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Página de Marcelo Sguassábia em Via Fanzine

 

Todos os textos:

Por Marcelo Sguassábia*

De Campinas-SP

Para Via Fanzine

© Direitos Reservados

 

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* Marcelo Sguassábia é redator publicitário e colunista de diversos jornais e revistas eletrônicas.

É colaborador de Via Fanzine.

   Seu blog: Consoantes reticentes. E-mail: msguassabia@yahoo.com.br.

 

   

Natal de araque

 

 

- E então, como foi na entrevista?

- Vou ter que engordar uns 22 quilos se quiser pegar a vaga de Papai Noel. O recrutador disse que a barba está boa, mas meu rosto está muito chupado.

- Só que pra você engordar vai ter que comer, e se tivesse o suficiente pra comer não tinha que procurar esse bico. Não dá pra colocar uns enchimentos debaixo da roupa? Um almofadão, um edredon fofo?

- Não adianta... Papai Noel tem cara gorda, tem braço gordo. E nos gordos de verdade até a voz é diferente. A minha é um fiapo, Maria... Parece aquelas de Pato Donald quando entrevistam bandido no Jornal Nacional.

 

********

 

Bem, analisamos todos os candidatos e apesar da magreza optamos por você. O esquema é o seguinte: você acomoda o peste nos joelhos e faz o interrogatório, observando rigorosamente esta sequência:

. Você é um bom menino?

. Se comportou durante o ano?

. Obedece papai e mamãe?

. Vai bem na escola?

. Come toda a chicória do prato?

Depois de ouvi-lo mentir em todas as respostas, você pega a cartinha da mão dele, lê em voz alta, coloca ela no saco, dá um beijo na testa do ranheta e enfia dentro do envelope o folheto da loja que tem o brinquedo que ele pediu. Aí você diz pro melequento entregar o envelope pro pai dele, falando que é a resposta do Papai Noel, ok? O que converter em venda você leva meio por centro. Feito, meu velho?

 

********

 

O turno era de 14 horas ininterruptas. O assento do trono tinha uma pequena tampa que dava direto para um outro trono, da Celite, pra que Papai Noel não precisasse sair dali pra nada. A fila tinha de andar, fazer o quê. E calculando a conversa de cada pentelho com o bom velhinho, mais a pose pra foto, tínhamos a média de 2 minutos e meio por peralvilho.

 

********

 

- Gui, olha só o Papai Noel!!!

- Ô mãe, é Natal ou primeiro de abril?

- Por que a pergunta, Gui?

- Papai Noel chega de trenó, não de helicóptero como esse aí. Não tem tatuagem da Harley Davidson e do Che Guevara perto do cofrinho. Não fede cachaça. Ah, e na roupa desse velhinho aí tem uma etiqueta escrito “Casa das Festas”. Estranho, não? Esse não é Papai Noel. É um mentiroso sem vergonha.

- É isso mesmo, o senhor é um impostor. A gente passa o ano todo dizendo para os filhos que mentir é feio, que se disser mentira não ganha presente de Natal. Aí chega aqui no shopping e encontra um Papai Noel fajuto, mais suspeito que brinquedo chinês. Nem criancinha lactente cai nessa esparrela. O senhor não passa de um artigo de 1,99!

- É, vamos processá-lo por falsidade ideológica, mãe. Esse Papai Noel cover não tem nada a ver. O verdadeiro Nicolau deve estar indignado com esse rascunho genérico.

- Chuta o saco dele, Gui, chuta. Isso!

 

********

 

O escândalo do Noel desmascarado espalhou-se mais rápido que as renas do Noel de verdade. Tiveram de arrumar um substituto às pressas, este afiançado pela administração do shopping como legítimo. O risonho, bonachão e desta vez suficientemente gordo Santa Claus distribuía ho-ho-ho’s por onde passava. No mais, os piscas, as bolas multicores, as guirlandas e os sinos badalando anunciavam um natal a preceito, como deve ser. Contudo, um guri capcioso, na hora de subir ao colo do obeso acetinado, viu o que não devia ver: uma fitinha do Senhor do Bonfim amarrada no punho do Papai Noel. Do verdadeiro Papai Noel.

- Ô manhêêêêêêêêêêêêêê! Vem cá ver uma coisa!

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 23/12/2015.

 

*  *  *

 

Vendo telefone por motivo de mudança

 

 

Resumo dos capítulos 1 a 94

 

O nome já explica mais ou menos o princípio da coisa: celular. O sinal de radiofrequência é repetido por células de transmissão, ou Estações Rádio Base - aquelas torres horríveis. As células têm um determinado raio de cobertura, e se comunicam umas com as outras para completar a chamada, seja lá em que parte do planeta o sujeito esteja recebendo ou fazendo a ligação. A cada 500 metros, uma antena. Ou melhor, a cada 350. Minto: a cada quarteirão. Para instalar o monstrengo metálico, 26 homens treinados na Finlândia. A torre abriga 2.358 componentes de extrema sofisticação tecnológica, com alíquotas de importação proibitivas. A instalação é de madrugada, para não dar na vista. Para não dar margem de contestação. Para não dar chance à vizinhança de tentar se defender do suposto risco de câncer. Aí começa. Vamos fazer um abaixo-assinado. Vamos lavrar boletim de ocorrência. Vamos reunir uma multidão para abraçar a antena e chamar a televisão para fazer reportagem. (Tudo bem que celular precisa de antena, mas não na frente das nossas casas!). Só que antes, algum Judas da comunidade teve de ceder espaço para a antena operar. O dono do terreno baldio estava mesmo com a corda no pescoço, e os 15 mil de aluguel por mês chegam em boa hora. Contrato de 8 anos. Mais 2 mil por ano de IPTU. Mais todos os outros tributos municipais, estaduais e federais. Mais a licença de operação. Mais os vigilantes, um por turno. Mais muro de quatro metros com cerca elétrica em cima. Mais a praça do bairro que teve de ser adotada em troca de uma momentânea trégua com os moradores. Tanto investimento precisa se pagar, o quanto antes, para não enfurecer os acionistas e manter em alta o preço das ações na bolsa de valores. Dá-lhe campanha atrás de campanha. Promoção atrás de promoção. Aparelho de graça. Programa de fidelidade com novecentas voltas ao mundo e um milhão de minutos de bônus para se esgoelar de falar. A qualquer hora, para qualquer número, de qualquer operadora. Patrocínio de futebol e marca estampada em tudo quanto é canto, do nome do estádio ao cadarço do tênis do gandula. Lobby em Brasília para garantir a perpetuação do cartel e a autonomia na administração do preço por minuto cobrado em cada região. Contestação jurídica. Queixas no Procon, por abuso de poder econômico, descumprimento de contrato, cobrança indevida na conta, propaganda enganosa, ausência de sinal.

 

Capítulo 95

 

WhatsApp. Sabe o wi-fi da sua casa? Então. É isso.

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 13/12/2015.

 

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Vendo estante por motivo de mudança

 

 

I

Só quem foi geração coca-cola naqueles entediantes 80 sabe o quanto custava juntar dinheiro para levar um LP da loja. O jeito era apelar para o compartilhamento de arquivos da época - pegar os discos emprestados e gravar em fita cassete, de 45, 60 ou 90 minutos. Você cedia os seus xodós para o vizinho, e ele os bolachões que tinha para você. Com mútua promessa de voltarem sem riscos nem barulho de lenha crepitando na lareira.

 

II

Antes do três-em-um National que ganhou no Natal de 82, um que fazia a proeza de gravar direto para a fita equanto o LP tocava, o procedimento era outro. Colocava-se o disco na sonatinha portátil e posicionava-se o microfone do gravador bem perto do alto-falante da vitrola. Só que o microfone aberto captava, além da música, todos os outros sons que fossem emitidos nas imediações. Gritos da mãe chamando para o almoço, canto de cigarra, chuva caindo, latido de cachorro, a perua vendendo pamonha de Piracicaba e o que mais fosse auditivamente perceptível no ambiente doméstico.

 

III

Quem não tivesse vizinho nem disco para compartilhar, que ficasse o dia todo esperando a única FM que pegava num raio de 150 km, até que o DJ resolvesse tocar a música que você queria. E apertar o play a tempo para a gravação não comer um pedaço dela.

 

IV

Bem-vindo à era do compact-disc, o revolucionário CD. Som puro, sem riscos, espetacular capacidade de armazenamento. Nunca mais ficar mirando a faixa no acetato para não errar a música. Nunca mais caneta bic na fita cassete. Chegamos ao ponto máximo da tecnologia. O que de mais moderno poderia aparecer depois disso?

 

V

Está tudo na rede, é só ter tempo e paciência para garimpar. Dê a busca pelo nome da música ou do álbum e vá conferindo as ocorrências. Alguns perigosíssimos sítios virtuais já entregam, numa baixada só, discografias inteiras. A raiva é quando está tudo certo, clica-se em "download" e aparece a mensagem dizendo que o arquivo foi removido por violação de direito autoral. De 2002 a 2013, foram mais de dois mil álbuns baixados e dois milhões de cavalos de troia reunidos em um fabuloso haras no computador. O HD inteiro perdido, inapelavelmente. Uma saga de trabalho insano e murros sem conta em cima da bancada, mais de uma década de sacerdócio cibernético jogados no lixo.

 

VI

Ali estão todos eles forrando as quatro imensas estantes, produtos de milhares de horas a menos de sono. Metade das fitas oxidando, metade travando ou rompendo no rebobinamento. Metade dos discos com os sulcos perdidos de poeira, metade com os encartes devorados pelas traças. Metade dos CDs travando na terceira faixa, metade com os códigos binários estranhamente embaralhados.

 

VII

Você acorda com vontade de escutar o Réquiem de Mozart. Spotify, Mozart, Réquiem, pronto. Só em um dos vários serviços de streaming,  mais de duzentas extraordinárias versões diferentes para se ouvir de graça, quando quiser, liberando metros e metros de estantes só para livros e porta-retratos. Enquanto escolhe qual vai querer escutar primeiro, a incômoda sensação de que quem deveria estar na estante tomando pó é você mesmo.

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 05/12/2015.

 

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Shangri-lá é só aqui

 

 

Que ninguém alegue ignorância sobre o castigo que espera quem conhece o lado de lá das nossas montanhas. A ira divina cairá como um raio sobre a cabeça dos desobedientes, assim que chegarem ao topo das fronteiras do reino. Conhecerão a desgraça de uma sociedade injusta e defeituosa, onde prevalece a carência em todos os níveis e onde a alegria é a exceção da regra. Ser curioso, no caso, trará desastrosas e irreversíveis consequências.

 

Se por aqui nossos orgasmos duram doze miseráveis minutos, lá é ainda pior. Dez segundos, quando muito. Pensem bem: quem é o maluco que vai se dar ao trabalho de se arrumar para sair, conquistar alguém do sexo oposto, adular a presa durante semanas ou meses para tudo acabar no tempo que se leva para dar um espirro?

 

Sabemos que não há nada de extraordinário em ter 16 narizes. Diria até que, para a maioria de nós, seria muito difícil imaginar a vida com apenas 15, como é o caso de algumas crianças com má formação congênita. Que dirá viver com apenas um? Pois esse é o caso dos povos além-montanhas. O mínimo que se poderia aceitar como razoável seria uns três narizes no rosto e mais uns dois nos ombros ou nas costas - jamais um só, na parte da frente do corpo. A coisa é mesmo estranha e funcionalmente limitada. Além disso, os sovacos tendem a ficar peludos se não forem raspados, as unhas precisam ser cortadas de vez em quando e há quatro dentes que nascem apenas para serem extraídos.

 

Pela enfadonha e inútil repetição de tarefas, a rotina deles dá pena. Saem de casa toda manhã, se metem em filas intermináveis de automóveis, passam raiva o dia inteiro, se estressam, amaldiçoam patrões e governos, entram de tardezinha em outro comboio de carros para voltar à casa e fazer exatamente as mesmas coisas no dia seguinte. Tudo isso para conseguir juntar um dinheirinho e passar uma semana por ano do mesmo jeito que nós passamos a vida toda: deitados à sombra dos coqueiros, comendo camarão e tomando caipirinha.

 

Mais ou menos por essa época, nossos desafortunados vizinhos comemoram o réveillon como se algo, finalmente, fosse mudar. Esvaziam seus sacos de cólera e frustração à beira-mar, para enchê-los de novo até a boca nos doze meses seguintes. E assim sucessivamente, até morrerem em seus pijamas, aos cuidados de desconhecidos e com incontinência urinária. Sim, porque estranhamente esses humanoides vão perdendo saúde com a idade, e seus órgãos não se reconstituem como os nossos. O resultado é que não chegam nem mesmo aos 150 anos, idade em que nós celebramos o início da adolescência. Agora, me digam: para viver tão pouco e tão mal assim, vale a pena o trabalho de nascer?

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 28/11/2015.

 

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O MBSC e o torneio de abdominais

 

 

Respeito as categorias e organizações formalmente constituídas, bem como seus direitos reivindicatórios. Mas desde que suas bandeiras sejam factíveis e que se manifestem pacificamente, sem comprometimento da ordem e do direito de ir e vir da população. Não foi o caso da arruaça travestida de protesto conflagrada pelo MBSC – Movimento dos Botões Sem Casa, na última quinta-feira.

 

A exemplo do que ocorre anualmente, saíram às ruas, alinhados e em passeata, botões de todos os feitios e tamanhos: brancos e coloridos, de plástico, madrepérola e madeira, os nus e os revestidos de tecido. Até mesmo os botões da Revolução de 32, já partidos ao meio, desfilavam garbosos como numa parada da Independência. Aos gritos de “Queremos Casa!”, procuravam a todo custo sensibilizar os cidadãos de bem a abraçarem seu ideal.

 

O epicentro da algazarra ocorreu pouco antes das onze da manhã, quando os botões e seus líderes juntaram-se a outra manifestação em curso, esta dos descamisados, no cruzamento da Duque de Caxias com a Quintino Bocaiúva. O desfile tomou corpo e ganhou novo e unificado grito de guerra: “Botões e descamisados unidos jamais serão vencidos!”.

 

Abramos um parêntese e tracemos um paralelo entre o MBSC e o MST. O leitor há de convir que promover reforma agrária vai além da distribuição de terra. As famílias assentadas precisam ter acesso a sementes, adubos, defensivos, meios de armazenagem e toda infraestrutura de escoamento da produção.

 

Da mesma forma, no caso do MBSC, de nada vale subsidiar as casas dos botões se junto com elas o governo não oferecer os insumos necessários à subsistência dos beneficiados, tais como linhas, agulhas e demais aviamentos. Em suma: a meu ver, criou-se enorme balbúrdia em torno de uma proposta inviável e de contornos nitidamente demagógicos.

 

Meu outro comentário diz respeito ao Torneio Interestadual de Abdominais, que em sua 28ª edição polariza todas as atenções e reúne dezenas de milhares de participantes no Ginásio de Esportes Joãozinho Rignoto. Rivalizando em porte e prestígio com a Festa do Peão de Barretos, este evento inseriu definitivamente nossa cidade no calendário turístico nacional. Tanto que o chamado “Circuito do Abdômen” já integra os pacotes rodoviários de várias operadoras de turismo.

 

Nada justifica, portanto, as falhas nos critérios de julgamento e premiação do certame. Como é sabido, as eliminatórias se dão em pequenos grupos de 800 atletas, que executam os movimentos abdominais sob os olhares atentos de 37 juízes. O problema está nas diferenças de constituição física entre os inscritos. Peso, idade, lordose, escoliose, hérnias de disco e pintas de nascença são variáveis que tornam a peleja desigual.

 

Some-se a isso os fatores genéticos. Existem indivíduos dotados naturalmente de musculatura abdominal mais desenvolvida, e não há nada o que se possa fazer a respeito. Também não me parece razoável colocar, numa mesma eliminatória e em igualdade de condições, um boia fria com Mal de Chagas e um roliço filho de fazendeiro com o bucho entupido de granola enriquecida de vitaminas e ferro (embora a granola, neste caso, possa eventualmente mais atrapalhar do que colaborar com o desempenho do cidadão).

 

Estas discrepâncias tornam especialmente meritórios os feitos de Athanazio Lemos, que na categoria meia-idade masculino chegou à marca de quase 59 abdominais no tempo limite de 1min e 35 segundos. Outra conquista de destaque coube a Leocinéia Arcádio, categoria terceira idade feminino, cujo escore alcançou bem mais de 67 movimentos concluídos com sucesso.

 

Urge que as autoridades se empenhem na normatização de parâmetros mais equânimes de disputa, a fim de que doravante nenhum inscrito seja prejudicado.

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 21/11/2015.

 

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Cine Luxor

 

 

Vinte e quatro quadros por segundo. A ilusão do movimento no seu olhar desiludido, em jogos de luz e sombra. Veio porque é domingo, depois da igreja e do almoço só pode haver o cinema. As manhãs preguiçosas do domingo, as tardes estéreis do domingo, as noites insuportáveis do domingo trazendo o nojo inevitável da segunda.

