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Vítima:

O gato maluco

Contrariando as aparências, era inquieto demais. Do chão, saltava na mesa; daí pulava para cima do armário. Descia. Miava com ares de muita aflição. Dentro de uma meia hora, já havia derrubado leite na pia, jarra na mesa, já havia destampado não sei quantas panelas, até que...

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

22/07/2024

 

Casa fechada, eu já dormindo, ele danou a miar, a gritar, a arranhar raivosamente a minha porta, no afã de querer entrar. O único recurso foi jogar um balde de água fria nele.

 

Fui morar numa outra rua. Aos poucos, fui conhecendo o pessoal. Tinha a namoradeira, tinha a fofoqueira, tinha o ruim pra pagar, tinha o bigodudo sem paciência, e tinha gente “normal” também. Dentre essas criaturas, destacava-se o Leninho. Rapaz magrinho, clarinho, de uns dezoito anos. Passava sempre à minha porta, com um sorriso nos lábios.

 

A fofoqueira me contou um pouco sobre ele. Informou que ele é quem morava numa casa no final do quarteirão, com um quintal enorme, que dava até para a outra rua. Falei-lhe que já havia visto o lugar. Um quintal cheio de árvores, incluindo bananeiras, bastante sombrio por sinal, com ingênuas galinhas passeando por entre as plantas.

 

Continuando, a fofoqueira me revelou que um senhor já idoso morava sozinho nessa sua casa. Precisando de uma doméstica, acabou contratando a Celinha, que soube ser estrategista.

 

Percebendo que, além daquela propriedade, o homem possuía diversos imóveis comerciais e residenciais, não dormiu no ponto. Ela, bonitinha, dezenove anos, começou a utilizar-se de mecanismos de sedução, que só as mulheres sabem. Num instantinho, já estava nascendo um filho deles: o Leninho. Então se casaram.

 

Não tardou que o velhote se despedisse deste mundo, e a Celinha montou em toda aquela riqueza. Chamou a Maura, sua irmã, para morar com eles.

 

Não obstante tamanha fortuna, Celinha era avarenta. Inaugurou uma loja, e só pensava em ganhar, multiplicar seus rendimentos. Algum dinheiro que entregava ao filho era medido, só para despesas essenciais. E ele queria ter sua grana, para ir a um show, comprar um celular novo, sair com uma garota...

 

Esse bonzinho rapaz um dia bateu à minha casa, me dando de presente um gato. Não sei por quê, vi bastantes semelhanças entre o bichinho e o mocinho. O gato também era claro, bonzinho, miava macio, como era a voz do Leninho. Identificação completa entre os dois. Agradeci e entrei com o meu bichano.

 

Todavia, o gato foi logo mostrando a sua outra face. Contrariando as aparências, era inquieto demais. Do chão, saltava na mesa; daí pulava para cima do armário. Descia. Miava com ares de muita aflição. Dentro de uma meia hora, já havia derrubado leite na pia, jarra na mesa, já havia destampado não sei quantas panelas, até que...

 

Desisti do animal. Coloquei-o para fora, toquei-o. Ele sumiu. Contudo, à noite, o insano voltou. Casa fechada, eu já dormindo, ele danou a miar, a gritar, a arranhar raivosamente a minha porta, no afã de querer entrar. O único recurso foi jogar um balde de água fria nele.

 

No outro dia, eis novamente o rebelde, desta vez, menos travesso, deitado no tapete. Minha vizinha é fascinada por animais. Perguntei-lhe se queria um gatinho branquinho, bonitinho etc. e tal. Ela o aceitou com total alegria. Passei-o para frente (como fizera o dono dele comigo). Dois dias depois, ela me contou que o havia levado para seu sítio e o deixado lá. “Lá tem mais espaço para ele, sabe?” Uhm, sei sim.

 

Polícia! Grande confusão na rua! Ficamos sabendo que o Leninho aproximou-se da Maura, sua tia, e anunciou:

 

- Tia, vou te dar uma facada.

 

- Hoje não. Hoje eu não tenho dinheiro.

 

- Então, se não pode ser facada de dinheiro, vai outro tipo de facada mesmo. (Aplicou-lhe um poderoso golpe.)

 

De início, eu não sabia o motivo de tanta polícia, e por que haviam cercado os quatro quarteirões. É que haviam recebido uma denúncia de que, além da facada, o bonzinho Leninho era um forte traficante de drogas. Foram vasculhar o seu quintal, descobriram que ali havia uma plantação de maconha. O jovem foi indiciado por diversos crimes. (E a mãe? E a tia? Sabiam de tudo, inclusive da plantação? Um caso a investigar.)

 

E o gato? Nesta oportunidade, contaram também que o Leninho tinha o sádico prazer de dopar aquele seu animal. Por isso é que ele ficava tresloucado daquele jeito. Afinal, maluco mesmo era o Leninho. O gato era apenas um coitado, uma vítima, um infeliz.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.
 
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Comércio desumano:

Vendem-se crianças

Vários canais já estão exibindo o vídeo em que o senador argentino Juan Carlos Pagotto defende que famílias em situação de extrema pobreza deveriam ter a possibilidade de vender seus filhos.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

16/07/2024

 

No Paquistão, por exemplo, de acordo com a Canção Nova, mulheres são vistas nas ruas tentando vender os seus filhos. A justificativa é que não eram capazes de alimentá-los e que, se os vendessem, eles poderiam ter uma vida melhor.

 

[Vende-se um lindo menino, de 3 anos, loirinho, franjinha na testa, olhos azul-esverdeados. Já fala uma porção de coisas. Está sem dois dentes na frente, mas isso não prejudica a sua ingênua beleza. Exatamente em virtude da sua ingenuidade, ele é sorridente. Preço a combinar. Motivo: pai viciado em drogas; dificuldades financeiras da família.]

 

Bem, este anúncio foi idealizado por este cronista, consentâneo com fatos reais, de que trataremos a seguir.

 

Em nossa última crônica, reportamo-nos ao malsucedido governo de Milei, na Argentina. Agora nos aparece um senador, seu aliado, apresentando uma proposta legislativa, simplesmente desumana. Voltaremos a ela.

 

A prática de vender crianças, infelizmente, não começou presentemente. Contudo, sempre é e será repudiada por nós e por qualquer pessoa que tenha pelo menos alguma dose de humanidade.

 

No Paquistão, por exemplo, de acordo com a Canção Nova, mulheres são vistas nas ruas tentando vender os seus filhos. A justificativa é que não eram capazes de alimentá-los e que, se os vendessem, eles poderiam ter uma vida melhor. Em certos casos, os maridos são viciados em drogas.

 

Consta similarmente que, no Quênia, é possível encontrar bebês vendidos por R$3.800,00. A reportagem é da BBC NEWS Brasil. Noticia-se que crianças de mães vulneráveis, incluindo moradoras de ruas, são às vezes vendidas, ou até mesmo raptadas e repassadas com enormes lucros. (Tais crianças são tratadas simplesmente como um produto comercial.) Gravíssima também foi a constatação de bebês roubados sob encomenda de um grande hospital público. Os ladrões de bebês variam de oportunistas vulneráveis ​​a criminosos organizados — geralmente os dois elementos trabalhando juntos. Às vezes, fala-se primeiro com a mãe, para melhor entender o que ela pretende fazer como o seu filho. Em outros casos, alguém age drogando a mãe ou dando-lhe remédio para dormir. E roubam a criança.

 

O site Metrópoles relata o caso de uma brasileira que vendeu seu filho. Mais próximo de dar à luz, ela rumou para Portugal. Teve lá o seu bebê, o qual já estava encomendado. Retornou ao Brasil com dinheiro e sem o filho. Eu pergunto: como ela possuía dinheiro para uma viagem internacional e não o tinha para tratar do filho?

 

Há denúncia de que algumas crianças são até mesmo anunciadas no OLX. “Em alguns desses países, como Portugal, o anúncio vem acompanhado por fotos das crianças e um endereço de correio eletrônico para mais informações e detalhes.” Quem denuncia é este canal.

 

E o que está acontecendo aqui perto de nós, na Argentina?

 

Vários canais já estão exibindo o vídeo em que o senador argentino Juan Carlos Pagotto defende que famílias em situação de extrema pobreza deveriam ter a possibilidade de vender seus filhos. Aqui está um desses canais.

 

Em sua fala, ele menciona o artigo 139 bis da legislação aprovada pelos congressistas. Diz o texto original que “será imposta pena de prisão de quatro a dez anos a quem receber ou entregar um menor de idade mediante preço, promessa de retribuição ou qualquer tipo de contrapartida, se não resultar em um delito mais severamente punido.”

 

No entanto, propõe o parlamentar: “fica isento dessa pena o progenitor que entregar seu filho em estado de necessidade.” E diz mais: “Se uma família não tem condições de cuidar de seus filhos, por que não permitir que eles sejam adotados por famílias que possam lhes oferecer um futuro melhor?”

 

Justamente numa época em que a pobreza assola 57% dos argentinos, o parlamentar, em vez de apresentar um projeto para melhorar a vida das famílias, apela-se à simplista sugestão de que os filhos sejam vendidos.

 

Dentro desse desumano raciocínio, os filhos teriam uma vida melhor. (E fica subliminar que o governo economizaria com isso, eximindo-se de uma responsabilidade.)

 

Afinal de contas, a ideia desse político gerou diversas controvérsias. Fala-se que o próprio Milei – de quem o parlamentar é aliado - repudiou sua proposta.

 

Também repudiamos. Eis o caminho da insanidade. Ser humano não é mercadoria. O caminho da racionalidade determina que crianças sejam muito bem cuidadas pelos pais e pelo Estado. E embora para alguns países o desafio seja maior, o governo é o responsável por oferecer às pessoas as melhores condições de educação, saúde, emprego e renda, para que os pais tenham condições de guiar devidamente os seus filhos, assumindo assim as suas responsabilidades.

 

As escolas, as igrejas, as comunidades e os próprios cidadãos devem ser coadjuvantes na educação e no bem-estar de crianças, jovens e até mesmo de adultos – para um mundo melhor.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.
 
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Convenção monstruosa:

O monstro da motosserra

É evidente que vem para um Encontro de Palhaços, na cidade de Balneário do Camboriú, em Santa Catarina. Deste encontro, deverão participar também o palhaço Bozo, o palhaço Bananinha, e vários outros, os quais nunca perdem uma palhaceata.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

07/07/2024

 

O palhaço Milei é arrogante. Ataca o nosso presidente, desafia as nossas instituições, afronta a nossa Pátria.

 

Crianças, afastem-se rapidamente! Tenham muito cuidado! O monstro da motosserra já vem chegando. Ele é baixo, cabeludo, olhar cínico, parece um bonecão, e ele vem dançando um tango. Esse monstro se disfarça muito bem de palhaço.

 

E o que ele fará neste nosso Brasil? ...

 

É evidente que vem para um Encontro de Palhaços, na cidade de Balneário do Camboriú, em Santa Catarina. Deste encontro, deverão participar também o palhaço Bozo, o palhaço Bananinha, e vários outros, os quais nunca perdem uma palhaceata, por exemplo: Magnus Malte (que aparece sempre tonto), Malacheia, dentre outros.

 

Seria um encontro bastante divertido, uma vez que somente constituído por gente especialista em causar o riso. E é. Só que eles são perigosos, perigosíssimos... Eles deverão estar tramando um novo golpe contra o Lula, ou contra o STF, ou contra o Brasil. Enfim, contra todos que se opõem às suas roubalheiras e contra a quebradeira realizada no 08 de janeiro de 2022. Tais clowns não sabem viver de acordo com a Lei e a normalidade. São os legítimos fora da lei. E nós é que temos de aguentar?

 

O palhaço Milei é arrogante. Ataca o nosso presidente, desafia as nossas instituições, afronta a nossa Pátria. E conversa grosso também com a China (de quem a Argentina poderia tirar um grande proveito). Agride ainda a Espanha, a Bolívia. E vejamos o que Milei causou nas relações diplomáticas entre seu país e a Colômbia. Milei chamou Gustavo Petro (presidente da Colômbia) de "assassino terrorista" em uma entrevista à CNN. Chegou a correr a notícia de que a Colômbia havia rompido relações diplomáticas com a Argentina.

 

Em resumo: esse despresidente argentino se parece demais com um despresidente que tivemos, de 2019 a 2022. Ambos, de extrema direita. Ambos, com esse espírito de valentões (valentinhos, na verdade), que só dão tiros no próprio pé.

 

O governo Milei tem sido um desastre. Ele se propôs a arroxar muito a Argentina, numa tentativa de estabilizar a sua economia. Isso explica ter escolhido a motosserra como símbolo de sua campanha. A meta era cortar gastos (e investimentos).

 

Nosso cantor e compositor Tito Madi falou uma vez em seu samba Minha filosofia: “Choro hoje pra amanhã sentir bem maior a alegria.” O Milei não iria expressar-se em samba. Contudo, em tango, teria dito o mesmo com relação à sua política de arrocho. Mas... E os resultados até agora?

 

A indústria está em recessão. Aumentos salariais foram cortados. Reduzidos os investimentos na educação, saúde, infraestrutura e por aí vai. Consequentemente, tem crescido demais o desemprego. A pobreza (para não dizer miséria) já está, segundo dados publicados na imprensa, a 57%. Greves já têm ocorrido. Não sei até quando o povo argentino suportará esse despresidente. Mais um motivo para o Milei atacar seu vizinho Brasil que, embora não tenha ainda atingido um nível europeu de desenvolvimento, vem melhorando bastante, caminhando para ser a oitava economia do mundo. Isto não é pouco!

 

Quanto ao ex-presidente Bolsonaro, ele começa a ser indiciado por seus mais variados crimes. É unanimidade que acumulará muitos anos de prisão. Contudo, de acordo com a coluna de Mônica Bergamo, publicada no Uol, ele próprio declarou: “Não se preocupem comigo. Escolhi esse caminho e sou feliz.”

 

Para quem defende que “o crime compensa”, pode-se dizer que para o ladrão de joias e sua família rachadinha, o crime até agora vem compensando. Nenhum desses elementos é habituado a trabalhar. Enrolam em seus gabinetes, arrotando algumas frases de efeito, de conteúdo ideológico e fica por isso mesmo. E o dinheiro, só caindo – licita e ilicitamente. Talvez, quando cada um se vir frente a frente com as condenações, mudarão de ideia e verão que “o crime não compensa”.

 

A reunião desses nazistas, prevista para este início de julho, com toda a certeza, pautará a questão de uma possível fuga do palhaço Bozo e seus palhacinhos para a Argentina. A PF deverá estar atenta a isso e também aos ultrajes que o palhaço Milei poderá dirigir à nossa Pátria. Por questões diplomáticas, se as autoridades não quiserem agir, que entrem em ação as torcidas organizadas. Rapidamente elas porão fim a essas palhaçadas e expulsarão o temível monstro da motosserra.

 

O governo brasileiro também já pensou em romper relações diplomáticas com a Argentina por causa desse monstro da motosserra. Porém, as relações comerciais continuariam, e seriam feitas diretamente com os governadores de estado. Ao que tudo indica, o governador da maior província, a de Buenos Aires, é ideologicamente contrário a Milei. Se o nosso governo conseguir pôr em prática mais esse jeitinho brasileiro, marcará um gol de placa contra o time do monstro da motosserra. E isso ajudará a afundá-lo mais depressa para a segunda divisão. Caso os resultados desse encontro de palhaços ofendam a nossa Pátria, essa medida deverá ser tomada.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.
 
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Medicina:

Pânico na Faculdade

O curso transcorria normalmente, quando um dia, sem que Magali entendesse por quê, Rafaela lhe falou: “Amiga, você não tem jeito nenhum para a medicina. Pode procurar outra coisa para fazer.” Aquilo foi um tapa na cara de Magali. A partir daí, não mais conversou com a colega.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

29/06/2024

 

Um dia, o professor anunciou: “Amanhã, venham todos de avental. A aula de anatomia será no anfiteatro. Vamos dissecar um cadáver, e vocês aprenderão, não mais por meio de imagens, mas ao vivo".

 

Rafaela e Magali tinham um sonho: serem médicas. Uma não conhecia a outra. No entanto, foram estudar na mesma faculdade.

 

O curso transcorria normalmente, quando um dia, sem que Magali entendesse por quê, Rafaela lhe falou: “Amiga, você não tem jeito nenhum para a medicina. Pode procurar outra coisa para fazer.” Aquilo foi um tapa na cara de Magali. A partir daí, não mais conversou com a colega.

 

À noite, foi desabafar com seu noivo, o Otávio: “A Rafaela é branca, rica; e ela se acha bonita e inteligente. Dá para notar que ela nasceu em berço de ouro; deve morar numa mansão. E eu, mulata, pobre, moro numa casa simples, num bairro operário... É por isso que ela se julga maior. Talvez esteja pensando que só pessoas ricas têm o direito de fazer medicina.”

 

E o noivo: “Preconceito puro. É justamente por isso que ela fica tentando tirar você.” Mas é como já disse seu pai: “Nunca desista dos seus sonhos! Afinal, desafios você sempre encontrará. E você é forte o suficiente para vencê-los. Ademais, o futuro é que dirá, qual de vocês será a melhor profissional.” Magali deu um abraço no noivo.

 

Magali continuava desconfiada com Rafaela. No seu íntimo, dizia: “Se essa cobra voltar a engraçar comigo, eu bato nela aqui mesmo na faculdade. Posso ser até expulsa, mas desaforo, eu não levo mais pra casa.”

 

Entretanto, passaram-se alguns dias. E Magali já assistia às aulas sorridente e serena. Para todos os efeitos, entendia que já era uma vitória: uma menina humilde, caminhando para se tornar uma doutora.

 

Um dia, o professor anunciou: “Amanhã, venham todos de avental. A aula de anatomia será no anfiteatro. Vamos dissecar um cadáver, e vocês aprenderão, não mais por meio de imagens, mas ao vivo, como é belo o corpo humano, com suas partes integradas funcionando, interagindo entre si. Garanto que será, na vida de vocês, um momento inesquecível.

 

Todos se dirigem ao anfiteatro. Logo que o professor coloca sobre a mesa o cadáver e começa a dissecá-lo, a Magali, que era morena, fica branca, amolece toda e cai para trás desmaiada. Uma aluna corre muito, chegando a tempo de proteger sua cabeça, para que esta não se chocasse contra o chão. Era Rafaela.

 

Gritos, pânico, confusão! Parecia haver um cadáver em cima da mesa e outro no chão, de tão desfigurada que ficou a coitada Magali. As aulas pararam. Houve um grande tumulto em toda a escola. Magali foi internada por um dia, principalmente para controle de pressão.

 

Ao obter alta, foi para casa, ficando quase só deitada, sem saber o que dizer a seus pais. Refeita, decidiu aparecer na secretaria da faculdade, avisando que havia desistido da medicina. Ali mesmo, procura Rafaela e pergunta se esta teria algum momento para conversarem um pouco.  

 

Encontram-se em um restaurante. Magali agradece à Rafaela pelo socorro prestado. E, rindo, surpreende, dizendo que Rafaela tinha toda a razão, quando notava a sua falta de jeito para a medicina. “Rafaela, eu mesma não observava. Deveria ter trocado ideias com você, quando você percebera a minha falta de jeito para a medicina. Mas nós, seres humanos, adoramos elogios e detestamos críticas. Você, Rafaela, tem muita iniciativa e uma aguda percepção. Será uma grande médica.”

 

E Rafaela: “Meu pai às vezes fala que eu sou um tanto rude na minha maneira de falar. Peço-lhe desculpas.” A partir daí, tornaram-se amicíssimas.

 

Magali resolveu migrar para a Administração. Logo no início, recebia reiterados elogios de professores e até do diretor. No último ano, já estava sendo disputada pelo mercado. Foi a melhor aluna da história da faculdade. E Rafaela realmente se tornou uma excelente médica.

 

Um dia, Rafaela emociona Magali, convidando-a para ir à sua casa. Sem que esta soubesse, era aniversário da mãe de Rafaela. Ao chegar, Magali se surpreende: a casa era mais humilde que a sua. A festa foi preparada para apenas uns dez amigos. O que se tinha para servir era bolo de fubá e café com leite. Nada, absolutamente nada daquela mansão e daquele preconceito, produzidos na cabeça de Magali. Magali chorou de emoção.

 

Passou uma menina vendendo flores. Magali correu até lá, comprou dois buquês: um para Rafaela e outro para a mãe dela. O pai de Rafaela pediu que todos se agrupassem para uma foto. Na mais pura simplicidade, celebrou-se ali a mais sublime apoteose.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.
 
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Receitas e prescrições:

Médicos malucos

A gente vê alguns, que até ganham o seu dinheiro, mas vivem mal-humorados. Outros, ao contrário, são felicíssimos na profissão, e prestam um trabalho extraordinário. Alguns fogem tanto da linha, que fazem a gente até rir. As histórias a seguir são verídicas. Uma delas aconteceu comigo; as outras foram contadas a mim.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

22/06/2024

 

Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses.”

 

Amigas e Amigos, a maioria dos médicos é composta por profissionais capacitados e responsáveis. Isto, aliás, é o que acontece em qualquer profissão. Todavia, alguns fogem tanto da linha, que fazem a gente até rir. As histórias a seguir são verídicas. Uma delas aconteceu comigo; as outras foram contadas a mim.

 

A dor de cabeça. Uma senhora vai ao médico e queixa-se de uma terrível dor de cabeça. Ele antecipa: “Na testa, né?” E ela: “Não, na nuca.” “E faz muito tempo que a senhora tem essa dor de cabeça na testa?” “Na testa não, doutor, na nuca.” “Ah, entendi: é uma dor de cabeça que começa na testa e termina na nuca, né?” “Doutor, na testa, eu só tenho algumas rugas. A minha dor é na nuca.” O médico pega o formulário de receitas, prescreve e tranquiliza a paciente: “Oh, com este remédio, a senhora vai ficar boa. Essas dores de cabeça na testa incomodam realmente.” Ao sair, a mulher jogou a receita no lixo e foi procurar um profissional.

 

Mãe leva o filho. Relata detalhadamente o que incomodava tanto o seu bebê. O médico, sem examinar, pega o papelzinho dele e escreve este versinho: “Se febril, tome melhoral infantil.” A mãe procurou outro médico, o qual mandou internar a criança na hora.  

 

Eu, distúrbios estomacais. O médico foi me pedindo exames, por sinal, bastante caros, e que ele mesmo fazia. Um dia, cansado dessa exploração, avisei que ia encerrar o tratamento. Ele afirmou que, por coincidência, já ia me dar alta. Concluiu: “Leite, você não pode de jeito nenhum.” Aí eu perguntei: e leite de soja? E ele: “Oh, boa ideia! Vou até aconselhar aos meus pacientes.” E eu: então o senhor tem de me pagar direitos autorais, porque a ideia foi minha. E fiz outra pergunta: leite de rosas, eu posso passar no rosto? E ele: “Claro que pode.” Eu: e leite de colônia? Ele: “Sem problemas.” A última pergunta: se meu estômago queimar, posso tomar leite de magnésia de Philips? (Dei um sorriso e fui embora.)

 

Dona Carmelita vai consultar. Relatou que, após um serviço doméstico, teve uma espécie de disritmia. E o médico: “Com sessenta anos, a senhora não está mais na idade de fazer serviços domésticos! O tempo da senhora já acabou. A senhora vai morrer aí a qualquer hora.” E ela: “Mas eu não tenho quem faça. O senhor vai fazer pra mim?” Virou as costas e foi embora. No máximo em dois anos, aquele médico – que na época tinha uns quarenta – morreu. E a Dona Carmelita, até uns vinte anos depois, eu ainda a via, dando as suas costumeiras gargalhadas.

 

O cabelinho. Revolucionário método de diagnóstico. Através de cabelinhos extraídos do corpo, descobria-se tudo: como estavam as vitaminas, as proteínas, os minerais daquele paciente e até as doenças que viriam. Por um motivo que “não sei”, ele atendia, quase exclusivamente, senhoras e senhoritas. Se fosse feia, ele se contentava com um pedacinho de cabelo da cabeça, receitava um colágeno e tchau! Mas e se fosse bonita? Aí o exame era mais acurado. Tirava um pouquinho de uma parte, de outra, sempre observando até onde ia a permissão. Com isso, ele ganhou muitas mulheres solteiras e casadas. Todavia, como nem tudo são flores, ele acabou sendo denunciado. Respondeu a um processo, mas não foi condenado, pois ninguém conseguiu provar nada contra ele.

 

Remédio com cachaça. Um médico, de uns quarenta e dois anos, ficava mais num bar do que em seu consultório. Um dia, ele solicitou uma cerveja e um copo. Estando com uma forte dor de cabeça, pediu dois analgésicos, que o bar vendia. Tacou os comprimidos no copo de cerveja, mexeu aquilo com o dedo mesmo e começou a tomar. Os jogadores de sinuca pararam, estarrecidos com aquela atitude. O doutor ainda reforçou: “Gente, eu sou médico! Eu tô ensinando a vocês todos como tomar um comprimido. Comprimido, a gente toma é com cachaça.” Nos próximos dias, ele morreu.

 

Conclusão: Muitos jovens escolhem a medicina, na ilusão de que vão ficar ricos da noite para o dia. Quem ganha dinheiro não é a profissão, sim, o profissional. Se a pessoa for boa mesmo naquilo que faz, tem tudo para progredir. Voltando ao caso dos médicos, a gente vê alguns, que até ganham o seu dinheiro, mas vivem mal-humorados. Outros, ao contrário, são felicíssimos na profissão, e prestam um trabalho extraordinário. Para esses jovens, fica o conselho milenar, ampliado por Sócrates: Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses.”

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.
 
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Itabira:

Quadrilha, ou o amor de José por Lili

Conta-se que o José não se casou, pois jamais esqueceu a Lili. No jardim da casa onde ele morava, no centro de Itabira, mandou fazer um canteiro, com dois corações. Dentro de cada um deles, ele plantou Amaryllis (a flor). Esses dois corações eu vi. Eles realmente existem lá.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

15/06/2024

 

 

João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém.

 

João foi para os Estados Unidos. Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre. Maria ficou para tia. Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.

 

[Quadrilha. Carlos Drummond de Andrade, Antologia Poética.]

 

Celebrando o Ciclo Junino, surgiu-me a ideia de focalizar este poema do Drummond. Só que existem algumas diferenças entre a Quadrilha do poema e as quadrilhas dançadas em junho. Vamos falar de poesia.

 

O poema é montado com palavras e frases simplíssimas, como melhor convém a uma festa alegre, informal, socializante. Essa sequência de orações adjetivas, iniciadas pelo pronome relativo que (que amava Raimundo que amava Maria...), não separadas por vírgulas, cria uma coesão entre os participantes, uma interação, tal como numa corrente. E cada pronome (“que”) ali se apresenta como um elo dessa corrente, determinando, pois, uma firme união entre os participantes.

