Césio 137:
Os 33 anos do desastre radioativo de
Goiânia
A propagação do césio-137 para as casas
próximas onde o aparelho foi desmontado se deu por diversas formas. Merece
destaque o fato do CsCl ser higroscópico, isto é, absorver água da atmosfera.
Por Heitor Scalambrini Costa &
Odesson Alves Ferreira*
Para
Via
Fanzine
*
Atualizado em set/2020

A menina Leide, então
com seis anos, foi uma das vítimas do acidente: ela recebeu o
material radioativo como uma 'surpresa' de
seu pai, por achar curioso aquele pó que se tornava brilhante no escuro.
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Trecho do fime "Césio 137 - o brilho da morte'
O fenômeno da
radioatividade descoberto pelo físico francês Henri Becquerel em 1896,
mostrou que o núcleo de um átomo muito energético tende a se
estabilizar, emitindo o excesso de energia na forma de partículas e
ondas. As radiações emitidas por esses núcleos chamadas de partículas,
alfa e beta (pouco penetrantes) possuem massa, carga elétrica e
velocidade. Os raios gama são os mais perigosos por serem mais
penetrantes (energéticos), e de efeitos extremamente nocivos para a
vida, são emitidos na forma de ondas eletromagnéticas, não possuem
massa, e se propagam com a velocidade de 300.000 km/s.
Portanto, quando
temos a presença indesejável de um material radioativo em local onde não
deveria estar, existe assim a contaminação radioativa que gera
irradiações. Para descontaminar um local, retira-se o material
contaminante. Sem o contaminante o lugar não apresentará irradiação, nem
ficará radioativo, irradiação não contamina, mas contaminação irradia.
Feito este
preâmbulo, relembremos o ocorrido há 33 anos, naquele 13 de setembro de
1987, no município de Goiânia (GO), considerado o maior acidente
radiológico do mundo. Um aparelho de radioterapia contendo o material
radioativo césio-137 (produzido em reatores nucleares) encontrava-se
abandonado no prédio do Instituto Goiano de Radioterapia (IGR),
instituto privado, no centro de Goiânia, desativado há cerca de dois
anos (isto mesmo, havia dois anos que o equipamento estava abandonado no
local).
Dois homens,
Roberto e Wagner, à procura de sucata, entraram no prédio do Instituto
sem nenhuma dificuldade, pois o mesmo se encontrava em escombros, sem
portas e nem janelas. Eles levaram o aparelho até Devair, dono de um
ferro-velho. Durante a desmontagem do aparelho, foram expostos ao
ambiente 19g de cloreto de césio-137 (CsCl), um pó semelhante ao sal de
cozinha. O encontrado não era exatamente na forma de pó, mais parecia
como uma pasta, de cor acinzentada, e virava pó quando friccionado. Mas
o que chamava muita atenção é que no escuro, brilhava intensamente com
uma coloração azulada. Encantado com o brilho do material, Devair,
passou a mostrá-lo e até distribuí-lo a amigos e familiares, inclusive
para os irmãos Odesson e Ivo, que levou um pouco de césio para sua
filha, Leide.

