Algumas vezes,
quando pessoas agem aí pelas ruas de modo rude ou até violento, frases
deste tipo podem ser ouvidas: “Que selvageria!” “Agora tá predominando é
a lei da selva.”
A selva é
encantadora. No entanto, é mesmo perigosa! Como podem corças, zebras e
leões, conviverem no mesmo habitat? Como águias, pelicanos e
pássaros menores dividem igual espaço? É ali o reino da vida; é ali o
reino da morte. Viver ou morrer é questão de detalhe. Sobreviverá aquele
que ganhar esse arriscado jogo.
Verdadeiramente,
depois de tudo o que está acontecendo, se alguém repetir a frase:
““Agora tá predominando é a lei da selva.”, hei de desabafar: quem dera
que fosse apenas assim! O bicho homem é mil vezes mais feroz. Animais
não usam fuzis, drones, metralhadoras; não lançam bombas, nem ao menos
flechas ou pedras.
Na selva, a
insegurança, a apreensão, o medo, os ímpetos de fuga são constantes. Na
cidade, tudo isso, de regra, é ainda maior. Nunca foi tão urgente nos
unirmos por um mundo mais pacífico e propício ao bem-viver.
Eis o caso da
guerra de Israel versus Hamas. Qualquer guerra denota brutalidade,
incapacidade para se entender, negociar. Conflitos, desde os familiares,
surgem por radicalismos, fundamentalismos, intolerâncias, vontades de
ficar com mais.
Todos nós sabemos,
as contendas naquela região não começaram agora. Elas são históricas. O
que eu não consigo entender é como, justamente na terra onde Jesus
nasceu, e nas terras por onde caminhou, existe tanta barbaridade! O que
o Mestre mais ensinou não foi a paz, o amor, o perdão? Acaso, as suas
Palavras foram levadas, para longe dali, pelo vento? (Aliás, onde mesmo
Elas estão?)
Quanta gente vai à
“Terra Santa”, para mais bem compreender os ensinamentos de Cristo!
Outros não! Alguns líderes religiosos fazem esta peregrinação,
basicamente, com o fim de ganharem maior credibilidade frente aos seus
fiéis. Caso análogo é o de alguns políticos. Vão lá, tiram fotos, jogam
nas redes sociais, passam por fervorosos cristãos, a fim de ganharem
mais votos.
Vocês sabem, na
prática, quem é mesmo o “Deus de Israel”? Ora, são os Estados Unidos. As
duas nações se irmanam, para mais consistente estratégia de guerra, para
um mais robusto plano de poder. Criar um estado palestino seria justo;
daria à Palestina mais voz e um lugar no mundo. Porém, isso não
garantiria a ausência de conflitos.
Vale considerar
que há judeus fortíssimos financeiramente nos EUA, e eles ajudam a
financiar campanhas de candidatos à presidência da República. Sendo
assim, Israel precisa ser tratada com distinção, independente de
ideologias e suas consequências.
Na América do
Norte, ocorre ainda uma insana parceria: a indústria bélica também
financia candidatos; em recompensa, estes, elegendo-se, favorecem as
vendas de armas. De que modo? Lógico, promovendo guerras, ou nelas se
envolvendo.
Quanto aos
crédulos romeiros, estes vão à Terra Santa, choram no Muro das
Lamentações, voltam felizes para casa - e com prestações no cartão de
crédito para pagar, vez que essas caravanas costumam ser promovidas por
suas igrejas, e têm um alto custo. Voltam, ademais, com a cabeça
transbordante de fantasias. Mais ainda do que antes – já que as
implicações políticas e ideológicas, decerto, não são reveladas pelos
líderes religiosos a esse abstraído rebanho.
BOMBA! Fecha-se o
cerco! Dobra-se a ameaça! O medo de um massacre se torna real! Perigo
iminente! Os peregrinos atingem o ápice do desespero, clamando por
socorro. Chega célere o resgate! Iniciativa do Governo Lula, juntamente
com a Força Aérea Brasileira.
Já dentro do
avião, um passageiro (supostamente o pastor) grava uma mensagem,
agradecendo, não ao governo, mas a Deus, por ter usado “alguns políticos
para esse fim” (sem citar nomes). É aclamado por todos. Infere-se que
são bolsonaristas e, como tal, não quiseram dar créditos ao governo
rival. Provocação: teria Deus protegido esse grupo e desprezado outros,
que passavam pela mesma tribulação?
Peregrinos da
Terra Santa, por que temeis as bombas? Por que chorais e rangeis os
vossos dentes, implorando por socorro, se vós peregrinastes, justamente,
inspirados pelo Deus de Israel? Onde está a vossa fé? Quantas vezes, em
vosso templo, vós bradastes “Amém”, “Aleluia!”, quando o vosso pastor
vos encorajava, pregando, com voz clara e retumbante, o salmo que ora
segue?
“Mil cairão ao teu lado, e dez mil, à tua direita, mas tu não serás
atingido. Somente com os teus olhos olharás e verás a recompensa dos
ímpios. Porque tu, ó SENHOR, és o meu refúgio!...”
(Salmos
91:7-10 ARC,
em uma de suas versões.)
*
Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de
Via
Fanzine.
- Imagem: Montagens do autor.
- Produção: Pepe
Chaves.
* * *
Comportamento:
Tenho orgulho de ser conservador
Como é bom ser conservador! Muitas vezes, é dificílimo achar o que a
gente quer, mas vale a pena tentar. Por exemplo: comprei agora um Ford
29. Já estava cansado de andar de jardineira. Moto e lambreta, nem
pensar! Isso é coisa de roqueiros.
Por Sérgio Souza*
De Ibirité-MG
Para
Via
Fanzine
15/10/2023

“Sou patriota, cristão, conservador! Apoio qualquer candidato – mesmo
que não tenha competência e nem vontade de trabalhar, mas que seja
conservador.”
“Como é bom ser conservador!” Quando preciso fazer alguma compra maior,
saio procurando uma carroça para trazer tudo para mim.”
“Como é bom ser conservador! Só uso sapato, calças e camisas sociais,
mesmo que o sol esteja a 40º. Antes de sair, não saio com meu cabelo
todo atabalhoado, como fazem jovens por aí. Ao pentear, emplasto meu
cabelo com brilhantina Glostora ou Palmolive. Saio assobiando alguma
valsa do Carlos Galhardo. Vou ver se assim arranjo alguma namorada –
mas... namorar com respeito! Sair de mãos dadas, só no terceiro mês.”
