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Marcelo Sguassábia

 

 

Marcelo Sguassábia, reside em Campinas-SP. É redator publicitário e colunista para diversos jornais e revistas eletrônicas.

É colaborador de Via Fanzine.

© Direitos Reservados, Marcelo Sguassábia, 2021.

 

 

 
 

 

Dalva Bolinha

 

 

Senhora Dalva patroa, tá lá a patroa Dalva enclausurada em seu retrato. Na parede descascada do salão dos recitais, reina Dalva – a bela dama. Empertigada e altiva. Olhando, olhando, como olha essa mulher, da minha entrada à saída. Só sabe olhar e mais nada, essa antes linda fêmea, patroa de dez mucamas e senhora dos enxovais.

 

Aviso a quem chega agora: pra onde quer que se vá, repare bem nos seus olhos. Aquelas jabuticabas não param quietas nas órbitas. Controla Dalva a fazenda – o café, a entressafra, o gado. Tem de cabeça o estado de cada arado na roça. Não há o que escape da vista da soberana patroa.

 

O que Dalva fazia, e bem feito, eram os bolinhos de chuva. Chovesse ou fizesse sol, tinha disso na despensa. Dalva Patroa, que hoje morta tudo vê, quando viva não enxergava a galharia na testa. Desconfiava, é verdade, mas certeza mesmo, nada. Só sei dizer que Dalva, a patroa tão esguia, afogou todas as cismas se fartando dos bolinhos.

 

Ficou uma bolinha a Dalva, e dessa Dalva bolinha não se conhece o retrato.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 02/03/2024.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Ô ô ô ô, Aurora

 

 

Sei que a época natalina inspira outros e mais nobres sentimentos. Mas é que acabei de resgatar, da minha caixa de e-mails, uma mensagem perdida e ainda não lida de meu amigo Josefredo Painieri Dantas, datada de fevereiro último, ou seja, dez meses atrás – em pleno reinado de Momo.

 

Patrulheiro das causas dos excluídos, discorre o Josefredo sobre o cunho politicamente incorreto que está implícito, ou explícito, na marchinha carnavalesca “Aurora”. Reflete ele:

 

Em 1940, ano da composição, brasileiras brancas correspondiam a 89% do total de Auroras no país, cabendo às pardas e negras apenas 11%. Minha pergunta: por que não batizar a música com o título de “Benedita”, nome onde as afrodescendentes predominam com mais de 80%? Por quê? Ou seja, “Aurora” é, antes de mais nada, elitista e segregacionista.

 

Aurora é também um termo latino que significa “amanhecer”, uma claridade visível antes do nascer do sol e que indica o começo do dia. Algo branco por natureza. Eis o racismo novamente, empregado de forma ardilosa no que parece ser uma inocente marchinha…

 

“Se você fosse sincera…”

 

O primeiro verso, segundo ele, já seria criminosamente preconceituoso, pois coloca sinceridade como não sendo próprio ao gênero feminino, o que enseja crime de misoginia.

 

“Um lindo apartamento, com porteiro, elevador e ar refrigerado para os dias de calor…”

 

O autor condiciona a virtude da sinceridade à ascensão social, na medida em que coloca Aurora como merecedora de uma vida digna desde que seja sincera. Raciocínio simplista e excludente.

 

“Madame antes do nome você teria agora…”

 

O verso demonstra que, caso tivesse a sinceridade que dela é cobrada, Aurora seria aceita, admirada e promovida a madame, obtendo assim a aprovação da sociedade.

 

Ao final de sua mensagem, meu amigo se despede de mim convicto dos absurdos cometidos pelos autores, submetê-los (ou seus herdeiros) à justiça. Anuncia também o objeto de seu próximo estudo/denúncia: a também marchinha carnavalesca “Cabeleira do Zezé” e seus insultos explícitos à comunidade LGBTQIAPN+.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 11/12/2023.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Coadjuvantes da História – A Roda

 

 

O cara quer reinventar a roda… desde que o mundo é mundo que toda roda é quadrada. Cada louco que me aparece! Mas esse aí foi demais, uma roda redonda. Fazer o que com isso, me fala?

 

É como o meu velho dizia, e tava pra lá de certo: uma mente vazia é uma oficina do capeta. O sujeito é desocupado e fica aí cheio de ideia destrambelhada, caraminholando coisa que não vai dar certo. É aquela ânsia de querer mudar por mudar, e acaba estragando o que é simples, funcional e inteligente do jeito que sempre foi.

 

Vê se tem cabimento um negócio desse. Pra encarar uma subida, empurrando a carriola, concordo que até é capaz de ficar um pouquinho mais fácil. Mas vai descer com um troço desse… imagina só, o carrinho desembesta e não tem como parar! Com a roda quadradinha é muito mais seguro, não é à toa que foi pensada pra ser desse jeito e assim ficou.

 

Outro problema da traquitana vai ser pra estacionar. Se tivesse usado a massa cinzenta, um pouquinho que fosse, a ideia não ia pra frente. Alguém iria alertar o besta, não é possível. Olha a situação: você pega a estaciona a carriola numa descidona daquelas. Arredondando a roda é um perigo – se não tiver freio de mão, já era. O dono vai pegar lá embaixo o que sobrou da viatura.

 

Eu argumentei, tentei fazer o cara mudar de ideia, mas não teve jeito. É cabeça dura quem nem só ele. Não vou discutir, me pagando pelo serviço eu faço, tudo bem. E que amanhã ninguém venha me dizer que o retardado fui eu, em aceitar fazer uma porcaria dessa. Dá até dó, meu Deus do céu, vai estragar tudo… olha que rodinha linda, um quadrado perfeitinho, sem nenhum canto gasto, pronta pra levar e trazer o vivente e suas tralhas pra cima e pra baixo. Se a gente pegar o manual do motorista, que vem com a carroça zero km, tá lá o aviso – é pra fazer a manutenção periódica tirando os cantos gastos pra não comprometer a segurança e não perder a garantia de fábrica. Justamente o contrário do que o maluco quer fazer.

 

A minha mulher acha que eu devo chamar a polícia. É, depois a gente vê o que faz. Deixa eu receber primeiro.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 1º/12/2023.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Coadjuvantes da História – Episódio 6

O 14 Bis

 

 

I

 

- Quem foi que encomendou a pintura, Pierre?

 

- O rapaz brasileiro, de bigode e chapelão, sabe aquele meio maluco? Um que usa relógio amarrado no pulso. Então, foi ele.

 

- Ah, lembrei, sei quem é. Tem certeza que é esse bagulho mesmo que é pra pintar? Sei não… e o texto é somente isso aqui, “14 Bis”?

 

- Tô te falando, é só isso. Dois minutos e a gente termina tudo. Ele pediu em tinta preta.

 

II

 

- O “4” aí do “14” tá torto. Parece que bebe, faz o “4” direito, retinho. Acordou com a mão boba?

 

- Mas você é chato heim, meu? Que diferença faz? Se a ideia do homem é botar essa geringonça pra voar, ele vai lá pra cima e ninguém vai reparar se o “4” tá torto ou não.

 

- Usa uma régua, é melhor. O bichão pode voar alto, mas quem aprova o serviço vai olhar aqui embaixo, com a traquitana desligada. Ouvi dizer que o Santos Dumont é exigente, sujeito meio sistemático.

 

- Quer saber? Esse negócio aqui vai voar de qualquer jeito, querendo ou não querendo. Olha como é leve, todinho de bambu e papel de seda, é só dar um pé de vento que sai voando. Queria ver se fosse pesadão, tipo um 747, entende?

 

III

 

- Esse Dumont é um sujeito esquisito mesmo.

 

- Por que tá dizendo isso?

 

- Dizem que ele vai dando nome, ou melhor, dando número, conforme as tentativas de levantar voo que ele faz. Deve ser a décima-quarta, né?

 

- Nada, tá na décima-quinta. Não é 14 Bis, o nome? Então, é um depois do 14.

 

- Não faz sentido. Por que não batizou de 15 de uma vez?

 

- Sei lá, pergunta pra ele. Vai ver que o “Bis” é merchandising daquele chocolate, sabe? Da Lacta.

 

- Imagina… se fosse merchan eles iriam colocar o logo, coisa profissional, de gente grande. Não iam chamar pintor de faixa, uns mané-quarqué, que nem nós dois, pra fazer o serviço! Presta atenção!

 

- De repente esse 14 era igualzinho ao outro que ele fez antes, é tal e qual e ele vai tentar de novo.

 

- É, aí pode ser, sim. Uma réprica, né.

 

- É réplica que fala.

 

- Cuida aí do seu serviço que eu cuido do meu. Eu termino de pintar o “14”, depois a gente deixa secar e você completa com o “Bis”. Fechou?

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 17/10/2023.

 

- Imagem: divulgação.