 

Ceda. Deixe estar, não há o que possa ser feito. Nada como uma inocente matinê quando o oco da existência se apresenta e toma assento. É, está sentado ao seu lado com aquela cara impassível e pagou meia, o espertinho.

 

Lá fora o mundo é lesma, um esparramar demoroso. Só o que prossegue é a sessão nesses rincões esquecidos. Uns poucos bem-te-vis pousados nos beirais do palácio branco em frente ao jardim. Num dos quartos alguém decerto faz a sesta reparadora. Passe pelo corredor, pare na sala. Os retratos a óleo simetricamente dispostos, os móveis espanados. Os ricos fartos do seu manjar, seus rostos sentindo agora a felpa dos veludos. Estão em paz com seus corpos e saciados em seus haveres.

 

Pegada à mansão, a escola. Muda e descorada, descansa solenemente da algazarra dos meninos. Em preto e branco e câmera lenta, um cachorro erguendo a pata e urinando no pneu. Todos na Vila Alva cheios como pneus – do dia que não acaba, das horas que não passam, da notícia que não chega. A rotina sem novidades de qualquer ordem, substancial e definitiva como um paralelepípedo. É o momento em que o olho pede lupa, a alma pede ânimo e cada coisa estática mostra a crueza que tem.

 

Espere um pouco. Volte ao filme. Rebobine, projecionista. Dez minutos de devaneio e lá se foi o enredo da história. Se alguém perguntar qual filme viu, não saberá responder. Abra uma bala. Chore, chorar faz bem. Nem vão reparar, tão pouca gente aí dentro. Estúdios de animação do mundo todo, uni-vos para animá-lo. Depressa, antes que lhe arrastem mil elencos de fantasmas e vilões. Lanterninha, acuda lançando luz sobre seus olhos marejados.

 

A perna dorme, o corpo cansa no estreito da cadeira. Cruze os braços, tente entender os diálogos sem olhar as legendas. Durma. Faça como a perna: durma. Tanta gente paga ingresso de cinema para dormir. Jogue-se num triplo mortal ao centro da tela. Deixe-se ser o mocinho desse roteiro caótico. Corta. Câmera abre o enquadramento e faz uma lenta panorâmica por toda extensão do que você foi até agora. Basta de fazer o cartaz do filme alheio. Veja a plateia vendo você dentro da fita, brilhe, acene, dê autógrafos, sinta aos seus pés o tapete vermelho da entrada do Oscar. Perpetue-se no celuloide. Coragem, vá. Queime de uma vez os negativos desses dias: bem-vindo à avant-première de si próprio, em doube surround e pleno de efeitos especiais. A comédia de levezas indizíveis, com o sapateado frenético dos musicais da Metro. Até a bilheteira rói as unhas, torcendo pelo seu final feliz. Se não pela sua vontade, ao menos pela bilheteira seja feliz para sempre. The End.

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 07/11/2015.

 

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Aparição

 

 

Quando dei por mim, de pé no meio da sala de jantar da fazenda, não saberia dizer de onde vim e nem por quanto tempo estive dormindo ou inconsciente. A dor nas costas e o andar vacilante eram indícios de anos amargados no leito, mas a minha impressão é que estava retornando de um rápido desmaio.

 

Me chamou atenção acima da lareira um retrato meu, tirado há uns dez dias quando muito, e que mais parecia o meu bisavô Honorato, pelo amarelado da fotografia. A queda do cavalo estava fresca na lembrança, e minha ida ao photographo foi na terça anterior ao acidente. Por que tão gasta a imagem e carcomida a moldura?

 

Mais uns passos e na cozinha me deparo com uma caixa branca de formato retangular, aparentemente de metal e quase do meu tamanho. A maçaneta sugeria uma porta e a abri, sentindo um frescor delicioso que contrastava com o mormaço da fazenda, àquela hora da noite. Dentro, bebidas e alimentos de feitios estranhos, iluminados por uma luz que ficava no fundo da caixa fria.

 

Numa das paredes do living havia uma espécie de tela preta envidraçada, de proporções próximas às de uma janela, onde se via um sujeito falando com um terno um tanto esquisito. Tentei tocá-lo, era impressionantemente real e muito mais nítido que um quadro. Sua boca se mexia mas dela não saía som algum. O silêncio tomava conta. As lâmpadas, muitas e todas apagadas, em nada se assemelhavam aos lampiões de querosene que até outro dia eu acendia ao anoitecer e apagava pela manhã.

 

As pessoas, umas quinze, contritas e concentradas em torno da grande mesa, oravam e invocavam meu nome. Fugia da minha compreensão o que se passava, pois todas eram a mim desconhecidas. Nem mulher, filhos ou parente próximo. Desgostava-me o incômodo daquela macabra assembleia tendo lugar ali dentro, profanando a Fazenda Santa Carolina e minha mesa de jacarandá. Era legítimo que retomasse meus domínios, queria enxotá-los dali, eles todos com suas roupas e penteados de péssimo gosto, a mencionarem insistentemente meu nome, em transe insano e de olhos fechados.

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 11/10/2015.

 

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Telemarketing para telebloqueio de telemarketing 

 

 

- Boa noite. O Sr. Antonio, por gentileza.

 

- É telemarketing, né? Olha, não estou precisando de nada não.

 

- Nos impressiona o fato de o senhor ter conseguido nos identificar. Tomamos todo o cuidado para não falar no gerúndio...

 

- Com gerúndio ou sem gerúndio, essa jeito de fala decorada e esse timbre de locutor de aeroporto não me enganam.

 

- Por obséquio, senhor, só um instante da sua atenção. Tomamos a liberdade de contatá-lo para livrá-lo em definitivo desse inconveniente. Sabemos o quanto as centrais de vendas por telefone andam importunando sua vida, e...

 

- Se sabem, então porque também praticam esse tipo de sadismo?

 

- Podemos garantir, senhor, que esta será a última chamada de telemarketing que o senhor atenderá. Isso, claro, se o senhor optar pela adesão aos nossos serviços. Nossos computadores interceptam as tentativas de contato e não deixam o telefone do cliente tocar, para não atrapalhar o seu sono ou o que quer que esteja fazendo.

 

- Mas já não tem uma lei que protege o cidadão contra esse tipo de abuso, minha filha?

 

-  Correto, senhor. Existe o bloqueio ao telemarketing do Procon de São Paulo, mas tem que preencher um formulário, aguardar 30 dias e o solicitante corre  o risco de empresas descumprirem a solicitação e insistirem em continuar ligando para o seu número. Com o nosso serviço, isso é impossível. Ele funciona por mecanismo de interceptação, uma tecnologia inédita desenvolvida pelos nossos programadores. Seu telefone não chega a tocar.

 

- Isso seria a glória.

 

- De maneira geral, os serviços mais inteligentes conseguem ludibriar os identificadores de chamada, fazendo rodízios dos números. Para se livrar do incômodo o senhor precisaria saber os números utilizados em rodízio por cada uma das centrais de telemarketing, o que seria impraticável. Algumas centrais adotam um expediente bastante engenhoso. No lugar de um número de telefone, aparece no visor de quem atende apenas um "01". Tudo para dificultar a identificação. Um outro estratagema muito comum é ligar e, assim que a pessoa atende, simplesmente desligar. É que só pelo fato da ligação ter se completado, o sistema já entende como efetuada na hora de apurar  o cumprimento de cota do operador.

 

- Brasil - sil - sil, né, minha filha? É o telejeitinho brasileiro.

 

- Estamos com uma promoção especial apenas para esta semana, e disponibilizamos ao senhor um mês de cortesia do serviço. Na eventualidade de receber qualquer ligação de telemarketing no período, nós depositaremos em sua conta o valor equivalente a uma mensalidade, a título de ressarcimento por falha de serviço. Poderia me fornecer agora os dados do seu cartão para habilitar imediatamente o telebloqueio, por gentileza? Lembrando que o primeiro mês é test-drive.

 

- Mas quem falou que eu vou querer experimentar isso? E se for ver, falha de serviço você já cometeu, filhota. Você  disse "lembrando", isso é gerúndio. Gerúndio não vale, confere?

 

- Aceite minhas desculpas, senhor, é que vim há poucos meses de outra empresa da área. Mas estou em tratamento fonoaudiológico para me livrar da dependência. O senhor há de compreender, o próprio termo "telemarketing" é um gerúndio em inglês, o gerúndio é algo que está no DNA do operador. Mas, voltando ao nosso assunto...

 

- Aí, olha o gerúndio aí de novo! Infringiu o regulamento duas vezes. Sinto muito, terei que desligar. Se insistir, poderei estar ligando para o seu chefe.

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 11/10/2015.

 

 

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Amorecos 

 

I

- Me dá um trago, vai.

- Ué, não é você que ontem mesmo disse que ia parar de fumar?

- Hum, olha quem fala. Você parou, por acaso?

- Mas também não prometi nada. Eu prometo coisas que posso cumprir. Esse céu lindo, por exemplo, esse veludo azul com respingos de prata...

- Nossa, baixou o Olavo Bilac?

- Então, esse céu aí que nem em Shangri-lá se vê assim. Eu sequestraria agora e decalcaria nos seus seios, se você mandasse eu estaria disposto.

- Então traz.

- Eu disse que estaria disposto. Futuro do pretérito. Agora não estou.

- Ah.

 

II

- Só eu mesmo, uma tonta, tão pouco voluntariosa, sem amor-próprio nem coisa melhor pra fazer em casa, tão minimamente exigente, pra vir torcer por você num inter-clubes de peteca às 4 da tarde de sábado.

- O amor é lindo, honey.

- É lindo e bobo, besta, mentecapto, retardado, autista, acéfalo. Tenha dó, até fazer xixi é mais emocionante que isso.

- E depois daqui? E sua quedinha por esportistas ofegantes? E esse meu fogo todo, aquecido pelo jogo? Que me diz?

- Sei, sei. Quero ver se essa peteca você vai deixar cair...

- Isso é uma ameaça?

- Não. Uma esperança.

 

III

- Ai, como eu detesto quando você faz isso.

- O quê? Mexer a bebida com o dedo? Très chic, tolinha. Isso é absolutamente in, se é que você me entende. Vai se instruir nos manuais de etiqueta da Glorinha Kalil pra depois implicar comigo.

- Deselegante, convencido, animal bruto. Devia ter deixado você lá, correndo atrás de peteca com seus amigos gordos.

- É. Pena que você não resistiu ao papai aqui.

(plof)

- Mas o que é isso? Hein, o que é isso? Nunca imaginei que alguém teria coragem de me jogar um absorvente usado na cara!!!

- E eu jamais sonhei em ter que me contentar com o 16º colocado num inter-clubes de peteca. Prefiro ir pra cama com a própria peteca.

- Fique à vontade. Tá dentro do guarda-roupa.

- Sim. Como os amantes esperando a saída dos maridos cornos.

 

IV

- Pensa que é fácil, no melhor da história aquele cheiro de cebola na sua mão?

- E pensa que é gostoso meia dura de chulé, pasta sem tampa, jornal jogado?

- Prometo que mudo.

- Ah, tá. Do mesmo jeito que prometeu decalcar o céu nos meus seios. Duvido que mude...

- Você não entendeu. Quando eu falo em mudar, é mudar daqui.

 

V

- Olha o tempo que você tá aí lixando essa unha. Se vocês mulheres soubessem da tara dos homens por unha lixada...

- Você pode não reparar, mas há quem dê valor. Ô se há.

- Em unha lixada?

- Em unha lixada.

- Quem por exemplo?

- Use seu poder de dedução.

- Reticente e misteriosa. Não deixa no ar, não. Começou, agora conclui. Quem?

- Preocupadinho, bem?

- Tsc, tsc. Aliviado. Pra reparar na unha, não deve ser lá muito homem...

- Nem jogador de peteca.

- Ah, vai pr’aquele lugar, vai!

- Já estou nele. Faz tempo.

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 03/10/2015.

 

*  *  *

 

A hora e a vez do sal grosso

 

 

"Enquanto eles choram, eu vendo lenços", disse uma vez o ilustre Nizan Guanaes, com sua obstinada verve empreendedora e seu otimismo desmedido. E no meio dessa choradeira toda de milhões de brasileiros, que culpam a crise, o governo, o patrão filho da mãe e sei lá mais o quê pela catástrofe em que estamos metidos, o lenço que eu vendo é o desacreditado sal grosso. Isso mesmo: sal grosso, aquele de botar atrás da porta para espantar visita ruim.

 

Não fosse eu o cabeça-dura que sempre fui, acho que nem teria começado com essa história. Quanta gente tentou, de todo jeito, me alertar de que o negócio não iria pra frente. Principalmente a família e os amigos mais próximos. "Imagina, sal grosso? Ainda se fosse batata, milho, açúcar, café ou outra commodity mercadologicamente mais nobre e de consumo obrigatório..."

 

Pois fui em frente e não me arrependi. Joguei um pouquinho do meu produto nas costas (até quem vende sal grosso precisa de proteção), me benzi com o sinal da cruz e coloquei meu destino nas mãos de Jorge, o santo guerreiro, e seu alazão lunático. Para me sentir mais garantido, assegurei com mamãe uma provisão diária de cinco rosários pedindo a intercessão da Virgem para o bom andamento da empreitada.

 

Quanto mais eu pesquisava sobre o meu ganha-pão, mais eu ia vendo que lidava com algo mágico. Mágico e de efeito científico comprovado. O sal, especialmente o sal grosso, é capaz de neutralizar campos eletromagnéticos negativos. Entrando pelas searas do misticismo e da religião, os poderes e as aplicações se multiplicam num sem número de mandingas, simpatias e rituais que limpam corpo e alma, recarregam as energias e afastam inveja e mau-olhado. Resumindo: tinha na mão um coringa, aplicável perfeitamente a todo tipo de circunstância, sorte ingrata ou descaminho a que o indivíduo fosse levado, por seus próprios erros ou maus fluídos dos outros.

 

Tempos e ambientes de desesperança, desemprego, lamentação e angústia são, para esse humilde filho de Deus, a terra prometida. Encontrado nas boas casas do norte, mercadinhos de bairro e até em lojas de ração e formicida, o sal grosso "Redentor" (marca registrada) extermina qualquer quebrante e coisa feita. E para manter bem forte o poder de ação, está lá na embalagem que é preciso trocá-lo de dois em dois dias, já que os cristais se neutralizam em pouco tempo porque puxam a negatividade do sujeito. Ou, como eu digo sempre, o sal fica cansado. Se não ficar repondo frequentemente, não tenho como garantir o efeito esperado. Temeroso, meu cliente deixa faltar o arroz e o feijão mas tem a despensa sempre muito bem abastecida com quatro ou cinco sacos do "Redentor".

 

Se ganho na crise, saio ganhando mais ainda na prosperidade. Em qualquer cidade desse país, o primeiro e infalível sinal de que a recessão econômica está dando uma trégua é o aumento da venda  de picanha maturada nos açougues. O brasileiro nasceu para queimar uma carne no fim de semana. E não preciso nem falar qual é o único tempero que se usa para fazer um churrasco que se preze, como manda a tradição gaúcha, certo?

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 26/09/2015.

 

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Xadrez para o rei, hospício para a rainha

 

 

Teleguiada, a rainha não pensa. O sapiens que a concebeu e a colocou onde está não foi sapiens o bastante. Tem poderes de rainha e age como boba da corte. Por seu raciocínio notavelmente desarticulado, seus asseclas deveriam  orientá-la a calar-se, abdicar ao trono ou acatar um tutor.

 

 Alguns, mais próximos, até tentam sugerir-lhe uma postura, ainda que falsa, de humildade. Mas a déspota ignora conselhos, recusa-se ao diálogo, rebela-se, escuda-se em arrogância e movimenta-se doentiamente pelo tabuleiro, em jogadas desconexas e proibidas pelas regras, legitimando-as à custa de patacas distribuídas aos ocupantes das duas torres. A torre da direita e a torre da esquerda. Assim a rainha empurra, com a recém-diminuta barriga, a interdição que lhe caberia em qualquer reino do mundo, menos no teatro de comédias onde a partida tem lugar.

 

Como em toda peleja oficial, nessa também há juízes. Alguns incorruptos e outros de juízo comprado, nomeados pelo rei para livrá-lo do mate. Em sua imparcialidade de fachada, fazem que não veem os cavalos andando em círculos, os bispos sorrateiramente abduzidos do exército adversário, as rasteiras que aleijam toda a trincheira de peões. Seguem aplacando sua consciência intranquila e sua justiça injustificável alegando outras tantas e presumíveis fraudes do antigo dono do tabuleiro. Saem batendo seus martelos viciados no argumento de que, se nas partidas anteriores se roubava impunemente, é justo que agora também se faça vista grossa. Questão de equanimidade.

 

Tudo isso entre uma e outra colherada de caviar, superfaturado como o rechaud em que é servido. O rei, momentaneamente acuado e clamando ajuda de exércitos fronteiriços, promete lances triunfais e redentores, um revide messiânico que trará aos desvalidos a terra prometida. Mas até os peões já entenderam que o discurso é um emaranhado de tolices, potencializadas pelo efeito da bebida. E o que o rei de araque, muito em breve, há de prender-se em seu próprio jogo.

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 19/09/2015.