 

“João foi para os Estados Unidos.” A quadrilha muda de mão – num golpe. Aqui começa a segunda parte. Marca-se a hora em que se quebra a corrente. O novo momento determina que os participantes abandonem a fantasia, a fim de encararem a realidade.

 

É como a nossa própria vida social. Fazemos parte de uma roda de amigos. Somos unidos. Compartilhamos nossos sentimentos. Todavia, algum tempo depois, um se casa, outro morre, um terceiro vai trabalhar fora... E essa roda, que poderia ser a “roda viva”, de Chico Buarque, se desfaz. São formadas outras rodas, porém, nunca iguais às ancestrais.

 

Muitas vezes, pensamos que os personagens de uma história são fictícios. Isto poderia ser imaginado para Lili e José.

 

Frequentei durante algum tempo a casa da Maria Rosa de Andrade, lá na Rua Santana, em Itabira – MG (terra natal de Drummond). Ela, além de escritora, era parente do Poeta. E, por muitos anos, havia sido diretora do colégio em que Drummond estudara. (Só que bem depois da passagem dele por lá, é claro.) Ninguém melhor que ela para me contar tantas histórias. Aliás, ela e o Walde Andrade, outro parente do Drummond, dono do Hotel Itabira, onde eu costumeiramente me hospedava.

 

Lili. Citada no poema Quadrilha, era uma senhorita culta. Pianista, atraente, falava francês. Porquanto, bastante disputada entre os jovens da época. Lili é o hipocorístico de Amaryllis, seu nome verdadeiro – que, por sinal, remete a uma flor. O piano de Lili ficou na casa de Maria Rosa. Não resisti: tive de dar uns dedilhadinhos nele.

 

José. Este foi quem inspirou o poema E agora, José? Era irmão do Drummond, e quatro anos mais velho que este. Professor de matemática. Não obstante lidar com números e com lógica, era um tremendo apaixonado. Por quem? Por Lili, é claro. Tinha ciúmes até do irmão.

 

O casarão, a procissão. O casarão (onde é hoje o Hotel Itabira) estava em festa. Havia ali um sarau, com pessoas elegantes da cidade. Pela rua, passava a procissão de Corpus Christi. Da procissão, José avistou Lili, na sacada do casarão, abraçadinha com outro.

 

O desespero. José ficou desesperado! Uns dizem que ele invadiu o casarão a pé. Outros, que ele tentou adentrá-lo a cavalo. Adicionalmente, há quem diga que ele deu dois tiros para cima. Alguém o persuadiu a tomar um copo de água com açúcar. E ele, tal como saindo da fantasia de uma quadrilha junina para a realidade, acabou se contendo. Lili e seu namorado se escaparam como puderam.

 

Conta-se que o José não se casou, pois jamais esqueceu a Lili. No jardim da casa onde ele morava, no centro de Itabira, mandou fazer um canteiro, com dois corações. Dentro de cada um deles, ele plantou Amaryllis (a flor). Esses dois corações eu vi. Eles realmente existem lá.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.
 
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Festas juninas:

Três santos, ao pé de uma fogueira

Foram produzindo luz, a partir do olhar santo de cada um dos três. Na sequência, São Pedro contribuiu, ateando ali o fogo da fé; Santo Antônio adicionou calor humano, destinado a beneficiar pessoas e mesmo nações; São João acendeu o fogo do amor.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

10/06/2024

 

A fogueira brilhava bonita, com labaredas multicores, de uma suntuosidade maior que a de qualquer pedra preciosa que a inteligência humana fosse capaz de imaginar. Oraram. Essa tríade abençoada orou ao Deus-Pai.

 

- Vem cá, João! Chame também o Pedro.

 

Era Santo Antônio, lá no Céu, chamando os outros dois santos.

 

Sentaram-se num banco e logo o Santo Casamenteiro apresentou a sua ideia. “Meus irmãos de santidade, olhai lá para a Terra e vereis que as fogueiras já estão acesas.” “Oh, e estão nos homenageando – continuou São João.” “Também notei – completou São Pedro.” “É justamente sobre isso que eu quero lhes falar.”

 

“Então, amigos, não seria justo negligenciar tamanha veneração. Vamos fazer também a nossa fogueira e, em retribuição, homenagear aquele povo de lá?” “Ótima ideia! – concordaram.”

 

E foi sendo erguida a fogueira. Evidentemente, não iam empilhar gravetos, como se faz aqui na Terra. Tudo lá é mais refinado. Foram produzindo luz, a partir do olhar santo de cada um dos três. Na sequência, São Pedro contribuiu, ateando ali o fogo da fé; Santo Antônio adicionou calor humano, destinado a beneficiar pessoas e mesmo nações; São João acendeu o fogo do amor.

 

A fogueira brilhava bonita, com labaredas multicores, de uma suntuosidade maior que a de qualquer pedra preciosa que a inteligência humana fosse capaz de imaginar. Oraram. Essa tríade abençoada orou ao Deus-Pai.

 

São Pedro foi até a porta do Céu e de lá conectou o fogo dali com o fogo da Terra. Ninguém sabia por quê, mas imediatamente, as labaredas das fogueiras aqui do mundo se tornaram mais altas e maravilhosas.

 

Santo Antônio, num átimo, já havia enfeitado aquele recinto com as mais belas bandeirinhas. Foi aí que São Pedro questionou: “E os balões? Como vamos elaborá-los?” São João teve logo uma ideia: “Avivaremos as estrelas. Elas já são os balões aqui do Céu.”

 

Nisso entra o Braguinha (o compositor João de Barro) e, rindo, adverte: “Mas você, São João, está me plagiando. Você tirou essa sua ideia foi destes versos meus: “Os balões devem ser com certeza/As estrelas daqui deste mundo/Que as estrelas do espaço profundo/São os balões lá do céu.”

 

São João deu uma risada e admitiu: “Verdade, meu caro poeta, que tanto dá alma às festas juninas com as suas belas canções. Agora é que percebi que sua música ficou na minha cabeça. Mas afinal, o que é bom merece ser imitado. (Sorrindo) Não fique zangado comigo. Aproveite e cante para nós esta e outras suas canções. A festa ganhará um novo brilho.”

 

Braguinha cantou, dele e de Alberto Ribeiro, “Noites de Junho”. Imediatamente, aparece o Lamartine Babo, reivindicando o direito de também cantar as suas composições. Aí São Pedro decidiu: “Tragam então todos os compositores de marchas juninas, que a festa ficará mais bela.” Santo Antônio intercede: “Tragam mais: convoquem todos os sambistas, os seresteiros, os sertanejos, os forrozeiros...”

 

Nisto entra a Rita Lee e protesta: “E não vai haver a vez do rock? Afinal, aqui é o Paraíso. Se aqui não houver harmonia na diversidade, onde vamos encontrá-la?” Os santos concordaram: “De agora em diante, o show está aberto a todos os gêneros e estilos.” (E São João, sussurrante: “Mas juízo! Só não vale proferir palavras de duplo sentido.”)

 

A quadrilha já estava animada, com Luiz Gonzaga pondo fogo no forró. Vinham chegando Waldick Soriano, Gal Costa, João Gilberto, Dorival Caymmi, Morais Moreira, dentre outros. Foi aí que São Pedro anunciou: “Baiano não pode entrar nesta festa!” Todo esse pessoal se afastou desapontado. São Pedro, que estava marcando a quadrilha, gritou: “É mentira! Venham todos vocês, filhos daquela Bahia querida!” Imediatamente, todos se somaram ao grupo, ainda mais animados.

 

São Pedro confabula com os seus irmãos de santidade: “Ah, vou mandar agora uma chuva lá pra Terra pra refrescar aquela gente.” Santo Antônio reage: “Você ficou doido? Se neste instante você mandar uma tempestade para lá, ela irá apagar todas as fogueiras, consequentemente acabando com todas as festas.”

 

E São Pedro: “É, acho que os quentões que eu andei tomando já estão fazendo efeito. Estou ficando meio maluco.” A Gal completou: “Um maluco beleza.” O Raulzito viu e sorriu.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.
 
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Eletrizante:

Choque de 1000 volts

Naquela hora, o coração de Lucimara batia mais forte. E quando ela amoleceu os olhos, relaxou o rosto, mexeu no cabelo e olhou sensualmente para ele, o homem levou um choque de uns mil volts.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

31/05/2024

 

“Esse homem mexe com eletricidade, né? Dá que um dia ele trepa num poste, leva um choque de uns mil volts e morre eletrocutado. Aí, eu fico viúva pela terceira vez.”

 

Lucimara era uma mulher bonita! Morena, rosto largo, lábios polpudos, cabelos negros, olhos arregalados – como se quisesse abarcar todo o mundo. Gostava de cantar, tentando imitar a Roberta Miranda.

 

Quando a conheci, ela estava com vinte e dois anos – e já viúva. Tinha um filho. Numa tarde, ela havia saído de carro com seu marido. Ocorreu uma confusão no trânsito, e ele acabou chocando-se contra um barranco e indo para o céu. (Sei lá! Ele traía demais a Mara.) E ela não teve um arranhão.

 

Três anos depois, ela volta a se casar, desta vez, com um motoqueiro, que trabalhava com entregas. Também com ele teve um filho. Num sábado à noite, foram fazer um passeio. Esse seu esposo tentou uma ultrapassagem arriscada, bateu a moto ... Ah! Foi fatal! E a Lucimara teve só um susto.

 

Refeita de mais esse trauma, Lucimara, agora aos vinte e oito anos, arranjou um tal de Jorginho, o qual, desde o início, manifestou a sua ardente vontade de casar-se com ela. (Mentira!) Moço trabalhador, espirituoso, montou uma barraca de sanduíches, e estava ganhando bem.

 

Os meses foram passando... Lucimara resolveu conversar com ele. “Jorginho, você não fala mais em casamento. Quais são mesmo as suas intenções?”

 

O moço tremeu a voz, depois, respondeu assim: “Oh, você casou com um, ele bateu o carro, morreu, e você tá viva; depois casou com outro, ele bateu a moto, também morreu, e você tá viva. Eu também tenho uma moto, e eu amo muito a minha vida. Portanto, melhor não arriscar.” Naquele momento, Mara desistira de tudo. Julgara-se sem sorte no amor.

 

Agora, aos quarenta e dois anos, ia vivendo uma vida mais contida. Formou-se em pedagogia. Soube que ia haver um concurso para a área da educação. As vagas eram para uma cidade vizinha. Ela estudou, fez as provas e passou num dos primeiros lugares, tendo sido chamada imediatamente. Ia e voltava todo dia, dedicando-se quase só ao trabalho.

 

Mas eis que entra na história um tal de Zé. Sempre alegre, fazia piadas com tudo o que via. E todo mundo o achava realmente muito engraçado. Trabalhava como eletricista, desde serviços pequenos até alta tensão.

 

Numa ocasião, ele foi fazer uma instalação na escola onde Lucimara trabalhava. Conversaram por uns cinco minutos. (Foi uma conversa eletrizante.) Bem, uma beleza apolínea, isso ele não tinha. Entretanto, era atraente. Naquela hora, o coração de Lucimara batia mais forte. E quando ela amoleceu os olhos, relaxou o rosto, mexeu no cabelo e olhou sensualmente para ele, o homem levou um choque de uns mil volts.

 

No outro dia, o Zé voltou lá, com a desculpa de conferir a instalação. Aí, não teve outro jeito: ele e Mara começaram a namorar. Já no início, o moço desabafou: “Agora chega de farra. Já fiz quarenta e cinco anos, quero ser feliz, vivendo uma vida a dois.” A mulher ficou simplesmente deslumbrada. À noite, ela nem conseguiu dormir, pensando em tudo o que já lhe havia acontecido e o que ainda poderia acontecer.

 

Na manhã seguinte, arranjou um atestado médico e nem foi trabalhar. Rumou para a casa de Amélia, sua prima e confidente. Falou com a amiga que adoraria tentar, mas...

 

“Estou insegura, Amelinha.” “Por quê, Mara?” “Esse homem mexe com eletricidade, né? Dá que um dia ele trepa num poste, leva um choque de uns mil volts e morre eletrocutado. Aí, eu fico viúva pela terceira vez.”

 

“Bobagem, Mara! A gente tem que pensar é positivo. Só quando tá relampeando é que é perigoso demais. Não estando... Mas afinal, você gosta dele, ele gosta de você. Case com ele!”

 

O Zé quis marcar o casamento. Aí a Lucimara falou que desejava ser bastante transparente com ele. “Me sinto muito bem em sua companhia, e gostaria de tê-lo ao meu lado para sempre. Contudo, quando você souber da minha vida pregressa, garanto que vai desanimar.”

 

Contou daquele acidente de carro, depois do de moto ...” O Zé interrompeu-a: “Isso jamais acontecerá comigo. Não tenho carro nem moto. Tenho é cavalo, e ele é mansinho. Não vai dar pinote com a gente e nos derrubar.” (Ela riu demais.)

 

Restava a revelação final. “Bem, devo te revelar ainda que eu já tenho seis filhos...” O moço deu-lhe um abraço, um beijo caloroso e lhe disse: “Já sabia de tudo. Eu tô contratando é o pacote completo mesmo!” E a Mara: “Ah, beleza! E você vai trazer também os seus quatro filhos para morar com a gente?” E o Zé: “Uai, Mara, você sabia?!...” Casaram e viveram muito felizes.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.
 
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Um pacto:

Vinte e sete a vinte e sete

Os garotões achavam era graça em suas prisões. O Valdinei repetia sempre: “Cadeia pra mim é casa; soldado pra mim é garçom.” E assim iam vivendo a vida distraidamente, sem fazerem planos para o futuro, cuidando apenas do agora.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

25/05/2024

 

Cada um cortou um pouquinho o seu pulso, uniram-se os plasmas, e solenemente juraram: “Aquele que partir primeiro logo vem buscar o outro. Nem depois da morte ficaremos separados.”

 

Você acredita em numerologia? Coincidências ou não, para os moços, o número 27 teve um especial significado.

 

Tony e Valdiney (falsos nomes, para preservar as suas identidades, já que a história é verídica) eram amicíssimos. Estavam sempre juntos: na alegria, na dor e nas arruaças. Tudo o que um fazia o outro queria fazer. Certa vez, o Valdinei arranjou uma confusão ao sair do estádio de futebol. Ficou preso por um dia. Uma semana depois, foi a vez do Tony. Estava roubando um frango no supermercado. Também pegou um dia de cadeia. E o frango? Voou-se.

 

Quase morri de rir foi quando eu vi o Tony prendendo um soldado. Os dois desciam a rua principal da cidade. O Tony, segurando o soldado pelo braço, gritava, para todo mundo ouvir: “As coisas tão mudadas mesmo, né gente? Em vez do soldado estar me prendendo, eu é que tô prendendo o soldado.” Os gaiatos haviam bebido juntos. O sargento mandou encarcerá-los.

 

Os garotões achavam era graça em suas prisões. O Valdinei repetia sempre: “Cadeia pra mim é casa; soldado pra mim é garçom.” E assim iam vivendo a vida distraidamente, sem fazerem planos para o futuro, cuidando apenas do agora. Sempre que um ia preso, o outro esparramava aquilo pela cidade inteira. (Na verdade, achava que era uma baita duma vantagem. Ficava até com inveja...) Os delitos eram pequenos; as penas eram de, no máximo, três dias. Era só pra zoar mesmo.

 

Numa ocasião, sentados a um bar, deram na ideia de fazer a contagem de quantas vezes cada um já havia ido parar no xilindró. Resultado: 14 a 12 para o Valdinei. O Tony na mesma hora reagiu: “Ah, isso não fica assim não! Tenho que empatar.” Aí entrou numa série de cachorradas, o que lhe rendeu três capturas. “Ah! Agora sim estou contente. Não só empatei, como virei o jogo.” Daí em diante, a disputa se tornara acirrada.

 

No dia 27 de setembro, o Tony estava fazendo aniversário. Vinte e sete anos. O Valdiney já havia feito vinte e sete na semana anterior. Aí, eles foram dar um balanço no número de encarceramentos que eles já haviam alcançado. E foi aí que viram a maior coincidência. Estavam empatados: vinte sete a vinte e sete.

 

Aí, eles se abraçaram, riram muito, e foram tomar uma pinguinha no bar mais “fudido” da cidade para comemorar. O resto da noite, eles passaram na zona. Não iam mais competir. Já estavam satisfeitos com os resultados.

 

Ao raiar do sol, os dois saíram da gandaia, sentaram-se num banco, com o objetivo de ver se melhoravam um pouco da cachaça, a fim de voltarem para casa. Foi aí que o Valdiney tirou do bolso uma gilete, exibindo-a ao amigo.

 

– Para que isso, perguntou Tony?

 

– Sei que o nosso fim está próximo. Vamos fazer um pacto de sangue?

 

Cada um cortou um pouquinho o seu pulso, uniram-se os plasmas, e solenemente juraram: “Aquele que partir primeiro logo vem buscar o outro. Nem depois da morte ficaremos separados.” (E foram para casa dormir.)

 

Uma semana depois, notícia na TV, no rádio e nos jornais: Valdiney pula na frente de uma carreta, falecendo na hora.

 

Uma semana depois, a cidade, ainda abalada com aquele acontecimento, o Tony comentou com uns amigos que o Valdiney havia voltado e conversado com ele. Em seguida, Tony desaparece. (Havia pulado na frente de um trem.)

 

Amigas e Amigos: como as pessoas enveredam por um caminho tão cruel! Ambos eram inteligentes. O Tony surpreendia a gente, declamando, em inglês, alguns monólogos de Shakespeare. Às vezes, recitava um poema, com um inglês meio tosco. Ele mesmo explicava: “Este poema foi escrito em inglês arcaico.” Apesar dessa vida inconsequente e desregrada, ele vinha de uma família culta. Todos liam bastante.

 

Que os jovens tenham cada vez mais autoestima, aproveitem a vitalidade e a inteligência que têm, saibam esquivar-se das armadilhas que a vida às vezes constrói, empenhando-se na realização de seus sonhos, pugnando, com força e com vontade, por um mundo melhor.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.
 
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Destino:

A mulher que se perdeu em BH

Anunciou que iria a Belo Horizonte sozinha. Queria dar umas voltas por lá, olhar as lojas, almoçar num bom restaurante, tomar um banho de civilização, como costumava dizer. Ninguém se opôs. Até porque julgaram aquilo benéfico para ela.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

17/05/2024

 

As duas senhoras construíram uma amizade tão bonita, que pareciam irmãs. Iam juntas às lojas, supermercados, igrejas; participavam ativamente das festinhas da família...

 

Dona Alzira morava em uma roça, a uns sessenta quilômetros de Belo Horizonte. Num terreno se destacava o sítio da família, com um esbelto casarão. Ela vivia ali em companhia de um irmão, duas irmãs, uma sobrinha e a mãe, já bastante idosa: noventa e nove anos. Todavia, nos fins de semana, a casa ficava lotada de outros parentes e amigos.

 

Quem costumava viajar a BH, a fim de tomar providências para si e a família era a Célia, sobrinha de Dona Alzira.

 

Porém um dia, Dona Alzira se mostrou farta daquele seu pequeno mundo. Anunciou que iria a Belo Horizonte sozinha. Queria dar umas voltas por lá, olhar as lojas, almoçar num bom restaurante, tomar um banho de civilização, como costumava dizer. Ninguém se opôs. Até porque julgaram aquilo benéfico para ela: respirar novos ares (poluídos, é claro), ver coisas novas...

 

No entanto, era de se considerar que Dona Alzira já estava com setenta e oito anos; manifestava os primeiros sinais de esclerose; era analfabeta e nunca havia ido a Belo Horizonte – nem sozinha nem acompanhada.

 

Parte Dona Alzira para a capital. Muita alegria no coração, e aquele clima de independência. Poder, pelo menos naquele dia, decidir as coisas por conta própria, o que, rotineiramente, não acontecia. Era bastante controlada.

 

Chega Dona Alzira à metrópole. Sai da rodoviária. Vai andando devagarinho, como fazia na roça. Alguns esbarram nela, outros a empurram... Aí ela entendeu que a ordem ali era acelerar, entrar no ritmo grancitadino, deixar de ser humana para virar peça de uma engrenagem. Isso bloqueou completamente a humilde senhora. Perdeu a noção de tudo.

 

Já havia sete horas que a coitada perambulava sem destino. Até que Dona Inês, uma senhora, mais ou menos de sua idade, e também analfabeta, aproxima-se da viandante. Paulo Freire, um dos expoentes máximos da Educação brasileira, salienta que a mais importante das leituras é a leitura de mundo. E esta, Dona Inês tinha de sobra. Foi a única naquela multidão que lhe perguntou se ela precisava de ajuda. Com voz fraca, por estar sem água e comida até aquela hora, Dona Alzira contou o que lhe passara. Dona Inês lhe ofereceu: “Vamos hoje para a minha casa. Lá você toma um banho, janta e, quando for hora, você dorme, até que seja resolvida a sua situação.”

 

A desnorteada aceitou. Foi apresentada aos familiares. Todos a receberam com afago. Dona Inês lhe emprestou roupas, para que ela vestisse após o banho. Depois, um caprichado jantar lhe foi servido.

 

Sabe quanto tempo a visitante ficou por lá? Um ano.

 

As duas senhoras construíram uma amizade tão bonita, que pareciam irmãs. Iam juntas às lojas, supermercados, igrejas; participavam ativamente das festinhas da família... Dona Inês nunca tocou com a hóspede em assunto de dinheiro, mesmo que esta ocasionalmente questionasse. O fato é que a nova amiga comia, bebia, dormia, sem saber preço de nada. Dona Inês fazia questão de não revelar.

 

Alguém bate à porta. Eram o irmão e a irmã de Dona Alzira. Só agora descobriram seu paradeiro, e foram trazê-la de volta para casa. Mas e aí? Dona Alzira não queria mais voltar. Agora já sabia andar por todos os lados em Belo Horizonte, estava adorando a nova vida na capital, e naquela morada vivia muito mais bem que em seu próprio lar. E mais: naquele clima de euforia, logo que as duas se conheceram, elas se matricularam numa escola, e, num instantinho, já estavam lendo tudo o que viam.

 

Depois de muito tentar, conseguiram levar de volta a fugitiva para a sua verdadeira casa. “Você não pode, Alzira, viver dando despesas para essa tão bondosa senhora.” ”Então, eu vou, mas com uma condição: os fins de semana eu passarei com a amiga, que tão bem me acolheu. Ou nós vamos pra lá, ou ela vem pra cá.” “Combinado.”

 

Chegou a hora quando a mãe de Dona Alzira se despediu deste mundo, e os herdeiros resolveram partilhar a herança. Ninguém se opôs a que Dona Inês também fosse contemplada, recebendo parte igual à de Dona Alzira e seus irmãos. Foi uma forma de retribuir e de oficializar a irmandade que já existia entre as amigas. E as duas famílias se tornaram uma só.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.
 
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Especial:

Homenagem a todas as mães

Ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração
É não pregar o olho a noite inteira no serão
É andar na correria, preparando mamadeira
Ao som de uma tremenda choradeira.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

10/05/2024

 

 

Queria muito, muito homenagear todas as mães, que ainda estão entre nós, e também as que já partiram. Quisera eu fazer um poema, escolher as mais doces palavras... No entanto, creio que se eu conseguisse tirar do fundo da alma os mais belos versos ali adormecidos, isto seria ainda insuficiente para expressar o valor e a preciosidade de uma mãe.

 

Daí, decidi tratar o tema com bom humor. É importante que se descontraia, até mesmo para festejar, com júbilo maior, esse dia.

 

Vou começar com o elegante poema Ser mãe, de Coelho Neto. Em seguida, a paródia Ser mãe é dureza, feita em cima desse texto por Billy Blanco e Celina Blanco Hermes.

 

Eis o poema do Coelho Neto:

 

                 Ser mãe
 
Ser mãe é desdobrar fibra por fibra
o coração! Ser mãe é ter no alheio
lábio que suga, o pedestal do seio,

onde a vida, onde o amor, cantando, vibra.
 
Ser mãe é ser um anjo que se libra
sobre um berço dormindo!  É ser anseio,

é ser temeridade, é ser receio,
é ser força que os males equilibra!
 
Todo o bem que a mãe goza é bem do
filho, espelho em que se mira afortunada,
Luz que lhe põe nos olhos novo brilho!
 
Ser mãe é andar chorando num sorriso!
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso!

_______________

 

E aqui está a paródia de Billy Blanco e Celina Blanco Hermes, gravada pela simpática Inezita Barroso:

 

                   Ser Mãe É Dureza

 

Ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração
É não pregar o olho a noite inteira no serão
É andar na correria, preparando mamadeira
Ao som de uma tremenda choradeira

É fralda toda noite, todo dia pra mudá
Porém, na poesia esqueceram de contá
Ser mãe é muito bom para um poeta inocente
Mas ele se quisé que experimente

Ir ao cinema, já perdi a esperança
Não tenho em casa uma babá de confiança
E tome fralda e mamadeira pra lavá
Enquanto papaizinho vai pra rua passeá

Pra meu castigo, meu consolo, vejam só
Um belo dia sou chamada de vovó
Mas na verdade é prova de juízo
A gente por vontade padecer num paraíso.

Para ouvir este chorinho, clique aqui.

  

Os autores e a intérprete:

 

Celina Blanco Hermes, sabe-se que a Celina era irmã de Billy Blanco, e foi ela quem fez a letra desta canção. No entanto, a Celina impôs uma condição ao Billy: para que ele musicasse esses versos, o nome dela não deveria aparecer no selo do disco como coautora. Demonstrou uma singular simplicidade e uma falta de vaidade..

 

Billy Blanco é bem famoso na MPB. Nascido em Belém do Pará, no dia 8 de maio de 1924, é autor de dezenas de músicas, dentre elas, Estatutos da gafieira, Sinfonia do Rio de Janeiro, em parceria com Tom Jobim, A banca do destino, que ele compôs para defender sua namorada, Dolores Duran, de preconceitos que ela sofria. Faleceu no Rio de Janeiro, em 8 de julho de 2011.

 

Coelho Neto, grande romancista, cronista e poeta, nasceu em Caxias, Maranhão, em 20 de fevereiro de 1864. Consta que escreveu mais de cem livros, dentre eles, Turbilhão, e cerca de seiscentos e cinquenta contos, como por exemplo, Contos da vida e da morte. Faleceu no Rio de Janeiro em 28 de novembro de 1934.

