tranquilizá-lo para poder também ficar tranquilo e fazer o que precisava ser feito. Agora, se me permite, eu e mamãe temos pressa. Se quiser um divã novo, temos vários modelos para pronta entrega. Quer ficar com o meu cartão?

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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Rádio Miolo

 

 

Independentemente do que você esteja pensando agora, por trás desse pensamento tem uma musiquinha, não tem? De pano de fundo, como quem não quer nada. Às vezes uma, depois outra. Tem dias em que rola uma faixa só, teimosamente. Você até quer passar pra outra, mas o cérebro não deixa. O programador da Sinapse FM resolveu que aquele é o dia daquela música, e não há jabá que o faça mudar de idéia.

 

Ocorre também da música não ter nada a ver com você, muito menos com seu estado de espírito naquela hora. Mas gruda como chiclete nos neurônios. É quando você se pega cantarolando o prefixo do Programa da Xuxa, sem saber por que cargas d’água, no meio de uma reunião da empresa.

 

Meu DJ mental é um cara eclético, mas acima de tudo beatlemaníaco. Assumido e incorrigível. Colocar Beatles no aparelho de som pra mim é redundância – as mais de duzentas músicas deles eu assovio o tempo todo. É o que se pode chamar de original soundtrack biológico. Tocou na entrada do meu casamento e quero que toque no meu enterro, mesmo não estando mais lá pra escutar.

 

Acontece algo que me deixa feliz e a Rádio Miolo ataca de “I want to hold your hand”. Se falta coragem não falta “Hey Jude”, a fabulosa injeção de ânimo que o velho Macca fez para o filho do John. Um momento de reflexão e tiro da cachola “Julia”, “Because”, “Across the Universe”. Se quero meditar, a lavra do George Harrison leva à Índia numa sentada, de preferência em posição de lótus.

 

Porém nem tudo é Beatles, embora quase tudo seja. E de repente se abre o inesgotável baú dos mineiros. Só de Beto Guedes tem pelo menos umas 20 músicas no hit parade pessoal: “Tesouro da Juventude”, “Noite sem Luar”, “Sol de Primavera”, “Maria Solidária”, não há o que ainda possa ser dito dessas coisas, são os profetas do Aleijadinho em forma musical. Valem todo o ouro das Gerais.

 

Chico é a próxima parada do dial. “Meus Caros Amigos”, com “O que será” e “Mulheres de Atenas”, ou aquele outro disco com um Buarque pra lá do terceiro uísque, fotografado à frente de uma samambaia, que tem “Cálice” e “Trocando em miúdos”. Em outra estação, mas na mesma frequência, Caetano e o eterno espanto de “Bicho”, “Jóia”, “Muito”, de um “Cinema Transcendental” que transcende “Qualquer Coisa”. Trilhas de uma época em que não se falava de música de trabalho, exposição à mídia, shows privê no Golden Room do Copa.

 

Vamos aos clássicos. A Quarta balada de Chopin, alguns trechos de Tristão e Isolda, os Brandenburgos de Bach, o concerto para piano de Rachmaninov. Tudo isso em deliciosa ciranda no toca-discos interno. Vira e mexe esses monumentos reaparecem, virando e mexendo comigo, tocando sem que seja preciso levantar da cadeira e caçar o disco na estante.

 

O que acaba acontecendo é que eu coloco pra tocar só os mais novos. O tido como “diferente”, que vai surgindo. E ouço a fim, muito a fim de ser pego de surpresa, arrebatado com algo demolidor. É pena, mas essa primeira audição quase sempre acaba sendo a última.

 

Então volto ao meu flash-back. Som na caixa craniana, graves e agudos equalizados. No repertório, só as dez mais de todos os tempos. Sem correr o risco de incomodar o vizinho e economizando energia elétrica.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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Poltrona 16

 

 

1898

Chamam de cinematógrafo, é novidade que acabou de chegar da França. Tem um pano branco bem grande, e um feixe de luz que vem lá de trás mostra gente andando, trens em movimento… Mas precisa estar tudo escuro, se não for na escuridão não dá para ver nada. As pessoas se sentam na frente do retângulo de pano para assistir. Uma sensação.

 

1942

Um homem… uma mulher… uma misteriosa cidade do Marrocos. Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, juntos no filme mais esperado do ano. A história de um amor impossível e a intrigante saga de herois e vilões que se cruzam em desespero e esperança, e que viverão em Casablanca uma aventura que mudará para sempre os seus destinos. Casablanca! Onde cada momento traz um novo perigo. Onde cada beijo pode ser o último!

 

1956

“Os dez mandamentos”, com Charlton Heston e Yul Brynner. Ele com a mão mais boba, ela mais condescendente dessa vez. Uma sessão quase vazia. Dia fértil, borrão de sangue no carpete embaixo da cadeira. Vamos assumir, Deus quem mandou.

 

1961

Faz toda a lição direitinho, ou então no domingo não tem matinê. Nem bala, nem chocolate, nem “Os 101 Dálmatas”.

 

1977 

Não falei pra você, Chico? Ó só, mostra tudo, igual aquela revista que o Téo mostrou pra gente no banheiro da escola. A sua poltrona tá rangendo, Chico, para com isso! O lanterninha vem vindo, cê tá louco?

 

1998

- Aqui antigamente era um cinema, depois é que virou o templo da nossa igreja. Quando o papai era pequeno, os cinemas não eram nos shoppings. Aliás, shoppings não existiam. Foi aqui que o vovô começou a namorar com a vovó. O vovô conta que estava passando “Os dez mandamentos”, e a vovó não deixava nem pegar na mão dela. Olha lá, o pastor vai dar a benção milagrosa dos sete profetas. Eleve o pensamento em prece, meu filho.

- Mas pai, pastor não é quem fica tomando conta dos carneirinhos? Esse homem de terno, quando for fazer o serviço dele lá na montanha, vai passar calor.

- Sssssshiu. Quietinho aí no seu lugar, senão você vai pro inferno.

 

2011

Setenta reais e o senhor leva a cadeira. É do material de demolição, salvei essa do entulho… Espera só um pouco, moço, vou ter que manobrar três carros pra tirar aquele Corolla ali. Senta aí que eu já venho, pode ficar à vontade. Antiguidade, moço, é pegar ou largar.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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Boas novas em Angu Doce

 

 

O vereador Girz Antoniello, da cidade de Angu Doce (RR), é mesmo um político visionário. É de sua autoria o projeto de lei que muda os nomes de ruas batizadas em homenagem a vultos históricos por denominações que correspondam às áreas comerciais da cidade onde estão localizadas, facilitando assim a vida dos carteiros e da população em geral.

 

O ilustre vereador explica melhor o projeto e defende seu ponto de vista: “Em primeiro lugar, ruas com nomes de celebridades políticas, culturais e científicas toda cidade tem. No país, são dezenas de milhares de ruas, avenidas, praças e alamedas chamadas Duque de Caxias, General Osório, José Bonifácio, Tiradentes, Regente Feijó, Dom Pedro (1º e 2º), Deodoro da Fonseca, etc. Essa turma já está mais do que homenageada, do Chuí ao Oiapoque. O que proponho, na verdade, são sutis adaptações nos nomes – não os descaracterizando totalmente, mas agregando a eles algum elemento que identifique a região comercial onde as ruas se situam”.

 

Nos setores onde se concentram as lojas de materiais elétricos, por exemplo, a Rua Benjamin Constant viraria só Rua Benjamim. Ainda no setor de eletricidade, a Avenida Marco Polo, que divide a zona norte da zona sul, se transformaria em Marco Polo Positivo. Seguindo o mesmo raciocínio, está prevista também a mudança da Rua Leonardo Da Vinci para Rua Leonardo da 20W. Diz ele: “Veja só a facilidade na hora de localizar um endereço. Ao ler o nome da rua, o sujeito já identifica a parte da cidade onde ela fica. Modéstia à parte, esta minha ideia é um achado. A não aprovação do meu projeto de lei significará um retrocesso para todos os angu-docenses”.

 

Na região das lojas de roupas e tecidos, alguns dos nomes já definidos para as ruas são Viscose do Rio Branco, Juscelinho Kubitschek, Moletom Jobim e Marechal Godão.