 

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Nascido para testar

 

 

Não vou negar para vocês: eles pagam bem. Mas nem sempre foi assim. Quando começou essa história de testadores de produtos, a gente simplesmente recebia em casa uma amostra grátis do bagulho, experimentava e dava o parecer. Ficava uma coisa pela outra, o lançamento grátis em troca da avaliação. Depois fomos nos organizando, criamos nossa associação de classe e passamos a cobrar pelo serviço. Só que aí, além de guloseimas, absorventes higiênicos e lâminas de barbear, começaram a mandar coisas como banheirinhas para bebês gêmeos, rojões sem cheiro de pólvora, degoladores de galinha, aparadores de cílios, limpadores de nariz e outras esquisitices.

 

CAVIAR RUSSO NÃO VEM. O QUE VEM SÃO MULETAS DE FABRICANTES DE ARTIGOS ORTOPÉDICOS.

A primeira ilusão de quem entra para esse mundo nada maravilhoso é pensar que não vai ter que gastar mais nada no supermercado, tamanha a variedade de produtos que irá receber para degustação. Entretanto, as novidades realmente gostosas chegam para teste em quantidades mínimas. Outro dia mesmo recebi o maravilhoso chocolate Bis com sabor de cerejas ao licor, fechadinho em uma sovina embalagem individual. Ou seja, você recebe o Bis, mas sem chance de bisá-lo.

 

A parte mais chata é o relatório da sua experiência com a coisa. Não adianta querer tapear o fabricante para não ter muito trabalho, dizendo que tudo é ótimo. Eles vão perceber a falta de critério e o braço curto na avaliação. Na recente experiência que tive com um par de muletas, por exemplo, me pediram, além do relatório escrito, o envio de fotos dos dois sovacos após dez e após trinta minutos de uso intensivo, a uma velocidade média de 2 km por hora e alternando o pé de apoio. Em seguida tive que testar um outro protótipo ainda em desenvolvimento inicial, com um sofisticado sistema de amortecedores dispostos entre a muleta propriamente dita e as axilas.

 

CHOCOLATE COM 90% DE CACAU NÃO VEM. O QUE VEM É ARROZ DOCE PARBOLIZADO PARA MICROONDAS.

Nem em um campo de concentração teriam a coragem de servir uma gosma tão sem graça. Depois de entornar a geleca numa tigela, despeja-se o pozinho com sabor artificial de canela e açúcar, que vem dentro de um sachê parecido com aqueles de tempero de miojo. Liga-se o microondas na potência máxima e depois de três minutos está pronta a iguaria. A foto da embalagem, com aquela cara irresistível de sobremesa de vó, contrasta fortemente com a triste realidade de comida de astronauta com validade vencida.

 

SPORT UTILITY 4X4 NÃO VEM. O QUE VEM É VASSOURA COM CERDAS DE TUNGSTÊNIO.

A promessa da vassoura era varrer com eficácia jamais vista, obviamente pela dureza do tungstênio. No test-drive o produto mostrou-se realmente notável, tanto na eliminação da sujeira quanto na eliminação do próprio piso - a vassoura literalmente lixava o meu porcelanato. O justo no caso seria me enviarem alguns metros de piso cerâmico para testar junto com a vassoura, a fim de que o meu prejuízo fosse menor. Fica a dica para a próxima vez.

 

- Foto: ribermedica.com.br.

 

Marcelo Sguassábia© - 12/09/2015.

 

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Devoradores de orelha

 

 

Somos os devoradores de orelha, e viemos livrá-lo do mais avassalador infortúnio do mundo pós-moderno: a falta de tempo. No caso, falta de tempo para ficar up-to-date com o universo literário daqui e d'além mar. Nem que seja aquele leve e basiquinho verniz cultural.

 

Os lançamentos editoriais são tantos que, ainda que fosse feita a leitura só das orelhas, o tempo despedido seria enorme. Como conhecimento é o ouro do século 21, surgiu dessa necessidade a ideia do nosso negócio.

 

Nossos leitores de orelha, hoje totalizando 314 profissionais intensivamente treinados, alternam-se em turnos estafantes de 12 ou mais horas e têm de recorrer a técnicas de leitura dinâmica para darem conta de suas cotas diárias de resumos. Lidas, cada orelha gera uma mini-sinopse que é enviada ao cliente via eletrônica, com o básico que ele precisa saber para não passar vexame numa conversa. Claro que o assinante do serviço determina as áreas de interesse sobre as quais necessita manter-se atualizado.

 

Suponha uma saia justa numa festa, onde perguntam a você o que achou de determinado livro. Basta simular que o celular está chamando, você se afasta um pouco, consulta o resumo de orelha correspondente e volta dominando o assunto. Em linhas bem gerais, mas o suficiente para não chutar a bola para fora do estádio.

 

O serviço é eclético nos gêneros e inclui também os resumos de orelha daquelas obras fundamentais, que dão estofo à cultura geral do indivíduo. Grandes clássicos, como "Em busca do tempo perdido", "A montanha mágica", "Dom Quixote" e "Crime e Castigo" estão disponíveis para pronta entrega. Não só na forma de e-resumos, mas de falso livro também. Em volumes novíssimos, de capa dura, ou artificialmente manuseados por processo industrial de envelhecimento. O recheio é em isopor, proporcionando leveza e facilidade na remoção quando for a hora de tirar o pó da estante.

 

Oferecemos também uma sensacional novidade, vinda há poucas semanas da Europa: o isopor com capa refil. O cliente adquire a princípio apenas os isopores e vai trocando periodicamente as capas com novidades e best-sellers da indústria editorial, simulando uma pretensa atualização com o que de melhor vem chegando às livrarias. É sua decisiva oportunidade de postar no Instagram e em outras redes sociais, fotos suas em frente à biblioteca-cenário, legando à sua extensa rede de amigos a imagem de um erudito com sólida formação literária e artística.

 

Como em todo negócio inédito e de sucesso, não demorou muito para que começasse a surgir concorrência desleal. Alertamos a todos que o referido concorrente, o qual por razões éticas não iremos citar o nome, deixou recentemente um ex-Presidente da República em situação diplomática vexatória numa cerimônia de entrega de título de Doutor Honoris Causa. Assinante do serviço, o popular ex-ocupante do Alvorada precisou recorrer à mini-sinopse de uma obra de Santo Agostinho e deparou-se com a orelha de "50 tons de cinza". Uma falha imperdoável, que atribuímos à incompetência dos leitores de orelha desse relapso colega de mercado.

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 06/09/2015.

 

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Do Além

 

 

Nem imagina você, raro e por isso mesmo estimadíssimo leitor, o que é acordar tiritando em pleno inverno, correr para o chuveiro e ouvir o estouro da resistência, dizendo “Sorry, Mané”. Era o começo de um calvário atordoante, que iria se estender por todo aquele interminável dia.

 

Já ouviu falar em malabares na cara? Pois é, depois do banho siberiano, foi o que ganhei ao parar no primeiro semáforo a caminho do trabalho. O malabarista devia ser iniciante. Por um erro de cálculo o pino entrou pela janela do meu carro e deixou um razoável hematoma entre meu nariz e o olho esquerdo.

 

Próximo semáforo. Por míseros 50 centavos, o rapaz da cadeira de rodas me regalou com 3 pacotes de bala de goma. Na primeira mastigada caiu uma restauração. Discretamente, cuspi na rua o ex-pedaço de dente. Um guarda municipal viu e me multou por sujar via pública. Tentei explicar. Ele riu do meu incisivo pela metade, enquanto me entregava a autuação.

 

Liguei pra empresa avisando que ia chegar mais tarde. Parei no dentista pra arrumar o estrago. Na hora de pagar, peguei o talão de cheques mas não havia nenhuma folha. Precisava ir ao caixa eletrônico mais próximo. Mas tive que ir atrás do carro, que sumiu. Corri pra delegacia registrar a queixa. Para lavrar o B.O. precisava apresentar o RG. Cadê? Devia ter caído na hora em que tirei do bolso o talão, no dentista.

 

Voltei ao consultório, a pé. No caminho, fui assaltado. Queria tudo o bandido. Mostrei o nada do talão sem cheques. Em represália, uma coronhada. Também, convenhamos: isso é bem que se entregue a um ladrão sério, consciencioso, que luta pra ganhar a vida? Perdi os sentidos com o golpe, a última coisa que me faltava perder. Mas logo recobrei. Tinha que enfrentar o pior, que ainda estava por vir.

 

“O senhor mora onde?”, alguém perguntou. Estava tão atordoado que tive de pensar pra responder. Uma assistente social me levou, num táxi com a suspensão vencida e o escapamento aberto. Tão aberto que chamou a atenção da multidão reunida em frente à minha casa.

 

Sim, um helicóptero tinha caído exatamente sobre ela. Intacto, só o bidê do banheiro da empregada, que estava sendo saqueado no momento em que cheguei. Gritei: “Macacos me mordam!” e um macaco, saltando das ruínas do que era o armário de mantimentos, me mordeu. Com um naco de braço a menos, fui escalando os escombros à cata do único retrato de mamãe, ao menos isso tinha de salvar.

 

De frente para uma câmera e de costas para mim, uma repórter da Globo, vestindo tailleur cinza, falava alguma coisa sobre o trabalho dos bombeiros. A tragédia estava sendo televisionada. O celular tocou. Era meu chefe. “O senhor não disse que estava no dentista? O que está fuçando aí, na casa que caiu? É, a mentira tem perna curta, Seu Sérgio. Além de faltar ao trabalho, ainda tira proveito da desgraça alheia. Está demitido.”

 

Morri enquanto procurava o remédio para o coração. E para que fique claro que não houve causa mortis, e sim uma série delas, ditei este texto psicografado pelo autor deste blog.

 

P.S.: Se alguém achar o retrato de mamãe, favor ter a bondade de afixá-lo junto ao meu, em minha sepultura no cemitério da Consolação. Deus lhe pague, aí embaixo ou aqui em cima.

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 29/08/2015.

 

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Videntes temem pelo seu futuro

 

 

Quem poderia prever que um dia os videntes, cartomantes, quiromantes e assemelhados comeriam o pão que o diabo amassou? Pois são muitas as evidências do calvário que o pessoal de túnica e turbante vem enfrentando.

 

Uma bolha de ar, na verdade um defeito de fabricação da bola de cristal, fez uma vidente de Macapá anunciar que uma bomba atômica iria explodir no campo de futebol do Esporte Clube Galo Torto. A distorcida previsão levou pânico desnecessário a milhares de torcedores, que perderam seus ingressos para uma das semifinais do campeonato amapaense, cuja disputa foi interrompida pelo imbróglio.

 

Esse é apenas um dentre os muitos chabus proféticos ocorridos pela falta de qualidade nos apetrechos mágicos. Um bruxo que não quis se identificar, recém-empossado em cargo de confiança na Pré-Vidência Federal, sustenta que a situação permanecerá indefinida no curto prazo e que só o estabelecimento de normas ISO para os fornecedores poderá resolver de vez a questão. O problema ganha contornos alarmantes, na medida em que afeta diretamente o futuro das pessoas.

 

Outros recentes episódios vêm unindo a classe esotérica, que discute alternativas de resgate da arranhada credibilidade. Uma das estratégias levantadas passa pela veiculação de uma campanha publicitária de âmbito nacional, com o lançamento do selo "Vidente Aferido".

 

Coroando esse cenário de imprevisíveis consequências, a epidemia de tétano nos faquires do sudeste, pauta de Globo Repórter do mês passado, também inspira discussões acaloradas no meio. Com o desestímulo do governo à industria nacional de pregos antitetânicos, os faquires estão sendo obrigados a adquirir congêneres no mercado cambojano - famoso pelas cabeças desproporcionais, pelos pontos de ferrugem em toda extensão dos produtos e pela tortuosidade de formatos.

 

Aproveitando a repercussão e os holofotes da mídia, leitores de tarô e jogadores de búzios unificam seus sindicatos para ganharem poder de barganha em antigas reivindicações da categoria.

 

Porém, nem todas as notícias são desanimadoras. Na contramão da crise, um inexplicável aumento de demanda vem sendo observado nas tendas de ciganas piauienses, cujos baralhos preveem um segundo semestre como nenhum outro em seu mercado.

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 22/08/2015.

 

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Plataforma zero

 

 

Embarca logo, corre, ou chegaremos tarde ao tempo que perde a hora.

 

O casamento campestre, lá no alto da colina as noivas várias e loiras feitas de açúcar cristal. Véus de caramelos velhos, já roxos de tão vencidos, deixam sua calda melosa pelos caminhos de lírios. Sim, há noivas novas e gastas, há belas e remediadas, contrastando seus vestidos com os negros trajes do padre.

 

Na gaveta de uma cômoda de Roma, as passagens sabe Deus dizer pra onde. Lua de mel de laranjeira, abelha rainha reina sobrevoando sobre o voal. Pronta pra ir, querida? O navio está apitando o apito de Noel Rosa na fábrica de tecidos. Não fira mais seus ouvidos. Escuta, antes que me esqueça, o imenso rol de palavrões que farão você corar da nuca até os tornozelos, num enlevo de novelo de lã boa de alisar.

 

Desejos vão fumegando na cabine super luxo. Fogo alto, gente acesa. Olha a angústia que fermenta em meio ao limbo dos possessos, uma piscina até a borda de leite de ninfas lindas e faunos não-correspondidos com pulsos semi-cortados.

 

O próximo cipó para o Japão sai daqui a meia hora. Se agarre em vão nesse embalo e aproveite as escalas na Normandia e em Oklahoma. Mande um beijo pra sua tia no programa de calouros da TV da Groenlândia. Quem sabe telespectando, deslize pelas funções do descontrole remoto.

 

Estranhou? Pois se acostume. Nem começou o delírio que a olhos vistos é colírio dos que se amam além-mar, cercados de serafins tocando cuíca e ganzá. Há coisas que eu não te disse que é bom que fiquem bem claras. Dentre elas, um segredo: tem nariz verde, de vidro, o verme subnutrido no quintal da Dona Nina. Mil cavalos de potência a todo galope levam à terra do nunca chega, que é a mesma desde sempre e propriedade de ninguém. Antílopes desgarradas, por que se aninham quietas nos bojos dos alaúdes? Ninguém mata essa charada, tente adivinhar e diga, ganha um doce quem souber.

 

Só sei que agora o abandono me abanou o rabo, me deixou sem dono e desse jeito assim, no estado em que me encontro, uma mão na frente e outra em outrora. É um tiquinho de voz o que restou na goela da gravura do Van Gogh, aquela que tenho em casa e que você tanto gosta.

 

Sobrevoamos nesse instante a seara dos poemas inconclusos, ao mesmo tempo em que se decifra o enigma dos enigmas. Não é possível que ninguém perceba esse barulho estranho na turbina esquerda do tapete mágico. Dá um look around no Colosso de Rhodes em sua cadeira de rodas. Ora quem diria, do alto desse ultraleve se vê perfeitamente Rhodes sobre rodas fazendo arte abstrata nos Jardins da Babilônia. Reclinam suas poltronas os doze desdentados duendes de Detroit, conferem seus bilhetes, seus vauchers e reservas no Resort Hostil.

 

Quarteirões de queijo com casas caiadas, uma tulha às moscas e uma ponte pênsil que não leva a nada, mas que ainda assim é natureza morta do pintor mirim. O trem nessa lenga-lenga, faz que vai mas não vai, e segue esse trilho mesmo, o mesmo trilho de ontem que continua amanhã.

 

Chegamos, sem termos ido. A van que nos translade do poço dos pesares ao pico dos prazeres, em rasgos paquidérmicos de riso.

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 15/08/2015.

 

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Dia do enteado

 

Nunca foram tão maus os bocados vividos pelo comércio. Cada porta ainda aberta se vira como pode para não ter que passar o ponto. Ou virar igreja. Com sorte ou persistência se arranja um fundinho de ânimo para prosseguir respirando com a ajuda de aparelhos.

 

Vai daí que, de novo, a necessidade vem se revelando a mãe da criatividade. Por meio de pesquisas, descobriu-se um fato surpreendente e até o momento não explorado no calendário promocional: há mais enteados no mundo do que qualquer outra coisa - incluindo aí pai, mãe, avós, irmão, namorado, sogra, cunhado e quem mais se queira elencar como homenageado no calendário promocional.

 

A razão é simples. De uma obviedade que dá até raiva, e que nos faz perguntar como é que nenhuma associação comercial de não sei de onde nunca pensou nisso antes. Considerando que mais ou menos 90% dos casamentos de hoje acabam em divórcio, divórcio esse que não raro resulta em outro - ou outros - casamentos, é lógico que o número de enteados tende a ser enorme e a crescer absurdamente. Imagine, por exemplo, uma sequência de cinco casamentos. E que, nas primeiras núpcias, o casal teve um filho. Esse menino só vai ter evidentemente um pai e uma mãe, mas vai ser enteado de quatro madrastas e quatro padrastos, se seus pais se casarem outras quatro vezes. Fez a conta de onde pode parar a brincadeira? Existindo o Dia do Enteado, os quatro pais e as quatro mães postiças não vão ter cara de não dar presente para o pimpolho. Isso se for um só, porque a tendência é ir aumentando a renca conforme os casórios se sucedem.

