
Primeiras
chuteiras
Por
Péricles Gomide Júnior
Crônicas e narrativas de Pancrácio
Fidelis
Publicada na Folha do Oeste, de 19/09/1948
Afirmo, com
absoluta convicção, que não houve nenhum garoto que tivesse mais
oportunidade de se meter em barulho e criar situações embaraçosas, para
sua digníssima família, do que eu, quando era pequeno, nesta terra.
É bem verdade que
apanhava muito. É bem verdade que minha mãe ia dormir assim um tanto ou
quanto aborrecida o dia em que não me apertava o pescocinho. E mamãe
tinha sobeja razão. Lembro-me de que, quando completei oito anos, papai
e mamãe celebraram suas bodas de prata.
Fato raro em
Itaúna, o que motivou curiosidade sem limites. Meus pais se viram
atarefadíssimos nas vésperas da festa, para preparar tanta gente. Nós,
todos os irmãos, ganhamos terno novo, confeccionado no alfaiate. Houve
doce toda vida lá em casa!
A cozinha estava
repleta de gente e todo mundo que sabia fazer doce, mamãe recrutou lá
pra casa. Eu ficava "sapeando" o dia inteiro na cozinha, observando as
senhoras que a toda hora me pisavam, quando não me esquivava a tempo.
Todo mundo me xingava: "Tira a mão daí", berrava uma, "Vai lá pra
fora!", berrava outra. "Tira a mão imunda daí, menino do inferno!".
Naquele tempo eu
já era meio malcriadozinho, de maneira que sempre tinha uma resposta
pronta, para as donas dos doces. Minha madrinha me deu um côco (cuidado
com a revisão) inteirinho e me mandou lá para o fundo do quintal me
divertir com ele. Até hoje meu estomago embrulha quando me lembro do
côco. Apanhei uma indigestão horrorosa e não há nada pior neste mundo do
que a mistura de côco com óleo de rícino.
Sei que na tarde
que precedeu à festança, eu me aproximei do papai e lhe informei: "Não
tenho botina para ir à Missa amanhã, não". Meu pai começou por me passar
uma espinafração, por ter deixado para lhe avisar na véspera. Acabou por
me dar trinta mil réis, para eu mesmo providenciar a compra de um par de
sapatos decentes.
Acontece que há
muito tempo, sempre que ia para o Grupo, eu parava ali defronte o
Abelardo e ficava muito tempo namorando umas chuteiras brancas de
rodelinhas vermelhas, que se achavam expostas na vitrine de lá. O Sr.
Abelardo e os caixeiros já me haviam dado o preço das chuteiras umas cem
vezes, quatorze mil réis, o par.
Ora, o velho foi
me dando os trinta mil réis e eu me vi calçadinho de chuteiras novas e
meus amigos todos, Amadeu, Osvan, Neném Elefante, Helênio, todos eles
babando de inveja. Apanhei o dinheiro e voei pro Abelardo. Exibi o
cobre, me deram o troco e as chuteiras.
Na manhã seguinte,
às cinco horas, muito embora a Missa fosse às nove, já estava todo mundo
lá em casa de pé - menos eu, que passei a noite acordado pensando nas
botinas de jogar futebol e só conseguiria dormir, de manhã. Minha
família se esquecera de mim e só me lembro que às 8h45, minha madrinha
me pôs em pé - eu, tonto de sono – e vestiu-me o terno branco, cheio de
botõezinhos nas pernas das calças curtas e me ajudou a calçar as
chuteiras.
Eu corri para a
Igreja. Parei à porta principal. A Missa já havia começado. A Igreja
cheíssima e o meu povo todo em redor do altar principal. Silêncio
absoluto.
Dei os primeiros
passos para dentro do templo. Minhas chuteiras chiaram desafinadamente.
Todo mundo olhou para trás. Eu parei desconsertadíssimo. Quando todos se
voltaram para frente, dei mais alguns passos.
As malditas
chuteiras chiaram de novo, languidamente. Todo mundo tornou a olhar para
trás e eu ouvi uns risozinhos abafados. Parei novamente.
Enchi-me de
coragem e corri até o meio da Igreja.
Os raios das
chuteiras rangeram desesperadamente e, aí, meu pai se voltou e
encarou-me. Jamais conseguirei esquecer a cara que ele e mamãe fizeram,
quando deram com os olhos nas chuteiras.
Eu fui andando
devagarzinho para o altar - para a passo. As travas das chuteiras
batendo compassadamente no ladrilho e o couro novo fazendo um acorde
desafinado e triste se enquadravam com a cara de piedade que li nos
olhos do padre, ao se virar para o "Dominus Vobiscum".
Meus pais, meus
irmãos, cada qual mais vermelho de vergonha e eu, eu sentia o rosto em
fogo.
Minha mãe deixou
de me encarar e olhou agressivamente para meu pai. Meu pai se desculpou
com os olhos e olhou agressivamente para mim.
Após tremenda
agonia, cheguei ao altar. Meus irmãos não me quiseram deixar entrar
entre eles e se aconchegavam mais uns aos outros. Eu me senti como um
pinto que não coubesse debaixo das asas da galinha.
Coloquei-me entre
os dois menores e fiz força. Entrei. Não olhei para nenhum membro de
minha respeitável família, mas senti os olhos de todos eles grudados em
mim. O que me salvou foi a Comunhão.
Céus! E na saída
da Igreja? A família toda na frente recebendo abraços, congratulações e
eu atrás recebendo sorrisos de mofa dos estranhos, as chuteiras
agradecendo por mim.
Após lauto café
com bolos, etc., meu pai se levantou e se encaminhou para mim. Eu me
levantei e me encaminhei para a porta.
Correu para mim.
Corri para o quintal. Senti sua mão no meu pescoço e não vislumbrei
nenhuma salvação nos olhos dele.
"Papai", disse eu,
numa suprema inspiração - "o senhor comungou hoje...".
Nesse dia não
apanhei. Mas, sempre que calçava as malditas chuteiras, o velho
arranjava um pretexto para me dar uns arrancos.
* * *
* Colaborou: Juarez Nogueira Franco.

Ler crônicas
'Eu afirmo, sempre, que Itaúna é o
lugar mais divertido do mundo.
Asseguro, com a mais absoluta
sinceridade que me envaideço quando
declaro onde nasci e me orgulho,
infinitamente, desta terra'.
Péricles Gomide Júnior
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