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Santos Dumont

O mineiro voador:

Santos Dumont, mais de 100 anos no ar*

Em 2006, ano do centenário do voo do 14-Bis, Pesquisa FAPESP lembrou

a parte principal de sua trajetória, resgatando algumas histórias pouco conhecidas

e contando novidades, como a descoberta de um manuscrito inédito do genial inventor.

 

Por Neldson Marcolin

Para Pesquisa FAPESP*

 

 

De tão ousado, às vezes Alberto Santos-Dumont parecia sobre-humano. O inventor do primeiro aparelho mais pesado que o ar a decolar, voar e aterrissar por seus próprios meios desvendou segredos importantes da navegação aérea. Entre 1898 e 1910, era visto com frequência nos céus da França, ora em uma pequena cesta de balão apreciando a paisagem e demonstrando a viabilidade do transporte pelos ares, ora voando com o elegante ultraleve Demoiselle sobre os campos dos arredores parisienses. É consenso entre pesquisadores da área que o brasileiro foi quem mais contribuiu para o desenvolvimento da aeronáutica nos seus primórdios.

 

Em 2006, ano do centenário do voo do 14-Bis, Pesquisa FAPESP lembrou a parte principal de sua trajetória, resgatando algumas histórias pouco conhecidas e contando novidades, como a descoberta de um manuscrito inédito do genial inventor.

 

© FUNDAÇÃO CASA DE CABANGU/EU NAVEGUEI PELO AR (NOVA FRONTEIRA)

  

Em ares nunca dantes navegados


Quando Alberto Santos-Dumont construiu seu primeiro balão, em 1898, já havia aeronautas nos céus da Europa. Jovem, rico e solteiro, o brasileiro poderia ter sido apenas mais um a desfrutar da agradável sensação de se deixar levar pelo vento, vendo o mundo de cima. Mas Dumont queria mais: desejava determinar a direção de seu destino. Inovações e adaptações feitas em um tempo inacreditavelmente curto o levaram a inventar dirigíveis e, posteriormente, aviões. Em pouco mais de dez anos de atividades Dumont foi quem mais contribuiu para o desenvolvimento da aeronáutica quando se duvidava da possibilidade de um aparelho mais pesado que o ar voar.

 

O inventor nasceu em 1873 no sítio Cabangu, na cidade mineira de Palmira, hoje Santos-Dumont, e começou a se interessar por balões em 1888, ao ver um deles em São Paulo. Em 1892 fixou morada em Paris, após a morte do pai. Estudou informalmente física, química, mecânica e eletricidade com um preceptor chamado Garcia. Interessado em tecnologia, aficionado por todos os tipos de máquinas e leitor de Júlio Verne, em 23 de março de 1898 Dumont finalmente realizou seu sonho e ascendeu em um balão, em Paris, como passageiro. Depois de tornar-se um experiente balonista, decidiu que já era a hora de ter seu próprio balão. No mesmo ano mandou construir dois deles, esféricos, e fez o primeiro dirigível com um motor de sua invenção.

 

Os construtores de balões Henri Lachambre e Alexis Machuron estranharam o projeto de seu primeiro balão esférico, o Brasil. “O projeto surpreendeu os dois porque o Brasil era todo ele inovação: tecido diferente, cesta pequena, tamanho extremamente reduzido”, diz o físico Henrique Lins de Barros, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), principal especialista em Santos-Dumont no Brasil, autor de Santos-Dumont e a invenção do voo (Jorge Zahar Editor) e roteirista do documentário O homem pode voar, de Nelson Hoineff (2006). Barros lança este mês mais um livro: Desafio de voar – pioneiros brasileiros da aeronáutica (1709-1914), da Metalivros.

 

Dumont começava com essa pequena aeronave a imprimir um estilo de inventor que virou sua marca: a extrema simplicidade, leveza e elegância dos projetos. Foi assim com o dirigível nº 1, quando ele, contra a opinião de todos os aeronautas e construtores, decidiu que deveria instalar um motor a gasolina com hélice acoplado à cesta. A alegação era a temeridade que seria colocar uma máquina que libera faíscas tão perto do hidrogênio, altamente inflamável. Ele resolveu a questão dirigindo o cano de escapamento para baixo. Simples, eficaz e seguro.