 

Um amigo comerciante já tem até o mote publicitário para uma primeira campanha: "ENTEado também é ENTE querido". Desse jeito mesmo, o "ENTE" em maiúsculas para frisar o trocadilho. O tema é quase uma chantagem emocional, uma espécie de desagravo ao enteado nacional - esse injustiçado pela sociedade de consumo.

 

Já um outro conhecido meu, também do setor comercial, argumenta que, instituído o dia comemorativo, este será apenas mais uma data no combalido calendário de efemérides. E que sendo tantos os enteados, o interessante mesmo seria dividir os presenteados ao longo dos meses, para que o aumento das vendas contemplasse o ano todo. Dessa forma, teríamos o "Dia do Enteado nascido em janeiro", o "Dia do Enteado nascido em fevereiro" e assim por diante. Bem pensado. Resta saber se vai pegar ou não.

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 08/08/2015.

 

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Salvem os ímãs de geladeira!

 

 

A atual crise econômica em que todos nós terráqueos estamos metidos não vem deixando pedra sobre pedra. Até mesmo setores historicamente imunes às oscilações monetárias e blindados contra o vacilante humor de Wall Street andam combalidos, à cata de uma solução messiânica que os façam sair do buraco. É o caso do pujante comércio de rapé, commodity cujo preço mínimo internacional caiu a níveis aviltantes, forçando os produtores da região de Barra do Garça, considerado o Vale do Rapé, a trocarem seu cultivo pelo do alpiste.

 

A indústria de conta-gotas é outra duramente atingida pelo tsunami econômico. Fábricas de renome, algumas com mais de 122 anos e meio no mercado, vêm adaptando seu maquinário e utilizando sua capacidade ociosa para a produção de carimbos de bichinhos e capas de banco de bicicleta com estampas de times de futebol.

 

E que dizer do nosso parque industrial de benjamins, também conhecidos como “Tês”, dependendo da região em que são comercializados? O desalento beira o caos. No último dia 23, a cotação do produto nas bolsas de São Paulo e do Rio variava entre R$ 1,94 e R$ 2,26, fechando a R$ 2,15 e perdendo definitivamente a paridade com o dólar, mantida intacta há décadas. A mercadoria era tão firme na bolsa que os operadores do pregão apelidavam sua cotação de “dólar-Tê”, servindo inclusive como indexador de contratos.

 

As lojas de armarinhos também aos poucos vão se adaptando ao novo quadro, acrescentando ao seu já extenso mix de quinquilharias os próprios armarinhos, que sempre deram nome às lojas desse gênero, mas que estranhamente nunca foram comercializados por elas. Juarez Afrânio Ling, dirigente lojista, explica: “Estamos focando no nosso negócio principal, a nossa vocação verdadeira: o armarinho. Com puxadores de metal, de madeira, com gavetas e divisões internas, mas sempre armarinho. É um nicho de mercado altamente promissor, a que estávamos desatentos em face da diversificação crescente em nosso segmento. Eu diria que é uma volta às origens”.

 

Na esteira da desgraça, os fast-foods reclamam de barriga vazia. Uma das maiores redes do país teve que cortar na carne e eliminou o hambúrguer do cheese-salada, mantendo apenas o cheese e a salada. Uma saída criativa e honesta para a crise, já que o produto, ainda que diminuído, oferece ao consumidor exatamente o que promete.

 

Ruim para produtos, pior para serviços. Desde o estopim da turbulência, os pontos de charrete estão às moscas, e nada parece reverter essa tendência a médio prazo. A majoração do feno e da alfafa no mercado internacional ainda não chegou ao consumidor, que por sua vez vem migrando para a carroça e o metrô como alternativas de transporte.

 

O serviço de carpideiras vem sendo particularmente muito penalizado. Quase todas choram dolorosas perdas. Laurentina Benite Lemos, presidente do sindicato da categoria, desabafa: “É um paradoxo. Nunca choramos tanto, contudo não estamos ganhando mais com isso. Alguém pode me explicar essa situação?”

 

Num catastrófico efeito dominó, a quebradeira ameaça os mordedores pediátricos, a macaúba em coco e em gosma, as lixas de unha, os dadinhos de amendoim, as tampas de pia, os alfinetes de cabecinha, as cantoneiras de fotografia, as lousas verdes e negras e mais uma infinidade de gêneros vitais ao dia-a-dia do brasileiro. Oremos para que ao menos os ímãs de geladeira escapem ilesos desse furacão. Oremos!

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 1º/08/2015.

 

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Castidade violada

 

 

- Quando fechamos negócio, o senhor me jurou que dava garantia.

 

- Eu disse que garantia o produto contra defeitos de fabricação, o que não inclui avarias provocadas pelo mau uso. O cinto de castidade que eu lhe vendi foi violado, eu poderia jurar que usaram um pé-de-cabra para arrebentar a fechadura.

 

- Desculpa, mas um produto dessa natureza e com essa finalidade, só tem serventia se for comprovadamente inviolável. Cadê a fiscalização do Inmetro numa hora dessa? A minha noiva desacordada na cama, todo aquele sangue escorrido... Ah, se o senhor visse...

 

- Bom, pela minha prática eu arriscaria três hipóteses para o fenômeno. A primeira: a própria mulher ou alguma outra pessoa provocou ferimento nas partes baixas ao forçar a abertura, aí acabou sangrando. A segunda: a mulher menstruou e, incomodada com o sangue melecando a virilha, abriu a gaiola genital para se limpar. Não sei como, mas abriu. A terceira, que o amigo vai custar a admitir mas que costuma ser a mais provável: o sangue é da perda da virgindade. Consentida ou forçada.

 

- Ela não faria isso. A minha noiva não!

 

- Pois é, mas o senhor se lembra que não foi por falta de aviso. Se tivesse levado o modelo com quadrichave e senha digital, poderia ter evitado todo esse aborrecimento. Até hoje não conheci ninguém capaz de violar um genuíno quadricinto de castidade.

 

- Ponha-se no meu lugar. Se a noiva fosse sua e tivesse acontecido isso, o que pensaria?

 

- Eu não pensaria nada, pois teria optado por um cinto da linha Quadrichave Ultra Security para não ter dor de cabeça. Se a questão é prevenir, vamos fazer a coisa direitinho.

 

- Mas dizendo isso o senhor deprecia o seu modelo básico. Por uma questão ética, não poderia vender um modelo com chave comum e risco de violação, concorda?

 

- Olha, vamos parar com essa discussão. Eu conheço muito bem e respondo por toda a minha linha de produtos, tenho um bom nome na praça e a consciência tranquila. Já o senhor, eu não sei se está tão seguro quanto ao caráter da sua noiva.

 

- Escolha bem as palavras quando se dirigir a mim, seu maldito insolente. A família dela é respeitada em todo o reino, é gente que honra o brasão da família!

 

- Então por que comprou o cinto?

 

- Ferreiro desgraçado! Seu pós-venda não vale nada, é um case de marketing sobre o que não se deve nunca fazer e dizer ao cliente! Vou postar hoje mesmo essa história toda nas redes feudais. Seu negócio será reduzido à produção de ferraduras pra jumento, e olhe lá.

 

- Bom, pelo menos de fome eu sei que não vou morrer. Jumento é o que não falta nesse feudo...

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 19/07/2015.

 

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O frio de fora e o de dentro

 

 

Que coisa chata amanhecer no domingo com chuva e frio fustigando a janela. Um dia desse jeito é meio perdido, mal resolvido e defeituoso, meteorológica e produtivamente falando. O que influi no meu humor. Melhor dizendo, no mau humor.

 

Tem quem goste, achando que dias assim convidam à introspecção, balanço da vida, essas coisas. Outros se sentem mais dispostos para o trabalho. Esse negócio de frio tem sim, seus poucos momentos compensadores. Mas são delícias fugazes, que não pagam as penas de sair do banho tiritando, de pular da cama de má vontade e de espaçar, muito compreensivelmente, as ocasiões para a prática daquela milenar e prazerosa modalidade.

 

Imagina o inverno pra turma do circo. O vento a 80 por hora arriando a lona. A agonia dos faquires, na gélida cama de pregos. A responsabilidade dos trapezistas e atiradores de faca, tendo que manter a precisão com as mãos trêmulas.

 

E limpar gaiola de passarinho? Primeiro tem que lavar no tanque aquele fundo de zinco, cheio de caca. Empedernido pelo vento impiedoso, o dejeto só sai com palha de aço ou espátula. Pior é quando você roeu todas as unhas na véspera, deixando as cutículas em carne viva. Aí sim, fica gostoso mesmo.

 

Gosto de tomar um uísque no fim de semana. Não mais que uma dose - cavalar, é verdade - o suficiente pra relaxar sem ficar xarope. E uísque sem gelo, não dá. É mais uma triste limitação do inverno, essa estação odiosa. Tendo que renunciar ao meu trago domingueiro, comecei a fuçar nuns álbuns de fotos, do começo dos 90. Umas férias onde estou de passageiro num barco, passeando pela baía de Camamu. Olho as fotos e, claro, acesso o registro correspondente na cabeça, ele existe, está lá. Porém é tão frio quanto o dia lá fora.

 

O fato sobrevive em linhas gerais, mas sem as sensações correspondentes. A foto não me traz de volta a brisa no rosto, o barulho do motor da embarcação, o azulado da água, o que sentia e pensava naquele instante. E assim acontece com outras coisas. Passo em frente de uma casa onde morei por cinco anos. E nada, só um flash nebuloso e em preto e branco vem à mente, condensando meia década num impreciso borrão de lembranças. Em seguida bate aquele paradoxo existencial - viver pra quê, se o que se vive agora será esquecido daqui a pouco? Você comenta com um amigo sobre isso e ele vem com a máxima, presente em 10 entre 10 manuais de autoajuda: "viva intensamente cada momento, como se fosse o último. Preste atenção ao presente, sem se agarrar ao passado ou se preocupar com o futuro. Assim você estará mais receptivo a reter o que acontece agora".

 

Pior ainda é constatar que a sua memória recente também é uma retardada, incapaz de lembrar do que você jantou ontem. Livros às centenas, filmes aos milhares. Não os reconheço, nem pela caixinha e nem pelo conteúdo. Para mim são eternos lançamentos. Olho para a estante, leio os títulos nas lombadas, sei que um dia os devorei a todos. Atenta e silenciosamente, a cada um deles dediquei dias e mais dias. Pra chegar agora e não lembrar de nada - nem da história, nem do assunto, nem dos nomes dos personagens, nem de coisa nenhuma. Dizem os psicólogos e neurologistas que é o consciente que não lembra, e que o subconsciente guarda tudo em detalhes. E é aí, inclusive, que eles entram com suas ferramentas e terapias. Penso: é a idade. Errado: aos 14 já era assim. Chego a aventar a hipótese de distúrbio cognitivo. Herança genética? Talvez. Meu avô estacionava o carro e esquecia os vidros abertos, a chave no contato e - inacreditável - o motor ligado.

 

Mas por que é que eu vim parar aqui mesmo? Sei lá. Esse frio deixa a gente meio assim, de miolo duro.

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 12/07/2015.

 

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Corcovado de Notre Dame

 

 

Ser corcunda não é fácil. Até a palavra soa pejorativa. Muita gente não sabe, mas corcunda é o mesmo que corcovado. E foi assim, consultando um dicionário para saber um pouco mais de mim mesmo - um corcovado de nascença, que me veio a ideia para ganhar a vida. Ou melhor, que me permitiu sobreviver, mal e porcamente, graças ao famoso cartão postal carioca, onde batia ponto das 8 da manhã às 10 da noite. Incluindo sábados, domingos e, principalmente, feriados.

 

Os turistas tiravam fotos minhas de perfil, em posição análoga à do Corcovado, e depois pagavam pelo monóculo. Parecia algo sádico, com requintes de humor negro, e a intenção talvez fosse essa mesmo. Era uma humilhação assumida e consentida, por ser meu ganha-pão. Quantos bocós eu vi e ouvi exclamando, cheios de incabível orgulho, após tirar minha foto junto ao meu gêmeo de pedra:  " Ha, ha, ha, ha, ha, ha! Deixa o pessoal lá do escritório ver isso!"; ou então: "A Maria das Graças não vai acreditar... ha, ha, ha, ha, ha, vai se matar de rir com essa!".

 

Somos os dois parecidos, e ao mesmo tempo opostos. O Corcovado lindo por natureza, e eu horrível por um descuido dela. Lamentações à parte, assim se passaram alguns anos de temporada no célebre morro. Até que uma crise econômica brava se abateu literalmente em minhas costas, e ninguém mais queria torrar seu contado dinheirinho com retratos de corcunda. Havia possibilidades esteticamente mais interessantes para gastá-lo, ainda mais em se tratando da Cidade Maravilhosa.

 

Estava eu nesse estado de pré-miséria quando o Totonho das Mercês, colega de turma de Crisma e morador do Realengo, veio com a redentora solução: ir para Paris e encarnar o famoso Corcunda de Notre Dame na porta da Catedral de mesmo nome. Pesquisando, descobri que Notre Dame é a segunda atração mais visitada da capital francesa, só perdendo para a Torre Eiffel. Em número de turistas/dia, deixava o Corcovado no chinelo.

 

Assim resolvido, comprei minha passagem de ida e segui a caracterização do personagem, conforme o livro de Victor Hugo. Depois montei uma tabela de preços e a afixei, obviamente, sobre o meu defeitinho congênito. O faturamento tem dado para o gasto, não posso me queixar do apartamento de 3 quartos no melhor ponto de Saint German, do Citroen 0km e da casa de praia em Cannes. Seguem abaixo meus honorários, sem desconto para grupos.

 

Foto do corcunda sério: 1 euro.

Foto do corcunda sorrindo: 1 euro e meio.

Foto junto com o corcunda sério: 3 euros.

Foto junto com o corcunda sorrindo: 4 euros.

Foto ou vídeo de criança na carcova do corcunda: 7 euros.

Foto ou vídeo de criança maiorzinha ou de marmanjo anão na carcova do corcunda: 8 euros.

Voltinha em torno da Catedral montado no corcunda: 14 euros.

Subida ao campanário de Notre Dame, em visita guiada pelo corcunda: 20 euros.

Corcunda Strip Tease, toda quinta às 23h no Moulin Rouge: 35 euros por pessoa (adesões com pagamento antecipado na barraquinha de crepe ao lado da igreja).

Algo mais com o corcunda, em moita discreta no Bois de Bologne: 110 euros.

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 04/07/2015.

 

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Grande Hotel

 

 

Chego um pouco antes do horário estipulado para o check-in. Dou um tempo no bar do hotel, que tem um enorme “Hipotálamo’s” em neon azul piscando na porta.

 

Meia hora e duas taças de vinho depois, adentro o aconchegante salão do cerebelo. Sento-me num sofá de córtex e abro o jornal do dia, ainda intocado sobre a mesinha de centro. Avisto de lá o saguão lotado. Pelo menos umas 70 pessoas, vestindo túnicas verde-água, buscam alojamento na memória. Querem acomodação a todo custo, mas poucas são aceitas pela recepção.

 

- Temos que ser seletivos, infelizmente não há lugar para todos.

- Mas eu fiz reserva...

 

Na recepção também ficam as chaves dos acontecimentos, alinhadas para facilitar o acesso quando necessário.

 

Escadas em caracol fazem a comunicação entre três imensuráveis pavimentos. São dezenas de quartos, cada um deles contendo 365 dias vividos. Pelos corredores há quadros de pessoas e lugares. Uns estão impecavelmente conservados, a tinta ainda parece fresca. Outros têm carunchos nas molduras, as cores perderam o brilho e a tela está puída em vários pontos.

 

Chamo o elevador junto ao boy com o carrinho de malas. Ajeito a bagagem no armário da suíte e mergulho na banheira.

É boa e reconfortante a sensação de estar envolto em massa cinzenta, morna e homogênea. Desliza nesse momento pelos ombros toda a tuabuada do 8, enquanto o Chimarrão, meu primeiro cachorro boxer, surge refletido em preto e branco no espelho.

 

Pouco depois desço ao refeitório, onde todos alimentam vorazmente suas lembranças. Fatos aparentemente esquecidos estão dispostos em baixelas de prata e taças de cristal. Um garçom me serve águas passadas e entrega a comanda para rubricar.

 

A equipe de monitores se aproxima de minha mesa e anuncia a sessão de cinema às três, na glândula pituitária. Quinze imensos telões mostram imagens de webcams flagrando em tempo real o comportamento dos neurônios.

 

Sigo as placas indicativas para o salão de jogos. Um sujeito alto, uma espécie de crupiê trajando smoking, é quem dá as cartas. Está o tempo todo de costas, impossível ver o seu rosto.

 

Na piscina, um tobogã vai atirando um sem número de pessoas na água, uma após outra, em estonteante velocidade. O avô que só conheci por fotografia, a mãe aos 15, o pai aos 25, a vizinhança, amigos e inimigos, celebridades e gente vista unicamente de relance.