 

Quanto às duas ruas que comportam o comércio de cosméticos, os novos nomes também já estão confirmados: Rui Babosa e Condicionador Valadares.

 

A aceitação, entretanto, não é unânime junto a outros vereadores e alguns segmentos da população, como os professores de História da rede municipal de ensino, que já articulam uma ação conjunta para impugnar a lei. Eles alegam desrespeito não só às figuras homenageadas, mas também à contribuição que deram ao desenvolvimento do país e à história da humanidade.

 

Girz Antoniello rebate às críticas, argumentando que a mudança dos nomes trará divisas à cidade e fará dela um destino turístico dos mais disputados, justamente pelo ineditismo da proposta. “Quem é que não vai querer vir em excursão até Angu Doce para tirar fotos junto às originalíssimas placas das ruas? Teremos um incremento considerável no comércio do município, com a abertura de novos hotéis, pousadas e restaurantes. Disso eu não tenho a menor dúvida.”

 

Em nota oficial, autoridades do clero na região afirmam que só se pronunciarão a respeito após analisarem os novos nomes que serão dados às ruas da zona do meretrício.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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Vela da vida toda

 

 

Existe uma tradição católica cultivada não sei onde, nem desde quando, mas existe. A vela de toda a vida: uma mesma vela acompanha o fiel desde o batismo até o velório, passando pela primeira comunhão, o crisma, o casamento, a unção dos enfermos. Concluída cada uma destas cerimônias, ela é apagada e guardada em casa, à espera do próximo uso, até que sua chama seja extinta em definitivo junto com o seu dono.

 

Bela tradição, de profunda simbologia: a mesma chama se renovando nos momentos decisivos da existência. Mestre Duña, o avatar da sabedoria suprema, enumera alguns possíveis desdobramentos – do fato e, literalmente, da vela, já que ela muito provavelmente trincará em vários pedaços e não estará mais parando em pé ao fim da vida do marmanjo.

 

No batizado, ao lado do padre, o padrinho segura a vela. Este sofre de Mal de Parkinson. É a primeira de uma série de fissuras no ainda reto bastão de parafina.

 

Mestre Duña adverte que há de se fazer uma ressalva que precede o batizado do cristão. Em caso de parto difícil, se acenderem uma vela nas vigílias de oração, é essa que valerá oficialmente como sendo a vela da vida do rebento, pois foi acesa por intenção dele – que para todos os efeitos já era um filho de Deus, mesmo estando ainda na barriga da mãe.

 

Crisma. Sendo a confirmação do batismo, acaba também confirmando a sina da vela rachada. Ela ganha novas fissuras quando o crismando a usa para bater na mão de um colega de sacramento, que inventou de fazer chifrinho sobre sua cabeça na hora da foto da turma.

 

Casamento. O padre se excedeu na homilia e deixou a vela acesa além da conta, consumindo quase a metade dela. O noivo, que a segurava, derrama um charco de parafina líquida nas mãos da noiva, quase na hora de colocar a aliança. A noiva morde o véu para não gritar de dor, mas num sofrido espasmo dá com o cotovelo na vela, que vai ao chão junto com o buquê de flor do campo.

 

Um belo dia, num interim de cerimônias, a estabanada faxineira foi limpar o armário e a vela, mais uma vez, obedeceu a lei da gravidade. A essa altura já são dezesseis pedaços presos um ao outro pelo barbante do pavio.

 

Extrema unção. Após a benção do padre, o moribundo, em seu leito de morte, orienta a futura viúva: “Querida, tem só um toquinho de vela, mas deve dar e sobrar para o velório, o último ofício dessa minha fiel companheira. Você acende por uns dez minutos, apaga e coloca a pouca parafina restante no caixão. Pode ser no bolso do paletó, para ficar perpetuamente comigo, junto do coração”.

 

O pavio, mal apagado, incendeia instantaneamente o terno de tecido sintético, e em segundos temos um esturricado defunto duplamente morto.

 

Mestre Duña conclui, com sua proverbial sapiência: “Queridos amigos, essas são apenas conjecturas. Uma advertência nem contra e nem a favor desse costume, seja lá onde for costumeiro. Só quis refletir um pouco, e fazê-los também ponderar sobre as consequências, nem sempre beatíficas, de sua prática. Fiquem com meu abençoado abraço”.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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Betão in concert

 

 

- Quero 32 toalhas brancas e bem felpudas no camarim. Uma para cada sonata que compus. Pode me chamar de supersticioso, mas é isso. O Mozart pede mulheres e caixas de absinto, antes e depois dos concertos, e ninguém fala nada. Eu até que exijo muito pouco, só as toalhas e uma travessa de arenque com batatas. Nenhuma excentricidade.

- E o bis? Já escolheu o que vai ser?

- Vai depender de como eu estiver na hora, não vou resolver isso agora, de jeito nenhum.

- Mas Beethoven, a orquestra precisa saber para ensaiar. Como é que…

- Eles que se virem. Todo mundo não me chama de louco? Deixa eu fazer jus à fama. Pode ser a Pastoral, mas não dou certeza.

- Espera aí, uma sinfonia inteira como bis? O público vai cansar, são cinco movimentos.

- Quem quer bis de dois minutos que vá assistir à Madonna. Chega de bisar com a “Pour Elise” e fazer merchandising gratuito pra Ultragas. Aliás, maldita a hora em que vendi os direitos dessa peça. Nem eu aguento mais aquele caminhão.

- Tá, tudo bem. E quem abre o show?

- Liga pro celular do Schubert e vê se ele está disponível, se bem que até anteontem ele estava em estúdio mixando uma trilha de novela. Mas fala pra ele pegar leve, alguma coisinha pouco barulhenta. O concerto é meu, não dele. Nada de roubar a cena e me entregar o público destroçado.

- E a coletiva de logo mais, posso confirmar?

- Contanto que os benditos repórteres falem bem perto do microfone, pode. Tô de novo com aquele zumbido estranho no ouvido, preciso marcar um horário no otorrino pra ver o que é isso.

- Bom, mudando de assunto, estou aqui com o layout que a agência de promoções enviou, divulgando o concerto em Praga, no dia 12.

- Olha, que não me venham com aqueles trocadilhos infames que andaram criando ultimamente… “Beetho ven aí” ninguém merece!! Não sei onde estava com a cabeça quando aprovei aquela merda.

- É, mas veio gente pra caramba.

- Daqui pra frente quero espaços menores, shows mais intimistas, tipo banquinho e violoncelo. No máximo um conjunto de câmara, uma coisa mais unplugged, sabe como é?

- Mas não podemos mudar isso agora, no meio da turnê. Só na orquestra temos mais de 150 músicos, todos com contrato assinado até setembro do ano que vem.

- Antes que me esqueça, aqueles backing vocals na nona estavam muito esganiçados. Pode pôr na rua todas as sopranos e me traga gente nova, que não assassine meus hits. Respeito à partitura é bom e eu gosto. Tem outra: a tietagem na fila do gargarejo fica puxando fumo demais. Até eu fico maconhado por tabela e acabo errando a regência. Reforço de segurança neles. E, pelo amor de Deus, não me deixa ninguém subir ao palco pra rasgar minha roupa.

- É o preço da fama, Betão.

- Não me chama assim, ou então vai pra rua também. E aí, meu filho, o que vai te sobrar é um ou outro freela com o Haydn. Tá a fim?

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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Sobre nomes

 

 

Não é propriamente novidade dizer que sobrenome é indicativo de classe social. Uns poucos exemplos práticos mostram o quanto esta teoria é verdadeira.

 

Veja o caso de algumas famílias tradicionais paulistanas, que remontam às oligarquias cafeeiras e ao mecenato no século 19 e início do 20: Almeida Prado, Cordeiro de Paiva, Paes de Barros, Freitas Valle, Alcântara. Desafio alguém que me apresente um entregador de pizza com um desses sobrenomes. Sem chance de encontrar um descendente dessa linhagem fazendo compra de mês, tomando ônibus ou engolindo fogo no semáforo.