 

Em 19 de outubro de 1901, o inventor ganhou o Prêmio Deutsch com o dirigível nº 6. A prova consistia em sair de Saint-Cloud, circundar a Torre Eiffel e voltar ao ponto de partida em 30 minutos – demonstração definitiva de que era possível navegar pelos ares. Ao todo, Dumont construiu mais de 20 aparelhos, entre balões e aviões. Uma característica importante do brasileiro: ele divulgava os planos de suas criações e não patenteou nenhuma delas no campo da aeronáutica. “Este foi um dos motivos que favoreceu de maneira impressionante o desenvolvimento da aviação”, diz Barros.

 

Dumont com amigos e amigas de alta sociedade. © IDAC

 

Um dândi cria moda em Paris


Santos-Dumont foi um refinado homem de sociedade. A herança deixada pelo pai, Henrique Dumont, permitiu a ele usar sua criatividade não só para construir balões e aviões, mas também para vestir-se com esmero e frequentar a alta sociedade parisiense. Os trajes do inventor estavam sempre impecáveis, mesmo quando trabalhava com motores ou madeira. Seus ternos riscas-de-giz, o colarinho alto, sapatos com salto (para parecer mais alto) e chapéu com a aba abaixada o tornavam facilmente reconhecido por onde passava. Seu estilo combinava à perfeição com a Belle Époque, então em pleno curso na França.

 

Por essa época, o brasileiro ajudou a lançar um acessório que se tornaria obrigatório. Em uma recepção no restaurante Maxim’s, em 1904, comentou com o amigo Louis Cartier que, em pleno voo, era difícil pegar o relógio para cronometrar o tempo. Cartier mandou fazer um protótipo que pudesse ser usado no pulso e o batizou de “modelo Santos”. Essa, porém, não foi uma inovação absoluta de Dumont – algumas mulheres já usavam relógio no pulso, mas sem sentido prático, apenas como se fosse uma jóia.

 

Acidentes viram eventos


Santos-Dumont tinha um modo particular de divulgar a aerostação e a aviação. Quando construiu o dirigível nº 9, o  Balladeuse (Andarilho), ele o estacionava diante de seu apartamento, na esquina da rua Washington com a avenida dos Champs Elysées, para tomar um café em casa, enquanto a multidão parava para aplaudir. Ou o usava para ir almoçar no restaurante La Cascade, próximo a Longchamps. “Essa atitude não era mero capricho ou exibicionismo, mas um modo muito eficiente de mostrar um novo meio de transporte, que podia ser rápido e seguro”, diz o físico Henrique Lins de Barros.

 

© FUNDAÇÃO CASA DE CABANGU/EU NAVEGUEI PELO AR (NOVA FRONTEIRA)

 

Quando ocorriam os inevitáveis acidentes com seus dirigíveis, ele tratava, em suas narrativas e comentários, de dar mais ênfase aos fatos periféricos e, ao mesmo tempo, minimizar o acontecimento principal. Em agosto de 1901, por exemplo, o nº 5 caiu de 32 metros de altura quando estava sobre o Hotel Trocadero. O aeronauta ficou pendurado a 15 metros e conseguiu subir por uma corda [foto acima].

 

Dumont ajudou os bombeiros a recuperar os restos do balão e ainda teve presença de espírito para testar o motor. Em carta, agradeceu ao comando do regimento: “Minha aterrissagem sobre os tetos de Paris, onde seus valentes bombeiros exercem tão constantemente a sua coragem colocando em risco suas vidas, forneceu-me ocasião de apreciá-los em circunstância tão nova tanto para eles como para mim”.

 

Em outra ocasião, em 1909, ele saiu com um Demoiselle para passear e foi longe demais. Perto da noite, foi obrigado a pousar nos jardins do castelo do conde de Gallard. Ao narrar o ocorrido, Dumont lamenta, com ironia, a falta de sinais indicativos do Touring Club nos ares. E reconhece o “inconveniente” do aeroplano para as visitas sociais: “Sem chapéu, com roupa do trabalho azul, cheio de graxa e de óleo, tal era meu equipamento para minha apresentação”.

 

Cataratas do Iguaçu tornam-se parque


Em 1916 Santos-Dumont estava com 42 anos, afastado da aviação e em viagem pela América do Sul. Visitou o Chile, passou pela Argentina e acabou hospedado no Hotel Brasil, de Foz do Iguaçu, de Frederico Engel. No dia 24 de abril, Engel e seu filho o levaram para conhecer as cataratas do Iguaçu para onde seguiram a cavalo em viagem de quatro horas por uma picada. O inventor encantou-se com o que viu, mas não entendeu como aquele espetáculo estava em terras que pertenciam a uma única pessoa – no caso, o uruguaio Jesus Val.