“Como é bom ser conservador! Muitas vezes, é dificílimo achar o que a
gente quer, mas vale a pena tentar. Por exemplo: comprei agora um Ford
29. Já estava cansado de andar de jardineira. Moto e lambreta, nem
pensar! Isso é coisa de roqueiros.”
“Como é bom ser conservador! No entanto, às vezes, entendo que é
necessário a gente se atualizar, acompanhar os avanços tecnológicos.
Pensei num computador. Queria mesmo era um ENIAC (1946), cujo conjunto
de peças enchia um quarto inteirinho. Também tentei a internet da
ARPANET. Na impossibilidade, tive de me contentar com um mais
moderninho. Encontrei um sensacional, com internet discada e impressora
de papel contínuo. Comprei 10 disquetes para começar.”
“Como é bom ser conservador! Acham que eu uso esses celulares
moderninhos, chatos, de gente esnobe, que tem por aí? Jamais. Inclusive,
meu cunhado queria me vender um daquele de anteninha, contudo, eu achei
avançado demais para mim. Frisei que sou conservador! Portanto, até
mesmo os orelhões, eu acho excessivamente modernos. Gosto mesmo é dos
telefones fixos, pretos, pesados. Aliás, adorava, quando para fazer um
interurbano, a gente tinha de ir a uma empresa telefônica, pegar a fila
e, quando chegava a nossa vez, a telefonista ficava suada de tanto
tentar, até conseguir a conexão. Isto podia demorar entre 30 a 40
minutos. Dava muito mais emoção!”
“Como é bom ser conservador! Assistir a um jogo do Pelé. Depois, pregar
figurinhas no álbum da Copa de 58, ou no álbum de escoteiros. Dá pra ler
também o almanaque do Jeca Tatu, que a gente ganha quando compra o
Biotônico Fontoura.”
“Bom demais ser conservador! Quando escrevo à mão, é sempre com
caneta-tinteiro. (Sim, ela borra bastante, mas, para resolver isso,
tenho sempre um mata-borrão.) Entretanto, quando quero redigir uma
carta, uso sempre a minha Olivetti, a melhor máquina de escrever.
Detalhe: com essa Facit elétrica eu não me acostumei não. Moderna
demais. A calculadora Facit, ah, isso sim. Uma máquina do tamanho de
três tijolos sobrepostos, pesada, porém, em termos de desempenho, é o
que há de melhor.”
“Como é bom ser conservador! Discos? Tenho um monte lá em casa. Todavia,
prefiro os 78 rotações. Eles são pesados, quebráveis, comportam uma
música de um lado, outra do outro. Dizem que chiam muito. Mas isso não
me incomoda. Não quis me modernizar, comprando esses discos de vinil.”
“Como é bom ser conservador! Assistir às missas em latim. Acompanhar as
procissões, temer as assombrações.”
“Tenho orgulho de ser conservador! No entanto, sinto-me vencido pela
correnteza do progresso, que é avassaladora e demove todos os que
estiverem à sua frente. À vista disso, quem não entra nessa onda fica
excluído da sociedade e do tempo vigente. Devemos reconhecer: nós, que
insistimos em ser conservadores, não temos mais estrutura para
sobreviver num mundo que já não existe mais. Vou deixar então que o
progresso tome conta de mim. Vou me lançar no paraíso das inovações.”
“Jovem roqueiro, funkeiro ou sambista, me passa o teu Zap, me diz do teu
Face, me fala do Instagram, me conta dessa tal de Inteligência
Artificial! Mergulha comigo nos mistérios desse ciberespaço. Agora sou
teu brother, agora sou teu mano. Agora sou teu fã. Fui!”
* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de
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Fanzine.
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- Produção: Pepe
Chaves.
* * *
Viajando:
O
lar do motorista de ônibus
Seis horas da
manhã. É hora de empreender mais uma viagem interestadual. O Laércio, à
porta de seu veículo, já deu um bom-dia a cada um dos que vão entrando e
mostrando para ele a passagem.
Por Sérgio Souza*
De Ibirité-MG
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Fanzine
30/09/2023

Surgem
dentro daquele volátil lar galhofas ou filosofias. Quanta gente, que pouco
frequentou escola, mostra ter uma notável visão de mundo!
Laércio acorda cedo,
toma seu banho, seu café, dá um beijo na esposa, outros beijos em seus
filhos, e segue determinado, lutando pelo pão de cada dia.
Seis horas da manhã.
É hora de empreender mais uma viagem interestadual. O Laércio, à porta
de seu veículo, já deu um bom-dia a cada um dos que vão entrando e
mostrando para ele a passagem.
Senta-se ao volante.
Um nome-do-pai, uma breve oração. Alguns passageiros fazem o mesmo.
(Algum medo, alguma insegurança.) Sai o veículo.
Os destinos são
certos. Os destinos são incertos. Cada um ali sabe onde quererá descer.
Está certo da hora em que lá chegará. Contudo, pode haver algum
impedimento (acidente na estrada, boi cruzando o caminho, asfalto
desgastado pelas tempestades, polícia, árvore caída na pista...)
Todavia, com a
proteção de Deus (e de São Cristóvão, cujo retrato está pendurado logo à
frente do motorista), este ônibus chegará em paz.
Passageiros dormem.
(Dormiram pouco durante a noite, preocupados com esta viagem e com a
responsabilidade de não perder a hora). Outros procuram passar o tempo,
imersos numa telinha de celular. Há um senhor lendo um jornal. E algumas
mulheres estão conversando e oferecendo biscoitinhos. Aliás, tempo é o
que não falta. Serão doze horas de viagem.
E o condutor, ali,
mergulhado em rotina. Catorze anos, fazendo o mesmo trajeto. Sabe
certinho o quilômetro onde tem uma borracharia; lembra em que ponto
existe uma barraca vendendo abacaxi e garapa; tem informação sobre o
local onde a pista está sendo duplicada; conhece até aquela árvore
solitária, na várzea daquele caudaloso rio. Paisagens deslumbrantes –
para ele, já desbotadas, em função da mesmice.