 

Inezita Barroso dispensaria comentários, pelos programas que apresentou durante anos na TV brasileira, sendo o de maior duração Viola, minha viola (de 1980 a 2014, na TV Cultura.). Cantora, violonista, violeira, nasceu em São Paulo, no dia 4 de março de 1925. Também atuou em diversos filmes. Deixou um forte legado na cultura brasileira. Faleceu, também em São Paulo, em 8 de março de 2015.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.
 
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Colecionador:

As cento e dezoito virgens

Logo, montou a sua lanchonete. Depois uma sorveteria. Em seguida, um restaurante. A partir do quarto ano, ele já contava com uma rede de comércios. E estava milionário.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

05/05/2024

 

Para a surpresa do magnata, dois dias depois, às sete e trinta e cinco, o telefone toca. Era o Alex, comemorando ter conseguido a moreninha.

 

O dinheiro faz coisa, hein!? A partir de agora, abordaremos a ascensão e queda do Dr. Christopher e suas causas.

 

Vamos apresentar o nosso herói. Dr. Christopher não era médico, nem advogado, nem fizera doutorado em coisa alguma. Ou seja, de doutor, não tinha nada. Vale uma ressalva: só se considerarmos doutor naquilo que fazia. Ele possuía um feeling empresarial e sedutor extraordinário.

 

Começou a vida vendendo queijos. Saía pelas ruas com um balaio, oferecendo os seus produtos. Seu ombro vivia calejado.

 

Logo, montou a sua lanchonete. Depois uma sorveteria. Em seguida, um restaurante. A partir do quarto ano, ele já contava com uma rede de comércios. E estava milionário.

 

Casado, tinha duas filhas. Entretanto, quando visitava um de seus restaurantes, encantava-se com as belas garotas que ali apareciam.

 

Certo dia, ele deu uma incumbência ao seu garçom: “Alex, traz para mim aquela moreninha que costuma ficar na mesa oito, perto da janela.” “Mas ela não vem aqui direto não, patrão.” “Se não for ela, traga alguma parecida. Registra aí meu telefone particular. Me liga sempre à noite, depois das sete. Antes, estou no trabalho.” – esclareceu o poderoso.

 

Para a surpresa do magnata, dois dias depois, às sete e trinta e cinco, o telefone toca. Era o Alex, comemorando ter conseguido a moreninha. Dr. Christopher se explodiu de alegria. Foi lá, bateu um papinho com a dengosa, e o mais, você já pode imaginar. (Pode imaginar também que o Alex ganhou um aumento de salário.)

 

Depois de já ter experimentado todo tipo de xodós o Dr. Christopher teve uma ideia mais ousada: “Alex, você tem sido genial. Porém, desejo mais. De agora em diante, quero que você me traga somente garotas virgens. Eu é que vou tirar a virgindade delas. Quero uma garota diferente a cada dia. Acho que você sozinho não será capaz de cumprir esta tarefa. A Neidinha, nossa garçonete, é jeitosa, comunicativa. Ela pode te ajudar.”

 

“Nossa! – disse Alex. Mas como eu vou cuidar disso e trabalhar aqui no restaurante? Não terei tempo.” “Terá sim. É que agora, você e a Neidinha ficarão por conta só disto, ganhando até mais.”

 

O Dr. Christopher montou uma equipe, com quatro componentes: o Alex, mais duas moças e a Manuela, a cozinheira daquele restaurante. Quarenta anos, já rodada, a Manuela foi a figura ideal para as próximas aventuras.

 

O Dr. Christopher ficou deslumbrado com uma garota que viu à porta de sua sorveteria. Teria uns dezessete anos. Loira, olhos esverdeados, cabelos compridos ondulados, uma pele de princesa.

 

Manuela avisou: “Já bati um papinho com ela. Ela ficou meio sem jeito, mas joguei o 171 nela, ela acabou topando, pelos cinco mil reais que você ofereceu. Disse que está precisando urgente de um celular novo. Só tem um detalhe: afirmou que é virgem. Queria que alguém conversasse sobre isso com o pai dela. E ele, estando endividado, naturalmente aceitaria.”

 

Por intermédio da Manuela, o Dr. Christopher conversou com o pai da adolescente. Acertaram em cem mil reais para ele, além do presente para ela.

 

E essa história foi se repetindo. Todo dia, o “doutor” tinha uma franguinha nova – e virgem – para ele devorar. Até atingir cento e dezoito. A essa altura, a esposa e suas filhas já o haviam abandonado. E a partilha dos bens estava sendo discutida na Justiça.

 

Também frente ao delegado e ao juiz, o Dr. Christopher compareceu diversas vezes, por ter se relacionado com menores.

 

Não bastassem tamanhas embrulhadas, as meninas foram tendo filhos seus. Ao todo, cento e vinte e um. Algumas tiveram gêmeos.

 

O Dr. Christopher vendeu tudo o que tinha. Ficou preso somente por três dias. Contudo, o que gastou com advogados acabou de levá-lo à falência.

 

Toda tarde passa o Cristóvão (seu nome verdadeiro), carregando novamente seu balaio de queijo, sem dinheiro, sem mulher, sem nada. (Apenas recordações...)

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.
 
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Itaúna:

Laus e dislaus na Varge

A Rua da Varge era lá em Itaúna-MG, na verdade, não era uma rua. Era como se fosse um bairro, só que em área central. E havia ali alguns rapazes, que não deixavam o movimento cair, nem as pessoas parar de rir.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

25/04/2024

 

Rua da Varge: este antigo campo de futebol era situado onde hoje se encontra a rodoviária de Itaúna. Nesta foto da década de 1950, a torre da igreja matriz era o mais alto monumento da cidade.

 

A Rua da Varge era lá em Itaúna-MG, na verdade, não era uma rua. Era como se fosse um bairro, só que em área central. E havia ali alguns rapazes, que não deixavam o movimento cair, nem as pessoas parar de rir. A Rua da Varge era um celeiro de gente criativa.

 

Eu sou suspeito em dizer, porque eu morava lá. Só que não participava tanto daquela pândega vida, pois era ainda adolescente. No entanto, os doidões conversavam comigo, inventavam piadas na hora, e eu ria muito.

 

A Era de Ouro da Rua da Varge contava com gente como o Peru, o Tõe da Cintica, o Prilte e, como não podia faltar, o Paulo Bodoque.

 

Ah, ainda tinha o Marlúcio (Mário Lúcio). Excelente pessoa! Imitava um cantor, chamado Augusto Calheiros, de grande sucesso na época. E sabe que a voz do Marlúcio até se confundia com a do cantor, e até sua fisionomia também? Ocasionalmente, o Marlúcio até se apresentava na Rádio local.  

 

Numa esquina, ficava o Bar do Mundico. O Bozan, filho do proprietário, também era muito engraçado – só que, naquele tempo, menino igual eu. O Bar do Mundico daria por si uma crônica. Mas acho que seria melhor o Bozan fazer. Como eu morava perto dali, também tenho algo a contar. Ali era o ponto de encontro da moçada. Jogava-se sinuca, bebia-se (às vezes, até muito), tagarelava-se. As amizades iam-se expandindo, e eram sinceras.

 

Um dia eu vi, no Bar do Mundico, um cachaceiro invertebrado, digo, inveterado chegar e pedir uma cachaça. O Mundico falou com ele: “Não! Não posso te vender mais pinga não. Cê já tá bebendo demais.” O moço quase chorou. Depois implorou: “Então, só dois dedos.” O Mundico pôs só um pouquinho. O moço protestou: “Ah, dois dedos meio abertos, né?” O Mundico se compadeceu e completou a dose.

 

Uma estranha forma de comunicação

 

Sabe como os folgados se comunicavam? Através do arroto. Eles conseguiam arrotar tão alto, que chamavam um companheiro até a um quarteirão de distância. Um arroto: “Importante.”; dois arrotos, “Mais importante.”; três arrotos, “Urgentíssima a sua presença!” Naquela época, não existia celular. Também, se existisse, não teria a mesma graça.

 

O Tõe é o que arrotava mais alto. Ficou sendo muito admirado por isto. E ele ensinava o segredo. A pessoa deveria fumar e engolir a fumaça toda. Quando arrotava, saia um arroto meio enfumaçado, porém, potente.

 

O Paulo Bodoque nos perguntou uma vez: “Qual é o santo que sobe na cerca?” Pessoas beatas foram pesquisar até na vida dos santos. Não encontraram nada. Aí o Bodoque deu a resposta: “São Caetano”. No bairro, havia muito melão-de-são-caetano, uma planta medicinal, que “adora subir nas cercas”. O gaiato tirou a piada daí.

 

- Paulo Bodoque, por que você não casa? – alguém perguntava.

 

E ele imediatamente respondia:

 

Porque eu não consigo encontrar uma moça que queira assinar Bodoque.

 

Um dia, ele se casou com a Maria. Pra quê? Todo mundo passou a chamá-la de Maria Bodoque.

 

O Tõe se misturava com os meninos. Brincava com eles de finquete, bolinhas de gude, berlinda, de passar o anel... Era um exímio jogador de pião. Fazia tudo quanto era malabarismo com aquele brinquedo.

 

Laus e Dislaus

 

Apareceu naquele bar um sujeito muito contador de vantagens. Era conhecido como Princeso. Passava uma menina bonita, ele dizia: “Tá vendo aquela pérola?” E, fazendo um gesto de passar a mão sob o queixo, completava: “Laus!” (Laus significava que ele já tinha feito amor com ela.)

 

Passava outra, e ele: “Aquela também, laus!” Certa vez, alguém questionou: “Mas aquela é filha do prefeito.” E o Princeso: “De todo jeito, laus!”

 

Um dia, à porta do bar, conversando com um cara fortíssimo, o Princeso se gabou: “Tá vendo aquela gostosona? Aquela também, laus!” Aí o fortão, estufando o peito para ele, protestou: “Cala essa boca, se não, eu quebro os seus dentes! Aquela é minha irmã.” E o Princeso, mais que depressa: “Então, dislaus!” Foi saindo de mansinho e jamais voltou àquele recinto.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

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Casamento:

Uma esposa pros cocos

Honório chegava a desconfiar de que ela estivesse bolando algum artifício para apressar-lhe a morte. Isso, devido a frases que ela proferia, como esta: “Ah, vou ter o carro dos meus sonhos! ... Tomara que seja breve.”

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

19/04/2024

 

Ao fim da tarde, Honório, já sentado na cama, pediu ao pai que lhe trouxesse um copo de água de coco. Bebeu aquilo avidamente. “Mais um, por favor!” Voltou ao repouso.

 

Chegou-se a um ponto em que tudo o que o Honório comia voltava. O fígado já não estava valendo mais nada. Os médicos já o haviam desenganado. Honório havia saído da Bahia, com destino a Guarulhos (SP), a fim de trabalhar. Lá conheceu Gabi, com quem se casou.

 

No momento quando ele mais precisava, sua esposa o abandonou. Desapareceu de casa. Aguardava apenas que ele falecesse, para ela passar a mão numa grana que ele guardava. Honório chegava a desconfiar de que ela estivesse bolando algum artifício para apressar-lhe a morte. Isso, devido a frases que ela proferia, como esta: “Ah, vou ter o carro dos meus sonhos! ... Tomara que seja breve.” (E gargalhava.)

 

Abalado com tais atitudes, e, visando a não morrer solitário, viu brotar de dentro de si um resto de forças, e rumou para a Bahia, onde morava seu pai. Este possuía um sítio repleto de coqueiros, como é típico do lugar.

 

O velho o acolheu muito bem. Chorou, ao vê-lo naquela condição. Determinou: “Farei o que eu puder e o que eu não puder para te salvar. Tenha fé!” Arranjou-lhe uma cama rústica, porém confortável, num ambiente arejado e que recebia o frescor da natureza.

 

Só que, mesmo com tanta afabilidade, Honório exibia um ar de despedida. O pai ficou desesperado. No afã de socorrê-lo, o homem tomou uma atitude “protetoral e baiana” ao mesmo tempo: arranjou uma seringa de injeção; encheu-a com água de coco e, decididamente, aplicou tudo aquilo na veia do rapaz. Deitou-o docemente. Uma hora depois, o filho já conseguia conversar, conquanto pausado e ofegante.   

Ao fim da tarde, Honório, já sentado na cama, pediu ao pai que lhe trouxesse um copo de água de coco. Bebeu aquilo avidamente. “Mais um, por favor!” Voltou ao repouso. Dali a umas duas horas, tomou outro copo daquela dádiva da natureza, ingerindo também a polpa da fruta.

 

Três dias nessa dieta, começou a sentir uma considerável melhora. Foi aí que ele experimentou comer um pouquinho de comida. Não notou incômodo algum. Mais depois, sentava-se à mesa com seu pai. Contavam piadas, riam, e qualquer coisa que um comesse o outro também comia.

 

Honório sabia que seu nome vinha do latim, significando “honrado”. E isso influenciou bastante a sua conduta. Aí ele pensou: “Não consigo ficar sem trabalhar. Também não posso viver aqui à custa do meu bondoso pai.” Pensando assim, resolveu voltar para Guarulhos. Lá, procurou o médico que o havia desenganado. Pagou-lhe uma consulta. Fizeram todo tipo de exame. Nem o doutor entendeu! O Honório estava completamente curado. (Não entendeu e nunca irá entender, porque Honório jamais revelará.)

 

Com aquela grana que tinha, montou um restaurante, o qual, já desde o início, teve um grande movimento.

 

Tudo bem, até que um dia, reaparece aquela fujona: “Ei, benzinho, cê nem imagina a saudade que eu tô de você! Você sumiu lá pra Bahia, não mandou mais notícias. Estava preocupada com seu estado de saúde. Mas felizmente estou te vendo recuperado e feliz. Eu orei muito por você.”

 

“Saia da minha frente! – bradou o ex-marido. Na hora em que eu mais precisei de você, você me abandonou. Agora, eu é que não te quero mais.”

 

E ela: “Ah, quer saber? Te abandonei mesmo. Que lucro eu teria, vivendo ao lado de um cara brocha e doente? O homem que eu tô com ele tem pegada, não é frouxo igual você. Agora, vamos ao que interessa: somos casados em comunhão de bens, e você, querendo ou não, vai ter que dividir tudo o que tem comigo. Vou arranjar um bom advogado e pedir que ele te ferre em tudo, que ele te deixe a zero. Agora é que você vai ver realmente quem eu sou.” (A malvada só não sabia que no restaurante tinha câmeras, e que toda essa sua confissão estava sendo gravada.)

 

Foi fácil demais para o advogado de Honório ganhar essa causa. A fulana já havia produzido provas contra si própria. Fora outras, que o Honório apresentou. O advogado requereu ao juiz que ela fosse deserdada.

 

O juiz não teve dúvida: “Nos temos do artigo tal, do Código Civil, determino que a senhora A. G. T. seja deserdada. Isso, sem impedir que ela responda criminalmente por abandono de incapaz e planos de homicídio de seu cônjuge, tudo comprovado nos autos.” (A um soldado) - Prenda-a preventivamente.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

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Mulher armada:

Casei-me com uma pistoleira

A Dejanira afastava-se uns seis metros daquele ponto, virava-se de repente, e tá! Era um tiro seco e exatamente na mosca. Se quisessem que ela acertasse qualquer ponto do alvo, era só pedir.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

25/03/2024

 

Em supermercados, lojas, farmácias, enfim, em todo lugar aonde Dejanira entrasse, a pistola entrava junto.

 

Mas não é a Zambelli não, tá? É outra. Mais perigosa ainda.

 

Viajei estes dias para Caeté, a 35 km de Belo Horizonte. É divertido demais andar de ônibus. Senta-se alguém ao nosso lado e, exatamente por não nos conhecer, e até mesmo julgar que a gente nem vai mais se encontrar, a pessoa fica mais à vontade para revelar fatos de sua intimidade.

 

Foi o caso do Djalma. Homem moreno, robusto, de cara fechada, segundo ele, nascido na divisa de Minas com o Espírito Santo. Ele sentou-se ao meu lado, não deu um boa tarde, e foi se mantendo carrancudo até uma boa parte da viagem.

 

De repente, resolveu se abrir. Começou dizendo que ninguém conhece ninguém. Que a gente pensa que conhece. Mas aí é que está o engano.

 

Que ele se casou com a Dejanira, uma morena bem disposta, trabalhadeira. Com ela teve um filho. Agora o garoto, já adolescente, era um tipo irado, impaciente, não gostava de escola.

 

O Djalma analisou que esse jovem tinha puxado à mãe. A partir daí é que esse homem começou a apresentar, digamos assim, atualizações sobre a sua esposa.

 

- Benzinho, tenho uma coisa pra te revelar. Hoje eu realizei o meu maior sonho.

 

- O que, querida?

 

- Acaba de chegar pra mim pelo Correio uma pistola, top demais. Uma AF1 “Strike One”, de fabricação russa. Vou buscar pra te mostrar.

 

- Cê ficou doida?

 

- Não. Era meu sonho desde criança. Via em filmes, achava bacana demais. Uma mulher armada fica mais empoderada. Ainda mais no mundo de hoje, que quase ninguém respeita as mulheres devidamente, como elas merecem.

 

O marido ficou absolutamente em silêncio.

 

E o entusiasmo de Dejanira foi tanto, que a coisa foi virando show. Chegava alguma visita na casa, a Dejanira ia correndo buscar a arma para mostrar. Em seguida, desenhava um alvo na parede. Aí perguntava à visita: “Onde quer que eu acerte?” “No alvo.” – a pessoa respondia.

 

A Dejanira afastava-se uns seis metros daquele ponto, virava-se de repente, e ! Era um tiro seco e exatamente na mosca. Se quisessem que ela acertasse qualquer ponto do alvo, era só pedir. Aliás, a Dejanira até deixava um lápis vermelho com a pessoa, para que ela pusesse um pequeno “x” onde queria o tiro. A pessoa marcava e a Dejanira executava de longe, como uma atiradora de elite.

 

O Djalma me contou que, a essa altura, ele já estava até dormindo em quarto diferente do dela.

 

Realmente, a Dejanira não largava mais aquela “ignivoma manubalista”, como diriam os latinos, se eles estivessem aqui entre nós.

 

Em supermercados, lojas, farmácias, enfim, em todo lugar aonde Dejanira entrasse, a pistola entrava junto.

 

Até que um dia, a coisa complicou pro lado dessa mulher. Ela estava voltando de uma viagem de ônibus, quando a polícia parou o veículo para vistoriar, procurando drogas e armas. Entrou um policial pela porta de trás e outro pela porta da frente. Um com um fuzil, o outro, com uma metralhadora. A Dejanira começou a suar. A pressão dela foi a duzentos.

 

Se a polícia descobrisse o que estava com a passageira, ela, além de perder aquele objeto de estimação, ainda iria responder a processo. Que fez Dejanira?

 

Agora, é o Djalma quem conta:

 

“Na hora do aperto, o que a Dejanira fez foi esconder a pistola na vagina. Aí deu certo. Os policiais não descobriram nada.”

 

Só que, a partir desse dia, o Djalma sumiu no mundo. Entendeu que aquela pistoleira só traria encrencas para ele. Disse que tem saudade é do filho.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

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Criatividade:

O sítio onde rato comia gato

No batizado, as atenções voltavam-se mais para o casaco de Glória que para o recém-nascido. A toda hora, alguém a chamava a um canto para perguntar-lhe onde ela havia adquirido tamanha elegância.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

17/03/2024

 

Conclusão: ficou gato comendo rato e rato comendo gato. E o Isaías, só enchendo de dinheiro!

 

Um casal, que não tinha onde morar, acabou encontrando um sítio abandonado e decidiu ocupá-lo. Isaías era um homem caprichoso. Criou coragem e foi limpar aquela propriedade, enquanto Glória, sua esposa, foi lavando a casa.

 

Havia alguns vizinhos por ali. E todos eles, vendo aquilo bem cuidado, jamais poderiam imaginar que fosse de outro dono.

 

Mas e dinheiro? O dinheiro estava escasso. E o casal não tinha um trabalho remunerado.

 

Doeu mais, foi quando Glória recebeu um convite para ser madrinha de batismo, lá na cidade, numa igreja frequentada pela elite. Ela não tinha roupa adequada.

 

Isaías viu, por um acaso, um gato, que já estava quase morrendo. Ele teve uma ideia. Esperou que ele morresse, retirou-lhe toda a pele. Enquanto esta ia-se curtindo, ele avistou outros gatos por ali.

 

Bem, amigos, quero deixar bem claro que eu sou contra a matança de animais – a menos que sejam esses insetos terríveis, ou se for em legítima defesa. Entretanto, o Isaías era um homem prático. Gostava de resolver o problema do jeito que ele viesse.

 

Sendo assim, ele sacrificou outros gatos, tirando-lhes a pele.

 

E o que o Isaías estava pretendendo fazer com aquilo? Ele é quem conta: “A Glorinha vai brilhá no batizado. Vô fazê pra ela um belíssimo casaco de pele.” O homem tinha uma incrível habilidade manual e sabia também costurar.

 

Pronto! Agora, a surpresa:

 

- Glória, vem aqui pra eu te dá um presente, procê arrasá no batizado.

 

A esposa ficou em choque com tamanho luxo! Falou pra ele: “Mas de onde você tirou tanto dinheiro, pra comprar um casaco caríssimo como este!?” Ele riu e explicou que não havia gasto nada.

 

No batizado, as atenções voltavam-se mais para o casaco de Glória que para o recém-nascido. A toda hora, alguém a chamava a um canto para perguntar-lhe onde ela havia adquirido tamanha elegância.

 

Glória respondia que havia sido uma prima dela, que estivera em Paris, a qual comprou e lhe trouxe de presente. “Quanto ela pagou?” – perguntou uma das madames. “Oito mil reais.” - respondeu Glória.

 

Ao fim do batizado, já havia três encomendas. Fariam até uma vaquinha pra custear os gastos de viagem da pessoa que fosse a Paris comprar. (E Paris estava ali tão perto, né, gente!? No fundo do quintal do Sô Isaías.”)

 

Eu sei que o homem viu naquilo ali uma mina de dinheiro, que ele poderia explorar. Partiu então para uma criação de gatos. Ergueu no terreno um galpão e foi enchendo-o de felinos. Mas estava dando despesas: ração. Aí, o criativo Isaías pensou: “Gente, aqui tem aparecido tanto rato! Já sei o que vou fazer.”

 

Atraía os ratos, prendia-os e dava-os como alimento para os gatos.

 

A economia já estava muito boa. Contudo, parece que não havia limites para a criatividade do nosso amigo Isaías. Ele estava gastando fubá com a alimentação dos ratos. E ele queria ficar livre também dessa despesa. Sentou-se debaixo de uma árvore, acendeu um cigarrinho de palha e deixou o pensamento voar.

 

“Pronto! Já sei o que fazer!”

 

Quando o Isaías cortava o couro para confeccionar os casacos, sobravam diversas pontas, as quais iam para o lixo. Isso é que estava atraindo tanto rato. Aí o Isaías passou a tratar os ratos com essas peles que sobravam.

 

Conclusão: ficou gato comendo rato e rato comendo gato. E o Isaías, só enchendo de dinheiro!

 

Isaías localizou o verdadeiro proprietário daquele sítio. Comprou-o, por sinal, baratinho. E agora, já tem até piscina. Na entrada, uma placa bem bonita: “SÍTIO PARIS”.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

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Jung e arquétipos:

O herói, o fora da lei? ... Qual é o seu arquétipo?

Pessoalmente, não gostaria de ser o “Governante” durão, ditador, nem desejaria que alguém assim fosse meu chefe. Um líder democrático, até que sim. De qualquer jeito, tenho mais afinidade com o “Criador” e o “Comediante”, e busco inspiração no “Sábio”.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

10/03/2024

 

Jung foi um psiquiatra e psicanalista suíço, fundador da psicologia analítica. Relacionou-se um bom tempo com Freud.

 

Arquétipos, desenvolvidos por Carl Gustav Jung, são imagens e padrões arcaicos, advindos do inconsciente coletivo. Eles são universais e aparecem em mitos, religiões, sonhos e histórias ao redor do mundo.

 

Jung foi um psiquiatra e psicanalista suíço, fundador da psicologia analítica. Relacionou-se um bom tempo com Freud.

 

Os arquétipos servem para conhecermos melhor as pessoas e a nós mesmos. São úteis à construção de personagens do cinema e da literatura. E já vêm sendo também utilizados em campanhas publicitárias. São doze, os mais estudados. Vamos ver?

 

O Inocente. Prima pela simplicidade, otimismo, lealdade, pureza, juventude. A coca-cola sabe explorar este arquétipo, valendo-se dele em suas campanhas. Ali, a empresa pretende provocar sentimentos de alegria e compartilhamento. Suas mensagens são otimistas, criando associações com momentos felizes.

 

O Cara Comum. É solidário; conecta-se e cria laços com facilidade. Uma empresa que se vale desse arquétipo é a Brahma. Ela se coloca como uma escolha para todos, dando relevo às horas de descontração e confraternização. Consegue criar uma identidade e um pertencimento a um grupo: ser “brahmeiro”.

 

O Herói. É corajoso, honrado, ousado, confiante, inspirado e forte. A Nike se amolda muito bem a este arquétipo. Ela cria slogans motivacionais e campanhas que incentivam as pessoas a superar seus limites e alcançar seus objetivos.

 

O Fora da lei. Este gosta de quebrar as regras e lutar contra a autoridade. Nesta categoria, pode-se colocar a Harley-Davidson. Esta marca de motocicletas transformou-se em sinônimo de liberdade, rebeldia e ruptura com as convenções sociais. Tudo o que o motoqueiro quer.

 

O Explorador. Busca realização por meio de descobertas e novas experiências. Exemplo de marca que dele se utiliza: The North Face. Trata-se de uma produção de equipamentos e roupas para atividades ao ar livre. Procura atingir um público que busca aventuras na natureza.

 

O Criador. Criativo, artístico, imaginativo, inventivo. Pode-se destacar aqui a Faber Castell, uma marca já famosa por seus materiais artísticos de alta qualidade, promovendo a criação e a expressão.

 

O Governante. Líder, responsável, organizado, administrador. Este arquétipo é escolhido por marcas que pretendem projetar uma imagem de autoridade, confiabilidade e excelência. Um exemplo é a Rolex. A marca, famosa por seus relógios de luxo, é símbolo de precisão, qualidade, conferindo status ao usuário, além de projetar uma imagem de liderança e confiabilidade.

 

O Mágico. É visionário, carismático, imaginativo, idealista e espiritual. Este arquétipo chama a atenção de um público que valoriza a transformação, a inspiração e a expansão da consciência. Marca que se ajusta perfeitamente a este arquétipo é a Disney. Ela cria mundos mágicos e experiências que transportam os visitantes a um universo encantado.