 

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A hora desconcertante

 

 

A providência mais adiada foi também a mais doída. E quem haveria de duvidar que não seria assim?

 

Começando pela penteadeira. Um bob de cabelo e um frasco de laquê vencido, numa das gavetas. Uma caixa vazia e meio carunchada de sabonetes belgas na outra. Mamãe não gostava de jogar nada fora. Juntava coisas com o mesmo amor com que juntava gente em casa.

 

Do largo ventre da cômoda, vasculhado na limpeza, davam o ar da graça um folheto de missa, um dedal enegrecido e até uma pequena concha sabe-se lá de que praia.

 

A mesinha de centro que até outro dia escorava os netos todos, entre o engatinhar e o caminhar vacilante, foi sendo posta para fora nos ombros de dois rapazes de macacão. Mal sabiam o peso dos risos e prantos que aquele móvel tão leve já havia suportado.

 

O oratório e, junto a um santo, uma latinha de pastilhas Valda cheia de dentes de leite e de cordões umbilicais. O mais velho entre os irmãos nascera ali, ainda em mãos de parteira e com a casa recém-entregue, a exalar sinteco e tinta.

 

Levaram a mesa de jantar, e com ela a feijoada fumegando, o perfume acebolado do bife e as migalhas de pão que meu pai juntava para o papagaio.

 

A cama, da vida toda e do minuto último de ambos. O de papai, treze anos antes da de mamãe.

 

A cada retirada, um branco na parede silhuetando o móvel ali encravado desde o início dos tempos. Paredes que, mais alguns poucos anos, conhecerão a ira das marretas, transformando cenários de alegrias, nascimentos, dilemas e mortes em estacionamento de clínica ou de supermercado.

 

Por último, o armário do quarto deles, cheirando a naftalina. Depósito de enxovais, primeiro os deles e mais tarde os nossos. Lençóis de parto, vestidos de primeira comunhão e até o tailleur e o terno das Bodas de Prata ali encabidados - de 1975 até ontem.

Sem mais aquela, um toc-toc vindo de dentro do guarda-roupa. Abri a porta.

 

"SURPRESA!!!", gritaram juntos papai e mamãe, como jogral de jardim da infância, as pernas encolhidas para caberem lá dentro, no esconde-esconde insuspeito. Papai e mamãe, ali espremidos, disfarçando aquele riso de quem sabe que fez arte... danadinhos esses dois.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 03/10/2023.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Paradise Motel

 

  

– Suíte Master, por favor.

 

– Tá tudo ocupada.

 

– Oi??? Motel lotado na segunda, duas e quinze da tarde?

 

– Olha, ainda dá tempo de se arrepender. O senhor tem memo certeza que vai fazer esse monte de coisa feia, que tão aí na sua cabeça, com essa filha do Criador?

 

– Como é que é????

 

– É isso memo o que o senhor escutou, não se faz de surdo não.

 

– Espera lá, minha senhora, isso aqui é motel ou é igreja?

 

– Então… é que o pastor falou assim pra eu me infril… infil…insfril… pra eu me in – fil – trá aqui no motel, que é um antro de perdição, pra trazê de vorta os carnero perdido do rebanho. Não dianta nada ficar rezando, quieto, sem tentação perto e rodeado de vela… não é desse jeito que a gente faz o trabalho missionário. Tem que ir aonde o coisa ruim tá aprontando. Convertê é difícil, moço. Eu quase que tô desistindo, pra te falar a verdade verdadeira.

 

– Vixi…

 

– Tô aqui pra ajudar a livrar os homem do inferno. Os homem e as mulher, né memo? Que nós lá na seita não faz distinção de genro.

 

– De gênero, você quer dizer…

 

– De genro, de nora, de sobrinha, enteado, compadre, cunhado, tudo nóis.

 

– Ai, ai, ai… quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece.

 

– Olha, rezar é uma coisa que o senhor não faz memo. Essa sua cara de Barrabás não me engana. E eu não sou sombração não senhor, sou é salvação. Tô aqui a serviço do céu, se quer sabê.

 

– Mas não está lá escrito que é pra gente crescer e se multiplicar?

 

– É, tá lá sim.

 

– Então, deixa eu fazer a coisa certa…

 

– O senhor tem razão, mas é pra cuidá das multiplicação dendicasa, depois de casadinho no papel passado, com a luz apagada e debaixo das coberta, que é pra não ver as parte baixa um do outro, compreende? E não vem o senhor me dizer que a mocinha aí é sua patroa e vocês tá aqui pra comemorar o aniversário de casório. Aí vão sê dois pecado – fornicação e mentira!

 

– Eu vou chamar o gerente!

 

– Já não bastava as novela cheia de vadiação, os recrame de TV só vendendo porcaria, agora tem tamem essa tal de infernet. Acho até que foi lá que o senhor viu as propaganda desse motel aqui, né memo?

 

– Bingo!

 

– Tem um do outro lado da rua. E tem gente nossa na porta, tamem.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 14/09/2023.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Pode isso, pai?

 

 

Meu pai deixou uma fita cassete para cada filho. Uma Scotch 60, daquelas transparentes, da 3M. Ele cantando, acompanhado do violão, em 1982. Não ouvi, na ocasião. Era redundante: morava com meus pais e meu velho cantava quase todo dia. Guardei, esqueci não sei onde e achei por acaso outro dia.

 

Deu o que fazer para encontrar um toca-fitas e usufruir do tesouro. Depois de umas três músicas, com a voz trêmula, disse pra mim mesmo:

 

- Pai, que delícia ouvir você cantando, 41 anos depois...

 

O canto na fita silenciou. Foi quando meu pai respondeu, lá em 82, quase me matando do coração aqui em 2023:

 

- Ué, parece que escutei alguém falando alguma coisa. Ô Glória, o Marcelo tá em casa?

 

E minha mãe, retrucando da cozinha, talvez apurando o molho do rosbife:

 

- Tá na escola, João.

 

- Estranho, parece que ouvi a voz dele aqui na fita. E continuou com "À distância", do Roberto Carlos, uma das suas favoritas, que eu ajudei a cifrar o acompanhamento.

 

"Eu não acredito", disse daqui.

 

Papai parou a gravação, no meio da música.

 

- Eita, que é que tá acontecendo? Não acredita no quê? É a voz do Marcelo, tá esquisito esse negócio...

 

E escutei, em seguida, o barulho de uma tecla do gravador sendo apertada e da fita sendo rebobinada alguns segundos. Ouvi eu mesmo dizendo "Eu não acredito".

 

Aquilo era loucura, eu só podia estar no meio de um sonho. Tirei a fita do aparelho. Dei umas batidinhas, talvez acordasse daquela alucinação. Coloquei a fita cassete do outro lado. Ele cantava "O destino desfolhou", valsa que aprendeu com minha avó Ana Lúcia quando criança.

 

Pausei a fita. Chorei como nunca conseguiria naquele distante 82, nos meus 18 anos, quando nada era motivo de nostalgia ou de tristeza. Apaguei a luz para mergulhar melhor naquele momento mágico. O João dava um lá maior para começar "Olhos de Veludo".

  

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 07/08/2023.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Arraiá de Abadá

 

 

São João vive “camarotização” no Nordeste, com áreas VIP (Folha de São Paulo, 23/06/2023).

 

Cumpadi e cumadi, que bom ter oceis juntim di nói! O abadá do arraiá, com etiqueta holográfica powered by Intel Cloud Technology, precisa ser vestido na passagem do convidado pelo leitor de biometria, antes de receber a pulseira fosforescente verde-limão da comissão organizadora. Arquivos de áudio simuladores de estalos de salão, bombinhas, traques e rojões poderão ser adquiridos até as 22h no mata-burros central, ao lado da barraca da pesca submarina com arpão folheado a ouro, sô!

 

Barracas da Vivo, Oi, Claro e Tim oferecem correio eletrônico elegante. Carregue seu celular apontando para o QR Code na entrada da festa e dispare seus torpedos ilimitados para Nhôs e Nhás que derem match com você, em um raio de até 5 km do arraiá.

 

Seu jeans Dolce & Gabbana todo rasgado ficará bão dimai da conta com os remendos Tommy Hilfiger ou Ermenegildo Zegna, mó de orná com a sua vibe caipira. Remendos trazidos de casa, já costurados à roupa, serão cobrados à parte segundo o critério de “rolha” – taxa adicional comumente exigida para os que preferem degustar seus Chateu Petrus oriundos de suas adegas particulares. Pois então, viva São Petrus, Santo Antonio e Saint Tropez da Côte D’Azur!

 

Pés de moleque, paçoca, pinhão com códigos de Barra do Sahi terão quiosques em todo o perímetro da fazenda.