Só uma coisa não é
rotina para o motorista. Sua família. Não aquela, que ele beijou antes
de sair. A outra: a totalidade dos passageiros. Sim! O condutor gasta
doze horas do seu dia viajando; meia hora andando, de sua casa até a
garagem; meia para voltar; oito horas para dormir. Total: vinte e uma
horas. A ele lhe restam apenas três horas diárias para estar junto dos
seus legítimos familiares. Portanto, seu verdadeiro lar é o ônibus, a
estrada.
Que estranho lar!
Seus integrantes não são fixos. Um dia, está ali o Pedro; no outro dia,
é o João, a Maria, a Alice... Cada um com seus problemas, seus valores,
seus sonhos, suas crenças, sua ideologia. Cada um com seus mistérios.
Todos buscando, enfim, uma razão de viver.
O condutor ignora
quase tudo. Ele quase não tem tempo para dialogar com esses seus irmãos.
No entanto, ele pode intuir. A experiência já lhe contou dos atrativos
que cada cidade oferece, e o que se tende a procurar. (Só não dá para
conhecer os corações.)
Como em toda
família, ali igualmente aparecem alguns irmãos para perturbar. É um moço
que entra, mas não quer pagar; é um tonto, que está falando besteira; ou
é aquela fanática, que se põe a cantar hinos cristãos a plenos pulmões –
e se alguém reclamar, ela diz que não vai parar, porque está cantando é
para exaltar o nome do Senhor.
Ah!... Mas há horas
de bonança também. Descobre-se um aniversariante naquele grupo. Agora, é
lícito cantar para ele o Parabéns. Soma-se a essa alegria um jovem
contando piadas. E segue a condução. Trocando ideias, alguém encontra um
emprego ou alguma oportunidade de negócios. Interagindo, um moço e uma
moça iniciam ali mesmo um romance, que pode resultar em casamento.
Surgem dentro
daquele volátil lar galhofas ou filosofias. Quanta gente, que pouco
frequentou escola, mostra ter uma notável visão de mundo!
Enquanto isso, o
líder daquela família acelera, buscando o ilusório horizonte que o
chama. Por alguns momentos, mergulha-se em devaneios, absorto em gado,
em plantas, que ele vê e tanto desejaria ter – todavia, não pode nem ao
menos tocar. Tudo é fugaz, e tem um vidro separando a realidade do
sonho. (Quem sabe, quando se aposentar?)
O motorista de
ônibus (poderia ser de caminhão) tem dois lares - e não tem nenhum.
* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de
Via
Fanzine.
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- Produção: Pepe
Chaves.
* * *
Calor:
Vovó e os pernilongos
Vovó falou que esses pernilongos atrevidos estavam tais quais os jovens
de hoje. Eles não têm limite. Não honram ninguém nem nada. Esses bichos
não respeitam mais nem inseticidas.
Por Sérgio Souza*
De Ibirité-MG
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Fanzine
23/09/2023

Coqueiros, bananeiras e alguns arbustos em flor completavam o lirismo do
local. Tudo bonito, fresquinho... No entanto, essa vegetação abrigava também
as malditas muriçocas.
Tempo de calor é mais alegre. Mais gente nos bares e na rua. Boa ocasião
para ir à praia, tomar um sorvete, uma água de coco... Só que alguns
hóspedes indesejáveis invadem a nossa casa e se sentem donos da
situação: os danados dos pernilongos.
Vovó, oitenta e três anos, morava numa casinha, do jeito que ela queria:
simples, sossegada, um pouco retirada do centro da cidade. Pintura
cor-de-rosa, já gasta, e um terreiro limpíssimo. Coqueiros, bananeiras e
alguns arbustos em flor completavam o lirismo do local. Tudo bonito,
fresquinho... No entanto, essa vegetação abrigava também as malditas
muriçocas.
Há mais de quarenta anos, vovó havia ficado viúva, e não mais se
interessara por casar, nem ao menos, namorar. Morava ali sozinha.
Uma noite, os terríveis malfeitores não deixaram vovó dormir. Logo que
se levantou, ela foi a um supermercado comprar um inseticida. Comprou o
mais forte que achou, um de ligar na tomada.
Suas filhas foram lá visitá-la. Vovó contou que não teria mais problema
com as muriçocas. Que havia comprado um inseticida poderoso.
Vovó, logo que viu aquela nuvem de pernilongos entrando por sua janela,
ligou o aparelho e ficou na expectativa de vencê-los completamente.
Chegou a hora de dormir. O produto ali aplicado ajudou bastante.
Restaram, no entanto, uns três desses perturbadores, que não se
intimidaram com aquele ataque bélico disparado contra eles. Zoaram,
zoaram... Depois, um deles veio e deu uma boa ferroada no nariz da
pobrezinha.
Nervosa, ela se levantou, deu tapas, travesseiradas... Uns cinco, ela
garantia que matou. Em seguida, dormiu tranquila – de cansada, é claro.
As filhas voltaram lá. Vovó falou que esses atrevidos estavam tais quais
os jovens de hoje. Eles não têm limite. Não honram ninguém nem nada.
Esses bichos não respeitam mais nem inseticidas. Quando eu era moça,
tudo era diferente. As pessoas tinham respeito. E esses invasores
noturnos iam embora por muito menos.
As dedicadas filhas contrataram um serviço de dedetização. Dedetizaram
casa, quintal, acharam até uma cobra na bananeira, mas isso não
impressionou vovó. Ela queria saber é se tinham acabado com aqueles
malditos perturbadores do seu sono.
A vida é surpreendente. Daí, a graça de viver. Depois de toda essa
guerra, restou apenas um pernilongo. Esse não ia à noite a fim de picar
vovó. Ia apenas cantar para ela. E ela achou a voz dele tão linda!
Vovó contou para alguém que passara a ter um fascínio por esse
companheiro da noite. Quando ele demorava a aparecer, ela chegava a
sentir a sua falta. Aí ele vinha, cantava, e ela dormia serenamente...
Não precisou que ela explicasse. Numa reunião em família, interpretaram
que esse canto era, na verdade, um canto antigo, ancestral, imortal, que
ficara para sempre colado na memória de vovó. Aquele inseto-cantor
apenas o despertara.
Quando jovem, vovó se apaixonara por um moço de circo. (Ela evitava
falar sobre isso, em respeito ao vovô.) Ele cantava e tocava violão
muito bem. E fazia belas serenatas para ela. Um dia, o circo se foi. Seu
amor também.