 

Tente imaginar um Whitaker favelado. Um Woodward feirante. Um Amstalden sem telefone, sem carro e que não more num sobradão de pelo menos 6 suítes. Aponte um Charboneau sem emprego, que não tenha herdado ou não esteja esperando a homologação da partilha pra veranear em Capri. Matarazzo ou Bulhões prestando concurso para lixeiro, conhece algum?

 

Desse eu gosto: Johansen. Coisa mais pomposa essa pronúncia: “Iorranssen”. Alguns falam “Iórranssen”. Tanto faz – um cara com esse nome não pode ser pobre, nem remediado. Tem uma altivez que vem de berço e o acompanha até o túmulo. Integra o seleto rol dos sobrenomes “pés-de-cabra”, que vão abrindo portas por onde quer que sejam pronunciados. Mesmo na improvável hipótese de ser um rastaquera, é tratado como dono de capitania hereditária.

 

Pegue agora um José da Silva. Você já ouviu falar de um José da Silva milionário? O dono da “Casa José Silva” é um que se deu bem, sou obrigado a reconhecer (nem sei se existe essa grife ainda). Mas é exceção entre milhões de homônimos, os daqui e os de terras lusitanas. O mesmo vale pra João de Souza, Maria das Neves, Sebastião Lopes. Donos desses nomes são geralmente fadados aos escalões subalternos, uma espécie de baixo clero com ascensão quase impossível. Um Souza anônimo e pobre está cumprindo a sua sina. É igual a tantos outros Souza espalhados por aí. Ser pobre é o que se espera dele, qualquer desvio de rota é acidente de percurso.

 

É interessante observar, por outro lado, a existência de uma certa “classe média” entre os sobrenomes. São aqueles nem muito comuns e nem muito aristocráticos, que ficam na zona intermediária da pirâmide onomástica. Nesse sortido balaio cabem os Melo, os Leite, os Albuquerque, os Peres, os Marques, os Gomes, os Barbosa – só pra ficar entre os portugueses. Um universo onde temos, em 90% dos casos, aquela família típica moradora de casa ou apartamento com sala em L, três quartos, um carro na garagem. Essa família frequenta clube, vai à igreja e tem alguma coisa na poupança. Aí se encontram também, grosso modo, aqueles que têm sobrenome de árvore – Pereira, Oliveira, Nogueira, Carvalho, Pinheiro. Além dos Ramos e os Matos, que não chegam a ser árvores mas pertencem ao reino vegetal. Como os Campos. Fico imaginando a chegada de um Machado, o estrago que não faria a essa turma.

 

Seguindo a lógica de que a terminação “eira” (com ou sem beira) geralmente designa uma árvore, Silveira seria uma árvore de Silvas? Escarafunchando, a gente descobre que Silva também é verbo. Eu silvo, tu silvas, ele silva. Mas também quer dizer “selva”, e por aí vai…

 

Do reino animal, temos uma variada fauna representada em território tupiniquim pelos Raposo, os Lobo, os Coelho, os Pinto, os Carneiro, os Leão, os Bezerra e outros mamíferos e ovíparos. Já os Magalhães e os Guimarães, embora relativamente comuns, transmitem uma dignidade muito peculiar. Não chegam a ser Johansen, mas certamente passam longe dos Silva, dos Souza e dos Santos. Talvez pelo “ães” no final, não sei. O fato é que a mim, pelo menos, parecem imponentes.

 

Aí caímos em sobrenomes do tipo Salgado e Penteado. Seriam atributos do patriarca? Um sujeito penteado ainda vá lá. Mas salgado???

 

Finalizando, temos os deliberadamente bizarros, independente de extrato social. Como o Inocêncio Coitadinho Sossegado de Oliveira, o José Casou de Calças Curtas, o Oceano Atlântico Linhares, o Sete Rolos de Arame Farpado e a folclórica Naida Navinda Navolta Pereira. Esses sim, devem ao nome a glória de jamais serem esquecidos. Ainda que essa notoriedade não reflita, necessariamente, na conta bancária.

 

- Imagem: Genealogias.org.

 

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Xeque

 

 

Numa partida de xadrez, qualquer deslize pode ser fatal. E os possíveis deslizes, no caso, estão diretamente relacionados à qualidade do feltro colado sob cada uma das peças do jogo. É sobre essa questão de complexidade extrema que o autor resenhado debruçou-se ao longo de dois anos, numa defesa de tese que chega agora em forma de livro ao mercado editorial brasileiro.

 

Os primeiros capítulos são dedicados ao enunciado teórico no qual o autor sustenta o fato de que, a partir da rugosidade da superfície do tabuleiro, podemos estabelecer a espessura ideal para o feltro das peças, a fim de que se evite o indesejado deslizamento. A equação, exaustivamente exposta em todas as suas variáveis, põe por terra os fundamentos até então cientificamente aceitos de que a relação feltro/tabuleiro era meramente de ordem estético-funcional, não interferindo de maneira determinante no resultado do jogo.

 

Ora, sendo as pelejas enxadristas marcadas pela habilidade dos jogadores em manejar raciocínio e estratégia, tornam-se inócuos estes esforços se os lances meticulosamente estudados não encontrarem amparo suficiente para que se mantenham firmes sobre o campo de ação onde interagem os agentes, ou seja, o tabuleiro.

 

Outros fatores interferentes, segundo o autor, podem ainda comprometer o já naturalmente instável embate das forças que se rivalizam. Dentre elas, destaca-se a influência do vento sobre o posicionamento correto das peças nas partidas ao ar livre – especialmente os peões, quase sempre de menor peso em função de suas dimensões reduzidas, e portanto mais vulneráveis. Há ainda outras constatadas, mesmo que não preponderantes para efeito estatístico de suas ocorrências: movimentações de terra causadas por terremotos, trepidação pela passagem de comboios nas proximidades, esbarrões de cotovelos durante o processo de abanamento de moscas e até mesmo espirros dos players, quando em velocidade superior a55 km/h.

 

Dentre as diversas soluções levantadas de prevenção aos deslizes, algumas destacam-se pela originalidade de abordagem. Como esta, exposta no capitulo 8:  “Em toda e qualquer jogada, deve-se preferencialmente remover a peça de sua posição original, saltar sobre as demais e reposicioná-la sobre a nova casa, impedindo assim a fricção do feltro sobre o tabuleiro, o desgaste prematuro de ambas as superfícies e suas desastrosas consequências.”

 

Inúmeras partidas, algumas delas valendo título mundial, já foram brutalmente interrompidas pelo repentino desmonte do jogo, após horas de certame. O autor recorda, inclusive, o emblemático episódio envolvendo os russos Sharopov e Strochnikov, quando este último, ao ajeitar-se em sua cadeira, deu com o joelho direito na quina da mesa e não deixou pedra sobre pedra, invalidando a disputa.

 

Avesso ao excesso de academicismos, o que seria justificável pela aridez teórica do assunto, o autor consegue a proeza de conduzir o leigo em sua argumentação de forma lúdica e prazerosa, fazendo com que as 573 páginas mais pareçam um romance que um tratado científico.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

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Dublê de sósia

 

 

Encontra-se oficialmente aberto o inquérito para apuração de crime de falsidade ideológica contra Joseph Klariston Jr., o lendário tintureiro de Baltimore e uma das glórias do Estado de Maryland.

 

O escândalo veio à tona no auge da popularidade de Klariston, com sua imagem ostensivamente estampada em capas de revista, comerciais de sabão em pó e colunas de fofocas de celebridades. As suspeitas de falsidade ideológica ganharam força com a constatação de aparições simultâneas de Joseph em eventos e países diferentes, o que levou evidentemente à hipótese de que o tintureiro, além de hábil em multiplicar sua fortuna, seria também perito em multiplicar a si mesmo. As investigações se aprofundaram a ponto de Klariston não conseguir mais negar as evidências, declarando-se réu confesso em entrevistas recentes.