 

E se quadrilha todo São João chinfrim tem, o nosso tem esquadrilha. Sim, a esquadrilha da fumaça, com show-defumação sabor Barbecue dando um toque todo especiar aos espetinhos de red angus na barraca do churrasco. Mai nem que a vaca tussa que vosmecê vai perdê.

  

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 26/07/2023.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Ping-Pong: a origem

 

 

A história atribui a invenção do tênis de mesa aos ingleses, por volta de 1880. Consta que o proverbial mau tempo britânico é que inspirou sua origem – em ambiente ao abrigo da chuva e sobre uma mesa de snooker, com livros fazendo as vezes de raquete e um barbante como rede.

 

Mas, na verdade, a coisa não foi bem assim. Hoje se sabe que aquele que acabou se transformando em esporte olímpico era, em seu embrião, o equivalente ao “paredão” do tênis, no qual o praticante fica batendo bola sozinho contra um muro, sem adversário.

 

A este monótono e solitário passatempo doméstico se deu o nome de “Ping” – em alusão ao chinês que o concebeu, Ping Huang, provavelmente ao redor do ano 40 antes de Cristo, ou seja, 1920 anos antes da data que os ingleses alegam como tendo sido o parto do esporte.

 

Setenta e quatro anos mais tarde, Pong Wei, um outro chinês de imaginação fértil e agudo senso de observação, nascido nos arredores de Xangai, teve o lampejo de bater a marreta na parede, agregar ao jogo um segundo participante – até porque os jogos em geral assim o exigem – e situar a peleja sobre a mesa de jantar dos Pong, não sem antes dividi-la com uma rede de aproximadamente 15 centímetros de altura, para dificultar um pouco o negócio.

 

Foi quando o já consagrado Ping ganhou seu complemento Pong, alastrando-se pela imensa China tal qual rastilho de pólvora – por sinal, outra invenção chinesa.

 

Que sacada: “Ping-Pong”. Nome sonoro, fácil, comercialmente fabuloso, facilmente reconhecível. E atribuindo, logo no batismo, o compartilhamento de autoria entre os dois engenhosos chineses.

 

Ninguém sabia disso até hoje? Não, ninguém sabia. E méritos sejam dados aos descendentes dos dois inventores, que foram suficientemente modestos para só discutirem a questão dos direitos autorais milênios mais tarde, ocasião em que chegaram a um acordo amigável perante um juiz de Pequim.

 

Perdão por ter prendido você até aqui por conta deste episódio de cultura inútil. Ou devaneio nonsense, se preferir – o que é muito mais provável.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 16/07/2023.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Antes e Depois

 

 

Perder peso é motivo de triunfo – do tipo vencer a natureza, ou driblar a tendência em ganhar volume e encarar as consequências, na saúde e na silhueta. A felicidade por emagrecer faz sentido, se levarmos em conta os danos causados pela obesidade.

 

E temos motivos para otimismo, analisando a recente tendência da indústria em reduzir peso de seus produtos. Sempre nos deparamos com o aviso na embalagem – Peso anterior: 200 gramas. Peso atual: 160 gramas. Redução de X%. No pacote de bolachas. No requeijão. Na barra de chocolate. No pote de geleia. Na lata de leite em pó, no macarrão parafuso e até na maria-mole do bar da esquina, que consta estar sendo produzida com menor área de “moleza”, para tristeza da gurizada. Esse exemplo é bem a propósito, até porque a obesidade infantil é uma triste realidade e precisa ser combatida. Tudo bem que, no aviso de redução de peso, as letras são miudíssimas, quase invisíveis… mas estão lá – dando aquela força para quem precisa emagrecer.

 

O que me comove sinceramente é ver os próprios alimentos dando exemplo, incentivando o candidato a magro a manter firme a força de vontade. Sim, pois se eles mesmos, alimentos e guloseimas, emagrecem nas prateleiras, isso acaba por se transformar em um espelho estimulante, como se dissessem ao gordo: “Olha, se eu consegui, você vai conseguir também!”. Essa boa intenção da indústria alimentícia, esse esforço pelo bem estar da humanidade, justifica plenamente a manutenção do preço anterior à diminuição do peso do produto. Sim, porque, se você reparar, a redução de produto não ocasiona redução de preço. O preço jamais diminui. E penso que o justo deveria até ficar mais caro, para compensar a atitude abnegada e espontânea em fazer sua parte na batalha pela saúde pública. De parabéns os empresários do setor. Isso é o que se pode chamar de responsabilidade social!

 

Me entristece é ver a grita da turma do “quanto pior, melhor”. Eles torcem contra, independente do que esteja em discussão. E, pejorativamente, chamam atitudes louváveis como essa de “maquiagem de produto”, para ludibriar o incauto consumidor…

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 02/06/2023.

 

- Imagem: divulgação.

 

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I.A. de Iaiá

 

 

Delírio: e se a Inteligência Artificial estivesse disponível no tempo do Império?

 

Iaiá Joaquina, às voltas com o Chat GPT, instrui-se e diverte-se na casa grande, em meio a espartilhos, bordados, partituras de minuetos e cartas apaixonadas de admiradores que comeriam de colherinha uma dúzia de carroças abarrotadas de esterco – se sua musa assim desejasse.

 

– Sugira uma receita de quindim diferente, que deixe caidinhos todos os janotas e almofadinhas da Corte.

 

– Descreva as qualidades de uma moçoila de respeito, prendada e casadoira.

 

– O senhor marido de minha irmã Luiza insiste nos atos de procriação com os lampiões acesos, afrontando o recato, os bons costumes e as leis de Deus. Deve ela consentir, sem maiores dramas de consciência e sem pelo menos uma ida emergencial ao confessionário?

 

– Cite lojas que comercializem penas de ganso, cisne e peru a preços módicos na Rua do Ouvidor. Qual delas desliza melhor sobre o papel?

 

– Novos modelos de escarradeira, tendências em Paris e Roma. Peço que discorra uma boa lauda a respeito, para que encomende uma bem bonita aqui para o sobrado.

 

– Resuma, de maneira prática, os folhetins em voga nos periódicos portugueses para que tenha assunto com as damas nos saraus literários.

 

– Como enganar a preceptora nas lições de matemática.

 

– Flerte na missa: pecado mortal ou venial?

 

– Terei que aceitar o matrimônio de conveniência que o senhor meu pai determinar, o que inclui o noivo propriamente dito. Se você, dileto GPTezinho, é mesmo o sabichão dos sabichões, diga-me de que forma lograrei conquistar um gajo bem apanhado, de belas costeletas e reluzentes botinas, ainda que seja a ele apresentada somente no dia da cerimônia?

 

– Que graça os gentis cavalheiros, assíduos frequentadores da Colombo e admiradores de ópera, acham em aspirar rapé?

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 06/05/2023.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Baseado, por incrível que pareça, em fato real

 

I

 

Chegaram os dois à galeria de arte.

 

Tinha que aplicar aquele retorque no quadro que pintou, nem que fosse a última coisa que fizesse na vida. Disse para o filho, aborrecido por estar ali àquela hora da manhã, obrigado a acompanhar o pai na empreitada insólita:

 

– Você distrai o segurança com uma história qualquer, diz que está passando mal, sei lá, pede pra ele te acompanhar até a entrada da galeria para tomar um ar fresco…

 

– Tudo bem, vou tentar. Mas vê se anda logo com essa bendita pincelada, pai!

 

– Sim, serei rápido, é só um acertinho mesmo. Coisa à toa.

 

II

 

No dia seguinte, estava de volta. Definitivamente, aquelas uvas sobre a mesa não ficaram boas, faltava um quê. Um pigmento lilás sobre o verde, em pelo menos duas das uvas do cacho. Fora que a textura da tinta sobre a tela, ali naquele ponto, ficou meio grosseira. Olhou para os lados para se certificar se estava mesmo sozinho. Pensava com seus botões de madrepérola: “O quadro é meu, tenho direito de consertar o que bem entender… não vou conseguir dormir nunca mais se não fizer isso”.

 

III

 

Não, não vou legar à posteridade uma obra imperfeita, disse, como se estivesse dando uma bronca em si mesmo. E enquanto um grupo de estudantes de belas-artes discutia a respeito da autoria controversa de um quadro próximo, de um pintor do século 16, aproveitou para tascar um verde-musgo nos ramos de uma árvore.

 

– Ah, agora sim! Comme il faut!!! Não, acho que piorou… o que foi que eu fiz, meu Deus!

 

– Pardon, monsieur? O senhor disse alguma coisa?

 

– Merde… merde, merde, merde!… desculpa, não é nada não, estou pensando alto, só isso.

 

E reclamava à própria sombra:

 

– Turistas. Deviam proibir turismo em museus e galerias de arte. Que vão comprar perfume na Le Bon Marché e deixem-me em paz com meus quadros!