 

Dumont prontificou-se a convencer o então presidente do estado do Paraná, Afonso Camargo, a desapropriar o local. Como não havia estradas nem ferrovias que ligassem a então Vila de Iguaçu a Curitiba, ele seguiu a cavalo – dormindo e comendo sabe-se lá como – por 300 quilômetros a linha do telégrafo, instalada pelo Exército, até Guarapuava. A viagem, feita em companhia de um guarda-postes, durou seis dias.

 

De Guarapuava seguiu de carro até Ponta Grossa e de lá a Curitiba, de trem. Camargo o recebeu no dia 8 de maio. “No dia 28 de julho de 1916, por meio do decreto 653, o presidente do estado do Paraná desapropriou as terras junto às cataratas do Iguaçu e as declarou de utilidade pública para criação de um parque”, diz Mário Rangel, ex-piloto e empresário. Rangel foi o idealizador e promotor, em 1973, de um concurso nacional sobre documentos relativos a Dumont realizado em Curitiba.

 

“Essa história, até então esquecida, foi enviada por carta por Elfrida Rios, filha de Frederico Engel, com cópia do livro de hóspedes do hotel e ganhou o segundo lugar no concurso.” Hoje as cataratas fazem parte do Parque Nacional do Iguaçu, criado em 1939, e foram declaradas pela Unesco como Patrimônio Natural da Humanidade.

 

14 BIS. © FUNDAÇÃO CASA DE CABANGU/EU NAVEGUEI PELO AR (NOVA FRONTEIRA)

 

O primeiro vôo, agora sem polêmica


A polêmica que se arrasta por um século não existe para os que se inteiram dos detalhes da história da invenção do voo. Santos-Dumont foi de fato o primeiro a voar por seus próprios meios, com decolagem e pouso autônomos. Em 23 de outubro de 1906, o 14-Bis percorreu 60 metros a 3 metros de altura, após correr cerca de 100 metros no Campo de Bagatelle, em Paris [foto acima]. Em 12 de novembro voou por 220 metros, no mesmo lugar, e estabeleceu o primeiro recorde da aviação para velocidade: 41,3 quilômetros por hora. O feito foi homologado pela Federação Aeronáutica Internacional (FAI), criada em 1905.

 

Os irmãos Orville e Wilbur Wright, mecânicos de bicicleta de Dayton, Ohio, Estados Unidos, teriam voado em 17 de dezembro de 1903. Segundo seu próprio relato, atingiram 258 metros em 59 segundos contra ventos fortes na praia de Kill Devil Hills, em Kitty Hawk, na Carolina do Norte. Toda a documentação sobre fato tão importante não passou de um telegrama e a presença de alguns salva-vidas que procuravam destroços de um navio. Com o declarado objetivo de guardar segredo sobre o invento para vendê-lo a uma potência militar, eles só se apresentaram publicamente em 1908. O problema é que, para decolar, o Flyer sempre dependia de alguma ajuda externa, como a de uma catapulta para fazê-lo correr sobre trilhos e, aí sim, sair do chão com a ajuda de ventos fortes.

 

“Hoje há uma modalidade de aeroplano que se encaixa bem nisso, chamado motoplanador, que não decola sozinho”, diz o físico Henrique Lins de Barros. Uma vez no ar, ele voa muito. “Em 1908, os aviões franceses voavam 10 km; os Wright chegaram a 124 km”.

 

A diferença entre os voos de Dumont e o dos Wright é importante para entender o caso. “Em 1905 aeroclubes do mundo inteiro regulamentaram as condições que um voo precisaria satisfazer para ser validado”, explica Rodrigo Moura Visoni, da UniRio, estudioso do assunto. De acordo com essas regras, o voo deveria ser público e anunciado com antecedência, feito com tempo calmo e sobre terreno plano. A altura e o tempo de permanência no ar não seriam considerados fatores desclassificatórios, mas a decolagem teria de ser desassistida e o pouso sem acidentes. Um comitê idôneo acompanharia tudo. “Apenas o avião de Dumont cumpriu todas essas normas e voou diante de centenas de outras pessoas.”

