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Marcelo Sguassábia, reside em Campinas-SP.

É redator publicitário e colunista para diversos jornais e revistas eletrônicas.

É colaborador de Via Fanzine.

© Direitos Reservados, Marcelo Sguassábia, 2024.

 

 

Epílogo

 

 

Os monges copistas existiram entre os séculos V e XV, e a eles cabia a missão de fazer cópias, para a posteridade, do conhecimento humano acumulado até então. Ainda não havia imprensa, e copiar à mão os pergaminhos era a única forma de disseminar o que o homem sabia à época. Eles passavam a vida copiando, pacientemente e em exímia caligrafia, textos sagrados, conteúdos culturais, filosóficos, artísticos, científicos e até mesmo profecias. Cada página era uma verdadeira obra de arte, com ricas ilustrações emoldurando a escrita.

 

Assim dizia uma dessas profecias, que ia sendo copiada por um monge, àquela altura já vencido pelo cansaço: “O que se entende como sendo livro será soterrado e substituído pelo reinado do Kindle, que aniquilará um bilhão de bibliotecas num piscar de bites. Arderão em chamas volumes alinhados ao longo de centenas de milhares de quilômetros. Pois que em um único e reles Kindle caberá todo o conhecimento acumulado pelo homem, das bulas de dipirona aos pergaminhos do Mar Morto. O labor de séculos de trabalho abnegado dos monges copistas se perderá no sono do esquecimento, sem que os tolos do século 30 sequer saibam de sua existência.”

 

– O quê?????

 

A mão do monge tremeu e um borrão botou a perder horas de noites em claro. Tombou de sua cadeira o religioso, como uma árvore carcomida, após infarto fulminante.

 

Mas era um sonho de Wang.

 

– Wang, Wang… acorda. Se o chefe te pega cochilando em pé, já viu. Não dormiu direito?

 

Wang se recompõe, vai até o banheiro, joga uma água no rosto e volta à linha de produção. O selo “Made in China” foi colado de cabeça para baixo em três dos kindles produzidos pela manhã. Ah, se ele é pego pelo Controle de Qualidade…

 

Sim, pensou Wang. Preciso dormir melhor.

 

* Esta é uma obra de ficção.

   03/11/2024

 

- Imagem: divulgação.

 

© Direitos Reservados.

 

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Encontrados nos destroços

 

 

31 de julho de 1944. O piloto e escritor Antoine de Saint Exupéry partiu da Córsega para uma missão de reconhecimento, quando seu avião desapareceu.

 

15 de dezembro de 1944. O avião do músico Glenn Miller voava para a França quando sumiu do alcance dos radares.

 

Todas as tentativas de buscas foram inúteis. Até ontem.

 

Os lápis de Antoine

 

Passados 80 anos, alguns achados ainda fumegavam quando foram avistados por um grupo de turistas trilheiros. Primeiro, uma caixa de metal com a marca “Caran d’Ache”. Dentro, duas dúzias de lápis inacreditavelmente apontados, apesar da queda. E ainda alinhados, em degradês de tons, do branco para o preto. Embaixo dos lápis, uma folha de papel amarelada cheia de rascunhos coloridos. Desta vez não eram aquarelas, como no Pequeno Príncipe, mas desenhos em lápis de cor. O mesmo traço da jiboia digerindo o elefante, só que as imagens eram outras. Poderia ser o projeto para uma edição revista do Petit Prince, talvez um Petit Prince parte 2, quem sabe um outro livro ainda em gestação. Na extremidade esquerda dos rascunhos, a frase “O essencial é invisível aos olhos: aponte o desenho para o sol!”. Assim fizeram e uma outra frase surgiu em marca d’água, bem no centro das ilustrações rascunhadas: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cavucas”. Passou a fazer sentido aquela pá enferrujada, ao lado do leme retorcido do avião.

 

Os óculos de Glenn

 

A escavação já tinha um metro e meio de profundidade por uns 80 centímetros de diâmetro. Até que da entranha da terra apareceu um disco 78 rpm, “Glenn Miller and his fabulous orchestra”, lascado e cheio de riscos, com algo escrito no rótulo em letras microscópicas. Passou a fazer sentido aqueles óculos tortos e empoeirados, ao lado de um trumpete em ruínas. Um dos turistas colocou os óculos e viu que o rótulo do disco trazia instruções: “Gire ao contrário na vitrola, ao fim da última faixa do lado B. Tudo ficará esclarecido”. Mas não chegaram a seguir a orientação. Aliás, não chegaram – o avião em que estavam na volta da viagem, e onde traziam a caixa de lápis de cor, os rascunhos coloridos, os óculos de Glenn e o disco misterioso sumiu sem explicações, no meio do Pacífico. Aeronave e passageiros seguem desaparecidos.