 

O Amante. Usado para criar laços de intimidade e inspirar sentimentos de amor e paixão. “O Amante”, com frequência, é adotado por marcas que pretendem ser reconhecidas como sensuais, românticas. Como exemplo, tem-se a Victoria's Secret, já famosa por sua lingerie, a qual provoca sensualidade e romantismo, visando ainda a fortalecer a intimidade pessoal.

 

O Cuidador. Projetado para evocar sentimentos de proteção, cuidado e altruísmo. É escolhido por marcas que pretendem ser vistas como nutridoras, condolentes e interessadas no bem-estar das pessoas. Exemplo: a Johnson & Johnson.

 

O Comediante (ou "O Bobo da Corte"). É quem deve trazer alegria, humor e leveza ao mundo. Este arquétipo é o preferido por marcas que se aliam a diversão, irreverência e espontaneidade, como a Ben & Jerry’s, de sorvetes.

 

O Sábio. Liga-se ao conhecimento, sabedoria e insights. Este arquétipo é escolhido por marcas que pretendem ser vistas como autoridades confiáveis em seus campos, proporcionando informações valiosas e orientação. Como amostra desse arquétipo, escolhemos a Editora Abril.

 

Bem, ninguém pode guiar-se por um único arquétipo, já que as situações mudam, exigindo de nós diferentes reações. Entretanto, cada um tem, no mínimo, suas tendências. Pessoalmente, não gostaria de ser o “Governante” durão, ditador, nem desejaria que alguém assim fosse meu chefe. Um líder democrático, até que sim. De qualquer jeito, tenho mais afinidade com o “Criador” e o “Comediante”, e busco inspiração no “Sábio”. Mas e você? Com qual arquétipo você se identifica mais?

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

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Democracia corintiana:

O leão, as ovelhas e os gaviões

Em meio a tanto barulho de leões urrando e gado berrando, chegam os Gaviões e acabam, pelo menos em parte, com aquela baderna.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

1º/03/2024

 

Existem ainda denúncias de que certos patrões bolsonaristas obrigaram seus empregados a comparecerem ao evento. Tudo será apurado.

 

O que a sensatez determina é que ovelhas sejam conduzidas por um bom pastor. Daí a comparação: Cristo, o Pastor; os cristãos, suas ovelhas.

 

O bom pastor ensina o melhor caminho, tenta evitar ao máximo que essas suas cordeiras se desgarrem. Se uma tem a patinha ferida, cabe ao seu protetor trazer-lhe a cura. A uma mínima ameaça, o pastor deve mostrar-se presente. Se alguma delas anda triste, cumpre ao seu salvador trazer o carinho e o lenitivo para que ela volte a viver alegremente.

 

Mas... e quando essas ovelhas - porque foram ludibriadas, com promessas de um mundo melhor - são guiadas, exatamente por um lobo? Pensas que é raro acontecer? Hoje, já nem tanto.

 

Situação mais dramática ainda é quando essas ingênuas ovelhinhas são sequestradas por um leão, e têm de passar a ser fiéis a ele. Já imaginou o que pode acontecer?

 

Bem, esse leão altissonante e tosco, egoísta ao extremo, é o empresário e militante político Silas Malafaia. Muitos o tratam por pastor. Esse título, ele não faz por merecer. Ele se utiliza da religião, da Bíblia e de Jesus Cristo, apenas como suporte aos seus interesses políticos e comerciais. Homem que vende bíblias a mil reais cada, que pede dinheiro até de desempregados, como se pode ver nos diversos vídeos de seus programas, não pode ser um perfeito cristão. Cristo jamais pregou a avareza, a exploração alheia. Ao contrário, sempre preconizou a solidariedade.

 

Bolsonaro e Silas Malafaia têm várias coisas em comum. E bons negócios para ambos – quase sempre, ilícitos. Por isso se tornaram tão amiguinhos (pelo menos, enquanto um deles não dançar e, principalmente, não delatar o outro). É que nesse ambiente de hipocrisias, os atores envolvidos se articulam com todos os recursos possíveis, na maior parte das vezes, fake news, para sequestrarem o gado comum. Uma vez que aprenderam foi iludir, e não outra coisa, não pensarão duas vezes antes de ludibriar um ao outro.

 

Bem, agora todos já sabem que o leão da nossa história não fala, ruge. Ele se declara psicólogo. Se for mesmo, ele sabe o efeito que causa usar discursos rasteiros, ofensivos e retumbantes, com o fim de alcançar maior persuasão e maior número de seguidores em suas redes sociais, o que lhe aumenta ainda mais o poder.

 

Dia 25 de fevereiro, como vimos, houve uma manifestação na Av. Paulista, em São Paulo. De fato, compareceu muita gente. Suspeita-se que grande parte das despesas foram pagas com dinheiro público, o que deverá ser investigado. Também o Silas não deverá ser esquecido da PF.

 

Existem ainda denúncias de que certos patrões bolsonaristas obrigaram seus empregados a comparecerem ao evento. Tudo será apurado.

 

O Bolsonaro figurou ali mais como um leão parcialmente sedado, porque estava morrendo de medo de passar dos limites em seus rugidos, e de seu domador mandá-lo direto para a jaula.

 

E onde entram os gaviões? São os intrépidos Gaviões da Fiel, a torcida organizada do Corinthians. Em meio a tanto barulho de leões urrando e gado berrando, chegam os Gaviões e acabam, pelo menos em parte, com aquela baderna. Impediram que vários bolsonaristas entrassem no metrô. E cantaram com convicção: “Olê, olê, olê, olá, Lula, Lula.” E com ousadia: “Ei bolsonaro, vai t* no c*.” É óbvio que houve excesso na linguagem. No entanto, ali, não os leões, mas os gaviões é que foram soberanos.

 

É bom notar que Bolsonaro torce para o Palmeiras, time arquirrival do Corinthians. E Lula, por sua vez, é corintiano declarado, o que reforça ainda mais o espírito de pugna da Gaviões a seu favor.

 

Atuação memorável dessa torcida já havia ocorrido no dia 2 de novembro de 2022, com participação também da Galoucura. Foi quando, assumindo o lugar de uma polícia ineficiente naquela situação, tais torcidas liberaram as estradas, que haviam sido bloqueadas por terroristas bolsonaristas.

 

Enfim, várias forças integram uma disputa política: dinheiro, marketing, experiência, simpatia, discursos persuasivos, religião, mas também o futebol. Afinal, estamos falando de Brasil.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

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Vida real:

A lição do tempo, para uma mestra

 Eustáquio e Eduardo, ainda estavam conversando e rindo. Ela chamou a atenção deles uma, duas, três vezes. Enfim, eles obedeceram. Tais discípulos não eram seres maldosos, grosseiros, arruaceiros. Apenas, devido à sua alegria de viver, por vezes, ultrapassavam os limites da boa conduta.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

18/02/2024

 

Ela reconheceu o taxista: era o Eduardo, seu antigo aluno - aquele que fora expulso. Ele, desdobrando-se em atenção à sua antiga mestra, foi célere em seus movimentos, visando a chegassem rápido a um hospital.

 

A professora – permitam-me tratá-la por Dona Eva – já era antiga numa escola. Talvez pelo cansaço acumulado, ou por algo que nem sei, ela já não tinha a mesma paciência do início da carreira. Acresce-se que alguns alunos passam realmente dos limites, colocando o controle emocional dos mestres à prova.

 

Contudo, o trabalho da Dona Eva transcorria bem. Era uma pessoa de poucos sorrisos, mas também não ofendia as colegas nem os pais dos alunos. Ah, e também não inovava. Seguia um mesmo método. Contava que não comprava livros, nem fazia novos cursos, porque não precisava. Gabava-se de já saber a matéria de cor.

 

Um dia, ela entrou na sala de um nono ano. Notou os alunos um pouco inquietos. Todavia, valendo-se da sua experiência, não tardou para que ela conseguisse acalmar os ânimos daquela turma.

 

Apenas dois alunos, o Eustáquio e o Eduardo, ainda estavam conversando e rindo. Ela chamou a atenção deles uma, duas, três vezes. Enfim, eles obedeceram. Tais discípulos não eram seres maldosos, grosseiros, arruaceiros. Apenas, devido à sua alegria de viver, por vezes, ultrapassavam os limites da boa conduta.

 

Aula de ciências. E a mestra foi seguindo com as explicações. Falou um pouco da pleura, do pulmão, do esôfago e de outras coisas mais.

 

De uma hora para a outra, ela é que cismou de engraçar, de provocar o Eustáquio, que estava caladinho. Pensou ela: “Ah, esse capetinha vive me atormentando. Agora, eu é que vou atormentá-lo. Vou fazer perguntas para ele, a partir das mais simples, até apertá-lo bastante, para a turma ver que esse engraçadinho não vale de nada.”

 

Primeira pergunta: “Onde começa a digestão?” Ele ficou um pouco pensativo. Uma menina respondeu: “No estômago.” E a professora: “Não, na boca.” Aí ela censurou o Eustáquio: “Nem esta!? Esta era a mais fácil.” E ele argumentou: “Todo dia eu faço vitamina de frutas lá em casa.” E ela: “Ótimo hábito! E daí?” E ele: “Daí é que, quando a vitamina chega à minha boca, eu já piquei as frutas e já joguei no liquidificador, que mói aquilo tudo. Portanto, no meu caso, a digestão começa é na faca, dando prosseguimento no liquidificador.”

 

A turma rachou de rir! A Dona Eva virou uma arara. Outra pergunta: “Eustáquio, me responda essa agora: quantos rins nós temos?” E ele: “Quatro.” Seu colega, o Eduardo, não parava de gargalhar. Nervosíssima, ela mandou os dois pra fora da sala, com uma frase emblemática: “Com a experiência que tenho, posso garantir que vocês dois não darão nada na vida.” O Eustáquio, ao sair, ainda explicou: “Mas são quatro mesmo, professora: os dois meus, mais os dois da senhora.” A senhora perguntou no plural: “Quantos rins temos?”

 

O assunto chegou à direção, e aquilo resultou em expulsão daqueles dois alunos. A diretora: “Esses atrevidinhos só serviam para atrapalhar a boa disciplina da sala. Se eu não tomasse uma providência, iriam dizer que eu não tenho pulso para dirigir uma escola.”

 

Anos depois, a professora já estava aposentada e vivendo numa casa retirada da cidade. Havia ficado viúva, e suas duas filhas eram casadas, residindo em cidades diferentes. Dona Eva morava então sozinha.

 

Uma noite, Dona Eva sentiu-se mal. Foi ficando cansada, aflita, nervosa, prevendo que mal maior pudesse acontecer. Procurou rápido uma antiga lista telefônica. Ligou pedindo um táxi. Não tardou para que este chegasse. Ela reconheceu o taxista: era o Eduardo, seu antigo aluno - aquele que fora expulso. Ele, desdobrando-se em atenção à sua antiga mestra, foi célere em seus movimentos, visando a que chegassem rápido a um hospital.

 

A atendente indicou: “Consultório número 6. Urgente!” O próprio taxista a acompanhou até lá. Outra surpresa: o médico que foi atendê-la – e por sinal a salvou - era exatamente o Dr. Eustáquio, aquele “engraçadinho”, que também fora expulso, e que a mestra afirmara que ele não daria nada na vida.

 

Acima dos mestres das escolas está o Tempo, está o Mundo. Abaixo de Deus, eles são realmente os maiores Mestres.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.

 

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Mascarados:

Políticos, carnaval e máscaras

Ele, que nunca soube o que é trabalhar duro, vivendo de motociatas, jet skis, praias, poligamia, vê que o cerco está se fechando. Seus argumentos falaciosos já não se sustentam mais. Seu castelo, fundado em areia, está prestes a ruir.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

10/02/2024

 

Que exemplo Bolsonaro está deixando para os seus filhos, hein!? Ensinou-lhes o caminho do crime.

 

É tempo de carnaval. Só que, em nosso país, mesmo não sendo época momesca, há os hipócritas mascarados, individuais ou em blocos.

 

Existe, no entanto, uma diferença considerável entre os mascarados. Aqueles que desfilam nas avenidas fazem aquilo por festa, por diversão. Não se importam com gastar até tudo o que amealham durante todo o ano para vibrarem durante aqueles poucos dias. Quem os vê sabe, perfeitamente, que aquele não é um gato, o outro não é mulher, um terceiro não é passarinho.

 

Já os outros mascarados são diferentes. Eles são dissimulados. Um, por exemplo, usa a máscara de bonzinho – mas é cruel; outro se disfarça de cristão – todavia, é avaro; o seguinte mostra-se teu protetor – contudo, te trai, te explora, te leva ao abismo.

 

A política é um terreno, dos mais férteis, para os mascarados. Ali, há homens da lei, que desrespeitam as leis; tem empresários “exemplares”, que sonegam impostos ou escravizam seus empregados; e existem os patriotas, que envilecem a Pátria.

 

As aspirações quase sempre são as mesmas: ganhar rios de dinheiro, aumentar o seu poder - não importam os meios.

 

E é exatamente nesses rios, ou nesses mares, que muitos naufragam. É que eles se tornam cegos em suas vidas de ostentação: mansões, viagens transcontinentais, iates, festas, orgias..., quase sempre, com recursos provenientes de atos delituosos.

 

Alguns políticos conseguem ir adiando as suas condenações. Porém outros, integrantes de organizações criminosas, quedam trêmulos e pálidos, quando, ao romper da aurora, ouvem o desagradável TOC-TOC da Polícia, chegando ao seu domicílio. Houve um que até desmaiou, tendo sido encaminhado aos socorros médicos. Persiste a velha frase: “Quem não deve não teme.” O desmaio equivale a uma confissão de culpa.

 

Está o senhor Jair, que não sai dos noticiários, com a mesma palidez e tremência (mistura de tremor com demência). Ele, que nunca soube o que é trabalhar duro, vivendo de motociatas, jet skis, praias, poligamia, vê que o cerco está se fechando. Seus argumentos falaciosos já não se sustentam mais. Seu castelo, fundado em areia, está prestes a ruir. Boa parte do seu fã-clube já o está deixando – até por medo de se comprometer e pagar caro por isso, como vem acontecendo.

 

Bolsonaro é tóxico. Ele conseguiu contaminar milhares de pessoas crédulas, simplórias, mas também gente da elite, que tinha cargos, posições, que tinha algo a perder. Nesse grupo se enquadram alguns generais. Agora, o que estes realmente têm são os presídios ou a sua iminência. Tanta apreensão, tensão, ansiedade, hipertensão!...

 

O Inelegível criou sua persona, disseminando esse modelo. Produziu a pecha de mito, de imbrochável, de Messias, de salvador da Pátria, da família, da democracia, da liberdade e das ameaças de um comunismo, que só ele e seus asseclas veem. Tudo balela! Tudo máscaras, para disfarçar um indivíduo, exatamente oposto ao que realmente é.

 

Com certeza, ele leu pelo menos um livro: A Luta, de Hitler; ou quem sabe mais um: O Príncipe, de Maquiavel. Não é exagero afirmar que o bolsonarismo se espelhou muito no nazismo: preconceitos e a busca pela “raça pura”. Bolsonaro não gosta de pobres, negros e índios. No caso destes últimos, é quase certo que houve um movimento para exterminá-los, como sucedeu nos EUA. Vocês viram o grande volume de medicamentos, recebidos durante o seu desgoverno, e jogados numa cova cavada, os quais seriam destinados aos Ianomâmi?

 

Soma-se a isso o preconceito, a falsa moral, em coadjuvação com falsos pastores, fanáticos, fundamentalistas e estrategistas, já que tudo fazem, mirando o seu benefício próprio.

 

Que exemplo Bolsonaro está deixando para os seus filhos, hein!? Ensinou-lhes o caminho do crime. Breve – é o que a bússola indica – será condenado a dezenas de anos de prisão. Depois os filhos, um a um, deverão também trilhar por esse pedregoso caminho.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.

 

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Futuro:

O intrigante sonho de Norabel

Sempre que ela almejava avançar um pouco mais em sua liberdade, sentia um cordão puxando-a para trás. Eram as censuras de seu pai, de sua mãe.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

04/02/2024

 

As casas eram de vidro. Em vez de portas, uma grande entrada. Desta forma, todos que passavam do lado de fora viam quem estavam lá dentro, assim como os de dentro viam os de fora.

 

Norabel não saía muito de casa. Os pais raramente deixavam. Dezessete anos – fez anteontem. E amigas que tinha eram poucas. Comunicava-se mais com Esmeralda, sua prima.

 

De manhã, ia para a escola. A jovem era vista pelas colegas como educada, porém, um tanto reservada. Norabel ficou encantada com um rapaz que viu nessa escola. E ela sentiu que ele também teve uma certa atração por ela. Mas como namorar? Sempre que ela almejava avançar um pouco mais em sua liberdade, sentia um cordão puxando-a para trás. Eram as censuras de seu pai, de sua mãe.

 

Como não podia explorar o mundo lá fora, Norabel aprendeu a mergulhar no seu mundo interior.

 

Norabel não tinha ligação alguma com política. Nem acompanhava os noticiários. Não sabia quase nada do que se passava na TV.

 

Freud, ao versar sobre recalque, dividiu este mecanismo em duas categorias: recalcamento primário (inscrição de experiências no inconsciente) e recalcamento secundário (a rejeição de experiências inscritas no inconsciente). Parece que Norabel tinha os dois. Era cheia de recalques, ou desejos reprimidos.

 

Tudo isto explodiu uma noite, em forma de sonho. Um sonho riquíssimo em imagens. Ela nos contou tudo... detalhadamente...

 

“Tudo acontecia, num tempo futuro. O lugar exato, eu não consegui identificar. As casas eram de vidro. Em vez de portas, uma grande entrada. Desta forma, todos que passavam do lado de fora viam quem estavam lá dentro, assim como os de dentro viam os de fora. Isto, mesmo durante o banho ou num momento de intimidade amorosa.”

 

“Onde quer que cada indivíduo estivesse, até mesmo mergulhando num rio ou no mar, era localizado, através do número de seu celular. Os mais poderosos manipulavam os mais fracos, como se estivessem manipulando marionetes. E não havia como se defender.”

 

“Naquela época, e naquele lugar do sonho, o governo era o mais interessado em saber o que as pessoas falavam sobre ele, como elas agiam e até mesmo o que pensavam. Dependendo do que se apurava, a punição era severa, chegando até à pena de morte.”

 

“Entre nações, não havia mais guerras armadas (felizmente!). As guerras eram de informações. Aquele país, que mais sigilos do outro obtivesse, na certa, ganhava o combate.”

 

E Norabel continua narrando seu intrigante sonho. “Às vezes também, essa espionagem trazia algo de bom. Quando eu, minha prima e aquele lindo rapaz que conheci lá na escola chegamos a um restaurante, o garçom já estava trazendo para nós o prato que cada um iria pedir.”

 

“Através das nossas preferências, reveladas nas redes sociais, os comerciantes já conheciam o gosto de cada um. A imagem de cada freguês já estava disponível num banco de dados. Bastaria um clique, para acessar toda a sua vida. A pesquisa mostrava até que remédios a pessoa tomava. Deste modo, o estabelecimento sabia que para tal cliente não se devia carregar demais no sal ou no açúcar.”

 

“Chegou-se a um ponto, quando as casas, nem tinham mais paredes. Transformaram-se em casas-mundo. Cada um escolhia um canto daquele espaço para fazer a sua refeição, trocar de roupa ou dormir. Paredes pra quê, se privacidade não existia mais?”

 

E Norabel continuava relatando: “E tudo parecia mágico. Chegou um dia à minha casa-mundo um funcionário do estádio de futebol, trazendo-me o ingresso para eu assistir ao jogo do meu time do coração. Eu vibrei! Apenas sorri para a maquininha e ela registrou o pagamento. O moço arriscou até um palpite: ‘seu time vai ganhar de 3 x 0.’ E como ele acertou!”

 

“Tive um só medo” – desabafou Norabel – “de que o mundo, nesse futuro, ficasse sem graça.”  

 

Ao acordar, Norabel não deixou de registrar em seu diário a data desse sonho: 04/02/2014.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.

 

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Exploração da fé:

A igrejinha lá do morro

O dirigente de culto se transformava em animador de auditório. Ao som de músicas vibrantes, ele ia anunciando: quem vai dar 100 mil? Depois, 50, 40, 10..., até abaixar para mil, que era a oferta mínima.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

29/01/2024

 

 

E a igrejinha lá do morro? Ah!... Parecia que ela é que se afastava, de toda essa heresia.

 

Cidadezinha qualquer. De segunda a sexta, a sinfonia ambiental é serena, às vezes formada mais por pausas que por notas. Lojas, casas, carros, vozerio é que dão ainda algum movimento ao lugar.

 

A uns três quilômetros dali, esquecida lá morro, está uma singela igrejinha. Só mesmo o Sô João Cândido é que ouve o badalar do seu sino, fazendo o nome do pai, lá do seu, também esquecido, ranchinho de sapé.

 

Nos finais de semana, sobretudo à noite, a cidade muda de mão. O centro se torna barulhento. Buzinas, gritos, músicas, histerismos... São os cultos nas multinacionais da fé. Ali também, um verdadeiro desfile de modas.

 

E os pastores, experts em comportamento do consumidor, sabem explorar a vaidade dessas ovelhas, bem como a sua ânsia por enriquecer.

 

Um dos bispos lançou a campanha “Aquilo que você não usa não é seu, é de Jesus.” Assim, alguém que tivesse um terno parado no guarda-roupa, ofertava-o. Um senhor, quase chorando, entendeu que era obrigado a doar sua Rural Willys de estimação, que havia pertencido ao seu avô, o qual nem a tirava da garagem, a fim de não desgastá-la. Doou-a. Até uma enxada velha também era aceita. Num instante, o pastor já havia montado seu “Topa-Tudo para Cristo”, lugar onde ele vendia tais bens, a preços exorbitantes. Todavia, o povo comprava, porque entendia ser para Cristo.

 

Outro pastor se tornou especialista em tirar pessoas dos vícios. Assim ele instruía os viciados: de agora em diante, quando você tiver vontade de fumar, beber ou usar drogas, você vai pegar o dinheiro que ia gastar com essas porcarias e entregar aqui, para a obra de Deus. Eu vou abençoar, e você vai parar de usar.

 

Estava vindo gente de longe a fim de participar da campanha. E funcionava mesmo, pois ninguém ia querer fornecer cigarro, cachaça ou maconha de graça. Foi um negócio um tanto rentável para aquela igreja. E o pastor foi bastante elogiado por esse seu trabalho. Familiares do ex-viciado lhe davam acréscimos, em agradecimento.

 

O mais emocionante, no entanto, acontecia em outra igreja: o “Campeonato de Ofertas”. O dirigente de culto se transformava em animador de auditório. Ao som de músicas vibrantes, ele ia anunciando: quem vai dar 100 mil? Depois, 50, 40, 10..., até abaixar para mil, que era a oferta mínima. Uma obreira, atuando ali como secretária, ia anotando os valores doados e a pontuação. Num telão, aparecia o nome do doador e a classificação, a qual ia sendo atualizada minuto a minuto.

 

E a premiação? Bem, esta não passava de promessas. O líder dessa instituição prometia que, quanto mais os fiéis doassem, mais ricos eles ficariam. Dependendo do valor, alguém poderia chegar a acumular até um octilhão de dólares, chegando, portanto, a se tornar a pessoa mais rica do mundo. Oh!!! Todos queriam!

 

Alguém dava 2 mil. Vendo que a vizinha deu 2.500, voltava ao altar e ofertava mais mil. E fazendeiros, quando não tinham mais saldo disponível, empenhavam seu gado. Assinavam ali, de público, um documento autorizando o pastor a buscá-lo no dia seguinte. Quem quisesse oferecer uma importância maior, para vencer aquele concurso, e não tivesse o recurso, poderia valer-se de um crediário. Passava-se o cartão, dividindo a quantia em até 24 prestações (com juros, é claro).

 

E a igrejinha lá do morro? Ah!... Parecia que ela é que se afastava, de toda essa heresia.

 

Todo dia, ao cair da tarde, o Sô João Cândido encostava as ferramentas. Com suas roupas rasgadas e seu semblante sereno, subia descalço o morro. Lá do alto, ele contemplava o céu, as plantas, o pôr do sol. Respirava fundo aquele ar, impregnado de perfume. A música era a dos pássaros. Deixava de ser Sô João Cândido, para ser uma fagulha daquela maravilha. Entrava verdadeiramente em comunhão com a Divindade.

 

Agora, ele se dirige à igrejinha. Tira respeitosamente o chapéu. Empurra cuidadosamente a porta... Entra... Ajoelha-se ali, silente, sozinho, contrito... Com muita fé e fervor, agradece ao Eterno pela chuva que cai, pelo milho que colhe, pela roseira em flor. O Sô João Cândido é o homem mais rico do lugar, e o único realmente fiel.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.

 

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Conselho:

Cuidado com pessoas estranhas!

Uma figura estranha para uns pode ser uma pessoa atrativa para outros. Depende de cada universo, dos valores morais, da concepção de mundo, da avaliação que se faz, ou até mesmo julgamentos – e suas condenações.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

19/01/2024

 

Em muitos casos, nós é que somos os estranhos. Atravessamos uma rua, outra pessoa se afasta, com medo de nós. Mães puxam de repente seus filhos à nossa aproximação!

 

Cada vez mais, mães advertem filhos: “Cuidado com pessoas estranhas!” Quanto mais jovens tais filhos, mais recomendações de cuidado.

 

E eu não tiro a razão delas não. A televisão nos bombardeia com histórias de desconhecidos: que abusam, que assaltam, que sequestram, ou até matam. Analogamente, a internet. Quanto golpe, quantas falsas promessas, que atraem os menos avisados para crimes sexuais, extorsões ou roubos! Quanta enganação! Quanto perigo!

 

Todavia..., o que é uma pessoa estranha? Para você, leitor, como é? Branca, parda, negra? De tatuagem, sem tatuagem? Cabelo liso, crespo, preto, branco, rosa, azul ou amarelo? Com cara trancada, ou excessivamente risonha? Jovem ou idosa? Brasileira ou estrangeira? Do seu bairro ou de outro? Esquerdista ou direitista? Sertaneja ou funkeira? Do Centro ou da Periferia? Com roupas rasgadas ou com roupas de grife? Da roça, ou da cidade? Homo ou hétero? Anda de carro, moto, bicicleta, a cavalo, ou a pé?

 

Uma figura estranha para uns pode ser uma pessoa atrativa para outros. Depende de cada universo, dos valores morais, da concepção de mundo, da avaliação que se faz, ou até mesmo julgamentos – e suas condenações.

