Onde as autoridades falham:
Há
vida depois do estupro?
Torna-se urgente diante do crescente número de casos, que a Justiça
brasileira aja com muito
mais rigor não apenas com detenção, mas através de medidas educativas,
preventivas visando
buscar um meio viável para que este tipo de criminoso não continue a
praticar tais crimes.
Por
Rita Shimada Coelho*
De
São Paulo
Para
Via Fanzine
05/02/2013

Cena do filme Irreversível, 2002, de Gaspar Noé.
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Um
país estuprado
Os números oficiais de estupros cometidos no Brasil são um
mistério. Em uma pesquisa você vai encontrar que "a cada 12 minutos uma
mulher é estuprada no Brasil". Portanto, seria um número
consideravelmente alto. Talvez os números não sejam divulgados para que
as vítimas não sejam rotuladas como estatísticas ou para não espalhar
pânico, haja vista que nenhuma medida definitiva é tomada para ao menos
inibir os estupradores.
Pouco antes de me casar trabalhei em uma locadora de
vídeos. Naquela época ainda não havia os DVDs. Obrigatoriamente, os
funcionários tinham que conhecer os filmes para indicar aos clientes e
isto incluía os filmes eróticos e pornográficos que me recusava a
assistir.
Pouca gente sabe, mas muitos homens só conseguem realmente
satisfazer-se sexualmente masturbando-se e em muitos casos isso se deve
ao fato de iniciar sua 'vida sexual' utilizando-se de filmes como
estimulador para a masturbação. O número de clientes que os procuravam
era grande e frequente.
O chefe - dono da locadora - respeitou minha escolha, mas,
ao menos eu deveria conhecer os títulos pelas capas dos vídeos além de
conhecer bem as regras de discrição oferecidas aos clientes. Foi
observando os títulos disponíveis nesta área restrita da locadora que me
deparei com vídeos nacionais que me despertaram desconfiança intuitiva.
Escolhi um deles e resolvi assisti-lo.
Bem como eu havia imaginado: filmagem caseira, uma morena
bonita dos confins do nordeste... Tão caseiro que podia-se ouvir as
tramas para convencer a moça previamente persuadida a encontrar os dois
homens: um que filmava e outro que aparecia na filmagem. O encontro era
as margens de um rio onde via-se ao longe muitas mulheres lavando roupas
que batiam nas pedras.
Depois de mostrarem a paisagem, foca-se na aproximação da
moça que vem caminhando carregando uma cesta de vime cheia de roupas.
Era a desculpa dada em sua casa para poder estar ali. A câmera
movimenta-se e vai mostrando que o local da gravação será atrás de
arbustos e árvores. A moça tímida é convencida a fazer a filmagem com a
promessa de tornar-se uma estrela famosa podendo até conseguir um papel
na TV. Um dos homens estende no chão com terra e folhas secas um lençol
e chama a moça para ali se deitar.
Ela se mostra indecisa o tempo todo, mas logo as promessas
constantes a convence. Ela e o homem mantém relações sexuais e o tempo
todo ela se recusa a estar em determinada posição ou outro tipo de
penetração. Mesmo assim, ele a força e ela luta. Visivelmente seu corpo
expressa o desconforto, a dor e a rejeição. A primeira cena está
completa quando mais dois homens saem do meio das árvores e a moça se
mostra assustada. Pergunta o que está acontecendo e diante das respostas
se recusa a fazer o que pretendem. Eles a coagem e por algum motivo ela
nitidamente se sente obrigada a continuar.
Com estes detalhes - mesmo que superficiais - imagina-se o
que aconteceu... Ao final da gravação a moça mostra-se humilhada,
ouvindo aqueles homens dizendo entre gargalhadas que ela esteve ali por
vontade própria. E então, ela pega sua cesta e segue pelo mesmo caminho
que chegou ali com os gritos daqueles homens dizendo pra ir mesmo porque
foi reprovada e nunca conseguiria ser uma artista de fato.
Fiquei horrorizada! Como algo assim podia ser assistido?
Questionei o dono da locadora sobre o conteúdo e ele apenas disse:
“Estas garotas gostam de fazer isso e fazem por dinheiro”. Eu me
perguntei se aquela moça era de fato uma atriz e tudo não passou de
encenação ou se conseguiu seguir sua vida depois daquela experiência...