Dali a duas semanas, era aniversário de vovó. A família procurou na
internet, na televisão, até encontrar aquele seresteiro apaixonado. Ele
já estava com oitenta anos, mas ainda se apresentava em eventos.
Chegou o dia! Grandiosa surpresa! Logo que ele, ainda do lado de fora da
casa, deu os primeiros acordes no violão, vovó não teve dúvida de que
fosse aquele seu antigo e ardente amor. Correu ao seu encontro. Não
resistindo, deu nele um abraço e um beijo apaixonado. Porém, logo se
conteve. Ele podia já estar casado, ter filhos e até netos...
Ele entrou, sentou, comeu do bolo, bebeu do vinho, cantou as músicas
prediletas de vovó. Seus olhos revelavam que ele tinha ânsias de falar
uma porção de coisas, porém, o superego entrava em ação e o impedia de
falar.
A festa acabou. O inesquecível amor novamente se foi.
(Vovó, em monólogo interior) - Tanta coisa aconteceu, tudo por
causa de um pernilongo...
* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de
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Fanzine.
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Chaves.
* * *
Gentileza gera gentileza:
O gato que ofertava flores
Sendo ele de um estrato inferior ao dos humanos, a única coisa que lhe
restava era ir para a porta desse restaurante, a fim de assistir, toda
noitinha, ao empolgante show: as pessoas contando casos, rindo felizes e
saboreando os mais deliciosos pratos.
Por Sérgio Souza*
De Ibirité-MG
Para
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Fanzine
17/09/2023

Nem sempre recebia em troca a sua comida, porém uma boa dose de carinho
estava sempre garantida.
Vida de gato é essa mesmo: correr, pular, brincar, passear bastante
durante a noite e, quando o sono chega, entregar-se ao reino dos sonhos.
Especialistas afirmam que tais felinos têm muita energia e vivacidade,
porque sabem, como poucos no mundo, relaxar.
Alguns podem ter um lar, receber ali sua ração, seu carinho e todo
cuidado sanitário. Mas e os que vivem na rua? Estes comem o que acham e
quando acham, e se nada encontram, o jeito é furtar.
A história de um sem-nome com certeza vai te emocionar. Em suas
peregrinações, esse bichano sentiu o cheiro de comidas um tanto
apetitosas para ele: churrascos, peixes e o mais.
Sendo ele de um estrato inferior ao dos humanos, a única coisa que lhe
restava era ir para a porta desse restaurante, a fim de assistir, toda
noitinha, ao empolgante show: as pessoas contando casos, rindo felizes e
saboreando os mais deliciosos pratos. (E o coitado, também saboreando
tudo, mas apenas com os olhos.)
Uma noite, o faminto não resistiu. Deu um pulo e ficou na janela.
Ninguém o importunou, porque ninguém o notou.
Na próxima vez, o nosso herói empreendeu ousadia maior: da janela,
saltou para dentro do estabelecimento. O proprietário expulsou-o de lá.
Frustrado, aquele infeliz passou três dias sem reaparecer ao local. Num
canto da mata, permaneceu meditando, tentando entender os humanos, com
quem ele, fatalmente, deveria continuar a conviver.
Na sequência, voltou à porta do restaurante, desta vez, só para
observar. Verificou, detalhadamente, o ambiente e o comportamento das
pessoas.
Importante foi notar que os humanos não comiam de graça. Para receber
aquilo que desejavam, entregavam à garçonete uma folha de alguma planta,
algo assim. Aí ele pensou: “Ah, já entendi por que não sou prestigiado
neste recinto. Eu não chego aqui com essa folha, esse papel.”
Decidido, pulou o muro de um jardim, colheu a mais bela flor.
Partiu para uma nova missão. Portando cuidadosamente aquela dádiva da
Natureza, entrou seguro naquele paraíso dos prazeres alimentares. A
garçonete nem nota sua presença. Entretanto, ele a chama. Logo que ela o
vê, ele oferta-lhe aquele atraente mimo.
A moça quedou paralisada, tamanho o deslumbramento. Fazia quase cinco
anos que ela terminara um noivado. Frustrada, decidira que não ia mais
amar ninguém. Pensava que o amor, um carinho, um afeto, já estavam
morando em outro planeta, bem distante daqui. Jamais poderia imaginar
que alguém ainda se acercasse dela, ofertando-lhe uma flor.
Ela acariciou muito o amiguinho. Beijou-o carinhosamente, como num
sincero agradecimento. Sensível que era, entendeu direitinho a intenção
desse novel cliente. Foi logo preparar um pratinho bem apetitoso para
ele. Pragmático, o gerente questionou:
- Mas você está tirando comida daqui a fim de dar para um gato?
Ela respondeu:
- Ele pagou.
O gato voltou mais duas vezes ao recinto, levando flores à sua amiga ou
a alguém que o admirasse.
A garçonete tentou levá-lo para casa. No entanto, ele resistia. Seu
lugar era mesmo o mundo...
Desapareceu dali. Os próprios fregueses sentiram a falta dele. Teria
sido atropelado? Felizmente não. É que ele acabara de descobrir a sua
real missão nesta Terra: sair pelas ruas, distribuindo flores à
população.
Nem sempre recebia em troca a sua comida, porém uma boa dose de carinho
estava sempre garantida. E isto, se não alimentava seu corpo, alimentava
a sua alma e o deixava felicíssimo.
Bonito é que seu exemplo foi seguido, não só por animais, como também
por humanos. Via-se um montão de gente distribuindo rosas. O afeto
existe dentro de todos nós. Às vezes, ele precisa é ser despertado.
* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de
Via
Fanzine.
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- Produção: Pepe
Chaves.
* * *
Somos independentes?
Independência ou Morte! O quê!?
Enfim, a total independência é mera utopia. País nenhum consegue essa
façanha. Aliás, pessoa alguma, uma vez que a vida em sociedade
transcorre por intercâmbios, um saciando o desejo ou a necessidade do
outro.
Por Sérgio Souza*
De Ibirité-MG
Para
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Fanzine
06/09/2023

Todo país que fica devendo ao FMI torna-se também obrigado a seguir as
diretrizes do Imperador, no caso, os Estados Unidos.
Nem independentes, nem mortos! Foi assim que estivemos, é assim que
estamos, será assim que estaremos.