 

Entenda melhor o caso

 

O estrondoso sucesso mundial de suas singulares técnicas de lavar, passar, tirar manchas de WD40 e restaurar botões de madrepérola fora de linha de produção renderam a Klariston uma notoriedade acima da sua capacidade de comparecimento a coletivas de imprensa, palestras e talk-shows. Daí para o delito foi um passo. Ele conta: “Comecei com os sósias, que nos primeiros anos eram só uns quatro ou cinco. O assédio da mídia e os convites não paravam de aumentar, e fui forjando mais e mais sósias. Cheguei a abrir uma fábrica de sósias própria, em um alojamento subterrâneo no deserto do Atacama, a meu ver o lugar mais insuspeito para algo do tipo. Assumi um layout de rosto e de vestimentas bastante básico e fácil de reproduzir, para ajudar na falsificação. O trabalho maior era treinar os sósias na impostação correta de voz e nas respostas que deveriam dar aos repórteres. Mas caí em desgraça quando propaguei, por meio de minha assessoria, a técnica de criar ombreiras em blazers com ar comprimido, no lugar da tradicional espuma comumente empregada. Ao divulgar essa novidade, meu sucesso se multiplicou e vi que os sósias, somando então 494 nos cinco continentes, continuavam sendo insuficientes. O tempo de criar mais algumas centenas me era escasso, e decidi pela produção em massa de dublês dos sósias. Os dublês eram uma espécie mais tosca de imitadores, sem a desenvoltura dos sósias mas suficientemente adestrados para acenarem ao público sem levantarem suspeitas. Só que acabaram levantando, infelizmente. Não obstante toda essa loucura em que me vi envolvido, jamais descuidei da segurança de minhas cópias. Cheguei ao ponto de encomendar um Klariston-móvel, para que os dublês de sósia pudessem se locomover pelas multidões ensandecidas sem o risco de atentados, já que a fama do nome Joseph Klariston Jr. ganhou uma dimensão assustadora e completamente fora do meu controle.”

 

Indagado a respeito de uma mesa redonda realizada quando de sua visita ao Brasil, na qual dividiu a participação com outros famosos – entre eles Tom Zé e Silas Malafaia, o indiciado afirmou que, na ocasião, ele era ele mesmo. Segundo Klariston, o evento teve transmissão ao vivo para vários países, e o deslize de um sósia poderia ser fatal para a sua até então imaculada reputação de tintureiro.

 

- Imagem: Wikimedia commons

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Zapping

 

 

Hora de pensar, pensar. Hora de não pensar, ligar a televisão – essa fabulosa caixa hipnótica. Aperte o power do aparelho e acione o off do cérebro. Renda-se ao vício paralisante, entregue-se ao esvaziamento mental.

 

Mas a culpa não é toda da TV em si. Há todo um clima ao redor que induz ao não-pensamento: o cobertor e sua pelúcia acolhedora, a meia-luz do ambiente, a musculatura relaxada – tudo isso junto já é um pré-estado Alfa. Uma vez nesse estupor, é assistir ao desfilar de pastores em seus púlpitos, calouros se esgoelando, falsas loiras saracoteando seus predicados de silicone. Sem falar dos televendedores, a uma velocidade de oitocentas palavras por minuto, madrugada afora apregoando de títulos de clube a aparelhos ortodônticos.

 

Mas o ritual nem sempre foi assim, indolente e passivo. Tempo houve em que era preciso ginástica para gozar das delícias televisivas.

 

Quando a TV não pegava, os fantasmas apareciam ou os chuviscos aumentavam, deflagrava-se uma complexa operação que envolvia no mínimo duas pessoas. Uma plantada em frente à caixa, a outra virando o cano da antena, no quintal da casa.

 

- Melhorou?

- Não!

- E agora?

- Continua ruim.

- Assim tá melhor?

- Espera um pouco…volta pra onde estava antes.

- Assim?

- É.

 

Dois artefatos, hoje em desuso, orbitavam em torno dela: o conversor de UHF e o regulador de voltagem, também conhecido como transformador. Controle remoto não tinha. Nem precisava – eram só cinco as opções disponíveis. A então TV2 Cultura (canal 2), a Tupi (canal 4), a Globo (canal 5), a Record (canal 7) e a Bandeirantes (canal 13).

 

Com o advento do cabo e das miniparabólicas, a ordem é zapear. Então…

(zap)

 

Você pode perder até seis quilos em duas semanas. E não é só isso: fazendo agora seu pedido você ainda ganha este maravilhoso…

(zap)

 

- Mas me diga uma coisa, dona Antonieta. E agora, como é que está sua vida hoje?

- Ah, hoje o meu lar é abençoado. Como do bom e do melhor, tenho 2 padarias, 3 postos de gasolina…

(zap)

 

- Chegou a hora de você saber de toda a verdade.

- Onde é que você está querendo chegar? Do que você está falando?

- Maria Helena… Maria Helena… é sua filha!

(zap)

 

Só seis parcelinhas de setenta e quatro e cinquenta, no cartão.

(zap)

 

Ohhhhh yes…. ohhhhh… hum, hummmm… oh yeeeeeeessss… ahhhh!!!!

(zap)

 

Foi sem querer querendo!

(zap)

 

Daqui a pouco a gente volta. Não sai daí.

1284 zaps depois…

 

Os olhos pesam, a cabeça pende molemente para o outro lado da almofada. A mão deixa cair o controle no chão. Aí você acorda, assustado com o barulho. Desliga a TV, apaga a luz, se ajeita sob as cobertas. Tarde demais: o sono se foi. Enquanto ele não volta, você liga a televisão.

 

- Imagem: wikimedia commons.

 

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Trevo

 

 

- Bom, o que a gente já esperava foi confirmado hoje no comunicado que a prefeitura fez no jornal: nossas terras foram desapropriadas e vão nos pagar preço de banana. Uma merreca.

 

- Ai, ai, ai. Tá sacramentado mesmo, é? Bem, mas pelo menos vamos poder explorar algum negócio no entorno do novo trevo. Tá lá no edital de desapropriação. Temos a indenização e o direito de abrir comércio ou serviços nas imediações, como compensação pelo baixo preço que a prefeitura vai pagar.

 

- Sei… um negócio ao redor de um trevo rodoviário? O que é que pode ir pra frente num entroncamento de trânsito rápido? É área de passagem, o cara tá preocupado com o caminho que ele tem que pegar.

 

- Eu pensei em um empreendimento que tenha a ver de alguma maneira com o próprio trevo. Nem tanto com a função, mas com a forma e o significado dele.

- Nossa… nebuloso esse seu raciocínio, hein?

 

- Imagina só, já tenho até o nome: “Trevo da Sorte”. Uma moderna e vistosa lotérica. Quem trabalha ou mora nas vizinhanças do anel viário não precisará mais ir até a cidade fazer suas apostas. Além disso, as lotéricas também são postos de pagamento de contas. Conveniência pra população das vilas nas adjacências.

 

- Ah, agora entendi. É pra quem mora perto, não pra quem trafega pelo trevo. Pensando bem… podemos abrir quatro lotéricas, uma em cada alça do trevo – assim os moradores dos arredores têm que andar ainda menos pra fazer sua fezinha. Mas olha, indo por essa sua lógica, a gente também poderia abrir um viveiro de plantas pra vender trevo de quatro folhas. Aí então, um negócio puxa outro. O sujeito passa no viveiro, compra o seu trevinho e depois vai pra lotérica fazer seu jogo. Tudo amarrado. É o chamado Cross Marketing!

 

- Isso! Montamos uma verdadeira holding. E dando certo a estratégia levamos a experiência vencedora a outros trevos pelo Brasil afora, quem sabe até abrindo sistema de franquia…

 

- Espera aí, tenho uma ideia melhor. Melhor não, uma sacada que complementa essas duas que a gente já pensou. Uma casa super bem montada, discreta, com som ambiente maneiro e iluminação suave, uns cem metros antes do início da obra. A campanha publicitária já está pronta: “Keep calm e encare o trevo”. Um grande salão, com umas quinze massagistas do jeito que o diabo gosta, pra relaxar a tensão de quem vai passar pelo entroncamento. Especialmente os caminhoneiros. Convenhamos, passar por um trevo requer atenção e reflexos bem alertas. É um momento crítico para o motorista, se ele ficar nervoso é um perigo.