 

Anexa ao complexo aquático, a sala de massagem oferece uma nova técnica de relaxamento, à base de impulsos elétricos. Após exame médico, o hóspede aguarda a próxima sinapse numa espreguiçadeira revestida em tecido felpudo com o logo do Hotel.

 

Há um aviso em letras garrafais numa das paredes do deck, um pouco abaixo da bóia salva-vidas:

“Pedimos aos senhores hóspedes que não transitem entre o hemisfério esquerdo e o direito sem autorização prévia da gerência”.

 

Feito o tour de reconhecimento, me aninho ali, numa dobra de miolos rente à sauna a vapor. Viro de um lado para o outro, estico as pernas, puxo as cobertas e pego no sono. Ronco longa e ruidosamente, a ponto de colocar em alerta todo o sistema nervoso central.

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 20/06/2015.

 

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Vende-se ou aluga-se 

 

 

Não vou negar: houve tempo em que o dinheiro jorrava da minha conta, tinha fila de gerente de banco na minha porta oferecendo linhas de crédito e aplicações mirabolantes. Parentes até então desconhecidos apareciam para pedir dinheiro emprestado.

 

Do fundo do quintal do Josias, onde tinha uma bancada velha, uma tela de silk e duas latas de tinta de marca vagabunda, fui fazendo fortuna rápido.

 

Comecei vendendo as placas e faixas de "Vende-se" e alugando as de "Aluga-se". Depois a demanda se inverteu: passei a vender mais as de “Aluga-se” e a alugar mais as de “Vende-se”. Coisas do mercado.

 

O negócio foi dando certo e veio a diversificação, com a incorporação do modelo que durante quase duas décadas foi o carro-chefe da empresa: a faixa "Passo o ponto". Quanto mais empreendedores davam com os burros n'água, mais eu lavava a égua. Me sentia um agiota, estava ficando rico com a falência alheia. A capacidade instalada, na época com sete máquinas de última geração e quarenta funcionários, não dava conta dos pedidos. Lembro que tive que programar quatro turnos de produção, com gente trabalhando de madrugada. Pra se ter uma ideia, uma única loja mudava de ramo e de dono umas quinze vezes por ano. E eu ganhava de todo lado: primeiro com a faixinha do falido comerciante tentando se livrar do mico, e depois com faixas e mais faixas das imobiliárias anunciando o imóvel. Não raramente eram várias imobiliárias num imóvel só... era faixa que não acabava mais para fazer, eu chegava a recusar encomenda.

 

De uma hora para a outra, a situação começou a ficar economicamente muito mais complicada e passei a trabalhar com consignação. O cliente só pagava a placa depois de alugar ou vender o que tivesse para negociar. O formato teria tudo para ser um sucesso, mas quase me quebrou completamente - já que ninguém alugava e ninguém vendia, mas todos botavam as minhas placas e faixas nas portas dos seus comércios, sem pagar um centavo por elas.

 

Hoje, a penúria chegou a tal ponto que minhas vistosas e eficientes placas são humilhantemente substituídas por uma pichação do proprietário no muro, feita com caiação rala emprestada do vizinho... é triste, muito triste olhar esses amadores das letras emporcalhando a cidade.

 

Aproveitei o último pedaço de pano e um restinho de tinta no  fundo da estamparia e fiz a derradeira faixa de "Vende-se", para colocar aqui na fachada do meu negócio. Pensei em escrever "Passo o ponto", mas desisti. A frase era maior e a tinta não ia dar.

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 20/06/2015.

 

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O retorno triunfal de mestre Duña,

depois de longo e tenebroso outono

 

Mesmo optando voluntariamente pela reclusão, Duña, o magno profeta, deixou-se enfim fotografar em seus rústicos domínios, embalando paternalmente duas lindas pencas de banana da terra.

 

A aparição se deu em meio a insistentes rumores de que, nos últimos meses, Mestre Duña estaria se lançando de maneira febril ao trabalho de compilação de sua doutrina, revisando alguns aspectos e acrescentando tópicos inexistentes nas edições anteriores. Aos mais chegados, externa o oráculo dos oráculos o receio de que seu tempo nesse mundo já se esgota, e de que cada minuto é precioso para que o acesso à duñesca sapiência seja direito sagrado de todo ser humano, de Muzambinho a Machu Pichu, passando por Joahannesburg.

 

"Caixão não tem gaveta. Ainda que seja de madrepérola incrustada de esmeraldas, vai servir como jantar aos vermes do mesmo jeito que um caixote da Ceasa. Chega um momento na vida em que o dinheiro, o sucesso, o prestígio e o diamante negro não significam mais nada. Em que tanto faz ganhar mais dois ou mais 222 canais de televisão para difundir a doutrina em escondidos cafundós. É quando o tempo vale mais que o templo", afirmou o Divino, demonstrando estar cada vez mais imune às artimanhas da cobiça e desapegado das transitórias riquezas dessa vida.

 

"Imagine um sujeito fazendo esteira numa academia", comparava o mestre em mais uma de suas sacrossantas analogias. "Os imbecis pensam que ele nunca chegará a lugar algum, em sua aparentemente estúpida imitação de hamster de laboratório. Mas a verdade é que, mesmo sem sair de onde está, irá mais longe que todos, graças às décadas adicionais que viverá. É como sempre dizia o ilustrado Juan de la Duña, fundamento medieval da doutrina e meu bisavô pelo lado materno: mais vale uma voltinha de velotrol todo dia no quarteirão do que uma escadaria da Penha a cada onze anos". Ao dizer isso, muitos dos presentes à porta da choupana duñesca afirmaram vislumbrar no firmamento um vendaval de pétalas lilases, que trazidas pelo vento iam envolvendo a fabulosa figura do Venerável.

 

Apoiado em seu inseparável cajado, prosseguia em tom inflamado: “É por isso que, quando muitos perguntam-me sobre onde está a verdade, reafirmo que ela está dentro de cada um. Todos os caminhos ali desembocam, todos os ribeirões ali desaguam, todas as aves de arribação ali pousam, ali fornicam, ali se reproduzem e ali fulguram radiantes com suas proles. A sua verdade é diferente da minha, que nada tem a ver com a dele, que por sua vez diverge da verdade de outrem, que não deixa de ser verdade pelo fato de não coincidir com a verdade de quem a supõe verdadeira. Nesse sentido, a amizade é, sim, a ponte para alcançá-la. Ainda que a Ponte da Amizade tenha se celebrizado por conduzir a caminhos falsos e sem garantia, ao invés de legítimos e cobertos pela mais ampla rede de assistência técnica.

 

- Foto: Divulgação.

 

Marcelo Sguassábia© - 13/06/2015.

 

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Monochrome

 

 

Tento derramar cores sobre a foto de família: o resultado soa falso. Uma coisa desalmada, sem pulso e temperatura. Cria-se uma inadequação, um ar postiço, não caberia cor ali de forma alguma. O mundo de 1941 da foto com margem branca e cantoneira, tirada de um álbum de madeira marchetada, é natural e necessariamente em preto e branco. Há propósito, graça e sentido em ser assim.

 

No entanto, quem estava lá posando para a pesada câmera, num vestido estampado e eternizado no clique em paupérrima escala de cinza, jura que o mundo era mais colorido que hoje. As cores mais vivas e intensas, flores e gramados sem a fuligem - essa sim monocromática - das chaminés e escapamentos. Sim, as hoje muito velhas gentes garantem que o branco e preto das fotos não fazia justiça ao variadíssimo pantone da vida real. Por mais que os ternos de linho fossem impecavelmente brancos, e as largas saias das beatas de respeito invariavelmente negras, havia cores intensas por todos os lados.

 

A mulher do vestido estampado, enquanto ensaia a melhor posição para o clique, flerta com os olhos azuis do moço do reluzente Cadillac verde, tinindo debaixo do sol. Logo mais, à noite, a fila no cinema dobra o quarteirão para assistir Cidadão Kane. Honrando o preto e branco da obra-prima, só mesmo o preto e branco da plateia. Não pode ser de outra maneira, gente colorida assistindo seria profanar o monumento de celuloide.

 

Há foto de cemitério na penúltima página do álbum marchetado. O lugar onde faz mais sentido ainda o black and white se bastando, o preto dos enlutados e o branco do mármore de carrara dos túmulos. Complementam-se divinamente o pesar dos que ficam e a leveza angelical dos que se foram. Negra é a escuridão embaixo da terra, alva é a asa de anjo, promessa da Bíblia e do padre.

 

Aquele retrato do Guevara de olhar posto em horizonte incerto, Carlitos em filme ou foto, Einstein mostrando a língua, o beijo do final da guerra em Times Square: qualquer cor banalizaria instantaneamente esses monumentos imagéticos, tiraria deles a autoridade mítica.

 

Decerto que a cor é uma ilusão do olho, que a Terra de azul não tem nada, é quando muito um ponto branco e minúsculo no negro imenso do cosmo. A mim já está mais do que claro que a madeira marchetada, do álbum aqui no colo, tem seus tons amarronzados só dentro dessa cabeça. Incerta massa cinzenta, de cinzentos pensamentos que ficam indo e voltando enquanto não viram cinzas.

 

- Foto: Theatro Municipal de São João da Boa Vista.

 

Marcelo Sguassábia© - 06/06/2015.

 

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"Mané, saudoso Mané"

 

 

Lembro como se fosse hoje que passava um pouco de cinco e quinze da matina quando ele me ligou dizendo que tinha despertado com o lampejo, transformado em ideia tentadora, que logo virou desejo irrefreável de dar cabo de uma vez da sua vidinha sem atrativo. Queria ir pra junto do Flávio Cavalcanti, do Santos Dumont, do Jack Estripador, do Mussum e de todos os outros grandes que já tinham ido. Não via mais sentido em continuar ocupando seu invólucro castigado e tão sem atrativo, ainda mais vendo tanta gente melhor que ele abandonando precocemente o posto nesse ingrato campo de provas.

 

Dizia o Mané:

 

“Trabalho numa máquina de moer carne, minha mulher há muito deixou de exercer qualquer influência na minha libido e eu acho um saco fazer a barba todo dia. Isso sem falar das pombas que só aliviam sua diarreia no capô do meu carro, do jeito azedo do vizinho e da inesperada cobrança complementar do IPTU, referente ao puxadinho que construí sem autorização da prefeitura e que acabou virando depósito para as tralhas de pesca do Lourencinho, primo desgraçado que ronca, fuça e é perito em aparecer de supetão pra filar a janta.

 

Já falei pra mim mesmo: olha pra trás, meninão. Conta até dez, chupa um halls daquele trinca guela. Nada como um halls extra forte bem chupado, se possível acompanhado de água geladíssima por cima, pra nos demover de decisões irrefletidas. Isso já dizia Danny F.Chesterfield, aliás com propriedade rara entre seus contemporâneos. O bom e velho Danny, idólatra da TV dos tempos em que domingo de manhã passava o programa do pastor Rex Humbard, “Imagens do Japão” e o “Caravela da Saudade”, que com seus fados levava aos prantos 9 em cada 10 donos de padaria no Canindé.

 

Estou aqui com o epitáfio prontinho. Está pronto em linhas gerais, ainda falta um acerto ou outro de ortografia e de colocação de vírgula. As seis alças do caixão já têm dono, e evidentemente você é um dos escalados. Pega numa perto do pé que o esforço é mais leve, a região da barriga deixo para uns parentes que tenho em baixíssima estima. Que eles sirvam pelo menos pra isso, já que nunca me emprestaram um tostão quando a lavanderia estava mal das pernas. Está tudo esquematizado, fiz um croqui em papel vegetal com as alças, puxando umas setinhas com o nome de cada um. Deixei na gaveta do criado-mudo, junto com umas outras orientações e providências que devem ser tomadas”.

 

Ameacei desligar o telefone, nauseado com tanta morbidez, mas ele dizia que ficaria na minha consciência se morresse de mal comigo. E continuava:

 

“Agora o que tá pegando é o jeito de liquidar a fatura. Estou aqui na cama caraminholando qual a modalidade mais prática e menos ortodoxa. Nada de ligar o gás, enforcamento na jabuticabeira, deitar na linha do trem, Ginsu na jugular ou lexotan com soda cáustica. Pensei em injeção de ar na veia, o modus operandi predileto dos nazistas no holocausto, o que me diz?”

 

Foi quando caiu a ligação, depois aconteceu o que todo mundo já sabe. A famosa reviravolta que o fez viver lúcido e sacudido até os 94, à frente do grupo de empresas que até hoje leva o seu nome.

 

Marcelo Sguassábia© - 31/05/2015.

 

- Imagem: Divulgação.

 

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Manual de uso do manual

 

 

"Parabéns! Você acaba de adquirir o que há de mais avançado...". Se o seu Manual não começar assim, devolva o produto. Não o produto, o Manual dele, pois não é um Manual legítimo, como manda o figurino. Sua devolução ao redator responsável está prevista no Código de Defesa do Consumidor. Bem, se não está, deveria.

 

Uma vez lido (pelo menos em suas principais partes) e estando o produto funcionando normalmente, use o Manual como calço de pé de mesa bamba ou outra utilidade do gênero. Isso porque já acabou a etapa em que você tinha que tê-lo à mão, ou seja, na instalação da geringonça. Se precisar de novo dele para alguma eventualidade, é mais fácil consultar na internet - que baixa no seu colo em PDF todos os manuais já redigidos pelo homem.

 

Há indústrias que alegam a obsolescência do Manual, e que a sua eliminação pura e simples como item constante na embalagem do produto poderia reduzir o preço final em até 3%. O argumento é que quase a totalidade dos consumidores lê e aplica apenas as instruções do guia de instalação rápida, adiando a leitura do Manual completo para o fim de semana seguinte. Acontece que o fim de semana chega e, com ele, coisas bem mais interessantes para ler do que o nosso injustiçado Manual.

 

É bom lembrar que todo e qualquer Manual sai de fábrica com garantia de um ano contra defeitos de compreensão. Se mesmo após sucessivas tentativas de leitura o problema persistir, ainda assim você poderá seguir alguns procedimentos antes de levar o seu Manual à assistência técnica:

 

. Verifique o tamanho da letra do texto e certifique-se de que ela é compatível com sua acuidade visual. Consulte seu oftalmologista para informações mais detalhadas.

 

. O problema pode estar na luminária - demasiadamente afastada ou com lâmpada de baixa potência. Na dúvida, leve-a ao seu eletricista de confiança e siga suas instruções antes de empreender nova tentativa de leitura.

 

. Por ter esse nome - Manual - fica implícito que o mesmo não é automático. Se assim fosse, suas instruções entrariam no cérebro sem o esforço consciente da parte do consumidor. Assim, conforme-se com as limitações intrínsecas do mesmo e sua natureza enfadonha.

 

Marcelo Sguassábia© - 23/05/2015.

 

- Imagem: Divulgação.

 

 

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Meu carrasco, meu herdeiro

 

 

Ser o moleque de recados do maior agiota da cidade: o Criador não tinha posto ele no mundo para suportar essa vida por muito tempo. O boy de Villa Antiga montava em mula para as cobranças, e difícil era a vez que não voltava com o olho roxo ou o lábio cortado. Já andava cheio o embornal de desgostos, estava até a tampa de desaforo engolido. Não mais, agora é minha vez - decidiu. Entregou a mula e as promissórias resgatadas do dia ao tirano Tonzezão, que emprestava sem muita exigência de garantia, mas sabia buscar a mãe de quem não tinha mais nada. Chega de ser leva e traz, se entrasse em séria luta corporal com o destino poderia juntar para emprestar aos outros e ter o seu próprio moleque, correndo rua e dando a cara pra bater.

 

Só que não queria virar um Tonzezão mais novo, sem barriga, sem artrose e sem cabelo branco - tiraninho Tonzezinho metido a besta, coletor de suor alheio. Já conhecia bem a manha de ganhar dinheiro assim, mas não. Produzir e vender era mais decente que emprestar cinco e tomar vinte de volta. E sucedeu que foram anos sem lembrar o que era dormir e jogar conversa fora de domingo, porque todo dia era feito para gramar até que o negócio que abriu fizesse o favor de dar lucro. E como deu. A prosperidade veio e começou a ganhar barriga, artrose e cabelo branco como o Tonzezão dos velhos tempos, só que em paz à noite com o travesseiro. Rico pelo merecimento de trabalhar direito, não de tirar de quem quase não tem.

 

Sua filha Cândida, a linda. Por 19 anos conseguiu guardar bem guardada a estonteante fêmea em casa antes de entregá-la a Orêncio, num rega-bofes que a Villa Antiga, agora promovida a Vila Nova, não ia esquecer tão cedo. Bolo cortado, foto tirada, buquê jogado e gravata de noivo retalhada, foram pra lua de mel que seria linda como a noiva, se o avião não tivesse caído.

 

Acabado o luto, canalizou o bem querer para o Laércio, sobrinho um pouco distante na geografia e na árvore genealógica, mas o único. O velho, agora megaempresário e prefeito, morreu fazendo a sesta após pesado almoço em companhia do sobrinho, na casa grande de uma de suas fazendas. E Laércio se viu dono de tudo, sem esperar e nem saber o que fazer com tanto patrimônio.