 

IV

 

Segunda-feira, 03 de março. Lá estava ele na galeria de novo. Desta vez, não trouxe nos bolsos nem tintas nem pincéis. Apenas um paninho encharcado em removedor, para apagar sua assinatura da tela.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 25/04/2023.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Me respeita!

 

 

Me respeita que eu sou do tempo da internet. Sim, internet – com “i” no começo e “t” mudo no final. Mais: sou do tempo da IOT – Internet Of Things, em português chamada de Internet das Coisas, onde as telas apareciam em painéis holográficos à frente das pessoas, veja que atraso.

 

Me respeita que eu sou do tempo… olha, promete pra mim que não vai espalhar, este tipo de confissão entrega a idade… você não vai acreditar… eu sou do tempo dos carros elétricos, que você abastecia em uma tomada instalada na garagem. Que medieval, né?

 

Me respeita que eu sou do tempo do telescópio espacial James Webb, das criptomoedas e do PIX (!!!). Ai, meu Deus, que vergonha. Eu sou do tempo do iPhone 27, dos emojis, selfies, metaversos, avatares e umas imbecilidades a que davam o nome de redes sociais, nas quais as pessoas interagiam sem transmissão de pensamento e em um contexto onde a longevidade média não passava de ridículos 176 anos.

 

Eu sou do tempo em que se frequentava um espaço chamado academia, com o risível propósito de se trabalhar os músculos para retardar a morte. Eu sou do tempo em que as casas demoravam mais de duas horas para serem construídas e ainda não se autolimpavam.

 

Me respeita que eu presenciei a época em que humanos precisavam “comer” e “beber” coisas para não morrerem, fazendo insumos denominados “alimentos” e “bebidas” entrarem pela boca, passarem pelo tubo digestivo e depois… bom, deixemos pra lá esta parte indecentemente primitiva.

 

Não era comum, mas há relatos de pessoas vistas pelas ruas praticando o que registros históricos apontam como sendo “andar”, estranho hábito em que as pernas direita e esquerda se locomoviam alternadamente para levar gente de um lugar a outro. 

 

Creia-me, falo sério. Eu sou desse tempo aí. Portanto, olha o respeito.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 27/03/2023.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Nosso lar em nosso lar

 

 

Uma das mais inspiradoras páginas do Espiritismo Kardecista, em minha opinião, está no capítulo do “Nosso Lar” que trata dos bônus-hora. Segundo o livro, psicografado por Chico Xavier, com os trabalhos de auxílio no mundo superior, os membros de uma família de espíritos acumulam bônus de serviços. Cada hora de trabalho corresponde a um bônus-hora, que é uma espécie de “moeda corrente” no céu. Com os bônus, eles podem construir casas celestiais que abriguem pela eternidade – nos períodos de desencarne – pai, mãe, filhos e netos, por exemplo, antes de novas encarnações.

 

Planejando a morada

 

- Tô achando que a casa vai ficar linda, Saulo. Quero uma campainha de sino na entrada, vai dar um charme...

 

- Sim, claro. Por enquanto estou só estudando a planta baixa, meu amor. Com os bônus-hora que já juntamos, acredito que dê pra começar o alicerce da nossa vivenda espiritual.

 

- Bem ao nosso estilo, né? Tudo muito arejado, térreo, esse avarandado circundando a construção todinha...

 

- Do jeito que uma casa eterna merece! Se uma boa casa tem que ser pra sempre, imagine aqui no céu...

 

- Isso, meu lindo, também acho. E tem quartos pra todo mundo?

 

- Lógico. Até para os nossos bisnetos, que por enquanto nem encarnaram.

 

Afazeres na cozinha

 

- Nossa, bom demais esse cheirinho, hein?

 

- Estou fazendo o prato preferido de cada um e guardando tudo no freezer, para quando eles chegarem. Depois dos beijos do reencontro, imagina só irmos pra mesa e observar cada um deles se fartando com as comidas que mais gostam. Ai, eu não vejo a hora!

 

- E quem será que vem primeiro? Acha mal perguntar para os nossos mentores espirituais? Talvez eles saibam e contem pra gente.

 

- Não sei… acho que isso nem eles podem adivinhar. Só os círculos celestes muito, muito altos. Tá além da nossa compreensão e da nossa vontade, meu velho.

 

- O que me aflige é ficar vendo os meninos lá, batendo cabeça, perdendo o sono por pouca coisa. Quanta preocupação boba, quanto nervosismo, quanto inquietação lá na Terra…

 

- Meninos??? Meu anjo, o nosso caçulinha está com 52! Mas eu entendo a sua aflição.

 

- O pior é que, pelo menos por enquanto, a gente não pode descer, se materializar e dizer que o inferno é lá. Que aquilo não é vida, que a vida de verdade é aqui. E onde ela começa é justamente quando eles acham que é o fim de tudo.

 

- Saudade deles… vontade de aparecer de surpresa e dar jeito na situação.

 

- Nas situações você quer dizer, né? Nas situações...

 

- Prova esta torta de palmito aqui, veja se tá gostosa. É a preferida do Alfredinho.

 

- Huuuummmm, pra mim tá ótima, mas se bem conheço o nosso filho, ele vai achar que falta sal.

 

- Será?

 

Dim-Dom

 

- Ai, meu Deus, a campainha tá tocando. Alguém da família desencarnou.

 

- Nossa, é mesmo… acho que vou morrer de ansiedade, meu coração tá disparado!!!

 

- Relaxa, morta você já está.

 

- Brincadeira tem hora! Abre logo essa porta, Saulo! Deve ser um dos meninos chegando!

 

- Bom dia, Seu Saulo. Vai querer gás hoje?

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 27/03/2023.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Obras faraônicas

 

 

Minha infância estupidamente inesquecível: eu brincando com os amigos, de sol a sol, neste areal a perder de vista. Findo o dia e a janta, banho tomado, voltávamos às noites egípcias de estrelas incontáveis. Para mais brincadeiras. Para mais risos, corre-corres e esfolados nos joelhos.

 

Mas o progresso e o passar do tempo mudam tudo, viram o que querem de cabeça para baixo. Comenta-se sobre três grandes, faraônicas obras, que prometem transformar para sempre o panorama, soterrando sem dó meus castelos de areia. Minhas pequenas esculturas que se vão com ou vento ou a chuva, belas ou bizarras, mas minhas.

 

A modernidade chega com o nome de complexo de Gizé, em construções imensas denominadas “pirâmides”. O projeto prevê três ao todo, cada uma com um nome: Quéops, Quéfren e Miquerinos. Pouco se sabe ainda para que exatamente servirão, além do aniquilamento das nossas dunas encantadas. Mas dá para se ter ideia de suas proporções descomunais e labirintos internos, por onde transitará gente sabe-se lá com quais esquisitos afazeres. Já outros comentam que essa ostentação toda servirá como residência ou como túmulo de imperadores deste Egito ao mesmo tempo castigado e glorioso.

 

As obras começaram há mais ou menos uma semana. Alguns meninos da minha turma já organizam um bolão de apostas para tentar adivinhar em quanto tempo os engenheiros do imperador desistirão da empreitada, já que parece ser humanamente impossível arrastar blocos gigantescos até o cume de cada pirâmide. A menos que contem com a ajuda dos deuses.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 29/12/2022.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Previsões para amanhã

 

 

Os garis de Copacabana não divisarão nenhum navio no horizonte, nem horizonte que recicle o lixo de suas vidas. A enfermeira de plantão lerá “As Intermitências da Morte” e acabará morrendo de tédio ao virar a página 153. Na sala ao lado, a caneta do médico falhará quando estiver prescrevendo Viagra ao paciente.

 

O velho Hermógenes do 302 irá cortar o cabelo, a barba, o bigode, a carne, o iogurte, os remédios e o talco para chulé porque a aposentadoria não vai dar pra tudo isso. Os milhares de japonesinhos que nascerem prematuros terão os olhos mais puxados para as mães que para os pais, e todos eles dominarão os recursos do novo Playstation antes de completarem dois anos. O carteiro receberá uma carta apaixonada, mas a remetente não será correspondida. O vestibulando fará teste vocacional e descobrirá que não presta pra nada.

 

O juiz da nonagésima vara sairá mais cedo pra pescar. A reforma agrária ganhará terreno e deixará os latifúndios em estado de sítio. Um relojoeiro da Região Metropolitana de São Paulo irá bater com as dez, um verdureiro de Mairiporã irá pro vinagre, alguma Inês será morta e uma doceira será cremada.

 

O leiteiro flagrará a esposa dando de mamar para o encanador. A vendedora de panelas se casará com um cabo e ganharão de presente um conjunto inox de meia-tigela. Sem ter por que e com quem lutar, o almirante de esquadra dispensará as tropas e passará a Playboy em revista. O jornalista preservará suas fontes, mas investigará a fundo a greve dos chafarizes. Um padre de vocação vacilante largará a batina por culpa de uma fiel demasiadamente carismática.