E então, depois de amargar o jugo português, durante mais de três
séculos, com Portugal roubando nosso ouro, nossa madeira, nossas pedras
preciosas... Portugal catequizando os índios - vale dizer, implantando a
religião do Império – uma das formas de aculturação e dominação...
Depois ainda de um período sombrio, escravocrata... Aí se ouve, forte e
retumbante, o brado de Independência, dado pelo multi-instrumentista e
compositor Dom Pedro I, que, nas horas de folga, era também Imperador -
e adorava uma mulata (dizem, né?).
Foi assim que ficamos independentes. Oh! Que bom! Quer dizer que, nesta
terra brasilis, não tinha mais pobres, nem escravos? Você sabe a
resposta.
E vem a República. Presidentes militares, com pernas de chumbo, mãos de
ferro e cabeça de papel. Um dia, no entanto, aparece um civil, porém
ditador: Vargas. Dizem que ele era “pai dos pobres” (“mãe dos ricos”, em
compensação). No aspecto trabalhista, foi bom, mas tinha ânsias de
poder.
Eis que vem o golpe militar de 64! Foram vinte e um anos de uma ditadura
perversa, perseguidora, matadora. Tudo em nome da arrogância e do
poderio militar, com aquela velha desculpa de que estariam impedindo o
comunismo de invadir e dominar o Brasil - o que agradou sobejamente o
Império Norte-Americano que, tudo indica, estava por detrás. Vargas já
havia feito o mesmo discurso.
Ué, mas não estávamos livres, independentes?
Ah, sim, independentes de Portugal. O Brasil não precisaria, nunca mais,
dar satisfação aos lusitanos nem a ninguém sobre seus atos; teria total
soberania. Mas...
E o Império Norte-Americano? Estava agora o Brasil dependente dos
aspirantes a dominadores do mundo, devendo prestar-lhes conta da sua
economia, sua política interna e externa, e outras mumunhas mais.
Todo país que fica devendo ao FMI torna-se também obrigado a seguir as
diretrizes do Imperador, no caso, os Estados Unidos. Sempre que
necessário, o devedor desse Fundo se obriga a ser contido nos aumentos
salariais, nas despesas internas, nos projetos sociais para uma vida
melhor de seu povo. Em síntese: impõe-se sobrar dinheiro para pagar a
esse Fundo. E o Brasil devia. E o Brasil era escravo desse senhor.
Conseguimos pagar. Hoje, vemos outras nações sofrendo com esse jugo.
Pelo menos disso, ficamos independentes.
Vamos dar um flashback na História, e lembrar que todo império,
um dia, se desmorona. O Império Americano do Norte ainda está de pé,
alimentando a Ucrânia, na guerra produzida pela Rússia. Ou seja, aquela
Guerra Fria não acabou. Há, na verdade, até uma guerra armada, entre EUA
e Rússia, tendo, como teatro de operações, a Ucrânia. Aliás, hoje, os
EUA se envolvem em duas Guerras Frias: a citada e a acirrada disputa
econômica com a China. Será a China o próximo império, com pretensões de
dominar o mundo? “The answer, my friend, is blowing in the wind.”
Outra ameaça, que está tirando o sono do Tio Sam, são os BRICS. O Grupo
vem ganhando cada vez mais poder. Outros países, com importantes
economias, acabam de aderir ao Grupo. Os Estados Unidos vêm gozando seu
conforto, uma vez que a economia do Brasil e de grande parte do mundo é
em dólares. Se os EUA precisam de dinheiro, se gastam tanto com a
guerra, sem problema! “Vamos fabricar mais dólares.” Enquanto isso,
outros países amargam suas inflações e seus problemas sociais.
Para maior dor de cabeça dos norte-americanos, os BRICS estão dispostos
a não mais negociar em dólares. As negociações podem ser em real, em
yuan (moeda chinesa), em Rand sul-africano (da África do Sul) ou, bom
também, numa moeda que os BRICS pretendem criar. Bem, se isso não fizer
ruir o Império norte-americano, pelo menos vai abalá-lo bastante.
Enfim, a total independência é mera utopia. País nenhum consegue essa
façanha. Aliás, pessoa alguma, uma vez que a vida em sociedade
transcorre por intercâmbios, um saciando o desejo ou a necessidade do
outro. O importante é que cada um tenha vez, seja visto e ouvido.
* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de
Via
Fanzine.
- Imagem: Divulgação.
- Produção: Pepe
Chaves.
* * *
Ensino Público:
Educação ou inducação, na querida São Paulo?
Todos já sabem também que o bolsonarismo virou uma seita. A seita PIX, a
seita ouro, a seita diamantes, a seita qualquer tipo de cartão. Em
troca, você recebe um sorriso confiante do mito, sorriso este, ainda
mais tentador, agora, com harmonização facial, dental e até nas nádegas,
conforme andam dizendo por aí.
Por Sérgio Souza*
De Ibirité-MG
Para
Via
Fanzine
1º/09/2023

Tarcisio e Bolsonaro:
um novo
Samba do Crioulo Doido está nascendo em São Paulo.
Um homem muito “inducado”, o qual não conhecia direito São Paulo,
candidatou-se a governador desse estado. E qual não foi a surpresa para
muitos? Ganhou.
Todos sabem que ele segue o modelo de Bolsonaro, e que é amigo do Edir
Macedo. Aliás, ele é do Partido Republicanos, fundado por esse bispo
(melhor dizendo, por esse empresário).
Todos já sabem também que o bolsonarismo virou uma seita. A seita PIX, a
seita ouro, a seita diamantes, a seita qualquer tipo de cartão. Em
troca, você recebe um sorriso confiante do mito, sorriso este, ainda
mais tentador, agora, com harmonização facial, dental e até nas nádegas,
conforme andam dizendo por aí.
E o Tarcísio de Freitas, uma vez bolsonarista, “a seita” automaticamente
a doutrina imposta pelo líder. E um dos princípios desse cânon é o
repúdio à ideologia de gênero. Dentre as regras, não se pode nem falar
nas escolas sobre educação sexual. É imoral; é indecente; é pecaminoso.
E a família tradicional brasileira deve até entrar em guerra, se preciso
for, para que tal conteúdo educacional não seja ensinado.