 

Deslumbrado e perdido ao mesmo tempo, fez rapidamente da namorada Sofia sua sócia nos negócios. Ambiciosa e cheia de má intenção, fingia-se de boazinha e só precisou de dois dias para fazer o serviço sujo. Na sexta, casou-se com Laércio. No sábado, envenenou o coitado e, mancomunada com um legista sem vergonha, arrumou atestado de óbito onde constava a salmonela da maionese de casamento como causa mortis.

 

A nova herdeira de tudo, que do velho patriarca não tinha nem o sangue e nem o caráter, gastou três anos comprando o que via pela frente. Até que uma bala perdida veio se alojar na sua cabeça, enquanto veraneava em Cartagena. O patrimônio caberia, por direito, aos três irmãos da golpista. Ainda no meio do inventário, um grande banco caiu em cima do montante, por conta de uma dívida impagável em nome do trio. E lá se foi a herança para o banqueiro, neto do bom e velho Tonzezão.

 

Marcelo Sguassábia© - 16/05/2015.

 

- Imagem: Divulgação.

 

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Sob Hipnose 

 

 

Este texto é do Marcelo e não é. Escrevo em terceira pessoa porque aqui não é ele escrevendo e sim eu, seu analista, descrevendo. Ou melhor, anotando o que ele fala em transe hipnótico. Ideia dele, bem entendido. Sabia do risco que estava correndo, e mesmo assim quis a coisa em estado bruto.

 

Cinco... quatro... três... dois... um... Definitivamente, essa contagenzinha de relaxamento profundo em nada me inspira. Doutor, essa coisa desgastada não vai me dar um texto novo no sábado. Não sei por onde começar mas sei que não será por esse labirinto de hera, cheio de portas que não levam a lugar nenhum, cotovias flamejantes e areias movediças.

 

Ao que parece, hoje ele está sem assunto.

 

Problema seu amarrar tudo isso, Dr. Matos. Eu não tenho obrigação, aqui, de falar coisa com coisa. Agora, você sim, tem em costurar um sentido nessas associações que faço. Não vou dizer por onde vago agora. Você não acreditaria. Sujeito que escreve e faz análise dá nisso. Sujeito que escreve tem que ficar só na análise sintática, que é muito mais negócio. 

 

Ele está racionalizando o processo, desse jeito fica impossível. Usa a análise para falar da análise.

 

Você é um excremento, doutor Matos. Um titica com diploma pendurado na parede, legítima personificação da fase anal. Seu trabalho me arranca dinheiro e não traz resultado, estou aqui há anos e fico andando em círculos, dependente de você e prisioneiro dessa sala. Dessa cela. Seu pai castrador bem que podia ter te capado de uma vez para que você não estivesse aqui, se achando capaz de ajudar os outros.

 

O que me deixa estarrecido é que ele está sendo sincero, hipnose não é bem um alteração no estado de consciência, é consciência no grau mais alto. É atenção focada, ele está sabendo muito bem o que diz.

 

Esse seu nome, Matos, cheira a sexo. Mato onde se faz sexo. Os pelos do púbis são matos. Mata-se a vontade. Mata-se o desejo. Então sexo não é fazer amor, mas celebrar a morte. É amor à morte. Credo.

 

Isso é impublicável. Depõe contra mim, pessoal e profissionalmente. Desconsiderem.

 

Aproveitando o segundo domingo do mês, mamãe vai bem, Doutor?

 

Marcelo Sguassábia© - 09/05/2015.

 

- Imagem: Divulgação.

 

 

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Grama autocortante e mato autoeliminante

 

 

"A imaginação é mais importante que o conhecimento", já dizia Einstein com a autoridade de quem sabia tudo desse mundo e de todos os outros, por mais que continue se expandindo esse Universo velho sem porteira.

 

Dois dos maiores estouros mercadológicos de que se tem notícia ilustram bem essa citação. Eles nasceram juntos em laboratório e não podem ser vendidos separadamente, até porque um complementa a ação do outro. Onde exista jardim, público ou privado, lá estão os gloriosos e insubstituíveis inventos de Alejandro Cortez de Calabares, que deram a ele fortuna e um lugar definitivo entre os grandes gênios da Catalunha.

 

Foi numa nebulosa manhã de julho que lhe veio à mente a redentora visão, que iria livrá-lo da dívida na mercearia e das seis parcelas em atraso no plano funerário. Profundamente sensibilizado por um drama pessoal vivido por Alícia Jimena, a dedicada governanta de sua tia-avó de Sevilha, Alejandro ergueu a ela um imaginário brinde com uma dose generosa de absinto, virou de vez e desabou espetacularmente sobre o surrado pufe da sala. A mesma sala de paredes sujas da qual, seis meses mais tarde, teria apenas uma vaga lembrança, envolvido pelo luxo de seu castelo em Palma de Maiorca.

 

O MATO AUTOELIMINANTE

Não se sabe se foi o conforto reparador daquele pufe, comprado em beira de estrada nas férias de 1991, ou o efeito alucinante do absinto, o fato é que naquele dia sua mente penetrou em reinos desconhecidos e inspiradores. A primeira das visões lhe surgiu aos onze minutos da fase de sono REM, já com a baba escorrendo pelo canto direito da boca. A partir de uma alteração na genética da planta, ao começar a crescer o mato enforca a si mesmo com os ramos que vão brotando do seu caule, numa espécie de suicídio vegetal involuntário.

 

A GRAMA AUTOCORTANTE

Se com o invento anterior eliminamos a fatigante tarefa de arrancar um a um os matinhos dos gramados, com sua segunda visão Alejandro nos livra para sempre daquele ícone verde da classe média americana, tão arraigado ao cotidiano ianque quanto o molho barbecue e os tacos de golfe: o cortador de grama. Ao atingir determinada altura, configurada no setup do aparelho, um sensor dispara um feixe de laser que apara eletronicamente a quantidade de grama que ultrapassar a dimensão desejada, mantendo-a sem qualquer esforço no tamanho ideal.

 

Esperto, Alejandro atraiu a atenção da mídia mundial ao testar simultaneamente os dois inventos nos Jardins de Luxemburgo, no Hyde Park e nos gramados da Casa Branca. Em questão de dias, nosso herói passou das filas do seguro-desemprego à lista dos bilionários da Forbes, com o saldo da conta corrente crescendo mais que mato no meio da grama.

 

Marcelo Sguassábia© - 02/05/2015.

 

- Imagem: Divulgação.

 

 

*  *  *

 

RÁ-TIM-BUM

 

 

- Não acredito que você me acordou uma hora dessas pra falar sobre "Parabéns a você"...

 

- Pois você vai me dar os parabéns depois que ouvir minha ideia. Ah, se vai!

 

- Ih, lá vem.

 

- Aqui no Brasil, o "Parabéns a você" tem registro no ECAD e dizem que é a segunda música mais executada no país. Sabe lá o que é isso, cara? A original é obra de duas irmãs americanas e a versão brasileira foi escolhida por concurso, em 1942. A vencedora foi uma mulher de Pindamonhangaba, Bertha Celeste Homem de Mello. Ela morreu em 1999 e apagou a velinha 97 vezes, quase todas ao som da própria música! Hoje, os direitos autorais estão nas mãos dos herdeiros. Mas o que me interessa mesmo é a segunda parte, aquela que diz assim:

 

"E pro(a) (nome da pessoa), nada?

Tudo!

Então como é que é? É!

É pique, é pique, é pique é pique, é pique,

É hora, é hora, é hora é hora é hora

Ra-tim-bum (nome da pessoa, nome da pessoa, nome da pessoa)"

 

- Nossa, que interessante. Eu não acredito que eu estou escutando essa merda toda às duas da manhã.

 

- Me escuta, caramba, me escuta. Quase me matei de pesquisar na internet, nos registros de direitos autorais e em tudo quanto é lugar pra descobrir quem cometeu essa baboseira do "pique pique". As origens são as mais absurdas possíveis. Misturam onomatopeias de bandinha de circo, os estudantes de Direito do Largo de São Francisco e até um rajá indiano que teria visitado a faculdade em mil novecentos e bolinha. Já outras fontes afirmam que o termo "Ra-Tim-Bum" é uma maldição. Imagina só. Numa dessa, todo mundo na festa roga praga no aniversariante...

 

- Ok, amanhã você continua, tá bom?

 

- Resumindo, o fato é que essa parte do "Parabéns" não tem dono. Minha ideia é fazer o registro desse complemento e requerer os royalties de execução, radiodifusão e teledifusão, compreende?

 

- Só dessa segunda parte?

 

- Sim, a primeira é dos herdeiros da Dona Bertha.

 

- Dona Bertha? Que dona Bertha?

 

- Aquela, que eu acabei de falar, a velhinha de Pindamonhangaba. Depois dessa parte que eu quero registrar vem o manjado "Com quem será?" - que acabou se incorporando, sabe-se lá porque, ao maldito corinho natalício. Tentei descobrir o autor, pra propor uma ação conjunta de registro, mas não encontrei de jeito nenhum. Pesquisando, vi que a música desse "Com quem" dos infernos é baseada na Marcha Nupcial de Wagner. Pegaram a melodia de um gênio e enfiaram uma letra de retardado.

 

- E aquele trecho que parece coisa de beata velha, que fala "Com imensa alegria, suplicamos aos céus", quem foi que compôs?

 

- Sei lá, pelo jeito é uma segunda parte da letra que a Bertha fez, mas também não tenho certeza.

 

- Bom, posso voltar pra cama agora?

 

- Imagina a grana que dá pra ganhar só em buffet infantil. Esquece televisão e rádio, vamos focar só nas festinhas de criança. Eu espalho um exército de gente que está aí à toa, procurando emprego, e faço um acordo por comissionamento. Eles dão um jeito de entrar nas festas e, na hora de apagar as velinhas, gravam com celular a cantoria. Ninguém vai desconfiar de nada, porque quase todo mundo fica com o celular gravando nessa hora - a mais insuportavelmente previsível da comemoração. Com o flagrante na mão, é só mandar a cobrança dos direitos para os pais do fedelho. Tiro 10% de comissão para o fotógrafo e o resto vem limpo pra mim.

 

- Parabéns a você. Genial. Supimpa. Estonteante. Formidável. Bem.......bo....la.............do............................zzzzzzzzzzzz......................zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz.......

 

Marcelo Sguassábia© - 25/04/2015.

 

- Imagem: Divulgação.

 

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Inferno no Céu

  

 

Viver muito pode ser um privilégio, mas também um castigo pós-morte. A menos que alguma religião tenha opinião diversa a esse respeito, é de se supor que os mortos cheguem ao paraíso com a idade cronológica do óbito. Se conservarem a última forma física que tinham aqui na Terra quando baterem as botas, então o céu deve ser um asilo. E o asilo celeste ganha gente cada vez mais velha, conforme aumenta a expectativa de vida do ser humano.

 

Ora, dentro dessa lógica, quanto mais miserável e socialmente desassistido um país, mais interessante será sua versão espiritual. Por mais incoerente que isso possa parecer. Como esses infelizes morrem cedo, a probabilidade de um paraíso povoado por defuntos na flor da idade aumenta bastante.

 

Mortos cheios de vida também não devem faltar no purgatório e no inferno, pois os devassos tendem a ir dessa pra melhor em pleno vigor físico, com a maioria dos dentes na boca e sem sinal de calvície ou de cabelos brancos. Triste injustiça, já que quem cuida direitinho da carcaça por aqui acaba indo um bagaço pra lá, de tanta hora extra que acabou fazendo...

 

Essas constatações levam a crer que, se a juventude é algo supervalorizado entre os encarnados, no reino dos fantasmas ela tende a ser ainda mais prestigiada. Imagine o sucesso que deve fazer um Jim Morrison ou um James Dean em meio a milhares de octogenárias desdentadas que certamente os abordam a todo instante em busca de autógrafos. Note que essas mesmas velhinhas teriam sido contemporâneas de Jim e de James aqui no planeta - tietes de seus discos e de seus filmes enquanto garotas de carne e osso. A diferença é que os dois ídolos, no caso, foram embora mais cedo, enquanto suas fãs ficaram vagando inconsoláveis pela Terra décadas a mais que eles.

 

Ainda que as dores e limitações da carne deixem de existir quando se passa para o lado de lá, não é nada animadora a perspectiva de encarar a eternidade na condição de idoso. A menos que se aguarde ansiosamente lá em cima a chegada do Pitanguy, com seus bisturis redentores e alguma nova técnica trazida da Europa.

 

Para resolver, ou ao menos minimizar o problema, alguns expoentes da geriatria apontam possíveis caminhos. Um deles seria o enxerto de células-tronco na face, na pele e no couro cabeludo de forma preventiva, já a partir dos 50 anos, a fim de que o decujo chegue apresentável ao reino dos céus. Uma outra corrente de cientistas trabalha numa solução mais prática, econômica e emergencial, propondo aplicações de botox alguns dias antes do previsto desenlace. Esta segunda alternativa, embora mais barata, contempla o risco do botox perder seu efeito logo no decorrer dos primeiros meses de vida eterna, para desespero dos anciãos - que passarão séculos e séculos atrás de uma clínica celestial de estética que lhes forneça uma segunda e milagrosa aplicação.

 

Entretanto, quaisquer das duas opções esbarram numa limitação de ordem terrena, nem um pouco fácil de equacionar: os planos de saúde. Muitos deles desde já consideram inviável a cobertura tanto do implante das células-tronco quanto do botox pré-óbito. A não ser que o governo autorize um reajuste nas mensalidades para a inclusão dos procedimentos.

 

Marcelo Sguassábia© - 18/04/2015.

 

- Imagem: Divulgação.

 

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WWW.GAMBIARRA.COM

 

 

- Gente, o portal tá nas últimas. Ontem foram dois acessos. Eu disse dois. E um deles foi meu, que entrei pra ver como estava a audiência.

 

- Tás brincando. Tá feia assim a situação?

 

- Tive uma idéia: e se cada um for pra sua casa e ficar acessando sem parar o site? Entra, sai e acessa de novo, entra, sai e acessa... o dia inteiro. Pedimos pros amigos e vizinhos fazerem os mesmo. Pensa bem, teremos milhares de cliques por dia. Podemos mostrar as fantásticas estatísticas para os potenciais anunciantes e então...

 

- Sei, e sair do atoleiro. Deixa de ser idiota. Dá pra ver pelos IPs que os acessos todos vêm de meia dúzia de computadores, a concorrência vai descobrir a tramóia.

 

- Amigos, acho que a solução não é por aí. E se a gente forjasse anúncios?

 

- Como assim?

 

- Fácil. Vamos encher a home page de banners e janelas pop-up da Coca-Cola, Banco do Brasil, Petrobras, Extra, Nike, Submarino. Só peso-pesado, coisa grande mesmo. Já pensou a gente mostrando nossa home pro seu Antenor da padoca? O mão-de-vaca vai ficar impressionado com a categoria dos anunciantes, vai querer anunciar também, pode apostar. E ainda vai achar baratinha a nossa tabela...

 

- Mas isso é fraude, cara.

 

- Depende do ponto de vista. Eu chamaria de manobra emergencial de sobrevivência. Se alguma dessas marcas partir pra cima da gente, falamos que foi uma cortesia do portal. O que eles têm a perder com isso? Depois tem outra: os caras não vão nem ver, o nosso site é regional...

 

- É, e bota regional nisso. Eu diria regionalíssimo.

 

- Tudo bem, com esse cambalacho aí a gente pode até conseguir uns anúncios da Quitanda Fruta Fresca, a Loja do China, o Bezerrão no Espeto...

 

- E a padoca, né.

 

- É, e a padoca. Mas isso não resolve o problema da audiência, pessoal.

 

- Sou contra tudo isso aí que vocês estão falando. Nada de se rebaixar, nós vamos sair dessa de cabeça erguida. É só uma crise transitória, isso acontece nas melhores holdings e nosso portal não é exceção.

 

- Bom, pra começo de conversa, portal é modo de dizer, né. Essa bodega é malemá um sitezinho. Quase um blog, pra falar a verdade.

 

- E se a gente for honesto? É, honesto pra caramba, contando tudo o que tá acontecendo e apelando pra solidariedade humana. Vamos colocar um comunicado na página principal, dizendo que somos pais de família, que a situação tá preta e que se continuar assim a gente fecha as portas. Quer dizer, o portal.

 

- Tá, mas quem é que vai ler isso? Esqueceu que a gente não tem visitação, ô esperto?!

 

- Ichi... Então vamos pro jornal. Fazemos uma carta aberta e publicamos na Tribuna de Cidadópolis. Se ficar muito caro a gente cola umas cópias da carta nos postes da praça, pronto.

 

- Que situação. Fico imaginando se alguém descobre que o grande portal da cidade funciona aqui, nesse banheirinho de empregada!

 

- E a gente ainda tem a cara de pau de inventar expediente, sucursais, representação comercial, correspondentes internacionais...

 

- Spam, meu povo. Vamos mandar spam pra cidade inteira falando das novidades que estão sendo implementadas. A Gata do Mês, Classificados com Resultados, Namoro on Line, Flashs da Night, cupons de desconto, essas coisas.