 

O serial killer deixará digitais no Cereal Kellogg’s. O campeão de xadrez receberá como prêmio um xeque sem fundos. Os donos de livrarias venderão poucos exemplares de auto-ajuda, mas terão um bom retorno sobre “O Capital”. A vaca Mocha irá ruminar a dor de ver seu bezerro acompanhado de alface, queijo, molho especial, cebola e picles no pão com gergelim. Enquanto isso, as fábricas de mortadela abocanharão novas fatias de mercado.

 

O clarinetista errará a nota ao acertar as contas com a prostituta. E a prostituta, por sua vez, continuará ganhando a vida amando o próximo. Tire o cavalo da chuva: o Coelho, peixinho do chefe, será promovido a leão de chácara antes do cantar do galo. O secretário da receita passará a chefe de cozinha, por ordem expressa do cerimonial da presidência. O estado do aparelho de som passará de agudo para grave, se continuar a tocar os greatest hits de Chrystian e Ralf.

 

A bala perdida será encontrada no bolso do blazer do guarda Belo. Encostado à parede, o costureiro entregará os pontos. A praga daquele pestinha infestará todas as outras crianças do bairro. As mulheres mexicanas, para tornarem calientes seus casamentos, encherão de pimenta os tacos do quarto.

 

Agrônomos desenvolverão versões transgênicas da batata da perna, da planta do pé, da palma da mão e da flor da pele. Os projetos sairão finalmente do papel: uma borracha irá apagá-los impiedosamente. O referido papel será jogado às traças. Desprezado pelas traças, será lançado ao lixo, que será recolhido pelos garis de Copacabana.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 20/12/2022.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Nostraduña

 

 

Eis que mais uma vez, do alto de sua miserável choupana, considerada por muitos o oráculo dos oráculos, o Venerável e nunca suficientemente louvado Duña rompeu prolongado silêncio e assim se manifestou aos romeiros, ajoelhados à sua porta:

 

Não, irmãos, as chamadas Profecias de Nostradamus não são de Nostradamus coisíssima nenhuma. O dito cujo não passava de um escriba de horóscopo quando me enviou currículo, procurando estágio. Isso lá pelos idos de 1527.

 

Se eu disser que fizemos as profecias a quatro mãos, estarei sendo benevolente e admitindo uma parceria que não existiu. A verdade é que eu tinha as visões e as ditava a Nostradamus, que nada mais fazia do que escrevê-las. Lembro-me ainda que, em diversas ocasiões, ele implorava para que as ditasse mais devagar, a fim de dar tempo de colocá-las no papel.

Febrilmente, eu ia jorrando as profecias, em ritmo frenético. E o barbudo só pedindo para ir com calma, que o mundo não ia acabar. Ao que eu retrucava: “Vai acabar sim, Nostra. Quer que eu conte de que forma?”

 

Fato é que Nostradamus se deu conta de que não passava de mero escrevinhador, e que precisava urgente de um curso intensivo de taquigrafia para dar conta do manancial profético que eu ia botando para fora.

 

E vejam que ironia… quem entrou para a história como o mais certeiro profeta de todos os tempos foi ele – um impostor de terceira classe, um parasita da vidência alheia.

 

Sei muito bem que o que faz a grandeza dos verdadeiros profetas é a abnegação, a renúncia às glórias e à fama efêmera deste mundo. Tanto acredito nisso que há séculos mantenho minha boca fechada a respeito de Nostradamus e seus “feitos”. Permitindo, em uma demonstração de desprendimento, que o infeliz fique com os créditos das profecias que não fez.

 

Recordo-me, como se fosse hoje, da ocasião em que me ocorreu a visão da morte da Rainha Elizabeth. Acertei em cheio a idade e o ano em que a inoxidável Bethinha iria começar a comer capim pela raiz. Foi tão na mosca que as vendas de livros a meu respeito andam disparadas no Reino Unido.

 

Eu poderia, se quisesse, reivindicar direitos e royalties. Reatroativos, inclusive. Mas fiz voto de pobreza, e a ele não renuncio.

 

* Esta é uma obra de ficção

 

Marcelo Sguassábia© - 03/10/2022.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Aperfeiçoamentos Enxadrísticos

 

 

 

Embora de origem controversa, indícios apontam que o xadrez pode ter sido inventado na China, cerca de 200 anos a.C. Entretanto, antes de se espalhar pelo mundo, o jogo precisou passar pela avaliação do imperador à época. Consta como sendo dele o parecer que segue:

 

. Para início de conversa, é um jogo mal pensado.

 

. Comecemos pelo Bispo. Bispo chinês é meio fora de contexto. Ainda se fosse monge, vá lá.

 

. Os cavalos. Eles andam em “L”, o que significa um alcance de movimentação muito maior que a dos peões, que seguem de casa em casa e andam apenas para a frente. Só que é de se supor que os peões tenham domínio sobre os cavalos e sejam os donos deles. Seria razoável que os guerreiros, no jogo, valessem mais que suas montarias. Entretanto, o peão vale 1 e o cavalo vale 3. Outra aberração: cavalo e Bispo valem, igualmente, 3 pontos. Como pode um religioso graduado valer a mesma coisa que um quadrúpede?

 

. Vamos agora à Dama, e minha crítica à função desta peça é severa. Damas devem ficar em casa em tempo de guerra. Nada justifica a sua extrema liberdade de movimentação no tabuleiro e o fato de ser a peça mais importante e valiosa do jogo. Esta desenvoltura da dama em campo de batalha soa falsa, não corresponde à realidade. Fora isso, a expressão “comer a Dama”, que consta nas instruções enviadas para avaliação junto com o jogo, é bem vulgar.

 

. O Rei anda de um em um. É quase que um prisioneiro. Não protege, só pode ser protegido. Isso é papel de um monarca valoroso? Afinal, o Rei deste jogo é um Rei de verdade ou é um tutelado? Eu, como imperador, não permitirei esta caricatura.

 

. O tabuleiro parece pequeno para tantas peças. Há momentos em que fica tudo meio que embolado. Aumentar o campo de batalha de 64 quadrados para 128 pode deixar tudo mais “arejado”, com maior liberdade de movimento.

 

. Por falar em movimento, como é possível que as torres se movam? O criador deste jogo deve ser um psicopata ou usuário de droga alucinógena.

 

. Minha avaliação geral: um jogo burro e infantiloide, sem futuro. Nossos chineses, proprietários de lojas de 1,99, certamente ficarão com os estoques encalhados.

 

* Esta é uma obra de ficção

 

Marcelo Sguassábia© - 25/09/2022.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Rodízio de coração

 

Sejamos francos e façamos história crítica: não foi amor ao país, mas à coroa portuguesa.

 

Sim, uma portuguesa já de meia idade e com uns estragados aqui e ali, mas que ainda rendia um bom caldo.

 

Com ela, Dom Pedrito Primeiríssimo (ou Dom Pedrito IV em terras lusas) traiu ao mesmo tempo a Leopoldina e a Marquesa. O que prova que o coração do imperador era grande, metaforicamente falando. E dentro da média, em termos anatômicos, como todos podem comprovar em um palácio da capital federal, onde ficará exposto até o dia 7 – retornando à cidade de origem já na manhã seguinte à data do bicentenário da independência.

 

Até lá, segue o baile. A Semana da Pátria periga virar semana do pária, quando aquele um, filho predileto do coisa-ruim, tentará tirar todo o proveito que puder do coraçãozinho mole e da cabecinha fraca do povo. Tal qual uma tocha olímpica, pode ser que a coisa desfile em carro aberto pelas capitais dos estados. Ô, Glória! Isso sim é o que se poderia chamar de rodízio de coração. Passará o mandatário de moto, cercado como de praxe pelos harlleyros de Higienópolis, ostentando o pedaço de carne em conserva. Como se o picles cardíaco fosse o Santo Graal. E como se alguém estivesse dando a mínima para a coisa… ô dó!

 

Quem sabe se tente um fake-heart, já que de fake o mandatário entende. Abre-se o vidro do receptáculo, remove-se a relíquia e troca-se, quando da devolução à nação-irmã, por uma réplica. Plebeia, é verdade, mas em estado de conservação semelhante ao órgão original. Tão idêntico que ninguém perceberá a diferença.

 

Outra alternativa seria uma tomada de posse, pura e simples. Comunica-se ao governo português o sequestro do músculo e pronto, estamos conversados. Se os bigodudos e bigodudas quiserem tirar satisfação, que venham. Encontrarão um varonil exército pronto a defender seus mártires.