 

- Aí forçou, hein. O que me diz de “Shopping Trevo Souvenir”? Uma espécie de parque temático do trevo. Canecas, camisetas, cinzeiros, adesivos, tudo personalizado com o desenho do entroncamento. E também aqueles chaveirinhos com a mensagem “Estive no trevo e lembrei de você”. Até tatuagem, podemos ter um tatuador full-time. A gente pode também editar um belo book de umas quinhentas páginas, tipo livro de arte, com fotos bem produzidas dos principais trevos do Brasil e do mundo. O nosso em destaque, é lógico. Caramba, ideia é o que não falta…

 

- Tamo rico, véio.

 

- Tamo junto, mano.

 

- Imagem: Google

 

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Francisco

 

 

O que o Chico Buarque ouve? O que o Chico Buarque lê? O que e quem o Chico Buarque come? De quanto seria o lance inicial de algumas caspas do homem, colhidas por um garçom na mesa de um café de Saint Germain em um obscuro outono dos anos 90?

 

Para quem seria o seu primeiro pensamento, ao acordar da soneca vespertina após o risoto com tinta de lula regado a vinho? Já teria ele falado com alguma atendente de telemarketing, que esqueceria os gerúndios, gaguejaria e se perderia em seu script ao se dar conta de quem estava do outro lado da linha?

 

Seria PC ou Mac o ambiente onde salvara um primeiro esboço da letra prometida para o Guinga musicar, e fadada à eterna inconclusão? Saberia da existência de uma certa Carolina, de Itaquaquecetuba, que passados tantos anos ainda guarda com ela toda a dor desse mundo? Cerdas duras, médias ou macias, e quantas vezes ao dia? Agora, um pouco de escatologia: seria Chico um praticante da automucofagia?

 

Rimou, mas é de rimas que se faz um Chico. Ricas, sem pé quebrado. Fala com o João Gilberto? Faz exame de próstata, dá comida ao cachorro, mete-se com a vida alheia, se atreveria a desviar da caminhada no Leblon para um suco de fruta do conde em Paquetá? O que haverá em seu lixo? Deixou pronto seu epitáfio? Já tem uma opinião formada sobre o xará, Papa Francisco?

 

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400 milhões de libras

 

 

Tomo a palavra nesta tribuna para, em nome da nossa comissão, me manifestar a respeito da confecção das cartilhas com o alfabeto Libras – Língua Brasileira de Sinais, popularmente conhecido como alfabeto do surdo-mudo.

 

Temos hoje no país aproximadamente 2 milhões de indivíduos com deficiência auditiva severa, que não querem e não merecem ser tratados como gente de segunda categoria. Por sua vez, os esforços de inclusão social empreendidos pelo governo vêm privilegiando, sobretudo, as pessoas com necessidades especiais, merecedoras do nosso respeito e do inalienável direito à cidadania.

 

Isto posto, decidimos inovar, produzindo algo diferente do costumeiro abecedário dos surdos impressos em grafiquetas de esquina e com aquelas mãozinhas horríveis uma ao lado da outra, mostrando letra por letra. Queríamos algo que de fato prestigiasse a notável e pujante categoria dos surdos, que numericamente justificaria inclusive uma bancada que os representasse no Congresso.

 

Assim, um lote de cartilhas foi confeccionado com fotos de Sebastian Salgado e Bob Wulfenson, tendo os sinais das mãos executados por celebridades e socialites de todos os Estados brasileiros. O outro lote deixamos a cargo do renomado artista plástico Romero Brites, que aceitou a encomenda e criou para cada sinal um quadro exclusivo, empreitada que lhe tomou mais de um ano de trabalho. Em ambos os casos, o resultado foi maravilhoso. E a satisfação que tivemos depois de tudo pronto foi muito maior que a nossa amargura pelas caluniosas suspeitas de superfaturamento que pairam sobre a nossa comissão.

 

Fomos duramente questionados pelo fato de imprimirmos 400 milhões de cartilhas. Entendemos que não há exagero nessa quantidade, uma vez que os deficientes auditivos já conhecem o alfabeto Libras e, consequentemente, os livrinhos não se destinariam a eles, e sim à população em geral – que desconhece a linguagem e que precisa dela para se comunicar com os surdos.

 

Se fôssemos seguir a lógica de alguns parlamentares da oposição, que entendem que as cartilhas com o Código Libras deveriam ser distribuídas apenas entre os surdos, evidentemente que 400 milhões seria uma tiragem absurda, já que cada surdo receberia 200 cartilhas, num verdadeiro atentado aos cofres públicos.

 

Mas o nosso raciocínio foi muito mais abrangente e democrático. Arredondando a população brasileira para um total de 200 milhões de habitantes, e sendo conveniente que cada cidadão receba dois exemplares (um para ter sempre à mão e outro para deixar em casa, na eventualidade de algum extravio), chegamos ao número de 400 milhões. Justo e sem desperdício.

 

Desse montante, alguns poucos milhares de cópias serão separadas para envio a organismos internacionais e embaixadas de países com os quais mantemos relações diplomáticas. Assim mostraremos ao mundo a sensibilidade do governo federal em relação ao problema e os vultosos investimentos que destinamos para minimizá-lo.

 

A próxima etapa, ainda em fase de licitação de fornecedores, consiste em exibir o alfabeto Libras na forma de animações 3D, em gigantescos painéis de LED afixados nas praças públicas e estações de metrô. Dessa maneira poderemos disseminar, em outras e ainda mais atraentes mídias, esse importante instrumento de integração genuinamente brasileiro.

 

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A rúcula e suas desconhecidas propriedades

 

 

Parcela do IPVA, água, luz, telefone, escola.

 

Podia muito bem pagar por internet, caixa eletrônico, débito automático. Mas não confiava em nada disso, gostava mesmo da autenticação mecânica. Ali, preto no branco. Vai que amanhã dá pau geral no sistema, como provar que tá pago?

 

Pra falar a verdade, nem queria que a fila andasse. Tinha hora no dentista daí a 40 minutos. E sair de um suplício para outro era demais. Um sacrifício pede recompensa, e não mais sacrifício. Boca aberta ao torturante motorzinho, boquiaberto com o buraco no orçamento. Não, não. Ligaria pro consultório, desmarcando.

 

O saco sem fundo de trabalhar pra ganhar, ganhar pra pagar as contas, pagar as contas pra continuar na estatística dos economicamente ativos. E assim sucessivamente – do mesmo jeito será com seu filho e destino igual terá seu neto, se até lá esse mundinho não explodir numa hecatombe.

 

Ontem tinha ido almoçar com a Débora. Como sabia esnobá-lo, a cachorra. Ô Débora desalmada. Deixa estar que ainda me vingo, ele pensou. E a vingança veio a cavalo, naquele safado PF de padaria. Arroz, feijão, batata souté, salada de tomate e… rúcula.

 

Sentados à mesa, ela aciona o seu mais radiante sorriso em direção ao carinha da mesa ao lado. Foi quando se deu o desastre: aquele tiquinho de rúcula entre os alvíssimos incisivos. Quanto mais metida e insinuante a darling se mostrava, mais a verdura tornava bizarra aquela diva de subúrbio. Era nojento, constrangedor, hilariante. E a Deborazinha se achando.

 

Ele regozijava-se intimamente com aqueles míseros milímetros quadrados de rúcula, cujo poder de destruição ecoava por toda a Panificadora Doce Mel.

 

Contou: 28 à sua frente, sendo 7 office-boys. Aquelas caras de segunda-feira, mesmo sendo uma quinta que anuncia a sexta que traria o redentor fim de semana.

 

Se estudasse direitinho não estaria ali e não seria o que era. Esse ser de cera, dez horas por dia com o traseiro soldado a uma poltrona de escritório sem apoio para os braços. Essa previdente figura que não sai de casa sem guarda-chuva e talões de zona azul.

 

A cordinha de nylon a balizar a fila. Em todas as filas, de todos os bancos, a mesma cordinha e o mesmo dim-dom anunciando o caixa livre. Um passo à frente.

 

Olhou para o cartaz, na parede próxima ao subgerente. Um casal, dois filhos e um cão de guarda simpático, todos transbordando de felicidade graças ao seguro de vida que, além de cobrir morte, invalidez permanente e renda cessante, ainda oferece sorteios mensais de casas, carros e notebooks.