Assédio e vulgarização
Naquele mesmo período um dos 'diretores' de filmes pornôs
nacionais apareceu na locadora para fornecer mais vídeos. Além de
escrever o enredo da história, conseguir 'atores', dirigir e filmar - e
as vezes atuar – ele oferecia os vídeos em tudo que era locadora. Vendia
porque ele tinha um público. Encostou-se no balcão diante de mim e
perguntou se eu não gostaria de ser a estrela de seu próximo filme. Meu
chefe se aproximou pedindo para que me respeitasse. O homem vestido de
botas e chapéu de cowboy riu-se e ainda disse: “Você vai ganhar muito
mais do que ganha nesta locadora!”. Eu me senti ofendida com a proposta.
A excessiva vulgarização da mulher pelos meios de
comunicação alimenta fantasias eróticas e generaliza o comportamento
feminino. A exploração do corpo, da sensualidade confunde a liberdade
sexual com o libidinoso.
Vemos nos noticiários o crescente número de casos de
violência sexual explorados ao máximo pela mídia e documentários
explicando o perfil psicológico do criminoso e o que o leva a cometer
estes tipos de crimes. A Sociedade parece estar mascarada, pois o
machismo ainda impera. Existem homens que ainda se acham no direito de
possuir e usar a mulher que bem entender - independente da vontade dela.
Existem homens que olham para uma mulher e só enxergam a
atriz pornô dos filmes que os iniciaram nos prazeres sexuais... Não vem
ao caso as mulheres que se submetem por terem algum tipo de carência
emocional e que acredita no sexo como o caminho que a leva ao coração de
um homem. A maioria das mulheres gosta ainda da conquista, do respeito
que se reflete no olhar - não apenas os desejos - do processo, das
palavras e gestos, dos nítidos cuidados do parceiro em não passar dos
limites. Muitas mulheres ainda têm amor próprio: não gostam de ser
vistas como um pedaço de carne em uma vitrine de açougue!
O sexo está tão escancarado, explorado na 'Arte' e
utilizado para propagar mensagens consumistas que induzem consumidores
carentes de aceitação a 'ter' e 'ter' cada vez mais que o bombardeio de
notícias que envolvem crimes sexuais só podem dizer duas coisas: ou
estão condicionando todo mundo a aceitar que essas ocorrências são
normais e são resultados das escolhas e da vida das vítimas ou a base do
comportamento atual é instintivo e sexual.
Observe qualquer notícia de crime sexual... Parecem tentar
justificar o agressor. Foca-se nos 'porquês' de suas atitudes e o que os
motiva a se voltar contra as mulheres. “Ele pode ter sofrido abuso na
infância...”. E então as mulheres devem se conformar que sempre haverá o
risco de ser a próxima vítima? E hoje em dia a Psicologia produz alguns
profissionais que não tem colaborado muito no que diz respeito ao
comportamento moral e civilizado humano: qualquer ato descabido é doença
ou distúrbio mental então é justificável e não pode ser tratado como
crime! Pior ainda: o mesmo se dá aos crimes de pedofilia.
Pedofilia: a amplificação do mal
Certa vez, meu blog recebeu uma denúncia de um leitor que
demonstrava estar desesperado, por causa de um vídeo onde foi gravado um
ato de pedofilia. Em nenhum momento da mensagem a pessoa se lembrou de
descrever o conteúdo do vídeo, apenas demonstrando toda sua indignação e
revolta que me levou a assistir o vídeo.
Um cavalete para ginástica foi colocado em cima de uma
mesinha de sala para alcançar certa altura... Uma criança foi colocada
em cima do cavalete - de bruços - teve seus punhos e tornozelos
amarrados por cordas de modo que ela não saísse desta posição. O que se
via a seguir foi o desespero e a gana do pedófilo tentando a penetração
enquanto a criança gemia e reclamava. Quando a primeira penetração
obteve sucesso a criança deu um grito e passou a chorar. O pedófilo
estava tão absorvido por seu instinto e necessidade sexual que não sabia
se continuava mantendo suas mãos onde estavam ou se tapava a boca da
criança. A violência da penetração era tão absurda e frenética que até
mulheres com vida sexual ativa sentiriam dor. Não consegui seguir com o
vídeo e as cenas sempre voltam a lembrança como um pesadelo recente. E
sempre que me lembro me pergunto o que aconteceu com aquela criança
depois desta experiência horrível.
Até aqui a leitura deste texto não é nada agradável. Muitos
devem estar sentindo tremores nervosos - leves ou intensos, sentindo
asco, nojo, respiração acelerada, raiva e sem querer acabou colocando-se
no lugar da vítima. Pois as vítimas de crimes sexuais sentem coisas bem
piores e mais intensas a cada vez que se lembram do que lhes aconteceu!