 

* Esta é uma obra de ficção

 

Marcelo Sguassábia© - 03/09/2022.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Google Earth reverso

 

 

O telescópio espacial James Webb vem trazendo perspectivas absurdamente novas de exploração de uma parte ínfima do universo, por enquanto a única observável por nós, desprezíveis humanos.

 

Sucessor do famosíssimo Hubble, o ilustre James deu ao Google a ideia do Google Earth Reverso. Ou seja, do zoom em nosso mundinho miserável a fim de fuçar na rua de casa e no quintal da vizinhança passamos para o sentido contrário, onde o ponto de partida passa a ser do planeta Terra para fora, e não para dentro.

 

Liguei o computador e pus-me a caminho. Percorrendo, a cada seta apontada para a frente, centenas e talvez milhares de anos-luz entre um pontinho e outro detectado pelas lentes.

 

Foram mais algumas semanas indo adiante, adiante e mais adiante, com milhões de cliques de avanço de imagem todos os dias, estrelas após estrelas, nebulosas após nebulosas, em uma viagem para a frente que não teria fim. Pelo menos era isso o que pensava, até aparecer uma advertência do Google Earth Reverso:

 

SE QUISER PROSSEGUIR DAQUI EM DIANTE, É POR SUA CONTA E RISCO.

 

Encarei a advertência, que só me instigou a continuar minha jornada patrocinada pelo Google e pelo telescópio com nome de mordomo. Pisei mais fundo no acelerador, meses a fio, varando madrugadas. Quase tive lesão por esforços repetitivos pela quantidade imensurável de comandos de avanço no mouse e no teclado, prosseguindo com a aventura.

 

Só sei que fui indo, indo, indo. Aos poucos o fundo negro foi se transformando em branco. Totalmente branco. Indo adiante deu para identificar um jaleco. Depois a trama do tecido e em seguida uma cabeça de mulher curvada sobre um microscópio. Me aproximando mais, vi os fones em seus ouvidos. Até que cheguei tão perto a ponto de escutar, ainda que bem baixinho, a música "Across the Universe".

 

Site Google Earth:

https://www.google.com.br/intl/pt-BR/earth/

 

Canção "Across the Universe":

https://www.youtube.com/watch?v=90M60PzmxEE

   

* Esta é uma obra de ficção

 

Marcelo Sguassábia© - 30/08/2022.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Vade retro, inominável

 

 

O inominável (que injustiça!) não é nenhum genocida. Genocídio é extermínio de grupo étnico ou religioso. O inominável é um democrata: deixa morrer indistintamente, sem preconceito de raça, credo ou nacionalidade. E sem dramas de consciência.

 

O inominável tem zumbis teleguiados, que vagam pelas ruas com camisas amarelas, impermeáveis ao que não conste da velha bula messiânica.

 

O inominável sabe que vai perder e descarrega a metralhadora de estrume sobre as urnas eletrônicas, as mesmas até há pouco fidedignas por elegerem-no desde os tempos de aspirante.

 

O inominável vai abrir licitação para o fornecimento de almofadinhas molha-dedos, aquelas do Bamerindus, para contagem dos votos. E vai exigir, auditando, seus colegas de trincheira.

 

O inominável e seu exército de ciborgues te obrigam a ser do PT, se não quiser ser um deles.

 

* Esta é uma obra de ficção

 

Marcelo Sguassábia© - 23/08/2022.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Limpo seu nome no Google!

 

 

Sim, há maneiras de tirar do Google o que o Google guarda (e espalha) sobre você.

 

Em tese – e quando eu digo em tese é só em tese mesmo, pois não existe no mundo quem acredite neste engodo –, o gigante das buscas livra o sujeito de quaisquer enxeridos que queiram escarafunchar a sua vida. Basta acionar um recurso que ele mesmo oferece.

 

Agora, raciocine comigo o crédulo leitor: para encontrar o tal recurso e saber como acioná-lo, você terá que digitar, no próprio Google, coisas como “O que fazer para desaparecer do Google?”, “Existe um jeito do Google não saber o que eu faço?”, “O que faço para eliminar do Google o que ele já sabe sobre mim?” ou algo assim. Ao digitar este tipo de pergunta, o gigante fica sabendo instantaneamente que você está querendo fugir dele, o que provavelmente deve ativar um alerta denunciando que você quer manter indevassável a parte sombria da sua vida. O sistema, falsamente solícito e diplomático, ensinará a você o passo-a-passo para manter-se incógnito doravante. Ok, maravilha. Daí pra frente, você passa a acreditar nisso aí, além do Papai Noel, do coelhinho da Páscoa e da cloroquina. Ou seja, ele diz que faz mas ninguém garante que faz mesmo.

 

Um dos megasites brasileiros dedicados a novidades tecnológicas apregoa uma sugestiva matéria com o título “Veja como apagar tudo o que o Google sabe sobre você”. E passa o caminho do anonimato em cinco práticas manobras, que qualquer criança é capaz de fazer. Será mesmo?

 

Já com o “Name Cleaner” é diferente. Seu nome continua constando no Google, mas só o que aparecer como ocorrência favorável. E mais: nas abas de imagens e vídeos do buscador, disponibilizamos, mediante pequena taxa adicional, o espetacular “Body Cleaner”. Ele faz a mesma coisa que o “Name Cleaner”, só que com imagens que possam comprometer de alguma forma o usuário. O filtro do programa não deixa passar nada que seja íntimo, vergonhoso ou antiestético. Só circunstâncias inocentes e politicamente corretas.

 

Creia-me, leitor: o fim dos cookies e a LGPD não chegam nem perto da solução que eu desenvolvi. Aguarde novidades!

 

* Esta é uma obra de ficção

 

Marcelo Sguassábia© - 15/08/2022.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Silbra, pobre Silbra

 

 

Jajá Pupunha, presidente da República de Silbra e conhecido no meio militar como Recruta Zero, chegou a capitão mais pelo tempo de caserna do que por méritos próprios, até porque seus pares e superiores sempre o consideraram um mau servidor das forças armadas. Poderíamos até chamá-lo de Recruta Zero à esquerda, não fosse Jajá a encarnação da extrema direita de Silbra.

 

Corrreligionários de Zero sustentam, amparados em seu raciocínio reducionista e excludente, que quem não louva seu ídolo é obrigado a ser tepista – não existindo possibilidade, em seu estreito horizonte, de alguém não querer optar nem por uma porcaria, nem por outra. A eles, rotulados como “isentões”, caberá a ira de um exército de Torquemadas liderados por Pupunha, prontos para a sangria tão logo se dê o já previsto golpe de estado.

 

Notável estrategista, Pupunha costuma voltar atrás em onze de cada dez decisões tomadas, reflexo provável de inépcia executiva, já que sua carreira como parlamentar inoperante se estendeu por enfadonhos 30 anos.

O Recruta Zero legou ao mundo algumas nulidades (puxaram ao pai!), mais conhecidas como Zero 1, Zero 2, Zero 3 e Zero 4, além de uma garota que, a exemplo dos irmãos, também demonstra serventia alguma – já que é menor de idade e não pode prestar-se ainda a ser testa-de-ferro em negócios escusos.

 

Ansioso, entretanto, por manter Silbra andando para trás e na contramão do mundo civilizado, Pupunha quer a qualquer preço perpetuar-se acocorado em sua moto de marfim, com metralhadora em uma mão e papel higiênico para limpar suas cacas na outra, alternando daí para seu cercadinho midiático e uma visitinha de vez em quando a feiras agropecuárias.

 

No lado oposto, Lulu triplex, do TP, notório saqueador de estatais e assim conhecido por almejar o terceiro mandato, dono de fabuloso patrimônio pertencente a seus amigos, aproveita-se do progressivo desgaste de Jajá para a reativação dos propinodutos. Prevendo a derrota iminente, Pupunha rebate com cruzada pela volta do voto impresso, auditado por corporação da qual faz parte. Ou seja, com total imparcialidade.

 

Governar, que é bom, Zero.

 

* Esta é uma obra de ficção

 

Marcelo Sguassábia© - 24/07/2022.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Piscina cheia

 

 

- Piscina é um negócio nojento mesmo. Se a gente parar pra pensar não entra numa de jeito nenhum.

 

- Ainda mais piscina de clube. Mas quem ligava pra isso? O que tinha que acontecer rolava aqui, em volta e dentro dela.

 

- Um caldo coletivo de bactéria, mas o que podia ser melhor que aquela vida irresponsável, cheirando a cloro? É, eu tinha cloro nos cabelos. Melhor ainda, eu tinha cabelos.

 

- Que graça tem hoje, com essa história de piscina em casa? Todo mundo tão isolado. Instrumentalizaram a piscina. Piscina serve pra não precisar ser sócio de clube.