 

- E a lista dos e-mails, onde é que a gente arruma?

 

- Por 750 mangos tá na nossa mão. Tem um camarada meu...

 

- Ah, boa essa. Se a gente tivesse essa grana acertava os 14 meses de atraso com o provedor.

 

- É, amigos. Sendo assim, coloco à venda minhas cotas de participação na sociedade.

 

- Eu também.

 

- Eu também.

 

- Eu também.

 

- Eu também.

 

- Espera aí, e aquele cara que acessou ontem, heim?

 

- Que é que tem ele?

 

- Não se interessa não?

 

Marcelo Sguassábia© - 12/04/2015.

 

- Imagem: Divulgação.

 

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Comunicado da AIFPMJ

 

 

Diante das infundadas e difamatórias alegações divulgadas a seu respeito pela imprensa nos últimos dias, a Associação das Indústrias Fabricantes de Placebo do Município de Jeguinho - AIFPMJ, vem a público esclarecer o seguinte:

 

- Os dezoito óbitos ocorridos pela ingestão de comprimidos de placebo, presumivelmente fabricados pelas indústrias de nossa associação, referem-se a pacientes que notoriamente sofriam de severos distúrbios psicossomáticos. Por essa razão, muito mais influenciáveis aos efeitos que a substância ativa poderia acarretar, se estivesse contida nas cápsulas. Tal fato seria capaz de potencializar exponencialmente os efeitos de medicamentos com ação farmacológica zero.

- A farinha utilizada nos placebos por nós distribuídos possui índice comprovado de pureza da ordem de 99,9999999999%, quimicamente incapaz de abater um ácaro, quanto mais um ser humano.

 

- Só podem ser considerados puros os placebos certificados com o selo "100% inócuo", conferido por nossa entidade às empresas que cumprem rigorosamente as normas técnicas por ela estabelecidas. Não há provas periciais até o momento que confirmem que os placebos ingeridos pelas vítimas tinham em suas cartelas o citado selo. Da mesma forma, nenhum indício sugere que as cápsulas que provocaram os óbitos e as de nossa produção sejam de farinha do mesmo saco.

 

- Mortes por ingestão de placebos vêm sendo relatadas nos mais diversos rincões do globo, e não somente ao noroeste do Piauí, como algumas das matérias levianamente dão a entender. Cabe à comunidade científica internacional - especialmente o FDA - mobilizar esforços para estudar o fenômeno em âmbito mundial e posteriormente explicá-lo à opinião pública.

 

- Por se tratar de produto de consumo de massa em nossa caatinga e item de larga tradição no criado-mudo do sertanejo, desde a época do Brasil Colônia, a pujante indústria do placebo tem consciência de sua responsabilidade sociofarmacêutica. Tanto que vem sabendo acompanhar as crescentes exigências do mercado e do consumidor, no que diz respeito à qualidade das cápsulas distribuídas entre o agreste sergipano e a Chapada do Dedéu - área onde o consumo disparou nas últimas décadas, ocasionando inclusive o aparecimento de dezenas de rotas de tráfico da substância.

 

- Entendemos que o placebo genérico, cuja entrada no mercado foi recentemente regulamentada após forte lobby em Brasília, não pode ser admitido farmacologicamente como placebo por não ter sua pureza controlada pelos órgãos reguladores a que a nossa entidade está submetida. Consequentemente, seu uso representa potencial ameaça à saúde pública.

 

Marcelo Sguassábia© - 04/04/2015.

 

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Making off com Michelangelo

 

Vaticano, quarta-feira, por volta de duas da tarde. Michelangelo dá início ao mais célebre dos afrescos: o monumental teto da Capela Sistina. Um Cardeal, muito próximo do Papa Julio II, acompanha o trabalho.

- Deus sabe que estou pegando esse serviço a contragosto. Meu negócio é escultura, Roma inteira sabe disso.

- Então serão anos de penitência. Começando agora, em 1508, o senhor deve terminar lá para 1512.

- Anos de penitência e de torcicolo. Muito torcicolo. Mas encomenda de Papa não se nega, né? Vou encarar esse inferno para tentar garantir um lugarzinho lá no céu.

- Desculpe a indiscrição, mas como você combinou o pagamento? Por dia ou empreitada?

- Por empreitada. Por dia, nem a Igreja Universal aguentaria pagar.

- Lá isso é.

- Multiplique 365 por 5 e vê só onde é que iria parar essa conta...

- Se me permite o comentário... esse tom que o senhor deu na unha do profeta isaías. Parece que tá com micose, tem amarelo demais...

- E essa cor aí, da sua batina... Tá meio pink, não tá não? Para um cardeal honorável como o senhor, não pega bem.

- Que heresia! Isso é desacato à autoridade eclesiástica. Eu só estou querendo ajudar. Papa Julio provavelmente vai reparar nessa unha esquisita, e é melhor dar uma garibada agora do que ter que refazer o trabalho depois.

- Tá bom, daqui a pouco eu cuido disso, Cardeal.

- Michelangelo, eu vejo que você pincela direto no teto. Não tem um esboço prévio. Os rostos dos personagens bíblicos vão surgindo na sua cabeça?

- Não é bem assim, não. No caso do pessoal ficha limpa como Noé, Moisés, Isaac e mais uma pá de gente boa eu coloco rostos de amigos meus. Agora, quando é o capeta, o Caim e outros da galerinha do mal, esses ganham rosto de credor, de cobrador de imposto, de gente metida que não me olha na cara quando me vê na rua, de uns e outros pra quem eu fiz retrato fiado e nada de pagamento até hoje.

- Mas vai que um belo dia eles se reconheçam na pintura, depois de tudo pronto? Entram com um processo na justiça e você perde todo o serviço. Fora a multa por danos morais.

- Sei...

- Bom, outra coisa: você solicitou ao setor de compras um estrado de cama de casal e quatro rodinhas. Não tenho a menor ideia do que isso tem a ver com seu trabalho.

- O estrado é para colocar em cima do andaime, para que eu possa trabalhar deitado. As rodas são para movimentar o andaime com mais facilidade. Caso contrário, a cada meio metro de pintura pronta eu teria que descer do andaime, empurrá-lo um pouquinho para a frente, escalá-lo de novo e continuar a pintura. Essa sacada quem teve foi o meu amigo Leonardo, um cara muito engenhoso. Não demora muito pra que toda loja de material de construção só venda andaimes assim, já com as rodinhas incluídas.

- Está bem, vou providenciar.

- Ah, tem um detalhe importante: o estrado precisa ter um buraco no meio. Essa também foi meu amigo Leonardo que sugeriu. A gente instala um sistema de cordas e roldanas que leva bebida e comida aqui de baixo lá pra cima. Dessa forma eu não preciso ficar subindo e descendo a toda hora. Pelo mesmo buraco pode passar também a comida e a bebida depois de processada, se é que me entende...

- Assim seja, Michelangelo. Só avisa o empurrador de andaime quando vier número 1 e número 2 lá de cima, pra ele ficar esperto. Misericórdia, não há cristão que mereça um castigo desses.

 

Marcelo Sguassábia© - 28/03/2015.

 

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Descarte programado

 

 

"Espanhol cria lâmpada que não queima e sofre ameaça de morte

 

É possível fazer produtos que durem a vida toda? Benito Muros, da SOP (Sem Obsolescência Programada), diz que é possível. Por isso está ameaçado de morte. O conceito de obsolescência programada surgiu entre 1920 e 1930 com a intenção de criar um novo modelo de mercado, que visava a fabricação de produtos com curta durabilidade de maneira premeditada, obrigando os consumidores a adquirir novos produtos de forma acelerada e sem uma necessidade real. A lâmpada criada por Benito tem durabilidade prevista de mais de 100 anos". (Fonte: mundogump.com.br)

 

Materiais baratos e de baixa qualidade irão produzir lâmpadas que duram muito menos que as mil e cem horas previstas para os modelos incandescentes.

 

Lâmpadas que equiparão faróis de eficácia duvidosa em carros projetados para sofrerem pane, amassarem fácil, enferrujarem logo e moverem a tentacular engrenagem dos serviços de reparo e de reposição.

 

Carros inseguros dirigidos por motoristas que no trânsito pilotam telefones celulares com baterias programadas para deixá-los na mão quando mais precisarem.

 

Baterias que eles nunca irão trocar, pois valerá infinitamente mais a pena substituir os celulares ao invés delas.

 

Capas protetoras de celular feitas de silicone rigorosamente testado para ressecar e rachar em um mês e meio, quando muito.

 

Com capa de silicone e tudo, cada aparelho jogado fora irá fomentar uma cadeia de centenas de fornecedores que continuarão abastecendo fábricas prontas a produzir celulares mais modernos, mais rápidos, mais leves e mais propensos a sucatearem o quanto antes.

 

Sucata que, reciclada, voltará à ciranda do consumo na forma de outros bens mal produzidos, embalados em plástico-bolha cujas bolhas são mais frágeis que bolinhas de sabão.

 

Sabão que fará a roupa desbotar irremediavelmente após a terceira lavada, e a tinta solta na máquina manchará outras roupas que também serão perdidas e virarão panos de prato.

 

Panos que enxugarão louças da loja de um e noventa e nove, lascadas precocemente e trincadas pelo calor do microondas comprado ontem via web.

 

Microondas que ontem mesmo foi reembalado no plástico-bolha que nada protege e levado às pressas para a assistência técnica, porque apresentou defeito no seletor digital.

 

Digitais que não serão reconhecidas pelo leitor biométrico do caixa eletrônico, ensebado pela gordura deixada por milhares de dedos de milhares de pessoas que buscam milhares de notas para pagarem as milhares de prestações pela compra de milhares de inutilidades.

 

Pessoas que precisam ter sua expectativa de vida reduzida de maneira drástica, já que a alta longevidade elevará perigosamente os índices demográficos, congestionará os hospitais e comprometerá o sistema previdenciário, que não terá como arcar com uma sobrevida maior que a prevista pelo Ministério da Saúde.

 

Marcelo Sguassábia© - 21/03/2015.

 

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Fechado para balanço

 

1

Aquelas tantas luzinhas que enxergamos ao apertar os olhos com força. Foi nessa hora que te vi dourada e escorregadia, pelo menos assim você me parecia deslizando pelo túnel das córneas, sorrindo e vertendo mel. Estamos os dois a passos muito largos para sabe Deus, em vias de virar xepa de estranha feira, tiozão e tiazinha alçando o gozo das cinzas. O tempo parece que cisma de desnortear ponteiros. Agora, só reencarnando.

 

2

Parem as máquinas que eu quero o viço dos azuis multipiscinas, bolo-mármore perfumando meus quintais, a ânsia de escalar painas - os anos verdes, enfim. Esconde-esconde de nada que me subtraia esses dias: respondo em todas as instâncias pela vida em que me meti. Dispenso os atenuantes por todo o errado que fiz, do que podia e não foi, esses dilemas de antanho. Um zero de serventia. Não tiro meu corpo fora: zona de conforto é puteiro com colchão d'água.

 

Marcelo Sguassábia© - 14/03/2015.

 

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Morra, mata, morra

 

 

Pra dar jeito nessa mosquitada, que bota a gente de cama, só mesmo a golpe de machado. “Tem é que deitar abaixo essa floresta dos diabos”, já dizia o sábio Firmino, meu bisavô, com muita propriedade. Aliás, propriedade é o que não faltava para o velho. Quando morreu de maleita, deixou para meu avô, pai de minha mãe, mais de 17 fazendas, duas delas com os seringais mais produtivos da região norte.

 

Com um pelotãozinho de dúzia e meia de agentes do Ibama para tomar conta desses milhões de hectares, fica fácil depenar a vegetação nativa. A imprensa do sul maravilha diz que, só em 2014, a área desmatada foi equivalente a 24 mil campos de futebol. Do lado bom da faxina ninguém fala: sabe lá quantas espécies de insetos e outras pragas peçonhentas foram felizmente dizimadas com essa assepsia providencial?

 

Gente come carne. Gente que não come carne, come soja. Pois eu vendo a carne pros carnívoros e a soja pros naturebas. Mas o grosso mesmo da soja vai para o bucho dos bois. A conta é essa – metade do descampado para o gado, a outra metade para produzir a comida dele.

 

Conheço o desastre disso, sei bem o estrago que faz. Faltando umidade e evaporação aqui nas bandas borrachentas vai faltar chuva lá embaixo, no Sudeste. Mas aí eu ganho dinheiro de novo: tem autoridade em Manaus propondo a implantação de aquadutos para abastecer São Paulo, Rio e Minas com a água que transborda por aqui. O que o messiânico salvador da pátria não sabe é que essa tubular muralha da china vai ter que passar em cima das minhas terras, que vão ser desapropriadas. Com a indenização, que não vai ser pouca, eu compro mais terra a preço de banana e juro subsidiado pelo governo. Ladrãozinho como ele só, pra gente como eu esse governo é mais que bom. É quase um sócio.

 

Essas novas terras serão de mata cerrada, com madeira de lei pra exportar. Um ano de motosserra comendo solta e eu garanto: não sobra um cipó pra contar a história. Com a dinheirama das toras eu encho de gado o que era floresta imprestável. Caso o pasto não seja lá essas coisas, as minhas fazendas de soja vão dar conta da ração. E que seja grande a flatulência do rebanho - quanto mais metano no ar maior o efeito estufa, atazanando a vida do povo lá no sul, que vai precisar ainda mais da água que o papai aqui vai mandar pelo aquaduto.

 

Se a farinha é pouca, o meu pirão primeiro. Mas nem esquento a cabeça porque a farinha por enquanto é muita, e eu mereço que seja. O meu pirão eu quero com sustança, bem servido mesmo, pra comer, repetir e arrotar. Que dê e sobre para mim e para os netos dos meus netos. O resto eu quero que se dane.

 

O aumento vertiginoso do desmatamento da Amazônia é mais um resultado catastrófico do desgoverno que aí está. A continuar esse quadro, não é descabida a possibilidade da perda de soberania e a intervenção de organismos internacionais para conter a devastação. Entendo que um país só merece ser soberano quando demonstra responsabilidade e respeito pelo que lhe pertence. Não é esse absolutamente o caso.

 

Marcelo Sguassábia© - 02/03/2015.

 

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Livrai-nos do caos, amém

 

 

 

Eu sou criacionista. Católico, apostólico, romano e criacionista convicto - daqueles dogmáticos, que acreditam que o mundo foi criado em uma semana mesmo, por mais que os últimos Papas admitam, eles próprios, que essa história é linguagem figurada. E olha que não é brincadeira continuar criacionista roxo quando entende-se por mundo o Universo todo, o que significa uma carga de trabalho que deixaria o Criador sem tempo nem para uma espiadinha rápida no facebook da época, nos seis árduos dias de sua empreitada.

 

Entretanto, assumo que os argumentos anti-criacionistas são muito sedutores. Especialmente os que defendem o caos como balizador do Universo.

 

Pela lei das probabilidades, a chance de um pobre mortal acertar na Mega Sena fazendo um joguinho simples é de uma em cinquenta milhões. Se considerarmos a infinitude do Cosmos, chegamos a quatrilhões, quinquilhões de galáxias. Isso só por aqui, nos quarteirões celestes mais próximos. Vamos admitir que reunir em um só planeta todos os acasos possíveis para que se organize a vida, tal qual a conhecemos, seja o mesmo que ganhar sozinho na dita Mega Sena. Então concluiremos que alguns mundos perfeitos têm de necessariamente existir, pois, num conjunto de possibilidades infinitas, é evidente que mundos onde tudo teoricamente funciona direitinho acabam eclodindo. Da mesma forma que os imperfeitos - só que estes em número bem maior, pois é muito mais fácil dar tudo errado do que tudo certo. Fazendo uma comparação para ilustrar: se jogarmos 20 dados juntos infinitas vezes, em algumas dessas vezes todos os dados cairão com o número 6 virado pra cima. Seria o nosso caso. Felizmente.

 

Um amigo, estudioso do caos e seus desdobramentos, não só defende a teoria como formulou o que denomina “Gradientes de Fatores Caóticos”.

 

FATOR CAÓTICO 5

É nessa categoria que encontramos o maior número de mundos. Tudo é bagunçado e a matéria se aglutina sem um mínimo ordenamento lógico. São estilhaços do big bang que deram o azar de não formarem nada que preste ou faça sentido.

 

FATOR CAÓTICO 4

Nessa classificação se alinham planetas repletos de achados ainda não catalogados e compreendidos pela ciência, porém são mundos não tão primitivos quanto os da categoria 5. Com alguma boa vontade teórica e uns milhões de anos de espera, é razoável supor que venham a abrigar formas elementares de vida.

 

 

FATOR CAÓTICO 3

Sóis sextavados, camisas com bolsos virados para baixo, espigas de milho com no máximo 3 grãos e nuvens de enxofre líquido formam algumas das aberrações dos astros desse grupo intermediário, que luta bravamente contra o rebaixamento.

 

FATOR CAÓTICO 2

São os mundos “quase lá”. Aqueles em que faltou um triz, um empurrãozinho do destino pra que tudo se encaixasse. Encontram-se comumente nessas paragens os narizes com uma narina, mãos de seis dedos e meio, canetas que vazam sem razão aparente, sapos que coaxam em decibéis insuportáveis e Woody Allens inteligentíssimos e com piadas ótimas, mas que às segundas tocam tuba ao invés de clarinete.