 

É bastante constrangedor um ser humano se afastar logo de outro, por “pré-conceito”. Pior ainda é quando a polícia pega, prende um inocente, por considerá-lo suspeito, ou parecido com o retrato falado do verdadeiro criminoso.

 

Não me posiciono aqui como um advogado das pessoas estranhas. Contudo, cabe nova reflexão. Alguém é estranho, até o momento em que não temos relacionamento com ele. Pode ser um colega de sala, de trabalho, um vizinho novo na rua... Conhecendo-o mais é que vamos saber se ele merece a nossa confiança ou não. Quem sabe este ainda venha a ser um grande companheiro, alguém que um dia vai até nos salvar?

 

Existem milhares de desconhecidos, nossos fidelíssimos amigos. Acaso, ainda não havia pensado nisso? Vou dar exemplos: cientistas que, durante anos, estão sacrificando sua família, seu lazer, para descobrir um medicamento, que nos curará, curando também milhões. Existem célebres escritores, que jamais os conheceremos. Provavelmente, já nos valemos de alguns livros deles. Há os inventores. E temos ainda os que postam material de altíssima valia na Web, permanecendo incógnitos para nós.

 

Enfim, lidar com pessoas desconhecidas é inevitável a todos. Estamos noutra cidade, noutro país. Quantas vezes temos de interceptar alguém, pedindo-lhe um favor, uma informação! E quantas vezes alguém é que vem até nós, buscando esse obséquio, esse aclaramento!

 

Em muitos casos, nós é que somos os estranhos. Atravessamos uma rua, outra pessoa se afasta, com medo de nós. Mães puxam de repente seus filhos à nossa aproximação!

 

O pavor se intensifica quando é noite. O escuro torna tudo obscuro. “Aquele deve ser ladrão. O outro, maconheiro. Um terceiro é sem Deus. Aquela menina tem cara de prostituta. Melhor manter distância deles!” Frase atribuída a Sartre: “O outro, minha desgraça.” E quem já leu sua peça teatral Entre quatro paredes sabe que ela se passa no inferno. E o autor a finaliza com a seguinte frase: “O inferno são os outros.” (Não sei se na vida real Sartre era tão misantropo assim, ou se isso foi mero apelo literário.)

 

Fala-se muito, mas ninguém conhece os corações. Em verdade, não entendemos bem nem a nós próprios. Somos estranhos a nós mesmos.

 

Amigas e Amigos, gastamos um considerável tempo refletindo sobre as pessoas estranhas. É hora de mudar o foco, tendo claro que os mais prejudiciais são, exatamente, os mais próximos de nós. Padrasto estupra enteada; parente expõe parente; cônjuge ilude cônjuge; irmão ladroa irmão... (E aquela mãe, que coloca seu filho numa lata de lixo? ...)

 

Um desconhecido me contou que o maior amigo de seu pai, e sócio deste, o seduziu, quando ele tinha dez anos...

 

Com tanto fato acontecendo, poderíamos até retificar o nosso título, ele passando a ser: Cuidado com as pessoas próximas de você!

 

Por fim, para nos tornarmos mais serenos, fiquemos com a mensagem do ilustre Chico Xavier: “Cada pessoa com a qual entres em contato é uma página do livro que estás escrevendo com a própria vida.” (Da obra Gotas de Paz.)

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.

 

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Política e futebol:

A nova dupla Lula e Dino

Queremos ver é os resultados. Já estamos cansados de candidatos que vencem eleições, com o discurso de que são cristãos, patriotas, anticomunistas, que em seu governo não haverá corrupção... E, na prática, fazem tudo ao contrário do que se discursa.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

15/01/2024

 

Uma parte dos internautas tem atacado esta dupla, alegando que são dois comunistas. Dois, eu não sei. Pelo menos um é: o Dino. O Lula fica ali na esfera do “simpatizante”.

 

Olhem, não tem nada a ver com aquela dupla “Deny e Dino”, da Jovem Guarda não; aquela, cujo maior sucesso foi Coruja. A dupla que agora está fazendo o Brasil tremer (de alegria ou de raiva) é mesmo “Lula e Dino”. A dupla veio para abalar.

 

E os comentários? Uma parte dos internautas tem atacado esta dupla, alegando que são dois comunistas. Dois, eu não sei. Pelo menos um é: o Dino. O Lula fica ali na esfera do “simpatizante”.

 

Mas o que é mesmo o comunismo? Jesus sempre esteve ao lado dos pobres e dos menos favorecidos. Ele não pregou a ostentação, não enalteceu capitalistas vorazes, que quanto mais têm mais querem. Ao contrário, ensinou a amar, a repartir o pão. Seria ele um pré-comunista?

 

Queremos ver é os resultados. Já estamos cansados de candidatos que vencem eleições, com o discurso de que são cristãos, patriotas, anticomunistas, que em seu governo não haverá corrupção... E, na prática, fazem tudo ao contrário do que se discursa. Enfim, interessa é o caráter do governante, sua capacidade administrativa, seu verdadeiro amor às pessoas e à Pátria, independente de detalhinhos ideológicos.

 

Mas vamos voltar à dupla. Seu disco de lançamento está previsto para os próximos meses. A produção sairá nas mais diversas mídias: em vinil (para os saudosistas), em CD, DVD e diversas plataformas na web, como Face, YouTube, Spotify, TikTok e Amazon Music. Alguns compositores provêm do Legislativo, do Executivo, do Judiciário – e de outros poderes mais. Em algumas faixas, haverá a participação do renomado instrumentista Artur, tocando a sua lira. Se desafinar, não leve a mal. São meras fake news.

 

A escolha do repertório não foi nada fácil. O Lula teve de fazer uma série de articulações. Aliás, até mesmo com seu parceiro Dino. É que uns gostavam de funk, outros de sertanejo, outros de pagode, outros de samba. E cada um queria puxar a brasa para a sua sardinha. Por exemplo: o Dino falou que não cantava, se não incluíssem no repertório o Hino do Sampaio Correia, seu time do coração. Imediatamente, Lula reagiu: “Companheiro Dino, vou concordar com você, mas então tem que incluir o Hino do meu querido Corinthians. Se não, eu veto.” (O bolsonaro mandou um recado: “Tem que colocar o Hino do Palmeiras!” “Nem pensar!” – responderam os cantores.” Já pensou falar isso para um corintiano roxo feito o Lula?

 

Decidiram então: “O nome da produção será: ‘Nunca na história deste País’. E o repertório versará sobre o mundo futebolístico.”

 

Alguém argumentou: tem que colocar uma canção homenageando o tetracampeão Zagallo, que nos deixou recentemente. Homenagem aceita. “Mas então não podemos deixar de homenagear o nosso eterno Rei Pelé.” – completou um outro. (Aplausos.)

 

Nisto, entra em cena o artilheiro Lewandowski, reivindicando sua participação nas gravações. “Apesar de eu não jogar no Brasil, sou fã do futebol brasileiro; e estou torcendo muito pela dupla de vocês. Ademais, já fui apontado como o melhor do mundo. Será que eu não mereço uma vaguinha nessa produção de vocês?” Lula, Dino e outros compositores, como Gilmar e Xandão, falaram em coro: “Ele merece!” E foi aceito.

 

Alguém sugeriu que o diretor artístico da dupla fosse o Padre Júlio Lancelloti. Outra pessoa disse mais: “Será também nosso líder espiritual.” Pareceu até telepatia: naquela hora, o Padre Lancelloti recebeu um telefonema do Papa Francisco. O Pontífice encorajou-o a não esmorecer, a continuar o seu trabalho, seguindo o exemplo de Cristo.

 

Lancelloti aproveitou para contar da nova dupla Lula e Dino. O Papa ficou empolgado. Relembrou o quanto já admira o Lula. E, ao saber que o repertório era futebolístico, prometeu que iria tocar as músicas lá no Vaticano (num horário que não atrapalhasse as práticas religiosas, é claro). Mas com uma condição: “A dupla tem de incluir o Hino do San Lorenzo, meu time do coração lá da Argentina.”

 

O disco ia conter 12 músicas, a maioria, sambas. Incluindo o pedido do Papa, passou a ter 13. (13, por coincidência, o número de Lula.)

 

A alma brasileira não é, na verdade, nem capitalista nem comunista. A nossa essência é o futebol, o bom humor e o samba.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.

 

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O dom de prever:

Que bom, se soubéssemos tudo!

Se soubéssemos tudo, preveríamos a derrota do nosso time, uma reprovação num concurso, um acidente, a morte de um amigo, uma iminente guerra...

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

07/01/2024

 

Teríamos a informação de que, ali na esquina, estaria um perigoso valentão, com vontade de matar... Então, mudaríamos a nossa rota.

 

Que bom, se soubéssemos tudo! Poderia ser também que mau!...

 

Se soubéssemos tudo, preveríamos a derrota do nosso time, uma reprovação num concurso, um acidente, a morte de um amigo, uma iminente guerra...

 

Anteveríamos o fim de um namoro, uma nova epidemia, a perda de um emprego, uma doença, a traição de um cônjuge.

 

Mas calma! Calma!... Nada disso aconteceria. Esta é a visão dos pessimistas, dos deprimidos, dos derrotados.

 

Em verdade, se soubéssemos tudo, só existiria o BEM. É fácil entender. Se soubéssemos tudo, saberíamos, exatamente, o que comer, como comer, quanto comer, quando comer; e o que não comer. O mesmo sobre o beber. Entenderíamos, perfeitamente, o trâmite desses alimentos no nosso organismo, ele ativo, e ele passivo, sendo dissolvido pelo ácido do mago estômago, percorrendo outros espaços, refinando-se cada vez mais, alquimizando-se, transmudando-se em plasma, em oxigênio, em prana, em energia para a vida. Os médicos param... De um ponto em diante, eles nada podem explicar sobre esse mistério.

 

Teríamos a informação de que, ali na esquina, estaria um perigoso valentão, com vontade de matar... Então, mudaríamos a nossa rota.

 

Enxergaríamos, com a maior clareza, qual seria o melhor investimento, nunca perdendo dinheiro, pois.

 

Nesta esteira, estariam os melhores cursos a fazer, os empregos mais rentáveis e mais adequados à nossa vocação. Num concurso público, acertaríamos todas as questões, passando então em primeiro lugar, com honras da banca examinadora.

 

A mãe, a tia ou a avó está hoje sorumbática, sentada numa cadeira de vime, mão sustentando o queixo. Queda ali pensativa... Sem problemas! De imediato, saberíamos qual chá, na dose mais certa, fazer para ela, sobre o que com ela conversar, que conselhos dar ou, se fosse o caso, que consolo oferecer. Em muito breve, ela se recuperaria, mostrando-se disposta, confiante em si e na vida.

 

Vamos cancelar esta viagem! Estamos tendo uma nítida visão de que aquela aeronave vai hoje espedaçar-se no ar; ou, em nova ocasião, que aquele ônibus vai tombar.

 

Se soubéssemos tudo, ingeriríamos o melhor alimento; evitaríamos todos os perigos. Portanto, seríamos imortais.

 

E se a humanidade toda adquirisse um dia a onisciência? Nenhuma pessoa, pois, pereceria. Seríamos eternos. Não precisaríamos mais temer o valentão da esquina – porque este já estaria convertido no mais solidário ser; não haveria epidemias, pois todos seriam capazes de se prevenir. Seriam todos ajudando todos; seria tudo ajudando tudo.

 

No entanto, para que esse nosso argumento não seja assim tão vulnerável a refutações, imperioso se faz registrar uma condição: a pessoa, para ser eterna, deveria assenhorear-se de todo o saber... e também de usá-lo. O ser humano é frágil por natureza. Em dados momentos, ele tem plena consciência de que algo faz mal a ele ou à sociedade, porém insiste em entregar-se a isso. Um vício, por exemplo, uma mentira, um excesso, uma traição. Este é o caminho escorregadio para a cruel e inexorável ortotanásia..

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Continuando o raciocínio, uns, dotados de total conhecimento e seguros em seu uso, não morreriam pelos seus próprios atos. Entretanto, acabariam sucumbindo por atos alheios.

 

Enfim, tudo não passa de utopia. Em nenhuma época, alguém será capaz de absorver toda a sabedoria do Universo. Todavia, fica uma interessante conclusão, que nos serve de mensagem, para o indivíduo e para o mundo: o saber e sua aplicação podem afastar-nos de doenças, de desgostos e até mesmo da morte. Ninguém perde por aumentar as suas informações e o seu conhecimento.

 

Insistimos: conhecer o bem e aplicá-lo. Também espalhá-lo, o mais largo possível, para toda a Humanidade. A felicidade coletiva supera em muito a individual. Aliás, sem a felicidade coletiva, o indivíduo não pode manifestar-se plenamente feliz.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.

 

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Reflexões de fim de ano:

De amor e da arte de amar

E na visão dos filósofos, dos poetas e dos prosadores da literatura universal? O que vem a ser o amor?

  

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

30/12/2023

 

Lembro-me de que o gramático Napoleão Mendes de Almeida explicava que, na etimologia latina, o prefixo am, originário de amor e amizade, designa união.

 

FELIZ ANO NOVO! Desejo-lhe um 2024 pleno de luz, de paz, de prosperidade material e imaterial e, sobretudo, um ano cheio de amor. Mas o que vem a ser o amor?

 

Lembro-me de que o gramático Napoleão Mendes de Almeida, com quem, em época já remota, cheguei a trocar algumas correspondências, explicava que, na etimologia latina, o prefixo am, originário de amor e amizade, designa união.

 

E na visão dos filósofos, dos poetas e dos prosadores da literatura universal? O que vem a ser o amor?

 

Em sua obra O banquete, Platão expôs aquilo que seria a doutrina sobre o amor (que acabou sendo conhecida como amor platônico). A narrativa faz alusão a uma festa ocorrida na casa do poeta Agatão. Na oportunidade, ir-se-ia louvar um deus que, conforme se acreditava, não havia ainda recebido as aclamações dos seres humanos. Diferente das ceias usuais, esse era um banquete de ideias. A cada hora, chegava um convidado e se manifestava sobre o amor e outras virtudes.

 

Chegou a vez de Sócrates. Este define o amor como a busca da beleza e do bem. Para o eminente filósofo, o mais destacável é a busca. Ele entende que quem ama deseja algo que não tem; e, quando o tem, deixa de desejar. Logo, o amor é um desejo: do bom e do belo.

 

Manuel Bandeira assume uma posição bastante provocadora, ao lançar o seu poema Arte de amar (do livro Belo belo). Ele sugere que, para amar, deve-se privilegiar o corpo e não, a alma. O poema inicia-se assim: “Se queres sentir a felicidade de amar / Esquece a tua alma / A alma é que estraga o amor.” Bem, esta é uma posição puramente carnal. Não vão pensar, aqueles que não têm tanta familiaridade com o recifense Manuel Bandeira, que esse estilo prevalece em toda a sua obra. Longe disso! Bandeira tem seus momentos de libertinagem sim. Ocasionalmente, no entanto, é saudosista (Evocação do Recife), e fez versos bastante musicais, o que se pode ver em seus poemas Os sinos e Profundamente.

 

Eric Fromm, psicanalista, filósofo e sociólogo alemão, cuja obra Ter ou Ser influenciou muito os leitores em geral, escreveu também A arte de amar. Curiosa é a abordagem desse tema durante seu livro. O autor defende que amar é uma arte e, como tal, merece treinamento. Ele compara isto com o lavor de um pianista. Quando a sua bela arte é mostrada, deve-se entender que ela se precedeu de um fatigante treinamento.

 

Ainda Eric Fromm, ele defende que o ser humano precisa regular a sua saúde e existência. Como? Na relação com os outros, sendo esta atitude uma premissa para a saúde da alma. E a mais sublime realização, neste caso, é oferecida pelo amor. Ele é o único caminho, “através do qual é possível unificar-se com o mundo e, concomitantemente, adquirir um sentimento de integridade e individualidade”. O autor aborda ainda a ligação amorosa com uma divindade e com um grupo religioso.

 

A arte de Amar, de Ovídio. Públio Ovídio Naso (em latim: Publius Ovidius Naso), foi um poeta da literatura latina. Viveu entre 43 a.C. a 17 ou 18 d.C. Levava uma vida boêmia. Desta forma, não é de se estranhar que ele tenha escrito A arte de amar, um verdadeiro manual de sedução, baseado em suas próprias experiências. Ele ensina homens a conquistar mulheres. Todavia, mais tarde, ele instrui as damas a seduzirem os cavalheiros. Obra lançada em tão longínqua época, e tão atual! Posso dizer que seus conselhos servem até para a conquista de clientes, motivo pelo qual seriam bastante bem-vindos em estratégias de publicidade e marketing.

 

Caso Ovídio vivesse no Brasil, e na época atual, decerto teria problemas com os moralistas de plantão. Vejamos: ele prega que, numa conquista, deve-se insistir no assédio; que se deve prometer, ainda que não se vá cumprir a promessa (o que os políticos tanto fazem!); deve-se saber usar o silêncio na hora certa: “Muitas vezes, uma boca calada tem uma voz e palavras bem eloquentes.” E esse mestre da sedução não dispensa, quando necessário, o uso do choro. Para ele, “as lágrimas amaciam os diamantes”.

 

Finalizando, desejo a você um Ano Novo pleno de amor, conquistas e sublimes emoções. Fique com esta frase da Arte de Amar, de Ovídio, para mim, a mais bela: “Se quiseres ser amado, sê amável.”

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.

 

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Coisas da vida:

Reencontros

Uma noite, chegado a uma festinha, a primeira coisa que se vê é Lucy, agarradinha com o namorado de Amanda. Amanda simplesmente se retirou. Chorou, chorou, decepcionadíssima com ambos. E Lucy acabou se casando com aquele rapaz. Por esse ato de traição, uma passou a evitar a outra.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

22/12/2023

 

Amanda pergunta: “Posso te dar um abraço?” Lucy permite, no entanto, não muito ainda à vontade.

 

Dificilmente, encontraríamos alguém que, naquelas circunstâncias, retornasse àquela casa. Porém, Lucca retornou. Fazia quase sete anos que o pai dele o havia expulsado de lá. Quando esse filho saiu, jurou ao pai que nunca mais pisaria naquele lugar. E o pai reagiu: “Tomara que não seja só da boca pra fora! Tomara que realmente você se esqueça de mim.”

 

Contudo, naquele dia, Lucca já amanheceu inquieto. Não saía da sua cabeça aquela ordem vinda de algum lugar do Infinito, de que ele deveria voltar à casa do pai. Onze horas da noite. Lucca só pensava no velho. “E se ele me maltratar à minha chegada? Aí, vou chorar demais.” E Lucca chorou – bem mais que pudesse imaginar.

 

Foi chegando de mansinho... O ar estava ameno, o filho estava sereno. (Contou mentalmente até dez.) Bateu de leve à porta. Sua irmã mais velha foi quem atendeu. Num misto de alegria e prudência, antes de convidá-lo a entrar, preferiu chamar seu pai.

 

O velho não se conteve: desatou em prantos. Deu um abraço caloroso no filho, que também se comoveu. Puxou-o para dentro de casa. Chamou a todos da família, que gritaram festivamente. A mesa estava posta. Todos se sentaram. Comeram do pão, beberam do vinho. O pai revelou o quanto sofria com a ausência desse filho. Ajoelhou-se para lhe pedir perdão. E o filho, também se ajoelhando: “Não, pai! Eu é que deveria suplicar que me perdoasse pelos desgostos que lhe causei.” E Lucca dali não saiu mais.

 

A muitos quilômetros daquele lugar, Josias, um senhor já idoso, conseguiu localizar a casa do seu colega de infância, o Zezé. Este nunca imaginava aquela visita. Já adultos, eles se cumprimentavam pela rua, mas não paravam para conversar. No entanto, não saía da mente de Josias a pedra que ele atirara no rosto do Zezé, quando, ainda meninos, por uma simples discussão. Ficou emocionado, quando Zezé lhe abriu a porta. Josias foi direto ao assunto: “Zezé, um dia eu te feri. Você não merecia o que eu lhe fiz. Hoje, vim trazer-lhe um presente e rogar o seu perdão.” Entregou-lhe um raro vinil, do cantor predileto do Zezé. Este não se conteve! Foi logo colocando aquele disco numa antiga radiola, que ele ainda tinha, chamando a turma para escutar. Todos bateram palmas, cantando as músicas que conheciam.

 

Zezé insistia que não se lembrava daquela dita agressão. O mesmo que dizer que perdoou. Depois foram para o quintal. Os dois contaram piadas, relembraram as boas passagens da infância. Na hora da despedida, Zezé foi ao quarto, trouxe de lá uma surpresa: o troféu que ganharam, quando o time deles se sagrou campeão. O troféu havia sido entregue ao Zezé, por ser ele o capitão. (Josias, emocionadíssimo) “Oh! Aquele foi o dia mais feliz da minha vida! Pensei que você nem tinha isso mais. Eu marquei o gol da nossa vitória, você lembra?” “Lembro sim, é claro.” “Que glória foi para nós, hein!? Guarde-o com carinho! Isto é uma relíquia!” Zezé surpreende: “É seu.” “Não! Eu não mereço!” “Merece sim. Pelo seu gol e por nossa eterna amizade.” Josias não cabia em si, tamanha aquela dádiva.

 

Agora, vamos ver o caso de Amanda. Era uma moça bonita. Amicíssima de Lucy. Quando se encontravam, iam trocar ideias sobre os seus namoros. Uma era a confidente da outra. (Amanda contava mais segredos seus que Lucy a ela.) Frequentemente, uma fazia algum favor para a outra. Até que um dia elas se abraçam e, solenemente, juram eterna amizade.

 

Uma noite, chegado a uma festinha, a primeira coisa que se vê é Lucy, agarradinha com o namorado de Amanda. Amanda simplesmente se retirou. Chorou, chorou, decepcionadíssima com ambos. E Lucy acabou se casando com aquele rapaz. Por esse ato de traição, uma passou a evitar a outra.

 

Inesperadamente, numa noite, Amanda bate à casa de Lucy. Lucy abre a porta e se surpreende! “É você!?...” Lucy estava sozinha e com um semblante cansado, até mesmo infeliz. Amanda pergunta: “Posso te dar um abraço?” Lucy permite, no entanto, não muito ainda à vontade. Depois...

 

- Vem aqui pra copa, Amanda. Já ia rezar um pai-nosso, para depois comer um pouquinho e dormir. Amanda abre a bolsa e retira um lindo presente para ela. A feição de Lucy muda toda. Em um segundo, aquele semblante cansado dava lugar a um rosto róseo, viçoso e brilhante. Num bonito cartão, uma mensagem: “Amiga Lucy, jamais me esqueci de que um dia, juramos eterna amizade.” Agora, elas se abraçam, em verdadeira e mútua confiança.

 

Era Natal.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.

 

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Roda da vida:

Destinos diferentes

Temos quatro casos, em que os personagens conservam analogias em suas procedências. Todos eles eram filhos de pais alcoólatras. E todos estes, separados das esposas. Todas estas famílias habitavam as favelas.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

16/12/2023

 

Urge sermos dinâmicos, combativos, corajosos. Aqui e alhures, há um monte de coisas para fazer.

 

João nasceu numa favela. Em contato com ladrões, bêbados, traficantes, desde menino, principiou a beber, a fumar, a drogar-se, a roubar. Pai alcoólatra, separado da mãe. Na escola, era um problema! O tempo foi passando, João atingiu os dezoito anos, sem ter, ao menos, concluído a sexta série.  Engravidou uma adolescente, a qual, com ele, amasiou. Chegava em casa, lá pelas três da madrugada, quizilento. Batia na mulher, vomitada na cama. João morreu, deixando órfã uma menina de um ano.

 

José, melhor aluno da escola. Nasceu na mesma favela que João, também filho de um alcoólatra, separado da mãe. Hoje, advogado, casado. É bastante respeitado na família, na sociedade e no meio jurídico.

 

Maria era o símbolo da obediência! Jamais contestava sua mãe (a qual era separada do marido alcoólatra), mesmo quando achasse que esta vacilasse em alguma atitude. Maria da Favela, como ficou conhecida na escola, devido à sua procedência, obedecia a todas as diretrizes, em hipótese alguma questionando. Maria tinha um sonho: ser bailarina. (E como tinha talento!) A mãe disse não! Sem discutir, Maria abandonou logo a ideia. E ainda para satisfazer à mãe, parou de estudar na sexta série. Foi ser operária em uma fábrica de tecidos. Ali permaneceu, até aposentar-se, com o salário mínimo que sempre ganhou.

 

Clara era rebelde! Não poupava críticas à própria mãe (e até ao pai, o qual era alcoólatra e não morava com eles ali na favela). Por isto, apanhava. Infringia diversas regras sociais, questionava. Assim era na escola. Tornou-se mãe, sendo solteira. Lia tudo o que via pela frente, procurava informar-se de todos os assuntos. Isto a levou a ter uma inigualável visão de mundo. Não pensava só nos problemas de casa, sim, da comunidade, do País, do Planeta. Foi assim que ela realizou um trabalho social na favela em que morava, lutando pelos direitos humanos, despertando aquele povo do letargo. Dá palestras, até mesmo no exterior.

 

Quando questionada sobre sua escolaridade, ela brinca, dizendo que é formada na “Faculdade das Dificuldades da Vida”. Quando lhe pedimos uma mensagem, a que ela mais gosta de nos passar é esta:

 

“Primeiro, devemos amar a nós mesmos, aceitando-nos do jeito como somos, perdoando-nos e aos outros, libertando-nos de qualquer culpa. Ninguém precisa mendigar. Existem infinitas riquezas dentro de cada um de nós. Eis a chave para a saúde, o sucesso e a felicidade no amor.”

 

Meus Amigos, minhas Amigas, temos quatro casos, em que os personagens conservam analogias em suas procedências. Todos eles eram filhos de pais alcoólatras. E todos estes, separados das esposas. Todas estas famílias habitavam as favelas.

 

Este fato me faz lembrar uma corrida olímpica. Todos saem de um mesmo ponto. Uns nada correm; outros aceleram suas vidas, alcançando resultados extraordinários.

 

Na nossa existência, estamos colocados nesta pista olímpica. Dia corremos mais, dia corremos menos. Ora estamos animados, ora o desalento vem. A ordem é não parar. Quem para fica para trás.

 

Um esclarecimento: estacionar sim, em algum ponto, para abastecer ou renovar as energias. Depois seguir, porque tem muita gente precisando de nós. Também nós precisamos de nós.

 

E jamais desistir desta corrida, sob o pretexto de que tivemos uma infância pobre, um meio desfavorável, um pai alcoólatra ou uma negligente mãe.