 

- Lembro que você não tinha nenhuma estria ainda. Celulite, nem pensar. Pernas roliças, seios de pera. Ah, mulher, você era mais lisa e simétrica que os azulejos da Olímpica. Olha eles agora. Alguns soltos, muitos trincados, outros descorados, cheios de limbo verde.

 

- O que me comove é este seu transbordante romantismo.

 

- 1981, 82. Não havia como não olhar pra você, com aquele biquíni mínimo.

 

- Que depois eu acabei jogando fora, você não me deixou usar mais.

 

- Lógico. Aquilo ia bem na namoradinha dos outros. Quando te pedi em namoro já era pensando em casar. Nossa, você era pele e osso. Quase um desconforto te abraçar, Mirtes. Machucava.

 

- Me deixasse lá então, com meu biquíni mínimo. Se era mesmo essa faquir que você está falando, ninguém devia reparar em mim... nem você.

 

- Então, mas era uma magreza de modelo, esguia. Você era uma garça no meio das galinhas-d’angola...

- Na época você não me falava isso.

 

- Confete demais. Você se achava a última bolacha do pacote. Eu não repito nem pra mim os comentários da turma sobre você, antes da gente começar a namorar.

 

- Faz tanto tempo. Pode dizer agora, fiquei curiosa.

 

- Falar em confete, e os carnavais, heim? Muitos carnavais.

 

- “Quando por mim você passa, fingindo que não me vê, meu coração quase se despedaça...

 

- ... no balancê, balancê”. Você bêbado feito um gambá, mamando aquela garrafa de tubaína cheia de Fernet com pinga.

 

- Tubaína, Fernet... volta pra 2022, Mirtes. Espana esse mofo, aí.

 

- Quem começou com o flash-back foi você.

 

- Olha outra do arco da velha... flash-back!

 

- Cinco noites e três matinês. Como é que a gente aguentava eu não sei.

 

- Uma folia emendava na próxima. Ia curando a ressaca de um dia com a bebedeira do outro...

 

- Você não valia nada, Bruno. Aposto que não se lembra mais daquela terça gorda quando te flagrei no carro com a Soraya-vai-que-é-fácil. E a gente já tinha aliança de compromisso.

 

- Efeito da tubaína. A Soraya era galinha-d’angola, como as outras...

 

- Ah, tá. Me engana que eu gosto.

 

- Eu até que era comportado. Pior foi o Julinho, que colocou uma câmera de vídeo no vestiário feminino. As debutantes todas, nuinhas. A fita circulou a cidade inteira, fizeram não sei quantas cópias. Sorte que você não apareceu no clube aquele dia.

 

- Olha lá, os caminhões de terra chegando.

 

- De novo, a velha piscina cheia. Antes fosse de gente.

 

- Sente comigo esse cheirinho bom de bronzeador. Pelo que vivemos aqui. Pelo que não volta mais.

 

- Mirtes, dá uma olhada no nome da empresa pintado nos caminhões.

 

- Júlio Piedade Terraplenagem e Engenharia. Que é que tem?

 

- É o Julinho. É a última do Julinho.

 

* Esta é uma obra de ficção

 

Marcelo Sguassábia© - 21/06/2022.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Notre Pont

 

 

Até há poucos anos, a Pont des Arts, em Paris, era chamada de “A ponte dos cadeados”. Casais apaixonados do mundo inteiro juravam amor eterno prendendo um cadeado com seus nomes nos alambrados laterais, arremessando em seguida a chave no Rio Sena.

 

I

O cadeado era bem antigo, já quase todo comido pela ferrugem. Daqueles com chave de baú velho. De longe chamava a atenção, tão fosco em meio aos de aço. Ao contrário dos milhares de outros, todos trancados e com as chaves em eterno sono no fundo do Sena, aquele estava aberto. Trazia seu nome e sobrenome escritos com esmalte de unha. E um endereço, na Rua Mouffetard.

 

II

Um café, pegado à tabacaria. Mais duas ou três construções geminadas, uma lojinha de queijos, outra de souvenires e lá estava o número: uma floricultura com 6 andares de apartamentos em cima. Lá estava: appartement 42. Quem colocou seu nome no cadeado? Por quê? Medo de apertar a campainha. Vontade retornar correndo e se enfiar no quarto de hotel em Montmartre. Esquecer que viu o que viu, arrumar as ideias com a mesma simetria das roupas da mala e tocar para o aeroporto antes do fim da estadia. Merde. Faltava tanta coisa para conhecer, era sua primeira vez em Paris. Hoje mesmo, a manhã estava reservada para o Cemitério Père Lachaise, a tarde e a noite para o Quartier Latin.

 

III

Seria algum amigo do Brasil, querendo brincar com ele? Mas como esse amigo teria certeza de que iria reparar no cadeado antigo para que a brincadeira continuasse? O raciocínio não fechava.

 

IV

Nem precisou tocar a campainha. A chave estava na porta do lado de fora. Uma chave que, além da porta, parecia ser também do cadeado. Entrou. Uma mulher linda, nua e desconhecida pintava as unhas com esmalte da mesma cor usada no cadeado da ponte, sentada de pernas cruzadas em uma cadeira. Foi quando entendeu. Foi quando lembrou. Foi quando o raciocínio, como um cadeado, se fechou.

 

* Esta é uma obra de ficção

 

Marcelo Sguassábia© - 21/06/2022.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Trem doido

 

 

- Ô leseira, não passa um raio de carro nessa estrada hoje. Até agora não vi nenhum. Cê viu, Cacau?

- Nadinha, nem carroça. Não dá nem pra brincar de adivinhar qual a cor dos carro que vem vindo.

- É. Nem isso. Vida besta.

- Tô sentindo uma coisa pontuda espetar meu pé. Deixa eu cavar um pouquinho pra ver o que é.

- Tivesse vindo de conga, que nem eu, não espetava nem nada.

- Parece um negócio de papelão.

- Puxa pra fora, tá enterrado.

- Já vai, tô tentando.

- Nossa, que que é isso? Tá com jeito de ser uma capa de disco velha.

- É nóis nesse retrato aqui, olha só, Tonho! Até a nossa roupa é igual à que a gente tá usando hoje.

- É nóis mesmo. Nossa, agora que deu um nó na cabeça...

- Então, como é que pode isso? Vixi!

- Tem uns escrito aqui desse lado... Clu...be da... Es... es... es...qui...na. Clube da esquina.

- Que raio de troço é esse?

- Sei lá eu. Meu pai uma vez falou que esquina é uma coisa que tem na cidade, não tem aqui na roça não. Agora, clube eu nunca ouvi falar. Cê sabe o que é?

- Não.

- Vem vindo um carro, ó só.

- Uia, ô trem esquisito. A chapa é branca em vez de amarela, tem um monte de número e letra. Não é Opala, nem DKV, nem Fusca e nem Corcel.

- Rapaz, bonitão memo esse carro aí. Diferente desses que a gente vê passar aqui.

- Parece que é coisa de outro mundo. Tô é ficando com medo, isso sim.

- Tá parando, abriu as porta.

- Tonho, tô vendo uma moça no banco de trás olhando assustada pra nóis. Óia pra gente e depois pra um disquinho pequeno e brilhante, com o mesmo retrato que a gente encontrou agora de pouco. Parece que viu sombração. O homi que tá dirigindo também não tira o olho da gente. E que que é esse negócio de vrido preto encostado na oreia dele? Fica falando sozinho com esse negócio no ouvido!

- Eita. Deve ser viajante perdido. Errô o caminho.

- Só pode.

 

* Esta é uma obra de ficção

 

Marcelo Sguassábia© - 06/06/2022.

 

- Imagem: foto de capa do disco "Clube da Esquina". Cafi (fotógrafo).

 

 

*  *  *

 

Atanagildo, o ileso

 

 

Ainda estava por nascer o cara que iria flagrá-lo trocando o certo pelo duvidoso. Melhor dizendo, "tocando" o duvidoso no lugar do certo.

 

O Concerto número 2 para piano e orquestra de Rachmaninov e o número 1, em mi menor, de Chopin, o Atanagildo assobiava, nota por nota, do início ao fim. Os três movimentos de cada um deles, tão familiares quanto a unha encravada que tinha desde menino. Achava de melhor proveito e de maior prazer ouvir "Starman" pela 593ª vez do que arriscar um rolê no Spotify para conferir o que andava bombando em ouvidos ianques semana passada.

 

A duração da vida era inversamente proporcional à oferta de músicas para embalá-la, pensava o Atanagildo. Não se conformava com a montanha de tempo, gasto e não reaproveitável, na audição de porcaria. Abrindo zilhões de ostras estragadas em busca de uma improvável pérola.