 

O nome surgiu quando ele foi acoplado ao balão nº 14 nas experiências pré-voo. De 14 para 14-Bis foi um salto. A imprensa parisiense o chamou de Oiseau de proie (ave de rapina). Dumont mudou o 14-Bis até concorrer e ganhar o prêmio Archdeacon (Três mil francos, pelo voo inédito dos 60 metros) e o do Aeroclube da França (Mil e quinhentos francos, pelo voo dos 220 metros). Não ganhou o Deutsch-Archdeacon (Cinquenta mil francos, para quem voasse mil metros em circuito fechado), ganho por Henri Farman. Mas já não era preciso. Santos-Dumont estava na história.

 

14 BIS

COMPRIMENTO 9,60 metros

ENVERGADURA 11,46 metros

PESO 290 quilos (apenas o avião)

MOTOR Antoinette 8 cilindros

POTÊNCIA 50 cavalos

VELOCIDADE 41,3 (km/h)

 

Material usado

- Estrutura de bambu e madeira (abeto) entelado com seda branca

- Juntas de alumínio

- Cordas de piano, para manter a rigidez

- Rodas aro 26

 

Configuração

- Leme colocado na frente imitando pato (canard)

- Motor alojado entre as asas

 

Controle

- Com a mão esquerda o piloto acionava uma roda que controlava o leme profundor.

 

- Com a mão direita acionava uma alavanca para controlar a direção

Também com a mão direita coordenava o avanço da ignição do motor com um manete.

 

- Com o pé, fazia a ignição do motor.

 

- A partir de 12 de novembro usava um colete especial que o ligava aos ailerons, situados nas extremidades das asas, por meio de cabos. Com isso podia inclinar o avião para a direita ou para a esquerda.

 

Nervos em frangalhos


Santos-Dumont suicidou-se em 23 de julho de 1932, no Hotel de La Plage, no Guarujá, litoral de São Paulo. Durante muitos anos alimentou-se a informação de que o desgosto de ver sua invenção usada como poderoso instrumento de destruição o levou a se matar. De fato, o inventor sempre lamentou ver o avião provocando tantas mortes na guerra, embora tenha sugerido seu uso militar para observação. O que se sabe hoje é que Dumont parecia ter uma séria depressão, nunca corretamente diagnosticada e tratada.

 

O pesquisador Rodrigo Moura Visoni lembra que o jornalista Edgar Morel, em seu livro Histórias de um repórter (Record, 1999), diz que o médico inglês Bevam Jones fez o diagnóstico de esclerose múltipla em 1910. Essa informação teria sido crucial para Dumont decidir encerrar a carreira de aeronauta. Foi Morel quem revelou para o público a real causa da morte do inventor, em 1944, o suicídio. Até então dizia-se que ele havia morrido de infarto.

 

“Acho difícil acreditar nessa hipótese da esclerose múltipla”, diz Henrique Lins de Barros. “Como alguém sofrendo de uma doença degenerativa, como esclerose múltipla, poderia esquiar em Saint Moritz na década de 1910 e jogar tênis na década de 1920, como ele fazia?” Barros conta que há recibos indicando que o inventor consultou-se com o psiquiatra Juliano Moreira, no Rio de Janeiro.

 

O sobrinho-bisneto Marcos Villares Filho confirma que os primeiros sinais de perturbação teriam aparecido em 1910. “O mais provável é que ele tivesse uma depressão profunda, de origem bioquímica, algo perfeitamente tratável hoje”, especula.

 

Fama de homossexual


Não escapa ninguém. Pode ser gênio, benfeitor da humanidade, intelectual de renome e, ainda assim, para o público comum, a vida pessoal parece interessar mais do que a obra. Com Santos-Dumont não foi diferente.

 

O fato de nunca ter se casado, a aparência sempre bem cuidada, os modos refinados e a enorme timidez o tornaram alvo de seguidos comentários sobre uma suposta homossexualidade. Os últimos apareceram com destaque no livro do norte-americano Paul Hoffman, Asas da loucura (Objetiva, 2003). Suas conclusões foram tiradas dos jornais de língua inglesa New York Herald e Paris Herald, que cobriam as experiências de Dumont pela Europa, e do New-York Mail and Express.