 

* Esta é uma obra de ficção.

   27/10/2024

 

- Imagem: divulgação.

 

© Direitos Reservados.

 

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Domingos

 

 

No banco da igreja, eu e meu irmão menor, dois bundinhas moles sentindo doer os ossos na dureza da madeira. Banco doado pela família x. Banco doado pela família y. Os bancos eram pagos por famílias tradicionais da cidade, e a oferta ficava ad aeternum encravada numa plaquinha de bronze. Eu e meu irmão competíamos para ver quem balançava as pernas mais rápido, os pés no ar, tão longe do chão. Os dois de meias três-quartos, camisas e calças iguais, o par de vasos em voga dos anos 70.

 

Eu atento às leituras, ao Evangelho e à homilia, ainda que entendesse pouco mais que nada. Uma caixa acústica em cada coluna da igreja, eu olhava para aquilo falando coisas, rezas e histórias e pensava que tudo se passava ali dentro, todas as tramas, dramas e parábolas bíblicas. Era certo que dentro daquela caixa de madeira acontecia a divina epopeia narrada pela fala do padre e dos ministros da Eucaristia. E imaginava o formidável elenco de personagens da Sagrada Escritura, do tamanho de bonequinhos de forte apache, vivendo de fato suas venturas e desventuras dentro da caixa acústica.

 

E então o padre falava em pregar a palavra. A imagem que meu entendimento fazia daquilo não deixava dúvidas: um amontoado de meninos em vestes brancas, martelos e pregos nas mãos, pregando cartazes nas paredes com a palavra “Palavra” em letras garrafais.

 

As cestinhas de Ofertório, estranhamente, eram passadas por gente influente e de dinheiro na cidade. Será que eles estão passando necessidade? Por que ficam mendigando trocados pelos bancos? Era contraditório. Era inexplicável.

 

Na hora da comunhão, a hóstia de farinha e água transubstanciada no corpo e no sangue do Salvador. Eu via ali, em câmera lenta, migalhas ínfimas caindo no chão de mármore do altar, ao partir do corpo de Cristo pelas mãos do padre. Para mim era certo que cada uma delas era um Cristo por si só e antevia o Monsenhor, superior do vigário, observando na sacristia, ao microscópio, os farelinhos na pátena, a averiguar se traziam o Salvador Ressuscitado.

 

* Esta é uma obra de ficção.

   1º/09/2024

 

- Imagem: divulgação.

 

© Direitos Reservados.

 

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Brilhante Jô

 

 

Transformaram o Jô Soares em diamante. Lá em cima, no céu onde estão os dois, consta que o Bira se esborrachara de rir com o inusitado da coisa. Mas a história não é brincadeira. Palavra da Flávia Pedras, que perpetrou a façanha. E eis o Jô tão pedra quanto a sua companheira de tanto tempo.

 

Juntaram as cinzas do mais divertido e inteligente gordo que esta Ilha de Vera Cruz já produziu e fizeram dele uma pedra com o mesmo brilho do circuito neuronal que o diferenciava.

 

De bem servidos quilos a preciosos quilates. Porém, pensando melhor, virar diamante não é exatamente a cara do Jô. Diamantes são frios, são duros, ainda que por outro lado sejam lindos, transparentes, alguns deles raros e de valor incalculável. Como ele. Mas o que mais distancia um diamante do Jô é que um diamante é mudo, coisa que o gordo jamais conseguiria ser.

 

Algo me diz que isso não vai dar muito certo. Lembrando o clima detetivesco do “Xangô de Baker Street”, é bem possível que algum fã de carteirinha roube o diamante e faça do seu paradeiro um mistério impenetrável. Ou talvez alguém o rapte e exija do diamante um resgate milionário; é quando veremos o país se cotizar, angariando em tempo recorde o montante para ter o Jô de volta. Até porque “daqui a pouco a gente volta” era sua marca registrada.

 

Enquanto isso tá lá ele num cofre, eternizado, aguardando virar patuá no pescoço da Flavinha.

 

* Esta é uma obra de ficção.

   17/08/2024

 

- Imagem: gshow.globo.com.

 

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