Enquanto os debates televisivos e jornalísticos tentam -
junto a psiquiatras e psicólogos - compreender a mente dos criminosos,
gostaria de me focar é na vítima. Sim, o lado mais relevante neste tipo
de história será sempre a vítima e vítima não é o sujeito com distúrbio
sexual que foi abusado ou sofreu maus tratos na infância. Aliás, se de
fato podem ser considerados humanos e passaram por tais experiências,
não repetiriam os mesmos atos, pelo contrário: se compadeceria por quem
é vítima dos mesmos eventos.
A única conclusão sobre criminosos sexuais é que eles não
têm cura. Não adianta tratamento, internação, prisão, pois é com
violência sexual que ele descobriu o sexo e é com violência sexual que
ele terá prazer. Castração química não é solução, pois alguém assim não
precisa de seu órgão sexual que é na verdade uma arma que fere não
apenas o corpo, mas vai ultrapassando todas as camadas até atingir a
alma.
Em setembro de 2007, Ademir Oliveira Rosário - o Maníaco da
Cantareira - assassinou dois irmãos de 13 e 14 anos depois de estuprar
um deles. Outros crimes semelhantes foram relacionados a ele e
descobriu-se que, toda vez que recebia o benefício do indulto
temporário, ele buscava por crianças e adolescentes para praticar seus
crimes. A justificativa do maníaco era de ter sofrido abusos quando
criança.
O psiquiatra forense Guido Palomba, em análise para o
documentário sobre o caso pela TV A&E declarou: “Nenhuma doença mental
pode ser construída ao longo da vida por vivências dolorosas do passado.
Nenhuma vivência dolorosa do passado tem força para criar um doente
mental, essas vivências do passado podem criar um neurótico, uma pessoa
meio desequilibrada, de mal com a vida, pouca adaptação, ansiedade ou
angustia. Mas jamais um individuo sem sentimentos superiores de piedade,
que gosta de praticar o mal pelo mal, sem compaixão isso somente é
possível pela natureza do individuo, isso é orgânico e a pessoa irá
manifestar isso em algum momento. Essa conversa que muitos estupradores
dizem que eles cometeram o delito porque foram molestados quando eram
crianças, isso com todo respeito é conversa pra boi dormir, isso não
existe”.'
Guido Palomba ressalta ainda que se trata de um tipo de
criminoso nato: “Ele nasce assim e se desenvolve assim”, portanto, não
há cura ou recuperação para alguém que vive pelo distúrbio do impulso
sexual.
A Lei contra crimes sexuais foi atualizada, sendo
considerado estupro não apenas a conjunção carnal em si como também o
abuso e o atentado violento ao pudor. A nova lei também diz respeito ao
estupro não apenas cometido contra mulheres, mas também contra homens.
Imagina-se que, possuindo a mulher menos força física e por isso sendo
incapaz de subjugar o corpo masculino - visto que estupro é forçar
alguém a manter relações sexuais contra sua vontade - e a conjunção
carnal depende de penetração peniana, a inclusão de homens na lei diz
respeito ao estupro de homens contra homens. A punição da Lei além de
não ser justa suficientemente para punir os criminosos que voltam a
praticar os mesmos atos, não apaga da mente da vítima o que lhe
aconteceu. Em alguns casos, o tempo de condenação é inferior ao período
em que a vítima necessita para se recuperar do trauma. Algumas jamais
conseguem voltar a viver normalmente.
Em 26 de janeiro de 2013 foi noticiado que uma enfermeira
sofreu um estupro coletivo a mando de seu ex-marido. O homem estava
consciente do quanto a violência sexual poderia destruir a vida da
ex-mulher que lamenta: “Como fazer para continuar e não pensar mais no
que eu passei?”.
Em Itarari uma menina de 14 anos era abusada pelo padrasto
desde os 11 anos. A mãe optou em continuar com o estuprador e decidiu
que a filha moraria com o pai que passou a estuprá-la também. A menina
está grávida do próprio pai.
Como estas mulheres podem seguir suas vidas e seus sonhos?
Como podem continuar acreditando em família ou amor? Irão ainda
conseguir se relacionar com homens? E ainda teremos que considerar
normal sermos testemunhas de homens que pronunciam palavras
constrangedoras a mulheres transeuntes...
Efeitos da violência sexual
Na introdução do Manual de Atendimento a Mulher Vitimada
Sexualmente, Cristião Fernando Rosas especifica:
“A violência sexual representa uma parcela importante dos
casos de violência em nossa sociedade, afetando em especial as mulheres.