 

Passemos a nossa vida a limpo! Se algo inapropriado ocorreu na nossa origem, usemo-lo como preciosa experiência, a fim de não incidirmos mais nos mesmos desregramentos. Uma coisa é certa: ninguém ganha nada com ficar o tempo todo só se lamentando. Aliás, só perde. Não precisamos ser a Maria desta história, a qual prestava uma obediência cega a tudo – e não realizou seus sonhos. Nem devemos desobedecer a tudo, descumprir todas as leis, as regras.

 

Contudo, o mundo precisa de mais Claras. Urge sermos dinâmicos, combativos, corajosos. Aqui e alhures, há um monte de coisas para fazer.

 

E certas atitudes aborrecedoras, vindas dos nossos pais, devem ser compreendidas e perdoadas, porque eles também tiveram, com seus ancestrais, os seus percalços. Somos vítimas de vítimas.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.

 

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Dores:

A Festa do Divino

 Rodamos uma boa quilometragem, quando o motorista foi parando devagarinho, apontou para uma estrada e informou: “É ali.” Escuridão total. Perguntei-lhe: quantos quilômetros eu devo ter de caminhar até chegar a Pedra do Indaiá? Ele respondeu: “Sete.”

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

09/12/2023

 

O fogo não podia se apagar. Esgotados os gravetos, os papelões, um colega, sutilmente, resolveu arrancar um bambu da cerca do vizinho de frente. Depois outro... E outro... E mais piada. Ao raiar do dia, não havia mais nenhum bambu naquele cercado.

 

Lembra do Divino? Aquele, de uma outra nossa crônica [N.E.: "Vamos fazer um programa no mato?", abaixo]; Aquele que ia com a namorada fazer programas no mato. Os leitores gostaram da história e pediram que eu contasse alguma outra desse excêntrico ser.

 

Pois bem. A mim, o Divino também falou um dia que queria me fazer um convite. Fiquei desconcertado! Que será que esse cara vai querer? Felizmente, não era para ir pro mato com ele não. Algo bem diferente!

 

Era um convite para uma festa na terra dele, Pedra do Indaiá. Esta pequenina cidade mineira fica perto de Itapecerica, Santo Antônio do Monte, e a 173 km de Belo Horizonte.

 

- E quando será a festa, Divino?

 

- Vai sê sábado. Cê vai gostá. Festa lá é muito bão, muito animado.

 

- E lá tem hotel ou pensão, pra gente se hospedar?

 

- Tê tem, mas cê vai druimi é lá em casa, na casa da minha famia.

 

Ele me informou que ônibus tomar, onde descer.

 

Curioso é que eu morava em Divinópolis, que, por sinal, já significa cidade do Divino. Tudo parecia divinal. Tomei o ônibus. Solicitei ao motorista que parasse para mim no local que desse acesso a Pedra do Indaiá.

 

Rodamos uma boa quilometragem, quando o motorista foi parando devagarinho, apontou para uma estrada e informou: “É ali.” Escuridão total. Perguntei-lhe: quantos quilômetros eu devo ter de caminhar até chegar a Pedra do Indaiá? Ele respondeu: “Sete.”

 

Hesitei... Não sabia se seguia viagem ou se enfrentava o desafio. Coragem! Desci do ônibus, mergulhei-me em trevas. Contudo, a jornada estava agradável. Estrada bastante silenciosa. Lua tímida no céu e uma meia dúzia de estrelas.

 

Susto!!! De repente algo sai de uma moita! Onça? Assaltante? Que será? Oh!... Nem uma coisa nem outra. Era um pássaro branco, enorme. Acho que ele se assustou mais comigo do que eu com ele.

 

Cheguei a Pedra do Indaiá! A festa já estava acontecendo. Festa!? O que eu via era apenas uma procissão. E lá estava o Divino... todo benevolente.

 

Dez horas da noite. Segui meu amigo, a fim de descobrir onde era a casa dele. Cumprimentei-o. Ele já foi falando direto comigo: “Pois é. Eu falei que ocê pudia druimi aqui, mais num vai dá não. Veio umas prima minha pra cá, e elas é que vai druimi aqui.” Demorô! O Divino tinha mesmo que aprontar uma comigo.

 

Saí. Avistei uma pensão. Bati lá. Não tinha vaga. Descobri outra. Chamei, chamei, ninguém atendeu.

 

Ah, mas agora é que vai começar a verdadeira festa. Um dos melhores dias da minha vida. Fui fazendo amizade com uns quinze rapazes, que se encontravam em análoga situação. Era julho. Um frio lascado! Fizemos uma fogueirinha e formamos uma roda em volta dela. E fomos contando piadas, cada qual mais divertida. Às vezes, chorávamos de tanto rir...

 

O fogo não podia se apagar. Esgotados os gravetos, os papelões, um colega, sutilmente, resolveu arrancar um bambu da cerca do vizinho de frente. Depois outro... E outro... E mais piada. Ao raiar do dia, não havia mais nenhum bambu naquele cercado.

 

Foram chegando os ônibus. Cada um seguiu o seu destino. E essa Grande Amizade durou apenas enquanto durou aquele fogo.

 

Logo que cheguei em casa, ouvi no rádio um português falando todo bravo. Na entrevista, ele dizia que estava doido para encontrar o ladrão que havia roubado a cerca dele.

 

O entrevistador lhe pergunta: “O que o senhor pretende fazer com ele? Dar nele uma boa surra?” E o gajo: “Ora pois, eu quero é perguntar pra ele por que ele vai a uma casa, onde tem tantas joias de valor da minha esposa e, em vez de roubá-las, ele se interessa simplesmente por uma cerca.”

 

Ah, quer encontrar o ladrão? Só daqui a um ano, quando houver outra festa do Divino. Talvez ele queira aproveitar e dar uma olhadinha nessas joias.  

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.

 

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Ouve-se:

A voz oculta do silêncio

E a voz do silêncio é de tal modo poderosa, que até alguém, desprovido de audição, pode ouvi-la. Sim, utilizando-se da visão. Observando uma pessoa silente, podemos até mesmo ler seus pensamentos, valendo-nos da sua linguagem corporal, mais especificamente, da facial.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

04/12/2023

 

“Noturno do Morro do Encanto. [...] Aqui é o silêncio que tem voz.”

(Manuel Bandeira.)   

 

E a voz do silêncio é de tal modo poderosa, que até alguém, desprovido de audição, pode ouvi-la. Sim, utilizando-se da visão. Observando uma pessoa silente, podemos até mesmo ler seus pensamentos, valendo-nos da sua linguagem corporal, mais especificamente, da facial.

 

Contudo..., como as pessoas se disfarçam! Há gente dissimulada! Veem-se atores no palco e na vida real. Existe o silêncio que ri, que chora, que pede, que implora... Existe o silêncio atendido e o silêncio desprezado. Eis alguns destes: o silêncio dos oprimidos, abafados por alguém mais forte; o dos moradores de rua; o dos miseráveis, enfim. Existe ainda o silêncio daqueles que perderam a graça de viver, já não têm mais vontade de falar. Existe o silêncio do tímido, daquele que se julga inferior – mesmo não sendo.

 

Existe o silêncio do culpado que, à frente de um juiz, declara apenas isto: “Vou me valer do direito de ficar calado.” (Só que, não tendo argumentos para se defender, acaba confirmando as acusações. “Quem cala consente.”)

 

O marido, nos últimos dias, chega em casa, não quer mais conversar com ninguém. A esposa, os filhos imaginam uma porção de coisas, tentam puxar conversa, porém ele se mantém taciturno. Um silêncio envolto em mistério. Isso causa uma série de reflexões por parte da família (“Em que erramos?” “Em que fomos insuficientes?”) Esse mutismo é como uma nuvem plúmbea. Só mesmo um radiante sol para evanescê-la, trazendo de volta a bonança.

 

Momentos de introspecção fazem-se necessários, a fim de que nos encontremos com nós mesmos. A cidade é barulhenta. Carros; motos; buzinas; gritos; apitos; altissonantes propagandas... Todos, numa fúria danada, atrás do dinheiro, em busca da sobrevivência de mais um dia.

 

No entanto, o ouvido dá sinal. Ele se cansa. E a cabeça fica pesada. O corpo, até mesmo o espírito se mostram fatigados. O rosto amarelo. As rugas. As doenças. O médico. O psicólogo. O sedativo. A sonoterapia... Dez anos se passam, como se fossem um.  

 

Precisamos nos comunicar, saber falar em público, ampliar vocabulário, aprender novos idiomas. Entretanto, cabe ao bom comunicador identificar exatamente a hora de calar-se. Nesse momento, se ele fala, está falando demais. E quanto mais age assim, mais se mostra vulnerável, enfadonho, às vezes até insuportável.

 

Uma pessoa, necessitando desabafar, tirar aquele peso de seu peito, encontra alguém que sabe ouvir. Aquela carente fala quase o tempo todo; e o seu interlocutor quase só ouve. Findo esse encontro, quem emitiu milhares de palavras vai dizer para todo mundo que nunca encontrou alguém melhor de papo que aquele cavalheiro com quem dialogou.

 

Não resta dúvida: calar-se é importante. Entretanto, essa atitude não pode tornar-se automática, como se fôssemos máquinas programadas para assim funcionar. Frequentemente, a vida nos coloca diante de cenários que exigem reações mais firmes e assertivas. Eis as horas de argumentar, discordar, repudiar, esbravejar, denunciar, lutar contra injustiças e por um mundo melhor. Um silêncio pode até ser criminoso! A legislação brasileira menciona o crime por ação e o crime por omissão.

 

Minhas Amigas, meus Amigos, a convivência humana é uma Arte, uma difícil, porém prazenteira Arte. É na interação – acertando, errando – que vamos nos exercitando nessa sublime habilidade. Valendo-se do som ou do silêncio, sejamos ativos, atuantes! Sejamos receptivos! Sejamos solidários! Sejamos leves!... Os pássaros são leves, por isso é que eles podem voar tão alto.

 

- Quero cumprimentar o canal Q Intelecto, que nos brindou com um bonito e inspirador vídeo sobre este tema, que pode ser assistido clicando aqui.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.

 

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Divinal:

Vamos fazer um programa no mato?

Tomava-se cerveja, e eu preferia o meu suco; comíamos alguma coisa e tagarelávamos. E o Divino era a principal atração. Ele tinha um linguajar todo próprio, trazido do meio rural, onde viveu grande parte de sua vida.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

27/11/2023

 

 

Pegou uma casca de ovo. Nela, ele botou água, um pouquinho de pó e açúcar. Deitou essa casca sobre o borralho. Num minuto, estava pronto o café!

 

O Divino era superdivertido. Às vezes, ele até que sabia disso, porém, na maioria das ocasiões, ele era engraçado sem saber. Era um sujeito espontâneo.

 

E como o conheci? Fui morar num edifício. E o Divino era o zelador. No térreo, havia uma lanchonete. À noite, a turma do prédio se reunia ali. Tomava-se cerveja, e eu preferia o meu suco; comíamos alguma coisa e tagarelávamos. E o Divino era a principal atração. Ele tinha um linguajar todo próprio, trazido do meio rural, onde viveu grande parte de sua vida.

 

Bem, e esse nosso herói costumava começar muitas frases com o “Sipunhamo”, exemplo: “Sipunhamo que eu quisesse te pidi um favor, ocê faria pra mim?”

 

Do outro lado da rua, havia um ponto de ônibus. O Divino dava dicas sobre toda moça que lá chegava. Vejamos: “Sipunhamo que ocêis qué trusá com aquela de vistido vermeio, pode. Ela é gaia.” (Trusá, transar; gaia, garota de programa.)

 

Já na próxima noite, ele advertia: “Com aquela lá, sipunhamo que ocêis qué tentá, cêis vai é caí do cavalo. Ela gosta é de muié. Ela é viada.”

 

Um dia, eu estava chegando de São Paulo, quando o Divino noticiou:

 

- Teve um moço quereno falá cum ucê.

 

- Quem é?

 

- Ah, eu num sei o nome dele não.

 

- Como ele é?

 

- Ah, ele é um sujiitim meio ispaneco.

 

(Deu na mesma. Continuei sem saber quem era o rapaz.)

 

E como o Divino punha animal nas suas conversas! Exemplos: “O ladrão robô um besta dum relógio da vizinha.” “Eu durmo aqui de noite, mais meu sono é sono de cueio.” (Dizem que coelho dorme com os olhos abertos, né?) “Aquele moço dá diarreia em cabrito.” (Ou seja, ele chato demais.) “Meu chefe chegô onte iguar um catitu.” (Traduzindo: o chefe chegou muito irritado. Caititu é porco-do-mato, o qual eriça o pelo, quando enraivecido.)

 

Outras palavras e expressões do Divino: arriá, vestir-se; disarriá, despir-se. Vejamos, ele falando de uma aventura sua com uma mulher – quando era mais novo, é claro: “... Aí, conde nóis já tinha disarriado, o pai dela chegô.” (Conde = Quando.) “Meis passado, nóis foi na Aparicida do Norte. Nóis foi de onde.” (Onde = ônibus.) Esta, ele falava muito também: “Dexei de sê branco pra sê franco.” (Quando ele queria expressar que falou com toda a franqueza.)

 

Mas bacanas mesmo eram os namoros do Divino. Um dia, ele arranjou uma tal de Margarida. E ele se gabava: “Ela é dezesseis anos mais moça do que eu.” Contava que a conheceu, ele “trabaiano lá na roça, co’a vara de tocá gado na cacunda”. Começou muito romântico, né? Mas o melhor estava por vir: os programas no mato, que eles costumavam fazer.

 

No primeiro programa, eles foram para um matagal, por onde passava um riacho. Fizeram um guisadinho, comeram. Vocês nem queiram imaginar a alegria da Margarida. Ao regressar, ela contou entusiasmada para as amigas sobre o melhor que havia acontecido nesse passeio: “O Divino me ensinô a bebê água na foia de taioba, gente!”

 

No próximo domingo, escolheram um mato diferente. Logo que lá chegaram, a donzela foi arrebatada por um desejo ardente: de tomar um cafezinho. Para o Divino, nada era problema. E ele estava sobremodo empenhado em agradar à sua flor (a Margarida). Ele juntou uns gravetinhos, fez um foguinho, deixou apagar. Em seguida, pegou uma casca de ovo. Nela, ele botou água, um pouquinho de pó e açúcar. Deitou essa casca sobre o borralho. Num minuto, estava pronto o café!

 

A Margarida não conseguiu se conter, tamanho o entusiasmo. Pegou depressa essa casca, colocou-a logo na boca, e o que aconteceu? O Divino é quem conta: “Ela quemô o beiço todo. Ficô com o beiço todo istragado.”

 

Foi assim que terminou esse namoro e também a nossa história.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.

 

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Arte sacra:

Por que não pintar um anjo negro? 

Desconheço letra mais provocadora que esta, quando o assunto é a Consciência Negra. Vamos ver?

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

22/11/2023

 

 

ANGELITOS NEGROS (Anjinhos Negros)

 

LETRA ORIGINAL

 

Pintor nacido en mi tierra
Con el pincel extranjero
Pintor que sigues el rumbo
De tantos pintores viejos

Aunque la virgen sea blanca
Píntame angelitos negros
Que también se van al cielo
Todos los negritos buenos

Pintor si pintas con amor
Por qué desprecias su color
Si sabes que en el cielo
También los quiere Dios

Pintor de santos de alcoba
Si tienes alma en el cuerpo
Por qué al pintar en tus cuadros
Te olvidaste de los negros

Siempre que pintas iglesias
Pintas angelitos bellos
Pero nunca te acordaste
De pintar un ángel negro

 

TRADUÇÃO (de Sérgio Souza)

 

Pintor nascido em minha terra

Com o pincel estrangeiro

Pintor que segues o rumo

De tantos pintores velhos

 

Ainda que a Virgem seja branca,

Pinta-me anjinhos negros

Porque também vão ao Céu

Todos os negrinhos bons

 

Pintor, se pintas com amor

Por que desprezas sua cor

Se sabes que no Céu

Também os quer Deus

 

Pintor de santos, de alcovas

Se tu tens alma no corpo

Por que ao pintar os teus quadros

Tu te esqueceste dos negros

 

Sempre que pintas igrejas

Pintas, sim, anjinhos belos

Porém nunca te lembraste

De pintar um anjo negro.

 

BREVE INTERPRETAÇÃO

 

O autor questiona o pintor, valendo para os pintores em geral: por que vocês, que sabem pintar anjos belos, não se lembram de pintar um anjo negro? “Pintor que segues o rumo/De tantos pintores velhos”. Significa que os pintores em geral vão seguindo os pintores antigos, sem questionar, sem mudar nada.

 

“Porque também vão ao Céu/Todos os negrinhos bons.” O que importa para Deus não é a cor da pele, sim, a bondade. E esta pode ocorrer, independente da cor ou da raça.

 

E na última estrofe, o autor salienta que, quando pintores pintam igrejas, pintam anjinhos belos (porém dentro daquele padrão: clarinhos, de cabelinhos anelados, olhinhos azuis – diria eu). Eles nunca se lembram de pintar um anjo negro. Ou seja: esta atitude corriqueira e aparentemente bela, pode estar escondendo um racismo, nada belo perante Deus.

 

OS AUTORES

 

Manuel Alvarez Rentería, apelidado Maciste (autor da música)

 

Foi um extraordinário violonista e cantor, principalmente de tangos. Participou de vários filmes de Hollywood. Voltando ao México, integrou-se ao cinema mexicano. Teve participação ainda no rádio. Deixou célebres composições, dentre elas, Manos Blancas (Mãos Brancas) e Me sobra corazón (Sobra-me coração). Todavia, nenhuma alcançou mais sucesso que Angelitos Negros.

 

Andrés Eloy Blanco (autor da letra)

 

Poeta, escritor, advogado e dramaturgo venezuelano. Viajou por diversos países. Um de seus livros se chama justamente Pintame Angelitos Negros, que originou este bolero.

 

Como surgiu esta música?

 

Não foi de uma hora para outra que Eloy Blanco teve um estro poético, dando na ideia de escrever a letra de Angelitos Negros, que veio a ser considerada um hino contra a discriminação racial. Eloy Blanco já surgia como um revolucionário na Venezuela, tendo sido até preso por bater contra o regime daquela época. Foi deputado, depois, ministro das Relações Exteriores de seu país, mas aí houve um golpe e o presidente que o havia indicado caiu. Em decorrência disto, o poeta se exilou no México. Foi aí que conheceu Manuel Alvarez Rentería, que colocou música em seu poema, rendendo-lhes um sucesso mundial.

 

Foram muitas as gravações mundo afora. Escolhemos a de Javier Solis, clique aqui para ouvir.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.

 

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Amor atrás das grades:

Os casamentos na delegacia

Houve caso de um moço que deflorou uma donzela de dezoito anos. Não quis casar. Ao sair da delegacia, o pai notou que, por um arranjo ali - que ele jamais entendeu -, o “disinquietadô de famia” não ia ser preso. Ali mesmo, o pai, pondo a mão num trinta e oito, que ele havia levado, avisou ao delegado: “Pode dexá intão, que eu memo arresorvo isso.”

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

13/11/2023

 

Enfim, esta é a sociedade machista, paternalista, a qual existiu no Brasil e, mesmo com o avanço de algumas leis, diminuiu, mas ainda existe; e que persiste em muitos lugares no mundo.

 

Era tão bonito!... Chegam os noivos, Haroldo e Angélica. Ele, com um terno azul, que seu tio lhe trouxe da Itália como presente de casamento. E Angélica, a garota alva, rosada, delicada, sempre lindíssima, hoje, mais ainda. Testemunhas ali presentes. E eis que uma voz grave, possante, porém eufônica e expressiva, faz a tão sonhada pergunta:

 

- Haroldo, é de gosto receber a Angélica como sua legítima esposa?

 

O Haroldo engrossa o tom e responde:

 

- É sim, Sô Delegado!

 

- Eu vos declaro então marido e mulher.

 

Casados, e o Haroldo livre da cadeia. Explicando: numa época (aqui mesmo no Brasil), caso o namorado tirasse a virgindade da namorada, ele tinha duas opções: ou casava ou ia preso. Tudo isso mexia com ambas as famílias. O pai da moça então, ficava furioso.

 

Houve caso de um moço que deflorou uma donzela de dezoito anos. Não quis casar. Ao sair da delegacia, o pai notou que, por um arranjo ali - que ele jamais entendeu -, o “disinquietadô de famia” não ia ser preso. Ali mesmo, o pai, pondo a mão num trinta e oito, que ele havia levado, avisou ao delegado: “Pode dexá intão, que eu memo arresorvo isso.” (Mas parece que ficou só em conversa. Nem o delegado acreditou.)

 

Hoje, soa até difícil compreender. É que, há algumas décadas, a moça, para casar, tinha de ser virgem. O homem, ao contrário, deveria levar consigo alguma experiência. Com isso, mesmo aqueles rapazes mais tímidos eram encorajados a dar uma pulada lá na Zona, a fim de ir aprendendo as coisas da vida e não passar vergonha no primeiro dia com a nubente.

 

Outra hipótese: imagine um namoro, obedecendo aos cânones cristãos, em que o namorado e a namorada não pudessem ter relações sexuais antes do casamento. (Isso, aliás, era a regra.) Um dia, eles se casam - na igreja e no civil, direitinho. Todavia, já na tão esperada lua de mel, o esposo descobre que aquela insinuante garotinha não era virgem. Teria ocorrido o chamado “defloramento de mulher, ignorado pelo marido”. Nesse caso, ele dispunha de dez dias para devolver essa mulher a seus pais. E quanto essa renegada sofria! A cidade ficava sabendo... A coitada tornava-se desmoralizada; dificilmente arranjava outro casamento.

 

O negócio era mal-arranjado demais. Quer dizer que, durante dez dias, o esposo poderia aproveitar a boneca, quantas vezes quisesse. Depois, “Ah, vou devolver; ela não era virgem.” E partia pra outra – talvez usando a mesma tática.

 

Fato é que, na maioria das vezes, o cônjuge, logo que notava aquele logro, já cuidava de devolvê-la. Bem, e havia marido que descobria, ficava caladinho, permanecia casado, temendo que a sua amada caísse na rua da amargura, sendo quase que apedrejada pela cidade.

 

Em outros países, o rigor pode ser ainda maior. Vejamos o caso do Azerbaijão, um país com um pouco mais de dez milhões de habitantes, cuja capital é Baku, tendo como vizinhos a Rússia, a Geórgia, a Armênia, o Irã. Segundo notícia que li, nesse país, na noite de núpcias, uma mulher mais experiente permanece do lado de fora da porta do quarto do casal, com o fim de dar alguma orientação à recém-casada, caso necessário. E se escuta algum gemido ou algum som suspeito, bate forte na porta e interfere mesmo.

 

Ainda nessa nação, a mulher deve exibir, no dia seguinte, o lençol com sangue (o que eles chamam de “maçã vermelha”), para provar que antes era virgem e ali perdeu a virgindade. E se a garota não passa no "teste da maçã", seus pais podem deserdá-la.

 

Enfim, esta é a sociedade machista, paternalista, a qual existiu no Brasil e, mesmo com o avanço de algumas leis, diminuiu, mas ainda existe; e que persiste em muitos lugares no mundo.

 

De tempos em tempos, as leis têm de mudar, para acompanhar as mudanças sociais. Em 2023, o Congresso rediscute as relações homoafetivas. Isso, a pedido de parlamentares, falsos moralistas, que apresentam, na maior parte das vezes, condutas nada exemplares.

 

Bem, eu sei é que, daqui pra frente, queiram os conservadores ou não, a coisa será mais ou menos assim:

 

- Haroldo, é de gosto receber o Pit Bull como seu legítimo esposo?

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.

 

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Na estação das flores:

É primavera, e eu não a vejo

Os desejos falam mais alto que as necessidades. Pensem comigo: por que cobiçar um relógio todo adornado de diamantes? A função deste dispositivo não é informar as horas? Sendo assim, um relógio bem simples não serviria igualmente?

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

06/11/2023

 

O aumento da arrecadação não seria capaz de fazer aquele humilde ceguinho enxergar. Entretanto, poderia dar-lhe um melhor conforto.

 

Numa rua de uma capital, ficava um senhor sentado no chão, encostado num muro. Ele segurava a haste de um cartaz, onde se lia: “CEGO”. Ao seu lado, um chapéu, em que as pessoas caridosas pudessem depositar alguns trocados para ele.

 

Por ali, passou uma tarde um cavalheiro. Este cumprimentou aquele bom velhinho, também colocando naquele chapéu seu donativo. Em seguida, perguntou:

 

- Em média, quando o senhor fatura aqui por mês?

 

- Em torno de um salário mínimo – respondeu aquele pobrezinho.

 

- Quer ganhar mais?

 

(Rindo) – Quem não quer? Mas como? Eu aqui, sem poder fazer nada.

 

- Permita-me que eu escreva uma frase em seu cartaz?

 

- Eu não sei o que é não, mas pode escrever sim.

 

Um mês depois, volta ali aquele cavalheiro.

 

- Olá, meu Amigo! Lembra de mim?

 

- Ah, lembro sim. Pela voz, eu tô te reconhecendo.

 

- E aí? Já melhorou pro senhor? Quanto recebeu neste mês?

 

- Sim! Melhorou demais! Tô satisfeitíssimo! Ganhei umas dez vezes o que eu ganhava. Qual foi a grandiosa mágica que o senhor fez?

 

- Eu escrevi no seu cartaz: “É primavera, e eu não a vejo. CEGO.”

 

Na verdade, aquele homem que passava era um experiente publicitário. Em que constava a mágica que usou? Ele apelou ao sentimento, às emoções. De regra, os consumidores compram por impulso, movidos pela emoção. Os desejos falam mais alto que as necessidades. Pensem comigo: por que cobiçar um relógio todo adornado de diamantes? A função deste dispositivo não é informar as horas? Sendo assim, um relógio bem simples não serviria igualmente?

 

A diferença está no prestígio, no status, no poder, na distinção, na supremacia que esse maquinismo - transmudado em joia, depois, em cobiça - confere ao usuário. Ou seja, grande parte dos produtos são adquiridos, não pelo seu valor de uso, mas pelo status sociopsicológico que tal aquisição é capaz de oferecer. E o que demonstra esse comportamento? Demonstra que esse consumidor tem dentro de si um vazio, o qual ele tenta preencher com esses artifícios exteriores e tão caros!

 

O apelativo “É primavera, e eu não a vejo” conseguiu atrair a empatia dos transeuntes – o que, antes, pouco existia. Aqueles que passavam, absortos em seus compromissos, foram lembrados de que era primavera; que a estação traz flores, belezas, alegrias. A distância criada pelo publicitário - entre aquele que vê - portanto, pode desfrutar de tudo isso - e aquele que se priva de todas essas maravilhas ficou mais evidente. Isso conscientiza as pessoas e cobra mais responsabilidade.