Considerações: A primeira é que eu lecionei, durante um bom tempo, no
Ensino Fundamental e Médio. Nas aulas de educação sexual, falava-se
sobre gravidez precoce, prevenção contra doenças sexualmente
transmissíveis... Era comum um médico ser convidado para melhor instruir
os alunos e responder perguntas por eles formuladas.
Era tudo muito respeitoso e positivo. E preenchia uma lacuna, vez que a
maior parte do alunado não recebe informações suficientes em casa.
Segunda consideração: a família do Bolsonaro é tão exemplar assim? Ele
já está na terceira esposa; o que ele ensinou aos filhos foi
desonestidade, e um por um caminha para as goelas da Justiça. Tudo não
passava de discursos eleitoreiros, para enganar as pessoas mais
sugestionáveis e crédulas.
Vamos voltar ao Tarcísio. Esse governador resolveu declarar guerra aos
livros didáticos do MEC. Em lugar deles, propôs a produção de material
digital, com redação de sua própria equipe e, ao que tudo indica,
recheado com as ideologias bolsonaristas de que falamos. Com isso,
seriam usados também para uma doutrinação, uma pré-campanha política,
dando sequência à seita fundada pelo messias Bolsonaro.
Quanta mancada! Um bom número de alunos não tem computador para assistir
às aulas, baixar material (o que ainda lhe causaria mais uma despesa),
não tendo, muitas vezes, nem ao menos um celular. E o valor do
investimento é altíssimo e desnecessário, porque o MEC já tem tudo
pronto e a distribuição é gratuita. Será que o Tarcísio se inspirou na
Noruega, ou em algum outro país consideravelmente rico e com índice de
desenvolvimento humano sobremodo elevado? São Paulo tem muito glamour.
Tem sim. Mas infelizmente, tem moradores de rua, tem favela, como
acontece nas grandes cidades brasileiras. Responsabilidade dos governos.
Contudo, a coisa não para por aí. Chegou a hora de descontrair um pouco.
Você se lembra do Samba do Crioulo Doido, do notável jornalista Sérgio
Porto (Stanislaw Ponte Preta)? Se não se lembra, vamos recordar. A
situação é essa: um bom crioulo foi incumbido de compor um samba-enredo
para um carnaval, o qual discorresse, como de praxe, sobre pontos da
História do Brasil. Só que era muita informação, e o moço misturou tudo.
No
seu samba, a princesa Leopoldina se casa com Tiradentes; depois, foi
“proclamada” a escravidão, e por aí vai.
Pois bem, um novo Samba do Crioulo Doido está nascendo em São Paulo. Uma
notícia do Uol vem informar que, no material didático da gestão Tarcísio
de Freitas, consta que São Paulo, capital, é banhada pelo mar. Pior:
numa lição de História do Brasil, registra-se que quem assinou a Lei
Áurea foi Dom Pedro II. Ah, quer saber? Menos mal. Achei que eles iam
colocar que foi o Pedro, jogador do Flamengo, ou quem sabe o Pedro
Bento, que fazia dupla com o Zé da Estrada.
* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de
Via
Fanzine.
- Imagem: Divulgação.
- Produção: Pepe
Chaves.
* * *
Divisão:
Brasil do Norte e Brasil do Sul
O assunto do momento é a infeliz fala do governador de Minas, Romeu Zema,
defendendo que deveria ser criado um consórcio Sul/Sudeste, para fazer
frente ao consórcio dos estados do Norte/Nordeste.
Por Sérgio Souza*
De Ibirité-MG
Para
Via
Fanzine
19/08/2023

Todavia, não somos ingênuos. A contenda se situa muito mais no terreno
político do que no social. É que o Hemisfério Sul pendeu mais para
Bolsonaro, enquanto o Nordeste foi decisivo na eleição do Lula.
Durante a
campanha para as últimas eleições presidenciais, um dos mais inflamados
discursos da direita era que, se o Lula ganhasse, o Brasil iria
transformar-se numa Venezuela. (Bem, a nossa vizinha tem seus pontos
positivos. Um deles, foi a magnífica ajuda prestada aos amazonenses,
quando eles estavam morrendo por falta de oxigênio – e de
responsabilidade do governo federal vigente na ocasião.)
A
direita, que criticou, agora, através de alguns dos seus líderes e
seguidores, propõe que o Brasil se transforme – digamos assim – numa
Coreia, que é dividida em dois hemisférios, a saber: a do Norte e a do
Sul.
Seria
então o “Brasil do Norte” (composto pelas regiões Norte e Nordeste) e o
“Brasil do Sul” (constituído pelas regiões Sul e Sudeste). E o
Centro-Oeste? Em que hemisfério ficaria? Talvez do Sul.
O assunto
do momento é a infeliz fala do governador de Minas, Romeu Zema,
defendendo que deveria ser criado um consórcio Sul/Sudeste, para fazer
frente ao consórcio dos estados do Norte/Nordeste. A fala tem gerado uma
enorme repercussão. “O Nordeste é pobre; o Sul é rico.” Foi mais ou
menos isso que tal governador quis dizer em um dos tópicos. Preconceito!
Xenofobia! Nazismo! E se o Zema realmente tem pretensões de se
candidatar a presidente em 2026, está indo na contramão, porque ele
seria o presidente do Brasil (Deus nos livre), e não apenas do
Hemisfério Sul.
Tal
preconceito, no entanto, já vem de outras eras. Bolsonaro já o tinha com
sobra, e boa parte dos seus aliados. Fala-se que no Nordeste não tem
economia, só tem praias; que o nordestino é preguiçoso; que vive é de
bolsa-família. Esqueceu-se de que grande parte do que foi construído no
Sul/Sudeste foi com mão de obra nordestina; esqueceu-se também de que
muitos sulistas são filhos desses imigrantes.
Preconceito já até estrutural. Luiz Gonzaga fez suas primeiras aparições
aqui no Hemisfério Sul, de terno e gravata, como era a moda entre os
artistas. Só depois de fazer amizade com o cantor e compositor
catarinense Pedro Raimundo - o qual se apresentava com trajes gaúchos -,
é que teve a coragem de “se assumir realmente nordestino”, criando seu
visual (às vezes criticado) e divulgando enfim a cultura da sua região.
Todavia,
não somos ingênuos. A contenda se situa muito mais no terreno político
do que no social. É que o Hemisfério Sul pendeu mais para Bolsonaro,
enquanto o Nordeste foi decisivo na eleição do Lula.
