
A
Ressuscitada
Por
Péricles Gomide Júnior
Crônicas e narrativas de Pancrácio
Fidelis
Publicada na Folha do Oeste, de 27/08/1950
Eu afirmo, sempre, que Itaúna é o lugar mais divertido do
mundo. Asseguro, com a mais absoluta sinceridade que me envaideço quando
declaro onde nasci e me orgulho, infinitamente, desta terra.
Raramente a gente vê um itaunense triste. Se bem que,
quando qualquer elemento desta terra tenha razão sobeja para se
entristecer, Itaúna inteira se solidariza, se entristece com ele.
E foi por esse espírito de solidariedade que um véu de
melancolia imensa cobriu toda Itaúna, quando, no princípio de julho,
correu a notícia de que Dona Julife falecera em Belo Horizonte e que o
seu cadáver seria transportado para aqui, em ambulância.
Toda Itaúna se cobriu de luto. Dona Estela Máximo, a
eficientíssima Dona Estela, se pôs em campo imediatamente, para preparar
a recepção de Dona Julife.
Movimentou todo mundo, distribuindo as atribuições. Mandou
avisar ao Padre, mandou apanhar os maiores castiçais que a Igreja podia
fornecer, mandou convocar o Apostolado da Oração – primeiro e segundo
time – mandou avisar a Dona Ladomila que ensaiasse com as “Damas de
Caridade” o “Vestida de Branco Ela Apareceu”, em dó maior, mandou
arranjar um franguinho gordo para o chofer da ambulância, mandou o Zinho
do Benevides ir lamber sabão, porque este não lhe quis emprestar um
serrote, e foi, ela mesma, para a casa da Dona Julife, arranjar a eça.
Às quatro horas da tarde, a casa do Sr. Joaquim Alexandre -
marido da Dona Julife - regurgitava de gente, num entra-e-sai tremendo.
Daí a pouco veio um boato de que os peregrinos que visitaram Roma
estavam chegando. O povo correu para o Largo, para ver a cara dos que
tinham visto o Papa e a casa do Sr. Joaquim quase se esvaziou.
E a ambulância chegou.
Dona Estela, Dona Ladomila e Dona Eponina se aproximaram da
ambulância e abriram a porta para tirar o cadáver. Dona Ladomila
introduziu a cabeça dentro do veículo e a tirou imediatamente, com a
boca aberta e os olhos arregalados... Dona Julife a havia cumprimentado
delicadamente: “Como vai a senhora, Dona Ladomila?”.
Dona Ladomila subiu direta pela rua acima, a cento e onze
quilômetros por hora e Dona Estela, idem, na mesma velocidade. Dona Eponina já as esperava lá na esquina: “Ladomila de Deus! Eu nunca vi
defunto falar!”. Ao que ela respondeu, “Nem eu. Aliás, é por isto que
estou correndo!”.
O nosso digno diretor, Dr. Guaracy de Castro Nogueira,
acompanhado do nosso não menos digno diretor, Dr. William Leão,
destemido oficial do nosso glorioso exército, aproximaram-se solícitos
da ambulância.
- Eu puxo a maca – avisou o William – e depois você me
ajuda, tá? O Guaracy concordou e os dois abriram a porta. A voz a Dona
Julife saiu lá de dentro: “Como vai a sua mãe, Guaracy?”.
O nosso ilustre diretor bateu a porta da ambulância e
arregalou os olhos para o destemido oficial do nosso glorioso exército,
que
já ia virando a esquina do Olivério, a quase um quilômetro de distância.
O Guaracy se aproximou do Zinho do Benevides e falou:
- Dona Julife não está muito morta não, ela perguntou pela
mamãe.
- Então manda cercar o Apostolado da Oração que ele vem
cantando lá em cima.
- Não vou cercar ninguém – avisou o Guaracy – vou é
arranjar um lugar para assentar, pois estou com as pernas muito bambas.
E se agachou no meio fio. Um caríssimo amigo nosso passou a
noite inteirinha agarrado na orelha da sóta, num poquerzinho furioso. De
manhã, o nosso amigo chegou em casa assim meio bambo e sua senhora veio
com o sermãzinho: “Uma vergonha, um pai de família...”.
- Uai, você não sabe? Eu fui fazer quarto à Dona Julife,
coitada!
- Dona Julife morreu?
- Completamente. E o cadáver dela chegou ontem aqui,
coitada... Ficou tão desfigurada...
A senhora, amiga da família, preparou-se logo e foi à casa
do Sr. Joaquim Alexandre, levar seus préstimos e apresentar seus
pêsames... O Heli de Sousa anda doido, até hoje, para saber quem foi e
quebrar a cara de quem lhe informou que Dona Julife havia falecido...
O nosso impetuoso diretor e cronista, Sebastião Nogueira
Gomide veio afobado lá da casa dele. Com aquele seu ímpeto já
característico, se acercou da ambulância, abriu a porta que o Guaracy
havia fechado e, como Dona Ladomila, enfiou a cabeça lá dentro. Dona
Julife lhe sorriu: “Ei, Piu!”.
O nosso impetuoso diretor só conseguiu gaguejar, com muito
esforço: “Meus pêsames...”. Saiu assim também meio de banda e foi sentar
junto do Guaracy lá no meio fio.
- Guaracy, vou te contar uma coisa que você não vai
acreditar – falou baixinho.
- Já sei – falou o Guaracy – Dona Julife está
conversando... Muita gente aqui já correu por causa disso. O covarde do
William me deixou sozinho! Piu, vamos picar a mula também?
O Piu já havia aguilhoado a azêmola dele há muito tempo.
Dona Margarida do Correio, impossibilitada de comparecer pessoalmente à
recepção de Dona Julife, mandou sua filha Itajaci representá-la e saber
a hora do enterro.
Daí umas duas horas, Itajaci chegou em casa e se dirigiu à
sua mãe:
-
Mamãe, eu estou desconfiada de que não vai haver enterro
mais não. As mulheres estão desmanchando tudo às pressas, jogando tudo
pela janela. Até um pano preto daqueles caiu na cabeça do Sr. Joaquim...
- Mas por que?
- Não sei não. Dona Julife mandou lembrança para a senhora.
- Quem?!!! Você está doente, minha filha? Está sentindo
alguma coisa? Venha cá, deixa eu ver se você está com febre... Acácio!
Vai chamar o Dr. Lincoln ou o Dr.Tomaz ou o Dr. Zé Campos ou o Dr. Vidão,
depressa! Está sentindo alguma coisa, filhinha, está?
- Estou com fome!
Dona Julife está viva! Graças a Deus, tudo não passara de
interpretação errada de um telefonema de Belo Horizonte para aqui.
Itaúna recebeu com imensa satisfação a alvissareira notícia. Todo mundo
correu para a casa dela. O Sr. Joaquim Alexandre, sumamente aliviado,
recebia todo mundo, sorrindo satisfeito e agradecia a solidariedade.
Dona Julife, graças a Deus, está viva. Que Deus lhe dê
muitos anos de vida, são os nossos votos, votos de todos os itaunenses.
* * *

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'Eu afirmo, sempre, que Itaúna é o
lugar mais divertido do mundo.
Asseguro, com a mais absoluta
sinceridade que me envaideço quando
declaro onde nasci e me orgulho,
infinitamente, desta terra'.
Péricles Gomide Júnior
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