 

O aumento da arrecadação não seria capaz de fazer aquele humilde ceguinho enxergar. Entretanto, poderia dar-lhe um melhor conforto. Por um momento, as pessoas punham-se no lugar daquele ser destituído da visão. E existe, num panorama mais amplo, o instinto de luta pela preservação da espécie. Está no inconsciente coletivo – e isso se vê até no Reino Animal.

 

Fato é que a publicidade tem o condão de mudar hábitos, gostos e a maneira de cada um ver o mundo. Também tende a padronizar – é certo.

 

Um consumidor compra então uma mercadoria, mais por seus valores extrínsecos que intrínsecos. Em outros termos, o comprador atenta-se menos ao valor de uso que aos atributos, meramente, criados pelos publicitários. Ou ainda: o consumidor elege uma marca, fideliza-se, e até a defende, porque as crenças e os valores vinculados a ela coincidem com aquilo que lhe é precioso. Celebra-se a sua identificação com produto.

 

Neste aspecto, seria plausível afirmar que, ao comprar uma mercadoria, estaria o consumidor comprando a si mesmo?

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.

 

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Tempos atuais:

Sinais do fim do mundo

Segundo relatório da ONU, de 2021, 260 milhões de pessoas aqui na Terra passam fome. É um número alarmante! Motivo para pensar em fim do mundo?

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

31/10/2023

 

De vez em quando, corre algum boato de que o mundo vai acabar em tal data. Aí, uns correm para as igrejas, outros danam a comprar e fazer dívidas. Chega a ser divertido.

 

Peste, fome, guerra; anticristos; terremotos; mares engolindo praias; montes de gelo se dissolvendo... Segundo alguns místicos e intérpretes das Escrituras, tudo isso já está previsto em Apocalipse.

 

Falsos profetas. Durante estas últimas campanhas políticas no Brasil, ficamos fartos de ver candidatos frequentando igrejas, coisa que antes eles não costumavam fazer. Em seus discursos inflamados, não poupavam referências a Deus e à bíblia. Na verdade, estava havendo muita parceria entre políticos e pastores. Muito desvio de dinheiro público para a compra de votos. Seriam eles os falsos profetas, prenunciando o fim dos tempos?

 

Segundo relatório da ONU, de 2021, 260 milhões de pessoas aqui na Terra passam fome. É um número alarmante! Motivo para pensar em fim do mundo?

 

No tocante à peste, esta poderia ser interpretada como as atuais doenças pandêmicas. A Covid-19, por exemplo, foi bastante relacionada a essa peste predita na bíblia, prenunciando, então, o fim dos tempos.

 

E as guerras? Eis aí o conflito entre Rússia e Ucrânia. Muitos previam que seria uma rápida conflagração - a Rússia dominando a Ucrânia, e quem sabe, até anexando-a ao seu território. O caso é que, hoje, até uma guerra já está globalizada. Isso, somado à volúpia de indústrias por vender armas, é que vai prolongando o enfrentamento. É o fim?

 

Israel. Por que grande parte dos evangélicos tanto se identifica com essa terra? É que eles estão bastante voltados ao Antigo Testamento, que trata, basicamente, da história sagrada do povo israelita. Apenas se deve deixar bem claro que, em nosso tempo, a questão israelita está bem mais ligada à política - incluindo a aliança com os Estados Unidos - que à religião.

 

Israel em guerra. Essas implicações políticas, revestidas de religião, via de regra, não são explicitadas aos fiéis ou peregrinos da Terra Santa. Tudo porque - sem que saibam - eles estão ajudando a movimentar um Plano de Poder, de gente que, não podendo dominar todo o Planeta, anseia por dominar boa parte dele. Há quem afirme que este é mais um forte sinal de que a vida na Terra está prestes a se extinguir.

 

Memória. Existia um comercial de rádio, iniciando-se com um efeito sonoro (simulando um disco voador). Vinha a locução: “Alguém no espaço quer falar com a Terra.” Eu caía em pânico. Corria para a minha cama, fechava os olhos e tapava os ouvidos, esperando tudo se explodir. Na época, só se falava em fim do mundo. Minha irmã custou me convencer de que era uma publicidade. De fato, vinha a canção logo em seguida: “Água quente a toda hora, água quente sem demora, aquecedor JMS...” Muito bem feita então!

 

De vez em quando, corre algum boato de que o mundo vai acabar em tal data. Aí, uns correm para as igrejas, outros danam a comprar e fazer dívidas. Chega a ser divertido.

 

Outros pontos de vista. Há quem entenda que esse pretexto, de fim do mundo, é bastante útil a avarentos pastores, para atrair novos contribuintes. O apelativo seria mais ou menos este: “O mundo vai acabar! Se você não correr para a nossa igreja, você morrerá e irá para o inferno.”

 

Há quem argumente que as guerras sempre existiram. E que as batalhas mais difíceis de vencer são as que acontecem dentro de nós mesmos. Por sinal, a essência desse pensamento também está expressa no Bhagavad-Gita, quando Arjuna, já no campo de batalha, se depara com seus irmãos, ficando desencorajado de lutar. Os irmãos, neste caso, são os egos – segundo a Gnose - ou os pecados capitais, segundo a doutrina cristã: avareza, gula, inveja, ira, luxúria, preguiça e soberba. (Irmãos, porque estão sempre próximos da gente). Assim, o ser humano necessitaria, primeiro, resolver seus conflitos internos, para depois pensar nos externos.

 

E o que diz a ciência? Segundo matéria publicada pelo jornal O Globo on-line, de 22/07/2013, o astrobiólogo Jack O’Malley-James, da Universidade de St. Andrews, na Escócia, efetuou um cálculo no computador, concluindo que o nosso planeta tem vida para mais 2.000.002.013 (dois bilhões, dois mil e treze anos). “Os humanos e as plantas deixarão a face da Terra antes, na metade deste tempo, ou seja, daqui a um bilhão de anos.”

 

Mas e afinal, o que você pensa? Você se identifica com alguma destas posições, ou você tem outra ainda? Entre em contato com a gente e conte para nós. Obrigado!

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

© Copyright, Pepe Arte Viva Ltda.

 

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Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

21/10/2023

 

Algumas vezes, quando pessoas agem aí pelas ruas de modo rude ou até violento, frases deste tipo podem ser ouvidas: “Que selvageria!” “Agora tá predominando é a lei da selva.”

 

A selva é encantadora. No entanto, é mesmo perigosa! Como podem corças, zebras e leões, conviverem no mesmo habitat? Como águias, pelicanos e pássaros menores dividem igual espaço? É ali o reino da vida; é ali o reino da morte. Viver ou morrer é questão de detalhe. Sobreviverá aquele que ganhar esse arriscado jogo.

 

Verdadeiramente, depois de tudo o que está acontecendo, se alguém repetir a frase: ““Agora tá predominando é a lei da selva.”, hei de desabafar: quem dera que fosse apenas assim! O bicho homem é mil vezes mais feroz. Animais não usam fuzis, drones, metralhadoras; não lançam bombas, nem ao menos flechas ou pedras.

 

Na selva, a insegurança, a apreensão, o medo, os ímpetos de fuga são constantes. Na cidade, tudo isso, de regra, é ainda maior. Nunca foi tão urgente nos unirmos por um mundo mais pacífico e propício ao bem-viver.

 

Eis o caso da guerra de Israel versus Hamas. Qualquer guerra denota brutalidade, incapacidade para se entender, negociar. Conflitos, desde os familiares, surgem por radicalismos, fundamentalismos, intolerâncias, vontades de ficar com mais.

 

Todos nós sabemos, as contendas naquela região não começaram agora. Elas são históricas. O que eu não consigo entender é como, justamente na terra onde Jesus nasceu, e nas terras por onde caminhou, existe tanta barbaridade! O que o Mestre mais ensinou não foi a paz, o amor, o perdão? Acaso, as suas Palavras foram levadas, para longe dali, pelo vento? (Aliás, onde mesmo Elas estão?)

 

Quanta gente vai à “Terra Santa”, para mais bem compreender os ensinamentos de Cristo! Outros não! Alguns líderes religiosos fazem esta peregrinação, basicamente, com o fim de ganharem maior credibilidade frente aos seus fiéis. Caso análogo é o de alguns políticos. Vão lá, tiram fotos, jogam nas redes sociais, passam por fervorosos cristãos, a fim de ganharem mais votos.

 

Vocês sabem, na prática, quem é mesmo o “Deus de Israel”? Ora, são os Estados Unidos. As duas nações se irmanam, para mais consistente estratégia de guerra, para um mais robusto plano de poder. Criar um estado palestino seria justo; daria à Palestina mais voz e um lugar no mundo. Porém, isso não garantiria a ausência de conflitos.

 

Vale considerar que há judeus fortíssimos financeiramente nos EUA, e eles ajudam a financiar campanhas de candidatos à presidência da República. Sendo assim, Israel precisa ser tratada com distinção, independente de ideologias e suas consequências.

 

Na América do Norte, ocorre ainda uma insana parceria: a indústria bélica também financia candidatos; em recompensa, estes, elegendo-se, favorecem as vendas de armas. De que modo? Lógico, promovendo guerras, ou nelas se envolvendo.

 

Quanto aos crédulos romeiros, estes vão à Terra Santa, choram no Muro das Lamentações, voltam felizes para casa - e com prestações no cartão de crédito para pagar, vez que essas caravanas costumam ser promovidas por suas igrejas, e têm um alto custo. Voltam, ademais, com a cabeça transbordante de fantasias. Mais ainda do que antes – já que as implicações políticas e ideológicas, decerto, não são reveladas pelos líderes religiosos a esse abstraído rebanho.

 

BOMBA! Fecha-se o cerco! Dobra-se a ameaça! O medo de um massacre se torna real! Perigo iminente! Os peregrinos atingem o ápice do desespero, clamando por socorro. Chega célere o resgate! Iniciativa do Governo Lula, juntamente com a Força Aérea Brasileira.

 

Já dentro do avião, um passageiro (supostamente o pastor) grava uma mensagem, agradecendo, não ao governo, mas a Deus, por ter usado “alguns políticos para esse fim” (sem citar nomes). É aclamado por todos. Infere-se que são bolsonaristas e, como tal, não quiseram dar créditos ao governo rival. Provocação: teria Deus protegido esse grupo e desprezado outros, que passavam pela mesma tribulação?

 

Peregrinos da Terra Santa, por que temeis as bombas? Por que chorais e rangeis os vossos dentes, implorando por socorro, se vós peregrinastes, justamente, inspirados pelo Deus de Israel? Onde está a vossa fé? Quantas vezes, em vosso templo, vós bradastes “Amém”, “Aleluia!”, quando o vosso pastor vos encorajava, pregando, com voz clara e retumbante, o salmo que ora segue?

 

“Mil cairão ao teu lado, e dez mil, à tua direita, mas tu não serás atingido. Somente com os teus olhos olharás e verás a recompensa dos ímpios. Porque tu, ó SENHOR, és o meu refúgio!...”

(Salmos 91:7-10 ARC, em uma de suas versões.)

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Montagens do autor.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

 

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Comportamento:

Tenho orgulho de ser conservador

Como é bom ser conservador! Muitas vezes, é dificílimo achar o que a gente quer, mas vale a pena tentar. Por exemplo: comprei agora um Ford 29. Já estava cansado de andar de jardineira. Moto e lambreta, nem pensar! Isso é coisa de roqueiros.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

15/10/2023

 

“Sou patriota, cristão, conservador! Apoio qualquer candidato – mesmo que não tenha competência e nem vontade de trabalhar, mas que seja conservador.”

 

“Como é bom ser conservador!” Quando preciso fazer alguma compra maior, saio procurando uma carroça para trazer tudo para mim.”

 

“Como é bom ser conservador! Só uso sapato, calças e camisas sociais, mesmo que o sol esteja a 40º. Antes de sair, não saio com meu cabelo todo atabalhoado, como fazem jovens por aí. Ao pentear, emplasto meu cabelo com brilhantina Glostora ou Palmolive. Saio assobiando alguma valsa do Carlos Galhardo. Vou ver se assim arranjo alguma namorada – mas... namorar com respeito! Sair de mãos dadas, só no terceiro mês.”

 

“Como é bom ser conservador! Muitas vezes, é dificílimo achar o que a gente quer, mas vale a pena tentar. Por exemplo: comprei agora um Ford 29. Já estava cansado de andar de jardineira. Moto e lambreta, nem pensar! Isso é coisa de roqueiros.”

 

“Como é bom ser conservador! No entanto, às vezes, entendo que é necessário a gente se atualizar, acompanhar os avanços tecnológicos. Pensei num computador. Queria mesmo era um ENIAC (1946), cujo conjunto de peças enchia um quarto inteirinho. Também tentei a internet da ARPANET. Na impossibilidade, tive de me contentar com um mais moderninho. Encontrei um sensacional, com internet discada e impressora de papel contínuo. Comprei 10 disquetes para começar.”

 

“Como é bom ser conservador! Acham que eu uso esses celulares moderninhos, chatos, de gente esnobe, que tem por aí? Jamais. Inclusive, meu cunhado queria me vender um daquele de anteninha, contudo, eu achei avançado demais para mim. Frisei que sou conservador! Portanto, até mesmo os orelhões, eu acho excessivamente modernos. Gosto mesmo é dos telefones fixos, pretos, pesados. Aliás, adorava, quando para fazer um interurbano, a gente tinha de ir a uma empresa telefônica, pegar a fila e, quando chegava a nossa vez, a telefonista ficava suada de tanto tentar, até conseguir a conexão. Isto podia demorar entre 30 a 40 minutos. Dava muito mais emoção!”

 

“Como é bom ser conservador! Assistir a um jogo do Pelé. Depois, pregar figurinhas no álbum da Copa de 58, ou no álbum de escoteiros. Dá pra ler também o almanaque do Jeca Tatu, que a gente ganha quando compra o Biotônico Fontoura.”

 

“Bom demais ser conservador! Quando escrevo à mão, é sempre com caneta-tinteiro. (Sim, ela borra bastante, mas, para resolver isso, tenho sempre um mata-borrão.) Entretanto, quando quero redigir uma carta, uso sempre a minha Olivetti, a melhor máquina de escrever. Detalhe: com essa Facit elétrica eu não me acostumei não. Moderna demais. A calculadora Facit, ah, isso sim. Uma máquina do tamanho de três tijolos sobrepostos, pesada, porém, em termos de desempenho, é o que há de melhor.”

 

“Como é bom ser conservador! Discos? Tenho um monte lá em casa. Todavia, prefiro os 78 rotações. Eles são pesados, quebráveis, comportam uma música de um lado, outra do outro. Dizem que chiam muito. Mas isso não me incomoda. Não quis me modernizar, comprando esses discos de vinil.”

 

“Como é bom ser conservador! Assistir às missas em latim. Acompanhar as procissões, temer as assombrações.”

 

“Tenho orgulho de ser conservador! No entanto, sinto-me vencido pela correnteza do progresso, que é avassaladora e demove todos os que estiverem à sua frente. À vista disso, quem não entra nessa onda fica excluído da sociedade e do tempo vigente. Devemos reconhecer: nós, que insistimos em ser conservadores, não temos mais estrutura para sobreviver num mundo que já não existe mais. Vou deixar então que o progresso tome conta de mim. Vou me lançar no paraíso das inovações.”

 

“Jovem roqueiro, funkeiro ou sambista, me passa o teu Zap, me diz do teu Face, me fala do Instagram, me conta dessa tal de Inteligência Artificial! Mergulha comigo nos mistérios desse ciberespaço. Agora sou teu brother, agora sou teu mano. Agora sou teu fã. Fui!”

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Divulgação.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

 

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Viajando:

O lar do motorista de ônibus

Seis horas da manhã. É hora de empreender mais uma viagem interestadual. O Laércio, à porta de seu veículo, já deu um bom-dia a cada um dos que vão entrando e mostrando para ele a passagem.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

30/09/2023

 

Surgem dentro daquele volátil lar galhofas ou filosofias. Quanta gente, que pouco frequentou escola, mostra ter uma notável visão de mundo!

 

Laércio acorda cedo, toma seu banho, seu café, dá um beijo na esposa, outros beijos em seus filhos, e segue determinado, lutando pelo pão de cada dia.

 

Seis horas da manhã. É hora de empreender mais uma viagem interestadual. O Laércio, à porta de seu veículo, já deu um bom-dia a cada um dos que vão entrando e mostrando para ele a passagem.

 

Senta-se ao volante. Um nome-do-pai, uma breve oração. Alguns passageiros fazem o mesmo. (Algum medo, alguma insegurança.) Sai o veículo.

 

Os destinos são certos. Os destinos são incertos. Cada um ali sabe onde quererá descer. Está certo da hora em que lá chegará. Contudo, pode haver algum impedimento (acidente na estrada, boi cruzando o caminho, asfalto desgastado pelas tempestades, polícia, árvore caída na pista...)

 

Todavia, com a proteção de Deus (e de São Cristóvão, cujo retrato está pendurado logo à frente do motorista), este ônibus chegará em paz.

 

Passageiros dormem. (Dormiram pouco durante a noite, preocupados com esta viagem e com a responsabilidade de não perder a hora). Outros procuram passar o tempo, imersos numa telinha de celular. Há um senhor lendo um jornal. E algumas mulheres estão conversando e oferecendo biscoitinhos. Aliás, tempo é o que não falta. Serão doze horas de viagem.

 

E o condutor, ali, mergulhado em rotina. Catorze anos, fazendo o mesmo trajeto. Sabe certinho o quilômetro onde tem uma borracharia; lembra em que ponto existe uma barraca vendendo abacaxi e garapa; tem informação sobre o local onde a pista está sendo duplicada; conhece até aquela árvore solitária, na várzea daquele caudaloso rio. Paisagens deslumbrantes – para ele, já desbotadas, em função da mesmice.

 

Só uma coisa não é rotina para o motorista. Sua família. Não aquela, que ele beijou antes de sair. A outra: a totalidade dos passageiros. Sim! O condutor gasta doze horas do seu dia viajando; meia hora andando, de sua casa até a garagem; meia para voltar; oito horas para dormir. Total: vinte e uma horas. A ele lhe restam apenas três horas diárias para estar junto dos seus legítimos familiares. Portanto, seu verdadeiro lar é o ônibus, a estrada.

 

Que estranho lar! Seus integrantes não são fixos. Um dia, está ali o Pedro; no outro dia, é o João, a Maria, a Alice... Cada um com seus problemas, seus valores, seus sonhos, suas crenças, sua ideologia. Cada um com seus mistérios. Todos buscando, enfim, uma razão de viver.

 

O condutor ignora quase tudo. Ele quase não tem tempo para dialogar com esses seus irmãos. No entanto, ele pode intuir. A experiência já lhe contou dos atrativos que cada cidade oferece, e o que se tende a procurar. (Só não dá para conhecer os corações.)

 

Como em toda família, ali igualmente aparecem alguns irmãos para perturbar. É um moço que entra, mas não quer pagar; é um tonto, que está falando besteira; ou é aquela fanática, que se põe a cantar hinos cristãos a plenos pulmões – e se alguém reclamar, ela diz que não vai parar, porque está cantando é para exaltar o nome do Senhor.

 

Ah!... Mas há horas de bonança também. Descobre-se um aniversariante naquele grupo. Agora, é lícito cantar para ele o Parabéns. Soma-se a essa alegria um jovem contando piadas. E segue a condução. Trocando ideias, alguém encontra um emprego ou alguma oportunidade de negócios. Interagindo, um moço e uma moça iniciam ali mesmo um romance, que pode resultar em casamento.

 

Surgem dentro daquele volátil lar galhofas ou filosofias. Quanta gente, que pouco frequentou escola, mostra ter uma notável visão de mundo!

 

Enquanto isso, o líder daquela família acelera, buscando o ilusório horizonte que o chama. Por alguns momentos, mergulha-se em devaneios, absorto em gado, em plantas, que ele vê e tanto desejaria ter – todavia, não pode nem ao menos tocar. Tudo é fugaz, e tem um vidro separando a realidade do sonho. (Quem sabe, quando se aposentar?)

 

O motorista de ônibus (poderia ser de caminhão) tem dois lares - e não tem nenhum.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Divulgação.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

 

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Calor:

Vovó e os pernilongos

Vovó falou que esses pernilongos atrevidos estavam tais quais os jovens de hoje. Eles não têm limite. Não honram ninguém nem nada. Esses bichos não respeitam mais nem inseticidas.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

23/09/2023

 

Coqueiros, bananeiras e alguns arbustos em flor completavam o lirismo do local. Tudo bonito, fresquinho... No entanto, essa vegetação abrigava também as malditas muriçocas.

 

Tempo de calor é mais alegre. Mais gente nos bares e na rua. Boa ocasião para ir à praia, tomar um sorvete, uma água de coco... Só que alguns hóspedes indesejáveis invadem a nossa casa e se sentem donos da situação: os danados dos pernilongos.

 

Vovó, oitenta e três anos, morava numa casinha, do jeito que ela queria: simples, sossegada, um pouco retirada do centro da cidade. Pintura cor-de-rosa, já gasta, e um terreiro limpíssimo. Coqueiros, bananeiras e alguns arbustos em flor completavam o lirismo do local. Tudo bonito, fresquinho... No entanto, essa vegetação abrigava também as malditas muriçocas.

 

Há mais de quarenta anos, vovó havia ficado viúva, e não mais se interessara por casar, nem ao menos, namorar. Morava ali sozinha.

 

Uma noite, os terríveis malfeitores não deixaram vovó dormir. Logo que se levantou, ela foi a um supermercado comprar um inseticida. Comprou o mais forte que achou, um de ligar na tomada.

 

Suas filhas foram lá visitá-la. Vovó contou que não teria mais problema com as muriçocas. Que havia comprado um inseticida poderoso.

 

Vovó, logo que viu aquela nuvem de pernilongos entrando por sua janela, ligou o aparelho e ficou na expectativa de vencê-los completamente.

 

Chegou a hora de dormir. O produto ali aplicado ajudou bastante. Restaram, no entanto, uns três desses perturbadores, que não se intimidaram com aquele ataque bélico disparado contra eles. Zoaram, zoaram... Depois, um deles veio e deu uma boa ferroada no nariz da pobrezinha.

 

Nervosa, ela se levantou, deu tapas, travesseiradas... Uns cinco, ela garantia que matou. Em seguida, dormiu tranquila – de cansada, é claro.

 

As filhas voltaram lá. Vovó falou que esses atrevidos estavam tais quais os jovens de hoje. Eles não têm limite. Não honram ninguém nem nada. Esses bichos não respeitam mais nem inseticidas. Quando eu era moça, tudo era diferente. As pessoas tinham respeito. E esses invasores noturnos iam embora por muito menos.

 

As dedicadas filhas contrataram um serviço de dedetização. Dedetizaram casa, quintal, acharam até uma cobra na bananeira, mas isso não impressionou vovó. Ela queria saber é se tinham acabado com aqueles malditos perturbadores do seu sono.

 

A vida é surpreendente. Daí, a graça de viver. Depois de toda essa guerra, restou apenas um pernilongo. Esse não ia à noite a fim de picar vovó. Ia apenas cantar para ela. E ela achou a voz dele tão linda!

 

Vovó contou para alguém que passara a ter um fascínio por esse companheiro da noite. Quando ele demorava a aparecer, ela chegava a sentir a sua falta. Aí ele vinha, cantava, e ela dormia serenamente...

 

Não precisou que ela explicasse. Numa reunião em família, interpretaram que esse canto era, na verdade, um canto antigo, ancestral, imortal, que ficara para sempre colado na memória de vovó. Aquele inseto-cantor apenas o despertara.

 

Quando jovem, vovó se apaixonara por um moço de circo. (Ela evitava falar sobre isso, em respeito ao vovô.) Ele cantava e tocava violão muito bem. E fazia belas serenatas para ela. Um dia, o circo se foi. Seu amor também.

 

Dali a duas semanas, era aniversário de vovó. A família procurou na internet, na televisão, até encontrar aquele seresteiro apaixonado. Ele já estava com oitenta anos, mas ainda se apresentava em eventos.

 

Chegou o dia! Grandiosa surpresa! Logo que ele, ainda do lado de fora da casa, deu os primeiros acordes no violão, vovó não teve dúvida de que fosse aquele seu antigo e ardente amor. Correu ao seu encontro. Não resistindo, deu nele um abraço e um beijo apaixonado. Porém, logo se conteve. Ele podia já estar casado, ter filhos e até netos...

 

Ele entrou, sentou, comeu do bolo, bebeu do vinho, cantou as músicas prediletas de vovó. Seus olhos revelavam que ele tinha ânsias de falar uma porção de coisas, porém, o superego entrava em ação e o impedia de falar.

 

A festa acabou. O inesquecível amor novamente se foi.

 

(Vovó, em monólogo interior) - Tanta coisa aconteceu, tudo por causa de um pernilongo...

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Divulgação.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

 

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Gentileza gera gentileza:

O gato que ofertava flores

Sendo ele de um estrato inferior ao dos humanos, a única coisa que lhe restava era ir para a porta desse restaurante, a fim de assistir, toda noitinha, ao empolgante show: as pessoas contando casos, rindo felizes e saboreando os mais deliciosos pratos.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

17/09/2023

 

Nem sempre recebia em troca a sua comida, porém uma boa dose de carinho estava sempre garantida.

 

Vida de gato é essa mesmo: correr, pular, brincar, passear bastante durante a noite e, quando o sono chega, entregar-se ao reino dos sonhos. Especialistas afirmam que tais felinos têm muita energia e vivacidade, porque sabem, como poucos no mundo, relaxar.

 

Alguns podem ter um lar, receber ali sua ração, seu carinho e todo cuidado sanitário. Mas e os que vivem na rua? Estes comem o que acham e quando acham, e se nada encontram, o jeito é furtar.

 

A história de um sem-nome com certeza vai te emocionar. Em suas peregrinações, esse bichano sentiu o cheiro de comidas um tanto apetitosas para ele: churrascos, peixes e o mais.

 

Sendo ele de um estrato inferior ao dos humanos, a única coisa que lhe restava era ir para a porta desse restaurante, a fim de assistir, toda noitinha, ao empolgante show: as pessoas contando casos, rindo felizes e saboreando os mais deliciosos pratos. (E o coitado, também saboreando tudo, mas apenas com os olhos.) 

 

Uma noite, o faminto não resistiu. Deu um pulo e ficou na janela. Ninguém o importunou, porque ninguém o notou.

 

Na próxima vez, o nosso herói empreendeu ousadia maior: da janela, saltou para dentro do estabelecimento. O proprietário expulsou-o de lá.