 

De novo a imagem da Débora, com sua carruagem transformada em abóbora ao meio-dia. Foi-se o encanto, seu sapatinho de cristal virou pantufa de palhaço. A Débora a quem a rúcula tornou ridícula.

 

Dim-dom. Chegou sua vez.

 

Olha no crachá da moça: outra Débora. Ela diz “pois não” sorrindo. E sem rúcula nos dentes.

 

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Bianca

 

I

Bianca, a mais do que muito séria, fizera filho no banco da frente do Dodge emprestado, as costelas raspando no volante, de longe se via o carro chacoalhando. Fosse de fato séria a fama de séria, ela não chegaria a tanto, não a ponto de esfregar-se em pelo, unhas e secreções a céu aberto e justo com aquele um, o primeiro que se achegou no começo da quaresma.

  

II

Nunca a tão fêmea Bianca pareceu tão pálida e tão perdida, quando chamou num canto a mãe para uma dura conversa. E lhe falou do filho vindo, ia assumir o mau passo. Era uma quinta esquisita, onde se via uma lua de estranhíssimas crateras.

 

III

A doce e insensata Bianca, ainda que poucos soubessem, era valise sem dono. De tão distraída que era, nem se lembrava com quantos tinha dormido e acordado sem que adivinhasse o nome e sem que soubesse que aquilo não era coisa que se fizesse. E foi assim que o filho, de pai com ficha na polícia e feito às pressas num Dodge, cresceu um moço perverso, maldizendo o berço infame e os tropeços de Bianca, sua mãe, a bem nascida.

  

IV

Bianca, a mais linda ainda que mais velha, passou a trazer na pele um bocado das crateras da lua de outros tempos. Enclausurou-se e deixou que a vida lhe vincasse num convento – que acabou sendo invadido por um moço de capuz, condenado a 30 anos pelo estupro de uma freira.

 

- Imagem: wikimedia commons.

 

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Dorival não era assim

 

- Estou lhe dizendo e tenho como provar. Fui o personal trainer do Dorival Caymmi de 1976 até o dia do desencarne. Ele fazia a vida todo o marketing da preguiça baiana, essa é que é a verdade. Ninguém chegaria aos 94 se entupindo de vatapá, espraiado na rede e só saindo dela para ficar se lamentando de saudade da Bahia.

 

- Mas nenhum baiano fez isso tão bem quanto ele.

 

- Lógico. Quem sou eu pra questionar? Mas se tinha tanta saudade assim da terra dele, porque não voltava logo de uma vez pra lá? Podia morar onde bem entendesse, o homem era mito, monstro sagrado. Ele não queria era sair do Rio de Janeiro, da academia de ginástica particular que tinha em casa, das doses cavalares de Mega Mass.

 

- Você é um caluniador, está chutando cachorro morto. Cometa suas infâmias com quem é vivo e pode se defender. O que você quer é difamar o bom nome do ícone da letargia soteropolitana. A malemolência malandra do brasileiro deve muito ao sábio sedentarismo de Dorival.

 

- Pois eu lhe digo que o homem puxava ferro como ninguém, meu amigo, das quatro às sete e meia da manhã, inclusive aos domingos. E depois dos aparelhos de musculação vinham as sessões infindáveis de abdominais e bicicleta ergométrica na carga máxima. Aí quando chegava a imprensa ele escondia tudo, me dispensava mais cedo e vinha com aquela conversa que não fazia esforço pra não gastar o corpo, que esse era o segredo da longevidade, a baboseira toda que você já conhece e que a mídia só foi ajudando a espalhar. Baiano esperto, espertíssimo. Aquele andar moroso era cansaço físico. Era fadiga muscular, ligamento estirado e outros transtornos de quem pega pesado demais na malhação. E o Brasil inteiro pensando que o homem ficava ensaiando três dias antes de se levantar pra fazer xixi…

 

- Mas e a barriga? Quem faz tanto exercício assim fica lisinho de abdômen.

 

- Já viu alguma foto dele de barriga de fora?

 

- Não.

 

- Pois então. O que parecia ser barriga debaixo da camisa era enchimento, e enchimento de chumbo – o que ajudava ainda mais a manter a forma enquanto ele ia pras gravações, programas de auditório e coletivas de imprensa. Uma vez, quase que um paparazzo deu um flagra. A cortina da sala tinha ficado um pouco aberta e ele estava em pleno trabalho de tríceps, com a toalha em volta do pescoço e mamando isotônico de canudinho. Foi depois disso que eu disse a ele pra trocar o squeeze por um coco verde de plástico com revestimento térmico.

 

- Sei, sei. Você quer é ganhar holofote e dinheiro com essa história. Aposto que já tem um livro pronto, coisa de jornalista decadente e endividado que aparece do nada com biografia caluniosa não autorizada, feita pra criar polêmica e arrumar encrenca judicial com a família do morto.

 

- Olha, esse desaforo eu vou fingir que não escutei, tá certo? Outra falácia foi o que alegaram como sendo a causa mortis do Dorival: um câncer renal. Faz-me rir, se soubessem o quanto eu alertei o Caymmi pra pegar leve… mas ele era teimoso e dizia que ia fazer só mais um pouquinho de exercício. E aí era mais uma série de 100 flexões, no outro dia mais 200, depois500 a mais do que o recomendado pra idade dele. Não demorou muito para o dia fatal. Ele tinha terminado o step e foi direto pro halteres, começando com 150 quilos. Fez 22 levantamentos consecutivos, depois 40 minutos de esteira a25 km por hora. Quando ia sair para se abastecer de anabolizante, a máquina finalmente entrou em pane irreversível e o maior atleta baiano de todos os tempos foi encontrar Mãe Menininha.

 

- Sei… aquela que todo ano vencia a maratona de Nova York, né?

 

- Imagem: wikimedia commons.

 

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Ira de Zebedeu

 

 

É claro que estou no céu, junto dos meus dois célebres filhos: João e Tiago, ambos apóstolos de Jesus Cristo. Moro no paraíso, mas minha autoestima há mais de 2000 anos vive nos quintos dos infernos.

 

Que não existam muitas pessoas que se chamem Judas, Herodes ou Pôncio, vá lá, justifica-se. Mas a que se deve a ausência de Zebedeus nas certidões de nascimento pelo mundo afora? Meu nome é tão bíblico quanto os nomes de meus filhos, embora meus dois rebentos apareçam mais vezes que eu nas Sagradas Escrituras.

 

A propósito, pai de santo (não confundir com a autoridade da Umbanda), e no meu caso de dois santos, deveria com toda justiça ser tratado como santo também. No entanto, milhões pessoas se chamam João e outras milhões são batizadas como Tiago. Mas por acaso alguém conhece outro cristão, além de mim, que se chame Zebedeu?

 

Uma explicação para essa repulsa talvez esteja no fato de que Zebedeu é quase um anagrama de Belzebu. Sim, é uma hipótese. Assim como é provável que muitos desistam de criar xarás deste que vos fala porque a criança seria a última a constar nas listas organizadas por ordem alfabética – ficando à frente apenas de improváveis Zildas, Zoroastros e Zulmiras. Outros podem alegar que o nome simplesmente é feio que dói, mesmo que este seja um critério subjetivo.

 

É bom lembrar ainda o desserviço que prestam alguns dicionários, ao definirem “Zebedeu” como burro, palerma ou abestalhado, disseminando mais e mais a maldição zebedêutica. Oh, Senhor dos Aflitos, o que será que fiz de errado para merecer tanta e tão injusta humilhação? Mais triste ainda é ver aqueles que recebem meu nome como apelido infame, muitas vezes horrivelmente grafado como “Zé Bedeu”. Também já me impuseram a vergonha de associar minha sagrada pessoa a grupos de forró, blocos carnavalescos e duplas sertanejas de mal afamado repertório, o que é ainda mais grave e ultrajante para quem sempre andou na linha enquanto esteve na Terra.