 

Hoffman reproduz frases desses periódicos como a de que Dumont tinha uma “timidez feminina sem o charme feminino” ou “ele com certeza tem um poder de fascinação sobre o sexo oposto, que nem sua aparência e modos em sociedade justificam”. Também fala sobre anéis e jóias usados pelo inventor e reproduz boatos conhecidos de que o escritor e cartunista George Goursart, o Sem, amigo de Dumont e autor de charges populares sobre ele, poderia ter sido seu amante, assim como Jorge Dumont Villares, sobrinho que foi buscá-lo na França para seguir com o tratamento que fazia perto da família, no Brasil. Apesar das insinuações numerosas contidas no livro, não há uma única carta, bilhete ou testemunho que comprove tal tese.

 

Pelo contrário. Obviamente, ser homo ou heterossexual é absolutamente irrelevante e em nada diminui ou engrandece a excepcional contribuição do brasileiro para a aviação. Mas sua família e pesquisadores brasileiros criticam a má-fé do tema justamente por se tratar de boatos que, até o momento, não encontraram justificativa nos fatos. “A história que se criou sobre Santos-Dumont e seu sobrinho Jorge é absurda, sem pé nem cabeça”, critica Marcos Villares Filho. “Jorge foi escolhido pela família para buscá-lo em Paris justamente porque não tinha filhos, embora fosse casado”, diz.

 

Por sua vez, Henrique Lins de Barros examinou centenas de fotos de Santos-Dumont e afirma nunca ter visto nada que lembrasse anéis ou jóias. O inventor usava apenas um relógio Cartier e uma medalha com a imagem de São Bento presa a uma corrente no pulso para protegê-lo contra acidentes. O presente foi dado pela princesa Isabel, condessa d’Eu.

 

Barros traz à tona uma entrevista de Agenor Barbosa, colega de Dumont e seu procurador, à Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, em 1959: “As suas aventuras amorosas, se as teve, foram muito discretas. Não tinha, nem nunca teve, ‘ligações’ sentimentais. Neste ponto era como, no exílio, o patriarca José Bonifácio – pagava simplesmente de sua bolsa, o que lhe apetecia, sem outras complicações… O único ‘caso’ amoroso de sua vida, que eu saiba, foi um tremendo ‘rabicho’ por uma jovem norte-americana, filha do milionário Mr. Spreckels, que procurou logo afugentar a filha do homem perigoso que tinha a mania de voar… E foi só”.

 

Rodrigo Moura Visoni lembra de trecho da autobiografia Tudo em cor de rosa (Nova Fronteira, 1977), de Yolanda Penteado, de tradicional família paulista, que conviveu com boa parte da elite artística e intelectual do país no século passado. Yolanda fala de Dumont assim: “(…) conheci o Alberto Santos-Dumont, um irmão do meu tio Henrique. Seu Alberto, como o chamávamos, vinha todos os dias para jantar e ia ficando, dizendo que era para ver a lua sair. No Flamengo, as noites de lua cheia eram realmente bonitas. Ele era uma pessoa irrequieta. Eu achava engraçado que me desse tanta atenção. E tia Amália dizia: ‘Alberto, você está ficando tonto, namorando essa menina’. Seu Alberto, de fato, me fazia a corte, trazia-me bombons, flores, levava-me a passear. As pessoas que o conheciam melhor diziam que, quando ele me via, ficava elétrico”.

 

Barros acredita que a propalada homossexualidade do inventor é um mito. “O refinamento francês soava como afetação homossexual para os jornalistas norte-americanos, que o descreviam como efeminado”, diz. “Hoffman não entendeu os costumes e valores da época e viu tudo com a visão distorcida que se tinha naquele tempo nos Estados Unidos.” O artista plástico Guto Lacaz, também estudioso da obra do inventor e autor da exposição Santos-Dumont Designer, realizada no ano de 2006 em São Paulo, lembra de várias mulheres por quem o inventor se interessou: além de Lurline Spreckels e Yolanda, houve Edna Powers e Aida D’Acosta. “Ele não parecia insensível às mulheres, mas é preciso lembrar de um desenho feito por ele (acima) em que escreveu: ‘Dirigível, biplano e monoplano – minha família’”, diz Lacaz. “Poeticamente, Santos-Dumont casou-se com a aeronáutica”.