O crime sexual exerce grande impacto sobre a saúde das vítimas,
destacando-se a ocorrência de injúrias físicas e traumas psicológicos,
de doenças sexualmente transmissíveis (DST) incluindo-se a síndrome de
imunodeficiência adquirida (AIDS) e a gravidez. Sem dúvida há um ‘muro
de silêncio’ em torno do assunto, motivado pelo estorvo social machista
de nossa sociedade, que sempre se coloca em dúvida a palavra da mulher
estuprada. Tal situação induz a que apenas 10% dos casos cheguem às
Delegacias de Polícia. Diante desta dramática realidade a mulher
violentada, frequentemente desamparada, sofre uma segunda violência
quando se vê diante de uma gravidez indesejada ou de uma DST resultante
de um estupro”.
A seguir é listada detalhadamente uma série de
procedimentos que a vítima é submetida logo após a violência ocorrida
como medida preventiva para diversos riscos à saúde.
No trabalho “Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes
da Violência Sexual Contra Mulheres e Adolescente”, o Ministério da
Saúde do Brasil esclarece: "A violência sexual é uma das manifestações
da violência de gênero mais cruéis e persistentes. Diz-se persistente
porque a violência sexual atravessa a história e sobrevive. Por um lado,
na dimensão de uma pandemia, atingindo mulheres, adolescentes e
crianças, em todos os espaços sociais, sobretudo no doméstico; por
outro, na forma de violência simbólica e moral, aterrorizando, em
especial, o imaginário das mulheres, tanto produzindo vulnerabilidades
quanto promovendo uma sensação de constante insegurança, contribuindo
para a perpetuação de uma cultura violenta e patriarcal. (...) Estima-se
que a violência sexual atinja 12 milhões de pessoas a cada ano no
mundo”.
Os sintomas pós-estupro que se refletem na vida das
mulheres e o aumento das ocorrências já se configuram como um problema
de saúde pública, afetando mulheres e adolescentes de qualquer área
social, religião, raça, faixa etária, grau de escolaridade e condição
financeira.
No momento em que está exposto a uma situação de alto
risco, o corpo começa a produzir adrenalina e cortisol em maior
concentração que o normal. Os hormônios deixarão o cérebro em atividade
acelerada, fazendo com que o indivíduo pense em várias coisas em frações
de segundos, acessando arquivos mentais e registrando os novos episódios
ao mesmo tempo em que busca comparações com eventos passados com aquele
do momento. Talvez por isto, nos relatos de muitas vítimas percebe-se
pensamentos ocorridos no momento da agressão.
Listo aqui alguns dos traumas das vítimas definido como
Síndrome do Trauma de Estupro: Fase aguda; Respostas somáticas;
Irritabilidade gastrintestinal (náusea, vômitos, anorexia); Desconforto
geniturinário (dor, prurido); Tensão musculoesquelética (espasmos, dor);
Respostas psicológicas; Negação; Choque emocional; Raiva; Medo de ficar
só ou do retorno do estuprador (a vítima criança terá medo da punição,
das repercussões, do abandono, da rejeição); Culpa; Pânico ao ver o
assaltante ou a cena do ataque; Fobias; Transtornos do sono e pesadelos
Ansiedade Depressão; Respostas sexuais; Desconfiança dos homens (se a
vítima for uma mulher); Mudança no comportamento sexual; Fase de longa
duração. Qualquer resposta da fase aguda pode ser contínua, se não
ocorrer uma resolução
Embora a lista pareça curta, cada um destes sintomas é
intenso e perdura por anos sem um amparo profissional. Talvez, bem mais
que possamos imaginar. Há relatos de vítimas que cometem suicídio por
não suportar as lembranças e os traumas. Muitas adolescentes
enveredam-se pelo caminho das drogas ou da prostituição.
Durante a violência, é comum que as vítimas relatem
pensamentos como: “O que minha mãe vai pensar?” ou “O que fiz de errado
para acontecer isso comigo?”. Não há como reagir. Há um misto de
sentimentos entre reagir e morrer ou se render e conseguir sobreviver.
Uma série de fatores impede que muitos denunciem ou compartilhem com
alguém o que lhes aconteceu. Nestes casos, o temor ronda as mentes das
vítimas.
Autoridades despreparadas
É preciso que os profissionais responsáveis propaguem
informações que desperte confiança nas vítimas para que possam receber a
ajuda devida. A culpa que o criminoso não sente corrói as vítimas. A
vergonha e a insegurança calam a voz que deveria pedir ajuda.
Ao mesmo tempo, torna-se urgente diante do crescente número
de casos, que a Justiça brasileira aja com muito mais rigor não apenas
com detenção, mas através de medidas educativas e preventivas visando
buscar um meio viável para que este tipo de criminoso não continue a
praticar tais crimes.
* Rita Shimada Coelho é
artista plástica e articulista.
- Foto: Divulgação.
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