 

Fosse meu nome mais bonito, certamente a Igreja há séculos já teria me canonizado. Mas não, fui sendo posto de lado e vendo, com indignação, gente bem menos santa sendo elevada à santosfera sem maiores embaraços teológicos ou burocráticos.

 

Chega, é hora de reabilitar minha moral na praça, custe o que custar! Para isso, deixo desde já bem clara a minha intenção de abençoar pessoalmente e proteger cada passo da vida do sujeito que batizarem com meu nome. Será coberto de bem-aventuranças e terá minha intercessão exclusiva em favor dele junto à alta corte celeste. Isso eu juro, ou não me chamo Zebedeu.

 

- Imagem: Wikimedia Commons.

 

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Evolução do homem – A errata

 

 

A ciência acaba de comprovar, agora oficialmente, aquilo que todas as evidências demonstravam: o homem não é o macho da mulher, da mesma forma que a mulher não é a fêmea do homem.

 

Passado o espanto inicial da descoberta, é preciso reconhecer que isso explica muita coisa. Para começo de conversa, chegou-se à conclusão de que o que ocorreu na verdade foi a extinção ou o não-desenvolvimento, ao longo da escala evolutiva, do macho da mulher moderna. Um descompasso onde notou-se fantástica evolução do gênero feminino, num dado período de tempo, concomitantemente a uma inexplicável involução do bicho homem.

 

Trocando um pouco mais em miúdos e em linguagem leiga o longo e minucioso estudo, podemos dizer que o homem das cavernas teve a sua mulher das cavernas, o pitecantropo teve a sua pitecantropa, o neanderthal teve a sua neanderthala, o homo sapiens teve a sua fêmea sapiens e daí em diante deu-se o surgimento da espécie que o estudo denomina mulieris modernensis - que continuou se acasalando com o velho homo sapiens por absoluta falta de opção, já que este ficou marcando passo física e intelectualmente. A causa do ocorrido, entretanto, ainda é um mistério para os cientistas.

 

Daí tantos divórcios e casamentos fracassados, a ponto da separação tornar-se praticamente a regra dos matrimônios. O que leva a crer que os raríssimos casamentos que dão certo se devem a um destes fatores: ou homens um pouco mais evoluídos que a média, ou mulheres menos.

 

Algumas peculiaridades nos caracteres sexuais secundários e nos hábitos observados ofereceram valiosos subsídios para que a ciência chegasse à conclusão ora divulgada. A densa pelagem masculina, a maior truculência nos gestos e atitudes, a proeminência do pomo-de-adão, a rudimentar mania de deixar toalhas de banho molhadas sobre a cama e o fanatismo por esportes violentos são alguns dos indícios a sustentar a tese de que o homem está mais próximo do orangotango do que de sua própria esposa. Uma vez que estes e outros fatos e comportamentos não encontram correspondência na fêmea humana, a óbvia conclusão é de que homens e mulheres são espécies diferentes.

 

Mantida em sigilo até o momento pela comunidade científica, a pesquisa antropológica e seu contundente resultado pode determinar uma convulsão social sem precedentes. Alguns grandes expoentes do meio acadêmico sugerem que dificilmente o documento será visto com apatia ou indiferença, especialmente pelos movimentos feministas. As mulheres podem reivindicar – e com abalizada razão – a soberania sobre os desígnios do mundo e o domínio sobre o sexo masculino, mantendo os homens cativos ou na condição de animais domésticos. Já os homo sapiens, que de sapiens têm na realidade muito menos do que supunham, provavelmente se organizarão num grande levante mundial contra a dominação feminina, lançando mão de tudo o que estiver ao seu alcance – de armas bélicas as mais diversas até esquecimentos coletivos de aniversários de casamento.

 

- Imagem: wikimedia commons.

 

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Êta, Universão velho sem porteira!

 

 

Eu acredito em terráqueos. É muita pretensão pensar que nós, extraterrestres, estejamos sozinhos nesse universo imenso. Isso contraria qualquer lógica. Por que somente nós, ETzinhos horrendos, cascudos e disformes, teríamos a regalia de sermos os eleitos da criação divina?

 

Creio piamente que há algo muito mais divertido, entre os terráqueos, do que este nosso primitivíssimo e insípido sistema de teletransporte. Coisas como carros movidos a combustível e autoestradas ligando um lugar a outro, onde se possa aproveitar cada minuto da viagem e torná-la mais lúdica e emocionante – desviando de buracos, parando em praças de pedágio, encarando engarrafamento ou comendo uma coxinha no caminho. Eu diria que isso sim é que é vida inteligente, ou, no mínimo, interessante.

 

Nós não morremos, não casamos, não nos reproduzimos sexualmente, não temos conta para pagar nem fezinha na loteria para fazer. Só ficamos de um ponto a outro desse universão de meu Deus, cruzando o cosmo na velocidade da luz e sem encontrar coisa alguma que valha uma distração ou um olhar mais atento. E o que é ainda mais triste: sem achar sentido nesse vai-e-vem abestalhado, nessa expedição sem missão determinada.

 

Terráqueos sim, devem levar a vida, com afazeres que os ocupam, preocupam e ajudam a matar o tempo. Há relatos (pouco científicos, é verdade) de habitáculos denominados casas e apartamentos, onde os terráqueos se abrigariam com seus entes queridos. E dentro deles há fêmeas com seios e nádegas, partes anatômicas que as nossas desengonçadas ETzas nem imaginam o que sejam, e que por certo lhes causariam uma inveja danada. Alguns dos nossos juram ter feito contato com eles e afirmam que os felizardos cortam grama, fazem churrasco, tiram fotografias das formaturas dos filhos e se deslocam diariamente a lugares onde as tarefas que executam são trocadas por uns papéis cheios de números e desenhos que eles posteriormente utilizam para converter em gêneros de primeira (ou nem tanta) necessidade.

 

Com exceção de alguns poucos privilegiados, que nada precisam fazer para terem em abundância os tais retângulos com números, os terráqueos lutam bravamente pela sobrevivência. Ah, minha Nossa Senhora da Ursa Maior, como isso seria maravilhoso para combater o tédio eterno que nos atormenta! Tudo bem, sei que sou só um ET lunático, mas não tenho culpa se insisto em sonhar com outras formas de vida. Enquanto esse acalentado encontro não acontece, deixa eu botar os pés no chão, passar na locadora e alugar pela enésima vez T, o Terrestre, para assistir no DVD do OVNI.

 

- Imagem: wikimedia commons

 

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O melhor negócio do mundo

 

 

- Indo direto ao assunto: a proposta é vendermos cartucho a preço de impressora e impressora a preço de cartucho. Resumidamente, é isso.

 

- Meio confusa e incoerente essa ideia, não? Explica melhor.

 

- De novo, curto e grosso: impressora a 170 reais e cartucho de tinta colorido mais o black a uns 130 o conjunto.

 

- Mas com base em que iremos justificar esse preço exorbitante dos cartuchos de tinta? Todos sabemos que, somados todos os insumos e a margem de lucro, o preço final justo seria muitíssimo menor que esse.

 

- Já pensei nisso. Vamos nos calçar numa hipotética tecnologia HighPrint Ultra Extra Long Lasting Performance. Deu pra entender o raciocínio? Já passei para a gerência de produtos a tarefa de criar um nome bem “tecno” e sonoro.

 

- Isso não vai funcionar, o consumidor não é bobo. Nada no mundo seria mais caro que tinta de impressora. Até as raríssimas trufas brancas italianas seriam mais baratas, concorda? Não demoraria nada para surgirem fabricantes com cartuchos compatíveis, vendidos pela metade do preço. E ainda assim ficariam ricos.

 

- Por mais que surjam e cresçam os mercados paralelo e o de remanufaturados, ainda assim será imensa a demanda pelo produto original da impressora. Faremos uma campanha unindo relações públicas, assessoria de imprensa e propaganda, onde venderemos a ideia de superioridade e de garantia da marca original. Quem vai querer arriscar um trabalho mal impresso ou uma foto borrada? Quem?