 

A descoberta de um manuscrito


Há muito que descobrir sobre a obra de Santos-Dumont. “Existe boa história da ciência no Brasil, mas a história da técnica e da tecnologia ainda é incipiente por aqui”, afirma o físico Henrique Lins de Barros. Ele reclama dos poucos trabalhos acadêmicos que tratam de forma exaustiva e analítica a obra de Dumont. “Ele se tornou patrimônio dos militares e isso parece desestimular os pesquisadores.” Ainda assim, surgem novidades.

 

Alberto Dodsworth Wanderley, sobrinho-bisneto do inventor, descobriu recentemente um manuscrito inédito dele escrito em francês e traduzido pela mãe, Sophia Helena Dodsworth Wanderley. “O livro tem 13 capítulos e é uma espécie de pré-história da aeronáutica”, diz Wanderley. Provavelmente escrito em 1902, de acordo com Barros o texto mostra que ele tinha um conhecimento crítico sobre a história da aeronáutica e teórico sobre química e física.

 

A descoberta do manuscrito ocorreu depois que Sophia Helena doou todo o acervo de Santos-Dumont em 2003 para o Centro de Documentação e Histórico da Aeronáutica (Cendoc), no Rio de Janeiro, onde está disponível para consulta. Esse acervo já havia sido previamente organizado pelo marido de Sophia, Nelson Freire Lavenère-Wanderlei (os dois já morreram).


Mas havia ainda um embrulho dentro de um armário que não foi doado, descoberto anos depois por Alberto Wanderley. Era um manuscrito de 212 páginas, escrito em um papel pequeno, de 20 por 16 centímetros, faltando as páginas de 111 a 115.

 

“Estou digitando o livro aos poucos e não sei quando publicarei”, diz ele, ainda sem editora. “Há a idéia de publicar no mesmo volume um outro livrinho dele, de 20 páginas, O homem mecânico, de 1929, já conhecido, mas nunca editado.”

 

© MUSÉE DEL'AIR

 

Novos balões e aviões


O pesquisador Rodrigo Moura Visoni, autor de artigos sobre Dumont publicados no Brasil e em Portugal, tem quatro livros ainda inéditos  sobre o inventor. Três deles reúnem reportagens, entrevistas e artigos do próprio Santos-Dumont e sobre ele. E um quarto esclarece a polêmica secular com os Wright. Visoni garimpou material indicando que, ao contrário do que se pensava, Dumont teria trabalhado em um Demoiselle em 1913, quando se acreditava que ele tinha encerrado a construção de aviões em 1910.

 

De acordo com a revista Lecture pour Tous, edição de 1º de janeiro de 1914, ele encomendou aos construtores Morane e Saulnier um avião Demoiselle novo, muito mais sólido e robusto que os precedentes”, conta Visoni (o artigo original integra um dos livros do pesquisador). “Não se tem notícia de que ele tenha voado nesse aparelho, embora existam fotos do avião”.

 

Visoni também aposta que a produção do aeronauta foi maior do que a conhecida hoje. Até agora se contam 14 balões, entre esféricos e dirigíveis, e nove aeroplanos. Nessa conta não entram as numerosas modificações que Santos-Dumont fazia com frequência nos modelos. “Em 1913 ele deu uma entrevista em que dizia ter construído 14 dirigíveis, sem contar os esféricos, e 19 aeroplanos”, afirma Visoni. Agora resta esperar que os pesquisadores descubram novos documentos, artigos e fotos da época para se conhecer com mais precisão a obra completa do inventor.

 

© EMBRAER

 

O sucesso tardio da indústria no Brasil


O sucesso da Embraer, a quarta empresa aeronáutica do mundo, com uma receita líquida de R$ 9,1 milhões em 2005, não espanta ninguém – é o mínimo que se espera da terra de Santos-Dumont. O que pouco se comenta é o fato de essa indústria tão forte ter demorado tanto tempo para ser construída. “Sempre tivemos uma grande população com baixa renda, com poucos recursos para usar o transporte aéreo, e demoramos muito para ter um centro de formação de engenheiros”, diz Ozires Silva, o principal idealizador e empreendedor da Embraer e, hoje, presidente da Organização Santamarense de Educação e Cultura, em São Paulo.

 

Até 1950, ano da fundação do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), só havia engenheiros aeronáuticos formados no exterior. “E aqui se fazia avião sob licença de empresas estrangeiras ou se buscava modelo semelhante ao que já existia lá fora”.