Imagens mostram as
vítimas e o trabalho para sepultamento dos corpos lacrados.
Expostas ao
material radioativo, às pessoas começaram a desenvolver sintomas da
contaminação (tonturas, náuseas, vômitos e diarréia), algumas delas após
horas de exposição e outras após alguns dias, levando-as a procurarem
farmácias e hospitais. Foram medicadas como portadoras de uma doença
contagiosa. Os sintomas só foram caracterizados como contaminação
radioativa em 29 de setembro, depois que esposa do dono do ferro-velho
Maria Gabriela, levou parte do aparelho desmontado até a sede da
Vigilância Sanitária.
No dia 23 de
outubro daquele ano morria Maria Gabriela, esposa de Devair e sua
sobrinha Leide. Devair, juntamente com outras 15 pessoas, foram
encaminhadas para tratamento de descontaminação no Hospital Naval
Marcílio Dias no Rio de Janeiro, vindo a falecer em 1994. Nestes 33
anos, seis pessoas da mesma família Alves Ferreira vieram a óbito.
Para a verdade dos
fatos, é necessário deixar registrado que o governo na época não sabia
ainda o que estava acontecendo. Até que no dia 29 de setembro, um dia
após Maria Gabriela e Geraldo (catador de recicláveis que morava no
ferro-velho) terem levado a peça que continha o césio a Vigilância
Sanitária. O físico Walter Mendes, de férias na cidade, solicitou um
contador Geiger do escritório da Nuclebrás de Goiânia, emprestando-o a
Vigilância Sanitária. E ai sim, foi constatada a radioatividade.
A propagação do
césio-137 para as casas próximas onde o aparelho foi desmontado se deu
por diversas formas. Merece destaque o fato do CsCl ser higroscópico,
isto é, absorver água da atmosfera. Isso faz com que ele fique úmido e,
assim, passe a aderir com facilidade na pele, nas roupas e nos calçados.
Levar as mãos ou alimentos contaminados à boca resulta em contaminação
interna do organismo, o que aconteceu com Leide de seis anos de idade.
Oficialmente,
segundo a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), quatro pessoas
morreram, e além delas, das 112.800 pessoas que foram monitoradas, em
6.500 foram encontradas contaminação discreta, mas apenas 250
apresentaram contaminação corporal interna e externa que mereceram maior
atenção e acompanhamento. Destas, 49 foram internadas e 21 exigiram
tratamento médico intensivo.
Os trabalhos de
descontaminação dos locais afetados produziram 6,5 mil toneladas (só
recentemente reconhecidas pela CNEN) de lixo contaminado com apenas 19g
de césio-137. O lixo armazenado em caixas, tambores, containeres eram
constituídos de roupas, utensílios domésticos, plantas, solo, animais de
estimação, veículos, materiais de construção (algumas casas foram
implodidas, sem que pudesse tirar nada de dentro, nem brinquedos ou
fotografias). Todo este lixo radioativo foi armazenado em um depósito
construído na cidade de Abadia de Goiás, vizinha a Goiânia, onde deverá
ficar, pelo menos 180 anos.

Este é o terreno onde o
material radioativo foi depositado em Goiânia.
Quatorze anos
depois, o governo de Goiás incluiu mais 600 pessoas na lista de vítimas.
O Ministério Público Estadual (MPE) chegou à conclusão que, policiais e
funcionários que trabalharam durante o período da tragédia foram
contaminados e alguns morreram em consequência de doenças provocadas
pelo césio. E estas mortes nunca entraram nas estatísticas oficiais.
Por outro lado, o
Centro de Assistência aos Radioacidentados "Leide das Neves Ferreira",
criado pelo governo do estado para acompanhar as vítimas, não admitia
relacionar ao acidente com o césio, as mortes e as doenças denunciadas
pelo MPE. Foi então assinado um acordo entre o Estado e o MPE para que
as novas vítimas, seus filhos e netos recebessem assistência médica e
indenização.
Após vinte e cinco
anos do desastre radioativo, as várias pessoas contaminadas pela
radioatividade não recebem os medicamentos que, segundo leis
instituídas, deveriam ser distribuídos pelo governo. E muitas pessoas
envolvidas diretamente com o ocorrido, ainda vivem nas redondezas da
região do acidente, entre as ruas 57, Avenida Paranaíba, Rua 74, Rua 80,
Rua 70 e Avenida Goiás, sem oferecer nenhum risco de contaminação.
Este desastre
deixou marcas profundas nas pessoas mais diretamente afetadas e que
sobreviveram, e em todo o município. O que caracterizou este episódio e
deixou evidente a sociedade, foi o despreparo, a inoperância, o
improviso e o desinteresse demonstrado pelo poder público com a saúde
das pessoas, principalmente, manipulando informações.
A Comissão
Nacional de Energia Nuclear (CNEN) ficou desnudada diante do grave
desastre de Goiânia. Mas não é somente a CNEN, mas todas as atividades
nucleares no Brasil continuam surpreendendo negativamente, pois
transcorridos 33 anos, as atitudes e a postura de hoje são semelhantes
às do passado. Pouca coisa mudou, em relação à transparência e a
prepotência. E o descrédito a esta autarquia é cada vez mais percebido
pela população, quando ela se informa e toma conhecimento das atividades
desenvolvidas na área nuclear, onde sobressai a visão miliciana de
soberania e defesa nacional, em que tudo é sigiloso, tudo é secreto.
O exemplo mais
recente que acontece, ou podemos dizer a tragédia anunciada, é o que
atinge as populações vizinhas da mina de urânio de Caetité na Bahia. Mas
esta é outra estória que devemos estar atentos e evitar que o nosso povo
morra pela (ir)responsabilidade dos governantes.
* Heitor Scalambrini Costa é Professor da Universidade Federal de
Pernambuco.
* Odesson Alves Ferreira integra a Associação das Vítimas do Césio 137/AVCésio.
- Imagens: Divulgação.
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