 

- Mas…

 

- E tem outra, meus caros. Quem usa muito a cor amarela nas impressões, por exemplo. Essa tinta fatalmente vai acabar antes das demais, e isso forçará o consumidor a substituir o cartucho todo. O incauto usuário pagará preço do cartucho inteiro para só usar 25 ou 30% dele. Se for ainda mais bonzinho e devolver o cartucho usado nos nossos pontos de coleta, poderemos reaproveitar a tinta remanescente. Ganhamos os tubos, ou melhor, os cartuchos, e ainda passaremos a imagem de empresa ambientalmente responsável. A jogada é perfeita!

 

O diálogo pode ser fictício, mas não parece estar tão distante da realidade. Veja o leitor os dados abaixo, levando em conta que os valores não estão atualizados, pois são de 2009.

 

“A grande sacada dos fabricantes: oferecer impressoras cada vez mais e mais baratas, e cartuchos cada vez mais caros. Nos casos dos modelos mais baratos, o conjunto de cartuchos pode custar mais do que a própria impressora. Veja: pode compensar mais trocar a impressora do que fazer a reposição de cartuchos. Exemplo: certa marca de impressora é vendida nas lojas por aproximadamente R$ 170,00. A reposição dos dois cartuchos (10 ml o preto e 8 ml o colorido), fica em torno de R$ 130,00. Daí, você vende a sua impressora seminova, sem os cartuchos, por uns R$ 90,00 (para vender rápido). Junta mais R$ 80,00, e compra uma nova impressora e com cartuchos originais de fábrica.

 

Para piorar, de uns tempos para cá, os fabricantes passaram a DIMINUIR a quantidade de tinta (mantendo o preço). Um cartucho com 10 ml custa R$ 55,99.  Isso dá R$ 5,59 por mililitro. Só para comparação, a champagne  Veuve Clicquot City Traveller  custa R$ 1,29 por ml. Além disso, algumas impressoras estão vindo somente com 5 ml de tinta!

 

Uma outra linha de impressoras vende um cartucho para a linha X com 5,5 ml de tinta colorida por R$ 75,00. Fazendo as contas: 1.000 ml / 5,5ml = 181 cartuchos a R$ 75,00 = R$ 13.575,00. Isso mesmo: R$ 13.575,00, por um litro de tinta colorida.”

 

- Fonte: http://projetoriovivo.blogspot.com.br

 

- Imagem: wikimedia commons

 

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A morte pede suborno

 

De que lhe vale esta mansão estilo Tudor, se dorme no chão para não gastar os lençóis? Atravessa os dias e as noites contando dinheiro, e a única coisa que consegue interromper esse passatempo vitalício é o boletim com a movimentação da bolsa e a cotação das commodities.

 

Ele ainda confia na eficácia redentora do óleo de fígado de bacalhau e desconfia dos comprovantes de banco.

 

“Que segurança pode ter um papel cuja impressão some toda com meia hora de sol ou três dias dentro da carteira? Se é para ser comprovante e documentar a transação, o que está impresso nele não deveria sumir nunca.”

 

E aí ele tem toda razão. Não dá mesmo pra explicar esse negócio. Mas ele tinha outras e impagáveis assertivas, que repetia em tom ranzinza.

 

“Há muito tempo ouvi dizer que Aristóteles Onassis começou sua fortuna catando na rua bitucas para fazer novos cigarros. Isso é senso de oportunidade. Isso é erguer tudo do nada, revidando ao mundo e ao destino a pobreza de nascença.”

 

Come maçãs acompanhadas de coisíssima nenhuma, pois lhe disseram que, ao mesmo tempo em que nutre e faz bem à saúde, conforme é mastigada a fruta já vai limpando os dentes, o que lhe poupa gastos com escova e creme dental.

 

“Uma maçã todo dia, não mais que uma. A ruína de Adão me blindará e será o meu salvo-conduto para o século que vem. Viverei mais que todos e evitarei o Alzheimer contando minhas lindas notas. Contar dinheiro exercita a mente e é tão terapêutico quanto fazer palavras cruzadas.”

 

É, e pelo menos para ele, trata-se de uma tarefa que serve para alguma coisa. De qualquer forma, jamais deixaria outra pessoa fazer isso em seu lugar.

 

Arranca todas as etiquetas visíveis de suas roupas. Entende ele que essa é uma forma de propaganda do fabricante e, até onde sabe, jamais será remunerado pela veiculação. Então, tesoura nelas. Nem bem saem das lojas e as roupinhas de grife viram artigos genéricos.

 

“Ainda se a roupa saísse de graça, vá lá, tudo bem. Até toparia a permuta. Eles me dariam as calças, camisas e sapatos e eu sairia pra rua desfilando as marcas deles”.

 

“Caixão não tem gaveta”, para ele, é só uma frase feita – nunca uma sentença. Como não tem mais ninguém nesse mundo, ocupará sozinho o imenso mausoléu que mandou construir em meados dos anos 80. Sobrará espaço bastante para abrigar, ao lado dos seus ossos, as notas que conta e as que ainda irá contar. Enquanto isso, conforma-se em abrir mão de algumas delas para subornar a morte, que de vez em quando aparece com sua foice para levá-lo.

 

  *  *  *

 

A capital mundial do bilboquê

 

Para os menores de 30, é natural não conhecê-lo. Então comecemos por uma sucinta, porém honesta definição.

 

Bilboquê: originário da França, há cerca de 400 anos, foi o brinquedo favorito do rei Henrique III. Consiste em duas peças: uma bola com um furo e um pequeno bastão, presos um ao outro por um cordão. O jogador deve lançar a bola para o alto e tentar encaixá-la na parte mais fina do bastão. (Fonte: www.desenvolvimentoeducacional.com.br).

 

Mais do que um brinquedo, Bilboquê é o nome de uma cidade, localizada a noroeste da pacata estância de Nhambu Mor. Chamada originalmente de Anthero Lontras, foi rebatizada devido ao número desproporcional de habitantes que fizeram do bilboquê a razão de suas vidas, dedicando-se ao artefato em tempo integral (incluindo-se aí os intervalos para as necessidades fisiológicas).

 

A tradição se mantém até hoje, ganhando novos e habilidosos adeptos. Nem bem raia o dia na cidade e já se ouvem os toc-tocs dos pinos tentando encaixar nas bolas. Uma distinção semântica se faz necessária: os naturais do vilarejo são denominados bilboquenses, os praticantes são os bilboqueiros e as garotas de torcida, que vibram nos campeonatos da modalidade, são, com todo respeito, as populares bilboquetes.

 

Bilboqueia-se o tempo todo, em cada esquina, nas salas de aula e nos recreios de todas as escolas, nos guichês da prefeitura e até mesmo nos velórios, onde não raro o defunto segura na mão esquerda a esfera de madeira e na direita o pino de encaixe. Reza a lenda que certo pároco da matriz, adepto fervoroso e compulsivo, foi excomungado pelo bispo de então por manter-se bilboqueando na hora da consagração das hóstias. Assim, desse incessante bilboquear fez-se o encanto e a vocação turística do município. Nos meses de alta temporada, legiões de visitantes tomam a cidadezinha. Muitos em busca de aprimoramento na prática, outros atraídos pelo matraquear das madeiras batendo – tido como um sonífero poderoso e um verdadeiro bálsamo para os workaholics das grandes metrópoles.

 

Não tardou para que a fama do efeito tranquilizante do brinquedo se espalhasse e  trouxesse novos investimentos. Em 1976, um discípulo do Maharishi Mahesh Yogi fundou, em aprazível colina da zona rural de Bilboquê, o Centro de Meditação Transcendental Bilboquética. Lá se reúnem, em posição de lótus, milhares de praticantes meditativos que encontram no manuseio do bilboquê um mantra dos mais eficazes e um atalho para o nirvana.

 

No dia 12 de junho, manda a tradição que os namorados presenteiem as moças não com buquês, mas com bilboquês de flores. É quando os mesmos ganham as mais graciosas e criativas estampas florais, que vão das margaridinhas do campo às orquídeas.

 

À noite, acasalam-se machos e fêmeas nativos para se dedicarem ao ofício da preservação da espécie – o que não deixa de assemelhar-se a um bilboquê carnal. Mudam, porém, os ruidos, e os característicos toc-tocs dão lugar a outras e mais sensuais onomatopeias.

 

 

 

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