Com a inelegibilidade de Bolsonaro, vêm
surgindo candidatos ao seu espólio. Um é o Tarcísio de Freitas; outro, o
Zema. E outros decerto surgirão. A guerra separatista é, pois, uma
campanha antecipada, uma posição direitista radical, visando a
alinhar-se ao pensamento bolsonarista e a ganhar seus eleitores. Tenho
até um bom nome para esse movimento: “Operação Urubu”. São urubus
disputando a carniça, a saber: os traços de fascismo e de nazismo
implantados neste nosso honrado País.
O
Hemisfério Norte é pobre? Pobre em quê? Em cultura, em consciência
política, devemos reconhecer que não é. E a riqueza natural da Amazônia?
E o novo pré-sal? E a indústria de carros elétricos que será implantada
na Bahia? Parece que alguns líderes nazifascistas vieram de outro
planeta, pois não conhecem o Brasil.
Impor
barreiras entre povos é impor barreiras a si próprios. O bonito é a
união das pessoas. Que mal tem o Nordeste exibir as bonitas danças
gaúchas, e o Sul ser aquecido com um caloroso forró? Pode-se tirar um
incalculável proveito, lendo-se Machado de Assis, Drummond, Guimarães
Rosa, Mário de Andrade, Érico Veríssimo, Cruz e Souza, Jorge Amado,
Manuel Bandeira, Graciliano Ramos, dentre outros mil. Todos eles são
filhos de uma única terra: o Brasil. Aliás, já são do mundo.
Ontem,
numa rede social, quando comentei este assunto, alguns internautas
reagiram contra mim. Um deles me provocou: “Se você gosta do Nordeste,
por que não muda pra lá?” Respondi: Sou feliz em Minas; já morei em São
Paulo, tendo gostado bastante de lá; mudaria para o Nordeste sim, e
garanto que me sentiria sobremodo feliz. A felicidade - falei com ele
- existe é dentro de cada um de nós. O infeliz acha todo lugar ruim. Já
o venturoso festeja seu tempo de júbilo em qualquer terra. E então quem
atingir o sublime estado de graça? Ah, este, até mesmo numa guerra,
encontrará motivos para sorrir.
* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de
Via
Fanzine.
- Imagem: Divulgação.
- Produção: Pepe
Chaves.
* * *
Vida profissional:
Uma derrota pode acarretar sucesso
Um
dia então, o adolescente Wesley chega até o pai e anuncia: “Vou fazer
vestibular de engenharia.” E o pai: “Oh! Que notícia boa!” “Chegue aqui,
Maria, mais um engenheiro na família.” E ela: “Não tinha melhor
escolha!”
Por Sérgio Souza*
De Ibirité-MG
Para
Via
Fanzine
04/08/2023

Repórteres à sua porta e convites para entrevistas no rádio e TV não
faltavam.
Na casa do Wesley,
respirava-se engenharia. Pai, irmão mais velho e tio, todos engenheiros.
Quando se reuniam os três na sala, as mulheres nem conseguiam mais falar
da moda, da vizinha ou da novela da Globo.
Um dia então, o
adolescente Wesley chega até o pai e anuncia: “Vou fazer vestibular de
engenharia.” E o pai: “Oh! Que notícia boa!” “Chegue aqui, Maria, mais
um engenheiro na família.” E ela: “Não tinha melhor escolha!”
- Filho, mas eu
queria primeiro conversar com você. Você sabe que eu, seu tio e seu
irmão não ficamos milionários nesta profissão, mas temos uma vida
confortável. Cada um tem seu carro, sua casa, podemos colocar os nossos
filhos em colégios particulares... Foi esta a razão da sua escolha?
- Não, meu pai, é
porque eu gosto mesmo. Posso ter tido alguma influência de vocês – não
vou negar -, mas a real vontade brotou de mim.
- Ah, ótimo! E é bom
que você ainda poderá contar com a nossa mentoria.
Tudo perfeito. Só
que o jovem, cheio de sonhos, não passou.
A frustração não foi
só sua. Foi da família inteira. Depois, o pai o consolou:
- Wesley, também nem
tudo está perdido. Você é jovem, e daqui a seis meses, tem o vestibular
de novo. Você vai e passa.
O filho andou dentro
de casa, ponderou, depois falou de sua decisão:
- Como segunda opção
no vestibular, eu coloquei Design Industrial. E a minha pontuação dá,
para fazer esta faculdade. Vou matricular-me nela então.
- Mas você gosta?
- Sinceramente, mãe,
eu nem sei direito o que é isso. Achei que parecia interessante, poderia
ter campo de trabalho, coloquei lá na ficha.
Wesley,
já na faculdade, faz uma grande amizade com seu colega Henrique. Um dia,
este lhe pergunta:
- Wesley, vai fazer
o concurso?
- Que concurso?
- De redação. O tema
é “A importância da embalagem”.
- Aqui para a
faculdade mesmo?
- (Rindo)
Não, amigo! É em nível mundial.
- Nem pensar! Há
pouco tempo, eu nem sabia o que era Design. Agora, vou eu disputar com
os feras do marketing e da publicidade?
O Henrique se
inscreveu no concurso e convenceu o Wesley a também participar, ainda
que fosse só por experiência. O Wesley aceitou. E esqueceu-se daquilo.
Faltando só dois
dias para a entrega do trabalho, o Wesley se lembrou e pensou: “Nossa!
Vou ter que fazer isto hoje.” Foi comprar num sacolão. Ali é que ele
teve um insight para a redação. Chegou em casa, pegou uma caneta,
um papel, e em dez minutos, escreveu mais ou menos assim:
“Deus, ao criar as
frutas e os legumes, colocou neles uma embalagem: a casca. E o Criador,
sendo o Maior dos Engenheiros, projetou, para a melancia, um invólucro
espesso e resistente. Já para a pequenina uva, Ele criou uma embalagem
mais tenra e delicada. Imaginemos agora Deus, enquanto Publicitário. Ele
não poupou os apelos sensoriais em suas embalagens: estimulou a visão,
com belíssimas cores; acrescentou-lhes cheiro, sabor e até algum prazer
no tato. Pois bem, se Deus achou importante a embalagem, quem sou eu
para discordar?”
Venceu o concurso!