 

Mas, no começo da década de 1960, o ITA já tinha dez anos e formava 80 engenheiros por ano em diferentes especialidades dentro da aeronáutica. Nessa época, um grupo lá formado achou que era o momento de fazer algo. “Nos reunimos no Comando-Geral de Tecnologia Aeroespacial (CTA) para tentar responder à pergunta: como criar uma real e ampla indústria aeronáutica no país?”, conta Silva. “Concluímos que se não produzíssemos um avião próprio, inovador, não teríamos como competir com o mercado já estabelecido”.

 

Na mesma ocasião, esse mesmo grupo descobriu que em 1965 existiam 45 cidades brasileiras servidas pelo transporte aéreo. Ocorre que em 1958 esse número era muito maior, cerca de 400 cidades. Entre outras, a razão fundamental para isso foi a crescente utilização dos aviões a jato. Essas aeronaves requeriam infra-estrutura maior para operar e eram grandes demais para as comunidades pequenas. “Pensamos então que se fizéssemos um avião não muito grande, que pousasse em pista curta e exigisse infra-estrutura mais modesta, ajudaríamos a levar o transporte aéreo de volta às pequenas cidades”. Naquela época, em 1967, não se sabia que o fenômeno brasileiro se repetia no mundo.

 

“Dessa forma criamos o Bandeirante, de 16 lugares, com hélices, para ser mais barato”, diz. “O primeiro protótipo foi feito no CTA e o avião voou com sucesso em 1968”. O processo para decidir como fabricá-lo foi longo e penoso até o governo concordar em criar uma companhia mista. Ou seja, o conceito de aviação regional foi criado e desenvolvido aqui. “Caminhamos dentro da velha tradição mercadológica: descobrimos um nicho de mercado e o ganhamos”.

 

Voo de Alan Calassa na réplica do 14-Bis.

© INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO AERONÁUTICO DE CALDAS NOVAS (IDAC)

 

De volta a Paris


Dia 5 de novembro de 2006 os franceses voltaram cem anos no tempo e assistiram a um voo do 14-Bis sobre o Campo de Bagatelle, em Paris. O evento marcou as comemorações do centenário do voo pioneiro na França, embora as datas originais tenham ocorrido dia 23 de outubro e 12 de novembro de 1906. Antes disso, o 14-Bis voou no dia 22 deste mês na Esplanada dos Ministérios, em Brasília.

 

O avião foi pilotado por Aline, filha de Alan Calassa, piloto e empresário de Caldas Novas, Goiás, fascinado por Santos-Dumont e seus aparelhos. No início de 2005, ele concluiu a construção da réplica do avião depois de anos atrás de informações no Brasil e na França e de consultas exaustivas a fotos, documentos, reportagens da época e especialistas. O resultado é surpreendente: o 14-Bis voa com suavidade e elegância.

 

“Santos-Dumont sabia exatamente o que estava fazendo”, garante Calassa. “Quando ele desenvolveu o avião em sistema canard, imitando pato, fez isso para que o aparelho pudesse se deslocar com menos potência de motor”, diz. “Começou com um motor de 24 HP em setembro, foi para 36 HP em outubro e 50 HP em novembro”. A sustentação se dá apenas nas asas. “O 14-Bis é um conjunto perfeito de aerodinâmica”.

 

Autodidata, Calassa fez quatro réplicas do avião. Uma está no Musée de l’Air, na França, outra nos Estados Unidos, uma terceira em exposição pelo Brasil e a quarta em Caldas Novas, para testes. O empresário gastou R$ 1,5 milhão do próprio bolso para construí-las. A Embraer patrocina as exposições no país e exterior.

 

As exibições de voo são feitas por Aline, de 22 anos e 52 quilos, o mesmo peso de Santos-Dumont. Depois do avião pronto, foram feitas algumas descobertas. Mesmo pesando o dobro da filha, o avião voa muito bem com Calassa [foto acima] e consegue até carregar duas pessoas – uma delas sentada sobre a junção das asas. Também se descobriu que o 14-Bis faz curvas, ao contrário do que se pensava. “Talvez Dumont não soubesse disso porque não era piloto como os pilotos viriam a ser”, diz Calassa. “Ele tinha acabado de inventar o avião e estava aprendendo tudo”.

 

* Título original "100 anos no ar", do artigo de Neldson Marcolin, publicado originalmente pela Revista Pesquisa FAPESP, Edição 128 - Outubro de 2006, São Paulo-SP, Brasil. Reproduzido por Via Fanzine em 21/07/2013.

 

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