 

FATOR CAÓTICO 1

São os mundos que o caos fez calhar de serem originalmente perfeitos (isso antes do homem inventar de interferir e começar a estragar o brinquedinho). Onde a água é H2O e não H16O, onde a lei da gravidade não deixa os suflês de chuchu planarem acima do prato e onde há crepúsculos maravilhosos, como os encontráveis em São João da Boa Vista.

 

Marcelo Sguassábia© - 23/02/2015.

 

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São demais os perigos do passado

 

 

Desafinando o coro dos saudosos, eu digo que nem tudo foi de se guardar em álbum de retratos. Nem todos aqueles anos foram de coisas e gentes que justificassem lugar nos quadrantes nobres da cachola, lá onde a nostalgia fermenta, entorpece o senso prático e debilita a saúde do indivíduo.

 

A fila da vida anda. Aquela história de que “bom mesmo era no meu tempo” é tudo chorumela de maricas, nhém-nhém-nhém de quem não sabe enxergar o quanto ser astronauta é melhor que ser troglodita.

 

Saudosismo faz sentido se há do que sentir saudade. Mil vezes os racing games dos PS4 que os insalubres carrinhos de tábuas de caixote, rolemãs e pregos cheios de tétano. Esse negócio todo é muito romântico e bucólico até você imaginar o seu filho cercado desses perigos. Sem o selo Abrinq. Sem o carimbo do Inmetro. Sem o aval da vigilância sanitária e uma viatura do SAMU a postos em caso de emergência.

 

Me chegam pelo olfato umas coisas que não são de agora, nem de Deus. Milho verde, mato depois da chuva, flor de laranjeira. Se tudo isso fosse de Deus não vinha do mesmo lugar que a esquistossomose, a Doença de Chagas, o amarelão, a maleita, a dengue e suas variantes. Você pode achar divertido empinar papagaio até que o seu menino enrosque a rabiola da pandorga num fio de alta tensão. Ou que chamem você às pressas para reconhecer a cabeça dele no IML - decapitada por uma linha de cerol sem dono conhecido.

 

Melhor, bem melhor é tocar a vidinha seguro e trancafiado no condomínio. Aproveitar as tardes de sábado besuntando álcool gel nas mãos, protegido por benditos e bem erguidos muros com cerca elétrica. Da cidade pequena, lá de onde eu vim (não espalhe), quero exorcizar suas esquinas tacanhas, suas conversas de comadre, aquele sol que castiga o seu coreto inútil, o sol que descora a cal dos postes, que mata cozidas as lagartas nos quintais e não dá trégua aos meninos que voltam famintos da escola às suas casas com suspeitas de desidratação.

 

Aí você me vem com “saudadinha” do velho que vendia raspadinha na praça, que bom que era, etc. Mas aí eu lembro você da água de torneira que ele devia usar pra fazer a barra de gelo e dos coliformes fecais que muito provavelmente infestavam aquele xarope de groselha - de procedência ignorada e lotes não-rastreados. Meu Pai Amado, que perigo. Que perigo.

 

Marcelo Sguassábia© - 31/01/2015.

 

- Imagem: Foto: http://fabiotrancolin.blogspot.com.br/2013/09/voce-ja-foi-na-pecuaria_16.html.

 

*  *  *

 

Way of life

 

 

Frankfort, McKinsey Street, 609. Um “Donaldson” pintado a mão em letra serifada na caixa de correio. Dentro, uma proposta de assinatura de Seleções e outra do Saturday Evening Post. É claro que a casa é em estilo clapboard, como todas as outras a léguas ao redor. Dois pavimentos, sótão, nada de muro na frente. Mais tradicionalmente norte-americano que isso, só se for isso no Dia de Ação de Graças. E é.

 

A paz reinante parece tão inabalável quanto a liquidez das companhias de seguros e das ações da Pan Air. Talvez o mais fiel retrato dessa mansidão seja o pequeno Carl, que tem sua atenção dividida entre os bonecos do Forte Apache e um gigantesco pote de sorvete sabor baunilha. A televisão está ligada e uma garota-propaganda apresenta uma nova marca de cereal de milho, seguida por uma chamada para o Ed Sullivan Show.

 

Father na sala de estar de dois ambientes e seu costumeiro bourbon whiskey das manhãs de sábado. Serve de porta-copos uma edição capa-dura de “Como fazer amigos e influenciar pessoas”, do velho e bom Dale Carnegie. Ninguém no Estado de Kentucky poderia adivinhar onde estaria seu pensamento agora. Nas metas da empresa para 1958, no sonhado rancho em Sunset Village, nas pernas bem torneadas de Jeannie Johnson. A mulher que jamais teria, melhor amiga da esposa.An affair to remember, canta Nathaniel Cole na eletrola pé-de-palito RCA Victor, relembrando o caso que não houve.

 

Há uma cerca a pintar, galhos a podar e grama a cortar no jardim da frente. Ben, o filho mais velho, está aí para isso mesmo. Lucille Huppert, da Associação de Moradores, se aproxima com seu basset na coleira. Troca com Ben um olhar mais cúmplice do que o que seria moralmente tolerado entre uma respeitável balzaqueana de 38 e um rapazinho de 17.

 

Na casa em frente, um certo Jim Bob observa com o binóculo Peggy Sue ao espelho, ajeitando o sutiã. Dessa vez aquele trouxa do Edward avança o sinal, ah se avança. Ou não me chamo Peggy Sue!, pensa a líder de torcida, fazendo caras e bocas.

 

A América laboriosa e protestante recende a estrógeno e testosterona nos escritórios e high schools, nas ruas e parques de diversões. A mesma América que não hesita em ir à guerra pelas tradições que finge cultuar.

 

Mamãe arregimenta o marido e a prole para o almoço festivo, badalando o sininho de bronze dos tempos da matriarca Katherine. É servido o peru de Thanksgiving, guarnecido por rodelas de laranja.

 

- A asa não. A asa é do papai, Carl!

 

Sim, dê-me asas. É só o que quero nesse momento, pensa o pai enquanto diz:

 

- Querida, sempre tão gentil. Tudo bem, Carl, pode ficar com a asa. Acho que hoje vou preferir a sobrecoxa.

 

- Mommy, estão batendo na porta.

 

- Quem será? Agora que íamos começar a comer...

 

Lá fora Mary Reynolds aperta mais uma vez a campainha, passa um lenço umedecido nos cabelinhos da nuca, ajeita a blusa para dentro da saia e saca da bolsa a edição de Natal do catálogo de cosméticos. Meio-dia e meia, o sol nunca esteve tão forte nessa época do ano, mas ninguém é próspero o bastante para deixar de prosperar, ainda que seja sábado na maior economia do mundo.

 

É Avon que chama. É mamãe que atende com um sorriso nos lábios e um convite para entrar.

 

Marcelo Sguassábia© - 24/01/2015.

 

- Imagem: Divulgação.

 

*  *  *

 

Ilustres de Père Lachaise

 

 

Maior cemitério de Paris e um dos mais famosos do mundo, o Père Lachaise notabiliza-se pelo grande número de celebridades ali sepultadas - entre artistas, cientistas, políticos e filósofos. Algumas delas não tão enaltecidas pela mídia, porém merecidamente lembradas pelos seus grandes feitos.

 

Huguenote François Legrand, injustiçado expoente da chamada baixa gastronomia francesa, criador da melancia flambada e de outras receitas de dificílima execução e forte apelo popular. Todo 17 de maio, dezenas de crepes de nutella são depositados sobre sua lápide para marcar o aniversário de nascimento dessa figura ímpar em seu métier, cujo desaparecimento precoce até hoje provoca sentido pranto e colapsos nervosos entre seus companheiros de sauna.

 

Carcamonde Etoile des Trèsjolie, pioneira nos serviços de varrição noturna no décimo quinto arrondissement e vizinhanças, regiões parisienses onde, em sua época, concentravam-se bancas de mariscos, patos selvagens e escargots de linhagens variadas. Seu túmulo é um dos pontos de maior afluxo de turistas no cemitério. Guias das agências de viagem precisam agendar visitas em grupo com meses de antecedência. Nos últimos anos, o alto risco de pisoteamento nas proximidades do jazigo forçou a polícia francesa a criar um destacamento de homens especialmente dedicado à vigilância do local.

 

Afonse Frèderic Eiffel, sobrinho-neto do autor da torre. A ele é atribuída uma série de 23 importantes aperfeiçoamentos no fole do acordeon típico da chanson francesa. Seus escritos, publicados em dois volumes - hoje encontráveis exclusivamente em sebos especializados - constituem uma verdadeira bíblia para todos aqueles que sonham em fazer dinheiro nas estações de metrô da capital.

 

Brigitte Saint-Preux de Lisle, vendedora ambulante que ganhava a vida nas imediações da Pont dês Arts. Vendia os chamados “cadeados do amor” e em seguida, com uma chave-mestra, abria-os e repunha-os em seu estoque.

 

Le petit bâtard (O pequeno bastardo): ninguém contesta que Toulouse-Lautrec, em seus anos de maior desregramento e libidinagem, deixou uma vasta prole nos puteiros de Paris. Um de seus filhos, jamais reconhecido pelo pai, ganhou notoriedade em todo o bairro de Montmartre em razão do singular dote de promover transfusões sanguíneas telepaticamente, ou seja, transferindo o sangue de uma pessoa para outra sem o uso de seringas e agulhas. Lautrequinho é também nome de uma alameda na cidade de Lion e batiza um chafariz nas proximidades do Bois de Boulogne.

 

* Mon petit hommage aos verdadeiramente célebres cartunistas do Charlie Hebdo - alguns deles sepultados no Cemitério de Père Lachaise.

 

Marcelo Sguassábia© - 17/01/2015.

 

- Imagem: Divulgação.

 

*  *  *

 

Cala-te boca

  

 

- Um doce pra quem me disser quando vamos poder conversar tranquilamente, como nos velhos tempos.

 

- Ah, que tolinho... você e eu temos telhado de vidro. Pra tudo que a gente disser, vai ter alguém na escuta. O pior é que não dá pra confiar 100% em varredura. Muito menos em quem varre.

 

- Pelo Higino eu ponho a mão no fogo, está comigo desde que comecei na vida pública. Era varredor na minha cidade e não deixava passar um pelo de sobrancelha sem varrer.

 

- Mas ele é um varredor de rua, não um perito em espionagem.

 

- O princípio é o mesmo. O homem é um cão farejador. Está lotado no gabinete como assessor especial e arrumei emprego pra família toda dele no almoxarifado do Itamaraty. Eu desconfio da minha mãe mas não desconfio do Higino.

 

- Não sei, pra mim todo mundo é suspeito até que se prove o contrário.

 

- Como fazemos, então? Sinal de fumaça, pombo-correio, telepatia...

 

- Não vejo saída. Telefone é grampeado, e-mail deixa rastro, agora inventaram essa história de quebra de sigilo eletrônico...

 

- E carta?

 

- Nem pensar, ainda mais agora que os Correios podem entrar na mira da investigação. Lembra daquela história de distribuir santinho junto com a correspondência?

 

- A gente faz uma triangulação, uma quadrangulação ou até uma octangulação pra dificultar que alguém descubra. Eu mando a carta pra um laranja, que manda pra outro laranja, depois outro e outro até chegar a você. Pra responder você faz o mesmo, mas com laranjas diferentes. Não vão pegar nunca.

 

- Isso demora muito. Alguns assuntos temos que resolver rápido.

 

- Bom, isso é.

 

- Mas espera aí... os Correios não são Correios e Telégrafos? Então vamos botar pra funcionar os telégrafos, que quase ninguém usa mais. Fazemos um curso de código morse e boa, conversamos à vontade. Nem por decreto vão pegar alguma coisa, porque jamais vão suspeitar que a gente use algo tão obsoleto.

 

- Tem também radioamador, tipo PX e PY... Mas aí o sinal é por radiofrequência, podem interceptar.

 

- Olha, uma coisa é certa: em ambiente fechado você pode esquecer que nós nunca mais vamos poder falar. Até em primeira comunhão e missa de sétimo dia vão dar um jeito de instalar um microfone em nossas cuecas. Ou melhor, na minha cueca e no seu sutiã. Talvez no meu paletó e no seu tailleur. Quem sabe na sua calcinha e na minha abotoadura, sei lá. É muita gente cuidando do cerimonial, e tem sempre alguém levando uns trocos pra meter uma microcâmera onde não deve.

 

- É, seria perigoso mesmo. Um “amém” seu, um “Deus seja louvado” meu e pronto: já iriam falar que é código, que Nossa Senhora, Ofertório e Sacramento são codinomes e batizariam a coisa toda de “Operação Castigo Eterno”.

 

- E criptografia, aquele negócio que embaralha tudo?

 

- Não. Já inventaram um treco que desembaralha. Esquece.

 

- Bom, resumo da ópera: tamo na roça.

 

- Na roça e feito dois marrecos mudos.

 

- Que paranoia. Já pensou se captam essa nossa conversa, falando do nosso medo do flagra? Não precisa de mais nada. Seria a confissão de delito definitiva, sem chance de defesa.

 

- Já sei: arrendamos uma das fazendas do Sarney e vamos uma vez por semana pra lá. Sem assessor, sem segurança, sem nada. Aí nós dois tiramos a roupa e vamos pro meio do pasto. Pra maior segurança, cochichamos um no ouvido do outro. Acho que aí funciona.

 

- Aborta o plano. Esqueceu dos paparazzi?

 

Marcelo Sguassábia© - 10/01/2015.

 

- Imagem: Divulgação.

 

*  *  *

 

Pronunciamento Duñesco de Ano Novo

 

 

“Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Melhor o meio termo, ou seja, a lama. A do Dalai ou a de Araxá, que tem poderes comprovadamente rejuvenescedores para a pele e reabilita em oito meses a função do apêndice”. Ante olhares pasmos de alguns poucos criadores de bichos-da-seda e de quatorze mochileiros que por ali colhiam cogumelos, assim iniciou sua preleção o Venerável Duña, em aparição relâmpago ocorrida ontem, por volta das nove da noite, no cume de uma montanha mantiqueira.

 

Teólogos e teóricos das mais díspares correntes esotéricas concluem que o inusitado pronunciamento revela um Duña menos extremado em suas exortações, um líder messiânico mais disposto a valorizar o equilíbrio e a ponderação em detrimento do fundamentalismo inflexível de algumas seitas – que caracterizaram inclusive a sua própria Ordem em outros tempos.

 

“A segunda década do século 21 que ora vivenciamos será certamente marcada pela concórdia entre os homens. E isso não é sandice profética ou retórica de ocasião. Tomem como exemplo a questão percentual do dízimo. Um fiel que, por liberalidade, queira destinar mensalmente à nossa seita doze por cento ao invés dos dez regulamentares, não merece ser discriminado pelos demais seguidores. Até porque essa participação mais generosa ao erário sagrado não implica necessariamente na aquisição de um quinhão maior no latifúndio celeste. Há que se ter tolerância e compreensão aos que voluntariamente optam por oferecer mais”, disse o sacerdote supremo, enquanto de suas têmporas pululavam raios ionizantes de cor violeta.

 

Ajoelhando-se, o Iluminado prosseguiu:

 

“Fazei com ambas as mãos a caridade que deveis praticar. Ajudai os coxos a atravessarem a rua utilizando ambas, degusteis o desjejum, o almoço e a janta usando ambas, digitai em vossos laptops empregando indistintamente ambas e, para que a discórdia não se instale entre ambas, que ambas depositem oferendas igualmente generosas sempre que se proceda à passagem da sacolinha nos cultos sagrados.

 

Caso não seja do tipo meia-cura, separai o queijo da goiabada como quem separa o joio do trigo, pelo fato de ser impossível o convívio pacífico entre a velha e boa goiabada de tacho à moda mineira e queijos dos tipos parmesão, gruyère, prato, fresco, provolone, gorgonzola e todos os demais produzidos com leite de vaca, ovelha ou cabra.

 

Lembrai que os doze mil Oráculos, que peregrinam em trabalho missionário pelo planeta, são a representação carnal do Excelso Ser Duñesco, sendo por ele investidos de plena autoridade para dirimir desavenças entre torcidas e arbitrar soberanamente sobre demais litígios – sejam eles de natureza desportiva, culinária, sexual, filosófica ou fitoterápica. Contai com seus sapientes conselhos ao longo de todo o ano de 2015.

 

Orai e vigiai para que a dama de incisivos proeminentes, que continuará vos governando, mantenha os subsídios federais à produção e importação de velas, incensos, indumentárias e demais paramentos necessários aos nossos rituais litúrgicos.

 

E a vós, que aqui presenciais esta minha aparição, sugiro que deixeis de criar bichos-da-seda e de colher cogumelos, pois tais afazeres não vos levarão a parte alguma. Muito menos à salvação eterna”.

 

Marcelo Sguassábia© - 03/01/2015.

 

- Imagem: Divulgação.

 

 

 

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