Como prêmio, recebeu cem mil dólares. Suas caixas de mensagens ficaram
abarrotadas, tanta gente dando-lhe parabéns e elogiando o seu trabalho.
Repórteres à sua porta e convites para entrevistas no rádio e TV não
faltavam. Chega novamente o pai:
- Filho, eu, seu tio
e seu irmão já estamos há tanto tempo na nossa profissão e nunca nos
tornamos uma celebridade, coisa que você, em poucos meses, realizou.
Ainda vai tentar engenharia?
- Claro que não, meu
pai. Se eu iniciei a mil por hora esta intrigante carreira, quero
continuar nela, procurando sempre ser o melhor do mundo.
* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de
Via
Fanzine.
- Imagem: Divulgação.
- Produção: Pepe
Chaves.
* * *
Boemia carioca:
Madame Satã
Era negro. E ao ser entrevistado uma vez pelo Pasquim, perguntaram-lhe
se ele era homossexual. Ele respondeu: “Sempre fui, sou e serei.” No
entanto, foi casado com Maria Faissal. Adotaram e criaram seis filhos.
Por Sérgio Souza*
De Ibirité-MG
Para
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Fanzine
24/07/2023

João Francisco dos Santos (1900 – 1976) nasceu em Glória do Goitá, Zona
da Mata pernambucana, em 25 de fevereiro de 1900. Aos treze anos,
mudou-se para o bairro da Lapa, no Rio de Janeiro.
Hoje existe lei que protege a comunidade LGBTQIA+. Ainda assim, existem
discriminações, agressões e até mesmo homicídios a integrantes dessa
comunidade. Imaginem então nas décadas de 20 e 30 do século XX. E quando
o indivíduo, além de homossexual, fosse negro?
Dependendo da situação e do temperamento de quem viesse a ser agredido
em sua orientação sexual, alguns optavam por calar-se (e sofrer por
dentro); outros reagiam, fazendo justiça com as próprias mãos.
João Francisco dos Santos (1900 – 1976) nasceu em Glória do Goitá, Zona
da Mata pernambucana, em 25 de fevereiro de 1900. Aos treze anos,
mudou-se para o bairro da Lapa, no Rio de Janeiro. Começou ali vivendo
como moleque de rua. Depois, conseguiu um emprego, como vendedor
ambulante de pratos e panelas de alumínio. Na sequência, fez de tudo um
pouco: foi segurança, cozinheiro, garçom, capoeirista.
Posteriormente, enveredou-se pela vida criminosa, tornando-se bastante
famoso no baixo mundo carioca.
Era negro. E ao ser entrevistado uma vez pelo Pasquim, perguntaram-lhe
se ele era homossexual. Ele respondeu: “Sempre fui, sou e serei.” No
entanto, foi casado com Maria Faissal. Adotaram e criaram seis filhos.
Contudo, seu grande amor foi o Brancura, um malandro e cafetão. Viveram
juntos, até que o Brancura se apaixonou por uma mulher e fugiu para o
Mato Grosso, a fim de se casar com ela. O João Francisco foi atrás deles
com o intuito de matá-los. Todavia, não os encontrou. Tempos depois,
volta o Brancura para os braços do seu amado...
Desfilou uma vez no carnaval, tendo conquistado o primeiro lugar. Logo
depois, ele e outros foliões, foram chamados à delegacia. Frente a
frente com o senhor delegado, este lhe pergunta quem ele é. Por ter uma
extensa ficha criminal, o rapaz nega-se a revelar. Aí o delegado,
reconhecendo-o, fala categórico: “Ah, é a Madame Satã.” E o apelido
pegou.
Madame Satã frequentava aqueles cabarés decadentes do Rio, tendo sido
ator nesses ambientes. Era transformista.
O que mais o identificava, entretanto, era sua fama de valente, um homem
que não levava desaforo para casa. Brigava, ou até mesmo matava, para
defender os seus direitos.
Entrando para o teatro, decidiu abandonar a sua vida no crime. Só que o
sangue quente corria-lhe nas veias. Em uma noite, quando voltava desse
seu trabalho, resolveu jantar em um boteco. Ali apareceu um tal de
Alberto, um vigilante noturno. Esse guarda dirigiu provocações contra
ele. Chamou-o de “viado” reiteradas vezes. Madame Satã puxou da arma,
atirou no vigilante. Foi condenado a dois anos e três meses de prisão.
Houve dia, quando entenderam a sua reação como legítima defesa. Talvez
isso tenha diminuído o seu tempo de cela.
Ao sair do presídio, decidiu abandonar o teatro, tendo sido impulsionado
de vez para a vida no crime. Novos delitos, novas prisões.
“Baiana/que entra na roda/só fica parada/no samba não mexe/não bole nem
nada/não sabe deixar/a mocidade louca...” Agora, estamos falando de
Geraldo Pereira, compositor mineiro, de Juiz de Fora, autor desse famoso
samba e de tantos outros de sucesso. Quando Geraldo Pereira compôs: “Um
escurinho/Era um escuro direitinho/Agora tá com a mania de brigão...”,
devíamos entender que “esse escurinho” era ele próprio. Conta-se que
ele, quando estava sóbrio, era um doce. Contudo, quando embriagado, era
mesmo valentão. Existem várias versões sobre sua morte. Há quem diga que
foi de câncer; outros afirmam que sua esposa, sentindo-se reiteradamente
traída, colocou vidro moído na bebida dele, causando-lhe hemorragia
intestinal. Mas existe ainda outra. Vejamos.
O compositor entra com uma mulher num bar. Avista Madame Satã sentado
sozinho a uma mesa. Chega o casal, senta-se com ele. Num certo momento,
Geraldo Pereira, já tonto, cisma que Madame Satã havia trocado seu copo
de chope. Dois brigões, aquilo foi o suficiente para mais uma confusão.
Madame Satã dá-lhe um soco detonador. Geraldo cai com a cabeça num
paralelepípedo, vai para o hospital, e lá, morre.
Foi uma época de uma romântica malandragem, verificada nas noites do
Rio, inspiradora de músicas, livros, filmes e até mesmo desta crônica.
No dia 12 de abril de 1976, Madame Satã sai da vida, para tornar-se
mito.
* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de
Via
Fanzine.
- Imagem: Divulgação.
- Produção: Pepe
Chaves.
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