 

Frustrado, aquele infeliz passou três dias sem reaparecer ao local. Num canto da mata, permaneceu meditando, tentando entender os humanos, com quem ele, fatalmente, deveria continuar a conviver.

 

Na sequência, voltou à porta do restaurante, desta vez, só para observar. Verificou, detalhadamente, o ambiente e o comportamento das pessoas.

 

Importante foi notar que os humanos não comiam de graça. Para receber aquilo que desejavam, entregavam à garçonete uma folha de alguma planta, algo assim. Aí ele pensou: “Ah, já entendi por que não sou prestigiado neste recinto. Eu não chego aqui com essa folha, esse papel.”

 

Decidido, pulou o muro de um jardim, colheu a mais bela flor.

 

Partiu para uma nova missão. Portando cuidadosamente aquela dádiva da Natureza, entrou seguro naquele paraíso dos prazeres alimentares. A garçonete nem nota sua presença. Entretanto, ele a chama. Logo que ela o vê, ele oferta-lhe aquele atraente mimo.

 

A moça quedou paralisada, tamanho o deslumbramento. Fazia quase cinco anos que ela terminara um noivado. Frustrada, decidira que não ia mais amar ninguém. Pensava que o amor, um carinho, um afeto, já estavam morando em outro planeta, bem distante daqui. Jamais poderia imaginar que alguém ainda se acercasse dela, ofertando-lhe uma flor.

 

Ela acariciou muito o amiguinho. Beijou-o carinhosamente, como num sincero agradecimento. Sensível que era, entendeu direitinho a intenção desse novel cliente. Foi logo preparar um pratinho bem apetitoso para ele. Pragmático, o gerente questionou:

 

- Mas você está tirando comida daqui a fim de dar para um gato?

 

Ela respondeu:

 

- Ele pagou.

 

O gato voltou mais duas vezes ao recinto, levando flores à sua amiga ou a alguém que o admirasse.

 

A garçonete tentou levá-lo para casa. No entanto, ele resistia. Seu lugar era mesmo o mundo...

 

Desapareceu dali. Os próprios fregueses sentiram a falta dele. Teria sido atropelado? Felizmente não. É que ele acabara de descobrir a sua real missão nesta Terra: sair pelas ruas, distribuindo flores à população.

 

Nem sempre recebia em troca a sua comida, porém uma boa dose de carinho estava sempre garantida. E isto, se não alimentava seu corpo, alimentava a sua alma e o deixava felicíssimo.

 

Bonito é que seu exemplo foi seguido, não só por animais, como também por humanos. Via-se um montão de gente distribuindo rosas. O afeto existe dentro de todos nós. Às vezes, ele precisa é ser despertado.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Divulgação.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

 

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Somos independentes?

Independência ou Morte! O quê!?

Enfim, a total independência é mera utopia. País nenhum consegue essa façanha. Aliás, pessoa alguma, uma vez que a vida em sociedade transcorre por intercâmbios, um saciando o desejo ou a necessidade do outro.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

06/09/2023

 

Todo país que fica devendo ao FMI torna-se também obrigado a seguir as diretrizes do Imperador, no caso, os Estados Unidos.

 

Nem independentes, nem mortos! Foi assim que estivemos, é assim que estamos, será assim que estaremos.

 

E então, depois de amargar o jugo português, durante mais de três séculos, com Portugal roubando nosso ouro, nossa madeira, nossas pedras preciosas... Portugal catequizando os índios - vale dizer, implantando a religião do Império – uma das formas de aculturação e dominação... Depois ainda de um período sombrio, escravocrata... Aí se ouve, forte e retumbante, o brado de Independência, dado pelo multi-instrumentista e compositor Dom Pedro I, que, nas horas de folga, era também Imperador - e adorava uma mulata (dizem, né?).

 

Foi assim que ficamos independentes. Oh! Que bom! Quer dizer que, nesta terra brasilis, não tinha mais pobres, nem escravos? Você sabe a resposta.

 

E vem a República. Presidentes militares, com pernas de chumbo, mãos de ferro e cabeça de papel. Um dia, no entanto, aparece um civil, porém ditador: Vargas. Dizem que ele era “pai dos pobres” (“mãe dos ricos”, em compensação). No aspecto trabalhista, foi bom, mas tinha ânsias de poder.

 

Eis que vem o golpe militar de 64! Foram vinte e um anos de uma ditadura perversa, perseguidora, matadora. Tudo em nome da arrogância e do poderio militar, com aquela velha desculpa de que estariam impedindo o comunismo de invadir e dominar o Brasil - o que agradou sobejamente o Império Norte-Americano que, tudo indica, estava por detrás. Vargas já havia feito o mesmo discurso.

 

Ué, mas não estávamos livres, independentes?

 

Ah, sim, independentes de Portugal. O Brasil não precisaria, nunca mais, dar satisfação aos lusitanos nem a ninguém sobre seus atos; teria total soberania. Mas...

 

E o Império Norte-Americano? Estava agora o Brasil dependente dos aspirantes a dominadores do mundo, devendo prestar-lhes conta da sua economia, sua política interna e externa, e outras mumunhas mais.

 

Todo país que fica devendo ao FMI torna-se também obrigado a seguir as diretrizes do Imperador, no caso, os Estados Unidos. Sempre que necessário, o devedor desse Fundo se obriga a ser contido nos aumentos salariais, nas despesas internas, nos projetos sociais para uma vida melhor de seu povo. Em síntese: impõe-se sobrar dinheiro para pagar a esse Fundo. E o Brasil devia. E o Brasil era escravo desse senhor. Conseguimos pagar. Hoje, vemos outras nações sofrendo com esse jugo. Pelo menos disso, ficamos independentes.

 

Vamos dar um flashback na História, e lembrar que todo império, um dia, se desmorona. O Império Americano do Norte ainda está de pé, alimentando a Ucrânia, na guerra produzida pela Rússia. Ou seja, aquela Guerra Fria não acabou. Há, na verdade, até uma guerra armada, entre EUA e Rússia, tendo, como teatro de operações, a Ucrânia. Aliás, hoje, os EUA se envolvem em duas Guerras Frias: a citada e a acirrada disputa econômica com a China. Será a China o próximo império, com pretensões de dominar o mundo? “The answer, my friend, is blowing in the wind.”

 

Outra ameaça, que está tirando o sono do Tio Sam, são os BRICS. O Grupo vem ganhando cada vez mais poder. Outros países, com importantes economias, acabam de aderir ao Grupo. Os Estados Unidos vêm gozando seu conforto, uma vez que a economia do Brasil e de grande parte do mundo é em dólares. Se os EUA precisam de dinheiro, se gastam tanto com a guerra, sem problema! “Vamos fabricar mais dólares.” Enquanto isso, outros países amargam suas inflações e seus problemas sociais.

 

Para maior dor de cabeça dos norte-americanos, os BRICS estão dispostos a não mais negociar em dólares. As negociações podem ser em real, em yuan (moeda chinesa), em Rand sul-africano (da África do Sul) ou, bom também, numa moeda que os BRICS pretendem criar. Bem, se isso não fizer ruir o Império norte-americano, pelo menos vai abalá-lo bastante.

 

Enfim, a total independência é mera utopia. País nenhum consegue essa façanha. Aliás, pessoa alguma, uma vez que a vida em sociedade transcorre por intercâmbios, um saciando o desejo ou a necessidade do outro. O importante é que cada um tenha vez, seja visto e ouvido.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Divulgação.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

 

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Ensino Público:

Educação ou inducação, na querida São Paulo?

Todos já sabem também que o bolsonarismo virou uma seita. A seita PIX, a seita ouro, a seita diamantes, a seita qualquer tipo de cartão. Em troca, você recebe um sorriso confiante do mito, sorriso este, ainda mais tentador, agora, com harmonização facial, dental e até nas nádegas, conforme andam dizendo por aí. 

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

1º/09/2023

 

Tarcisio e Bolsonaro: um novo Samba do Crioulo Doido está nascendo em São Paulo.

 

Um homem muito “inducado”, o qual não conhecia direito São Paulo, candidatou-se a governador desse estado. E qual não foi a surpresa para muitos? Ganhou.

 

Todos sabem que ele segue o modelo de Bolsonaro, e que é amigo do Edir Macedo. Aliás, ele é do Partido Republicanos, fundado por esse bispo (melhor dizendo, por esse empresário).

 

Todos já sabem também que o bolsonarismo virou uma seita. A seita PIX, a seita ouro, a seita diamantes, a seita qualquer tipo de cartão. Em troca, você recebe um sorriso confiante do mito, sorriso este, ainda mais tentador, agora, com harmonização facial, dental e até nas nádegas, conforme andam dizendo por aí. 

 

E o Tarcísio de Freitas, uma vez bolsonarista, “a seita” automaticamente a doutrina imposta pelo líder. E um dos princípios desse cânon é o repúdio à ideologia de gênero. Dentre as regras, não se pode nem falar nas escolas sobre educação sexual. É imoral; é indecente; é pecaminoso. E a família tradicional brasileira deve até entrar em guerra, se preciso for, para que tal conteúdo educacional não seja ensinado.

 

Considerações: A primeira é que eu lecionei, durante um bom tempo, no Ensino Fundamental e Médio. Nas aulas de educação sexual, falava-se sobre gravidez precoce, prevenção contra doenças sexualmente transmissíveis... Era comum um médico ser convidado para melhor instruir os alunos e responder perguntas por eles formuladas.

 

Era tudo muito respeitoso e positivo. E preenchia uma lacuna, vez que a maior parte do alunado não recebe informações suficientes em casa. Segunda consideração: a família do Bolsonaro é tão exemplar assim? Ele já está na terceira esposa; o que ele ensinou aos filhos foi desonestidade, e um por um caminha para as goelas da Justiça. Tudo não passava de discursos eleitoreiros, para enganar as pessoas mais sugestionáveis e crédulas.

 

Vamos voltar ao Tarcísio. Esse governador resolveu declarar guerra aos livros didáticos do MEC. Em lugar deles, propôs a produção de material digital, com redação de sua própria equipe e, ao que tudo indica, recheado com as ideologias bolsonaristas de que falamos. Com isso, seriam usados também para uma doutrinação, uma pré-campanha política, dando sequência à seita fundada pelo messias Bolsonaro.

 

Quanta mancada! Um bom número de alunos não tem computador para assistir às aulas, baixar material (o que ainda lhe causaria mais uma despesa), não tendo, muitas vezes, nem ao menos um celular. E o valor do investimento é altíssimo e desnecessário, porque o MEC já tem tudo pronto e a distribuição é gratuita. Será que o Tarcísio se inspirou na Noruega, ou em algum outro país consideravelmente rico e com índice de desenvolvimento humano sobremodo elevado? São Paulo tem muito glamour. Tem sim. Mas infelizmente, tem moradores de rua, tem favela, como acontece nas grandes cidades brasileiras. Responsabilidade dos governos.

 

Contudo, a coisa não para por aí. Chegou a hora de descontrair um pouco. Você se lembra do Samba do Crioulo Doido, do notável jornalista Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta)? Se não se lembra, vamos recordar. A situação é essa: um bom crioulo foi incumbido de compor um samba-enredo para um carnaval, o qual discorresse, como de praxe, sobre pontos da História do Brasil. Só que era muita informação, e o moço misturou tudo. No seu samba, a princesa Leopoldina se casa com Tiradentes; depois, foi “proclamada” a escravidão, e por aí vai.

 

Pois bem, um novo Samba do Crioulo Doido está nascendo em São Paulo. Uma notícia do Uol vem informar que, no material didático da gestão Tarcísio de Freitas, consta que São Paulo, capital, é banhada pelo mar. Pior: numa lição de História do Brasil, registra-se que quem assinou a Lei Áurea foi Dom Pedro II. Ah, quer saber? Menos mal. Achei que eles iam colocar que foi o Pedro, jogador do Flamengo, ou quem sabe o Pedro Bento, que fazia dupla com o Zé da Estrada.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Divulgação.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

 

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Divisão:

Brasil do Norte e Brasil do Sul

O assunto do momento é a infeliz fala do governador de Minas, Romeu Zema, defendendo que deveria ser criado um consórcio Sul/Sudeste, para fazer frente ao consórcio dos estados do Norte/Nordeste.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

19/08/2023

 

Todavia, não somos ingênuos. A contenda se situa muito mais no terreno político do que no social. É que o Hemisfério Sul pendeu mais para Bolsonaro, enquanto o Nordeste foi decisivo na eleição do Lula.

 

Durante a campanha para as últimas eleições presidenciais, um dos mais inflamados discursos da direita era que, se o Lula ganhasse, o Brasil iria transformar-se numa Venezuela. (Bem, a nossa vizinha tem seus pontos positivos. Um deles, foi a magnífica ajuda prestada aos amazonenses, quando eles estavam morrendo por falta de oxigênio – e de responsabilidade do governo federal vigente na ocasião.)

 

A direita, que criticou, agora, através de alguns dos seus líderes e seguidores, propõe que o Brasil se transforme – digamos assim – numa Coreia, que é dividida em dois hemisférios, a saber: a do Norte e a do Sul.

 

Seria então o “Brasil do Norte” (composto pelas regiões Norte e Nordeste) e o “Brasil do Sul” (constituído pelas regiões Sul e Sudeste). E o Centro-Oeste? Em que hemisfério ficaria? Talvez do Sul.

 

O assunto do momento é a infeliz fala do governador de Minas, Romeu Zema, defendendo que deveria ser criado um consórcio Sul/Sudeste, para fazer frente ao consórcio dos estados do Norte/Nordeste. A fala tem gerado uma enorme repercussão. “O Nordeste é pobre; o Sul é rico.” Foi mais ou menos isso que tal governador quis dizer em um dos tópicos. Preconceito! Xenofobia! Nazismo! E se o Zema realmente tem pretensões de se candidatar a presidente em 2026, está indo na contramão, porque ele seria o presidente do Brasil (Deus nos livre), e não apenas do Hemisfério Sul.

 

Tal preconceito, no entanto, já vem de outras eras. Bolsonaro já o tinha com sobra, e boa parte dos seus aliados. Fala-se que no Nordeste não tem economia, só tem praias; que o nordestino é preguiçoso; que vive é de bolsa-família. Esqueceu-se de que grande parte do que foi construído no Sul/Sudeste foi com mão de obra nordestina; esqueceu-se também de que muitos sulistas são filhos desses imigrantes.

 

Preconceito já até estrutural. Luiz Gonzaga fez suas primeiras aparições aqui no Hemisfério Sul, de terno e gravata, como era a moda entre os artistas. Só depois de fazer amizade com o cantor e compositor catarinense Pedro Raimundo - o qual se apresentava com trajes gaúchos -, é que teve a coragem de “se assumir realmente nordestino”, criando seu visual (às vezes criticado) e divulgando enfim a cultura da sua região.

 

Todavia, não somos ingênuos. A contenda se situa muito mais no terreno político do que no social. É que o Hemisfério Sul pendeu mais para Bolsonaro, enquanto o Nordeste foi decisivo na eleição do Lula.

 

Com a inelegibilidade de Bolsonaro, vêm surgindo candidatos ao seu espólio. Um é o Tarcísio de Freitas; outro, o Zema. E outros decerto surgirão. A guerra separatista é, pois, uma campanha antecipada, uma posição direitista radical, visando a alinhar-se ao pensamento bolsonarista e a ganhar seus eleitores. Tenho até um bom nome para esse movimento: “Operação Urubu”. São urubus disputando a carniça, a saber: os traços de fascismo e de nazismo implantados neste nosso honrado País.

 

O Hemisfério Norte é pobre? Pobre em quê? Em cultura, em consciência política, devemos reconhecer que não é. E a riqueza natural da Amazônia? E o novo pré-sal? E a indústria de carros elétricos que será implantada na Bahia? Parece que alguns líderes nazifascistas vieram de outro planeta, pois não conhecem o Brasil.

 

Impor barreiras entre povos é impor barreiras a si próprios. O bonito é a união das pessoas. Que mal tem o Nordeste exibir as bonitas danças gaúchas, e o Sul ser aquecido com um caloroso forró? Pode-se tirar um incalculável proveito, lendo-se Machado de Assis, Drummond, Guimarães Rosa, Mário de Andrade, Érico Veríssimo, Cruz e Souza, Jorge Amado, Manuel Bandeira, Graciliano Ramos, dentre outros mil. Todos eles são filhos de uma única terra: o Brasil. Aliás, já são do mundo.

 

Ontem, numa rede social, quando comentei este assunto, alguns internautas reagiram contra mim. Um deles me provocou: “Se você gosta do Nordeste, por que não muda pra lá?” Respondi: Sou feliz em Minas; já morei em São Paulo, tendo gostado bastante de lá; mudaria para o Nordeste sim, e garanto que me sentiria sobremodo feliz.  A felicidade -  falei com ele - existe é dentro de cada um de nós. O infeliz acha todo lugar ruim. Já o venturoso festeja seu tempo de júbilo em qualquer terra. E então quem atingir o sublime estado de graça? Ah, este, até mesmo numa guerra, encontrará motivos para sorrir.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Divulgação.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

 

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Vida profissional:

Uma derrota pode acarretar sucesso

Um dia então, o adolescente Wesley chega até o pai e anuncia: “Vou fazer vestibular de engenharia.” E o pai: “Oh! Que notícia boa!” “Chegue aqui, Maria, mais um engenheiro na família.” E ela: “Não tinha melhor escolha!”

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

04/08/2023

 

Repórteres à sua porta e convites para entrevistas no rádio e TV não faltavam.

 

Na casa do Wesley, respirava-se engenharia. Pai, irmão mais velho e tio, todos engenheiros. Quando se reuniam os três na sala, as mulheres nem conseguiam mais falar da moda, da vizinha ou da novela da Globo.

 

Um dia então, o adolescente Wesley chega até o pai e anuncia: “Vou fazer vestibular de engenharia.” E o pai: “Oh! Que notícia boa!” “Chegue aqui, Maria, mais um engenheiro na família.” E ela: “Não tinha melhor escolha!”

 

- Filho, mas eu queria primeiro conversar com você. Você sabe que eu, seu tio e seu irmão não ficamos milionários nesta profissão, mas temos uma vida confortável. Cada um tem seu carro, sua casa, podemos colocar os nossos filhos em colégios particulares... Foi esta a razão da sua escolha?

 

- Não, meu pai, é porque eu gosto mesmo. Posso ter tido alguma influência de vocês – não vou negar -, mas a real vontade brotou de mim.

 

- Ah, ótimo! E é bom que você ainda poderá contar com a nossa mentoria.

Tudo perfeito. Só que o jovem, cheio de sonhos, não passou.

 

A frustração não foi só sua. Foi da família inteira. Depois, o pai o consolou:

 

- Wesley, também nem tudo está perdido. Você é jovem, e daqui a seis meses, tem o vestibular de novo. Você vai e passa.

 

O filho andou dentro de casa, ponderou, depois falou de sua decisão:

 

- Como segunda opção no vestibular, eu coloquei Design Industrial. E a minha pontuação dá, para fazer esta faculdade. Vou matricular-me nela então.

 

- Mas você gosta?

 

- Sinceramente, mãe, eu nem sei direito o que é isso. Achei que parecia interessante, poderia ter campo de trabalho, coloquei lá na ficha.

 

Wesley, já na faculdade, faz uma grande amizade com seu colega Henrique. Um dia, este lhe pergunta:

 

- Wesley, vai fazer o concurso?

 

- Que concurso?

 

- De redação. O tema é “A importância da embalagem”.

 

- Aqui para a faculdade mesmo?

 

- (Rindo) Não, amigo! É em nível mundial.

 

- Nem pensar! Há pouco tempo, eu nem sabia o que era Design. Agora, vou eu disputar com os feras do marketing e da publicidade?

 

O Henrique se inscreveu no concurso e convenceu o Wesley a também participar, ainda que fosse só por experiência. O Wesley aceitou. E esqueceu-se daquilo.

 

Faltando só dois dias para a entrega do trabalho, o Wesley se lembrou e pensou: “Nossa! Vou ter que fazer isto hoje.” Foi comprar num sacolão. Ali é que ele teve um insight para a redação. Chegou em casa, pegou uma caneta, um papel, e em dez minutos, escreveu mais ou menos assim:

 

“Deus, ao criar as frutas e os legumes, colocou neles uma embalagem: a casca. E o Criador, sendo o Maior dos Engenheiros, projetou, para a melancia, um invólucro espesso e resistente. Já para a pequenina uva, Ele criou uma embalagem mais tenra e delicada. Imaginemos agora Deus, enquanto Publicitário. Ele não poupou os apelos sensoriais em suas embalagens: estimulou a visão, com belíssimas cores; acrescentou-lhes cheiro, sabor e até algum prazer no tato. Pois bem, se Deus achou importante a embalagem, quem sou eu para discordar?”

 

Venceu o concurso! Como prêmio, recebeu cem mil dólares. Suas caixas de mensagens ficaram abarrotadas, tanta gente dando-lhe parabéns e elogiando o seu trabalho. Repórteres à sua porta e convites para entrevistas no rádio e TV não faltavam. Chega novamente o pai:

 

- Filho, eu, seu tio e seu irmão já estamos há tanto tempo na nossa profissão e nunca nos tornamos uma celebridade, coisa que você, em poucos meses, realizou. Ainda vai tentar engenharia?

 

- Claro que não, meu pai. Se eu iniciei a mil por hora esta intrigante carreira, quero continuar nela, procurando sempre ser o melhor do mundo.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Divulgação.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

 

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Boemia carioca:

Madame Satã

Era negro. E ao ser entrevistado uma vez pelo Pasquim, perguntaram-lhe se ele era homossexual. Ele respondeu: “Sempre fui, sou e serei.” No entanto, foi casado com Maria Faissal. Adotaram e criaram seis filhos.

 

Por Sérgio Souza*

De Ibirité-MG

Para Via Fanzine

24/07/2023

 

João Francisco dos Santos (1900 – 1976) nasceu em Glória do Goitá, Zona da Mata pernambucana, em 25 de fevereiro de 1900. Aos treze anos, mudou-se para o bairro da Lapa, no Rio de Janeiro.

 

Hoje existe lei que protege a comunidade LGBTQIA+. Ainda assim, existem discriminações, agressões e até mesmo homicídios a integrantes dessa comunidade. Imaginem então nas décadas de 20 e 30 do século XX. E quando o indivíduo, além de homossexual, fosse negro?

 

Dependendo da situação e do temperamento de quem viesse a ser agredido em sua orientação sexual, alguns optavam por calar-se (e sofrer por dentro); outros reagiam, fazendo justiça com as próprias mãos.

 

João Francisco dos Santos (1900 – 1976) nasceu em Glória do Goitá, Zona da Mata pernambucana, em 25 de fevereiro de 1900. Aos treze anos, mudou-se para o bairro da Lapa, no Rio de Janeiro. Começou ali vivendo como moleque de rua. Depois, conseguiu um emprego, como vendedor ambulante de pratos e panelas de alumínio. Na sequência, fez de tudo um pouco: foi segurança, cozinheiro, garçom, capoeirista.

 

Posteriormente, enveredou-se pela vida criminosa, tornando-se bastante famoso no baixo mundo carioca.

 

Era negro. E ao ser entrevistado uma vez pelo Pasquim, perguntaram-lhe se ele era homossexual. Ele respondeu: “Sempre fui, sou e serei.” No entanto, foi casado com Maria Faissal. Adotaram e criaram seis filhos. Contudo, seu grande amor foi o Brancura, um malandro e cafetão. Viveram juntos, até que o Brancura se apaixonou por uma mulher e fugiu para o Mato Grosso, a fim de se casar com ela. O João Francisco foi atrás deles com o intuito de matá-los. Todavia, não os encontrou. Tempos depois, volta o Brancura para os braços do seu amado...

 

Desfilou uma vez no carnaval, tendo conquistado o primeiro lugar. Logo depois, ele e outros foliões, foram chamados à delegacia. Frente a frente com o senhor delegado, este lhe pergunta quem ele é. Por ter uma extensa ficha criminal, o rapaz nega-se a revelar. Aí o delegado, reconhecendo-o, fala categórico: “Ah, é a Madame Satã.” E o apelido pegou.

 

Madame Satã frequentava aqueles cabarés decadentes do Rio, tendo sido ator nesses ambientes. Era transformista.

 

O que mais o identificava, entretanto, era sua fama de valente, um homem que não levava desaforo para casa. Brigava, ou até mesmo matava, para defender os seus direitos.

 

Entrando para o teatro, decidiu abandonar a sua vida no crime. Só que o sangue quente corria-lhe nas veias. Em uma noite, quando voltava desse seu trabalho, resolveu jantar em um boteco. Ali apareceu um tal de Alberto, um vigilante noturno. Esse guarda dirigiu provocações contra ele. Chamou-o de “viado” reiteradas vezes. Madame Satã puxou da arma, atirou no vigilante. Foi condenado a dois anos e três meses de prisão. Houve dia, quando entenderam a sua reação como legítima defesa. Talvez isso tenha diminuído o seu tempo de cela.

 

Ao sair do presídio, decidiu abandonar o teatro, tendo sido impulsionado de vez para a vida no crime. Novos delitos, novas prisões.

 

“Baiana/que entra na roda/só fica parada/no samba não mexe/não bole nem nada/não sabe deixar/a mocidade louca...” Agora, estamos falando de Geraldo Pereira, compositor mineiro, de Juiz de Fora, autor desse famoso samba e de tantos outros de sucesso. Quando Geraldo Pereira compôs: “Um escurinho/Era um escuro direitinho/Agora tá com a mania de brigão...”, devíamos entender que “esse escurinho” era ele próprio. Conta-se que ele, quando estava sóbrio, era um doce. Contudo, quando embriagado, era mesmo valentão. Existem várias versões sobre sua morte. Há quem diga que foi de câncer; outros afirmam que sua esposa, sentindo-se reiteradamente traída, colocou vidro moído na bebida dele, causando-lhe hemorragia intestinal. Mas existe ainda outra. Vejamos.

 

O compositor entra com uma mulher num bar. Avista Madame Satã sentado sozinho a uma mesa. Chega o casal, senta-se com ele. Num certo momento, Geraldo Pereira, já tonto, cisma que Madame Satã havia trocado seu copo de chope. Dois brigões, aquilo foi o suficiente para mais uma confusão. Madame Satã dá-lhe um soco detonador. Geraldo cai com a cabeça num paralelepípedo, vai para o hospital, e lá, morre. 

 

Foi uma época de uma romântica malandragem, verificada nas noites do Rio, inspiradora de músicas, livros, filmes e até mesmo desta crônica. No dia 12 de abril de 1976, Madame Satã sai da vida, para tornar-se mito.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine.

 

- Imagem: Divulgação.

 

- Produção: Pepe Chaves. 

 

 

 

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