 

Para chegar aos seus exigentes ouvidos, era preciso perfurar um grosso escudo anti-mau gosto. Sim, esse meu amigo era um verdadeiro mata-burro sonoro. Se algo novo e bom surgisse, qualquer coisa diferente que realmente valesse a atenção investida, mais cedo ou mais tarde ele tomaria conhecimento de alguma forma. Assim, não se preocupava e seguia fiel a seus clássicos. Deixando que o tempo fizesse, lentamente, sua seleção natural.

 

Foi assim que teve o prazer de nunca ouvir Pablo Vitar. Que negou-se a dar uma chance a um obscuro quarteto de Rostropovitch para cair nos braços sempre abertos da Pastoral de Beethoven. Que encomendou uma dúzia de missas em ação de graças, por ter escapado ileso de uma bomba sertaneja que passou de raspão nele, ao descer de um trem de metrô na Estação da Luz.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 26/04/2022.

 

- Imagem: divulgação.

 

*  *  *

 

O grito do Ipiranga

 

 

- O senhor também pinta parede, heim?

 

- Ah, ah, ah, ah! Não, só quadros. Sou um artista! Agora não se mexa, fique parado aí.

 

- Tá bão.

 

- Eu fiz tudo lá em Florença, por encomenda do Imperador Dom Pedro II. A intenção é enaltecer o feito do pai dele, o grito da Independência, compreende?

 

- Compreende.

 

- É "compreendo" que fala.

 

- Mas o senhor falou "compreende".

 

- Olha, chega mais perto do quadro. Tá vendo aqui, no canto esquerdo, embaixo? Eu tinha pintado mais soldados, todos formando um círculo em torno do Dom Pedro I. Coisa bem marcial, triunfante! Mas sabe como é o poder, né... seja ele monárquico ou republicano.

 

- Sei não senhor.

 

- Eles quiseram que colocasse na pintura alguém do povo, um cabra bem sofrido mesmo, para representar os desvalidos.

 

- Desva o quê, Seu Américo?

 

- Meu nome é Pedro Américo.

 

- Mas Pedro não é o imperador que o senhor acabou de falar aí? O um e o dois, o filho e o pai, não é isso não?

 

- Pois então, a pintura na verdade já estava prontinha, sabe. Só que aí acharam a cena "oficial" demais. Mas deixa pra lá, até eu explicar a história toda vai estourar o meu prazo de entrega da obra. E nem vem ao caso a gente ficar perdendo tempo com isso. Bom, volta lá pra sua posição - camisa aberta, peito estufado pra frente, braços pra trás, cajado na mão e sempre olhando pra sua esquerda, faz favor. Como se você estivesse vendo o Dom Pedro dar o grito da independência.

 

- Mas vai com essa camisa toda rasgada mesmo, é? Vou sair feio, Seu Américo. Carecia de arrumar uma camisa mais bonita, engomadinha.

 

- Deixa comigo que eu sei o que estou fazendo.

 

- O senhor falou que ia pintar um carro de boi atrás de mim. Mas só tá pintando eu...

 

- O carro de boi eu tenho referências. O que faltava era um brasileiro típico, miserável, pobretão. Para não correr o risco de ficar com cara de europeu, o Império liberou uma verba gorda para que eu viesse ao Brasil e retratasse uma pessoa como você, que existisse de verdade. Entendeu agora?

 

- Entendeu.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 23/02/2022.

 

- Imagem: divulgação.

 

*  *  *

 

Paradeiro Paraguaio

 

 

Lista parcial de produtos falsificados encontrados recentemente, em operação conjunta da Polícia Federal brasileira com investigadores paraguaios.

 

Tênis Rebok

Pilhas Vai-O-Racha

Camisas Laboste

Whisky Odieight

Óculos K-Ray Ban

Training esportivo Ardidas

Feijão Broto Ilegal

Leite da véia Davene

Estribufu – artigos para montaria

Smartphones Mortorola

Tênis TiaDora

Relógios Enrolex

Cartão de crédito Santandré

Cartões de débito/crédito do Banco Safa

Maionese Réumanns

Bolachas Crime-Crackers

Peru Temperado Saída

Chester Perdigoto

Sabão em pó Mienerva

Meias Pulo

Água Mineral Pirata sem gás

Cigarros Mauboro

Mickey de pelúcia Waldisney

Dicionário Aurelho

Licor Encontreau

TV Mitsuvixi

Fod Ranger

Cerveja Tapeava

Fixador de dentaduras Escorrega

Curativos Band-Id

Vick Vaporoub

Filtro de Café Meirrita

Sabonete Phedo

Sal Afrário

Lápis Faber-Cartel

Whisky Zito

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 17/11/2021.

 

- Imagem: divulgação.

 

*  *  *

 

Roma, 80 d.C.

 

 

- Tenha dó! Precisava de uma obra faraônica como este Coliseu? E tudo com dinheiro público...

 

- Não entendi o "faraônica". Estamos em Roma, não no Egito. Temos imperador, não faraó. E isso aqui na nossa frente não é uma pirâmide, é um cilindro.

 

- E esse tom dourado cintilante, coisa mais jacu. Seria bem melhor deixar sem tinta, no concreto aparente mesmo. Muito mais clean e clássico.

 

Vendo de longe parece a coroa do Burger King!

 

- É, mas já estava na hora de construir uma arena nova. A que tinha antes, lá onde Judas perdeu as botas, estava em ruínas. Esfarelando.

 

- Judas? Aquele que deu a ficha de Jesus Nazareno, uns tempos atrás?

 

- Isso.

 

- Com essa estrutura toda, esse aqui com certeza vai demorar muito pra virar ruína. O mundo acaba antes disso.

 

- Olha só o cartaz:

 

EVENTO DE INAGURAÇÃO

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- Pois é. Meu cunhado tá sem emprego e vai tentar ganhar algum vendendo água na arquibancada.

 

- Vender água? Com mais de duas mil fontes de água cristalina espalhadas por Roma?

 

- Tá, e você acha que todo mundo vai lembrar de encher a garrafinha PET antes de entrar no estádio?

E na hora da sede, pra sair do meio da multidão? O cidadão vira refém do vendedor ambulante.

 

- Ouvi dizer que vai ter gladiador também.

 

- Gladiador? Acho que já vi esse filme antes. Você vem?

 

- A sete moedas o litro de gasolina? Imagina! No fim de semana a biga fica bem quietinha na garagem.

 

- Fica aí fazendo rodeio, no fim você acaba indo...

 

- Rodeio só no século 20. E só se for nos Estados Unidos e no Brasil, aqui a ideia não pega, não.

 

- Acho que é porque sertanejo cantando sofrência com chapéu de cowboy não combina nem um pouco com a Cidade Eterna...

 

- Sei lá. O que eu sei é que o BolsoNero quer ver o circo pegar fogo.

 

- Mas de que Nero você tá falando, o incendiário? Parece que bebe... quem dá as cartas agora é o Tito.

 

E seguiram caminho, os dois. Não sem antes dar uma paradinha na banca de camisetas, estampadas com a mensagem: "Inauguração do Coliseu. Eu fui!!!".

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 04/11/2021.

 

- Imagem: divulgação.

 

*  *  *

 

Chabu Amazonense

 

 

A curiosidade pode não ser nova para muitos, mas o fato é que a Amazon começou em um escritório minúsculo, com uma mesa improvisada, cujo tampo era uma porta velha de madeira.

 

– Fechei a Amazon, mãe.

 

– Ah, é? Grande novidade… nem bem abriu e já deu com os burros n’água. Como é que um negócio que se preza pode ir pra frente funcionando em cima de uma porta velha?

 

– Isso não faz diferença. Toda empresa, no começo, deve trabalhar com custos reduzidos. Além do mais, é tudo via internet, eu não recebo o cliente aqui.

 

– É, não recebe cliente nem aqui, nem na internet, nem em lugar nenhum. Não apareceu ninguém pra comprar seus livros. Nem em carne e osso, nem em pixels e bites. Você é um completo fracasso, Jeff. Aliás, eu diria que você também é uma porta. Mais porta do que essa de madeira aí, que você chama de tampo de mesa. Não faltaram conselhos sensatos para que você desistisse dessa insanidade de vender livros pela internet. Só você mesmo, Jeff. Agora fica aí, com essa cara lambida, de bezerro desmamado, precisando que alguém te dê a mão para sair do buraco. O que pretende fazer de prático? Hein? Hein?

 

– Vou entrar em algum classificado online, que é de graça, para tentar vender a mesa. Pelo menos com essa graninha eu pago a internet e a conta de luz. A sorte é que os livros estavam comigo em consignação.

 

– E vai anunciar a mesa como mesa? Propaganda enganosa. Você sabe que é uma porcaria de uma porta velha, toda descascada, com dois cavaletes bambos. Melhor caprichar na foto. Mas, mesmo se chamar a Annie Leibovitz pra fotografar, na hora em que o interessado olhar de perto vai desistir do negócio.

 

– Caramba, eu tinha certeza que a ideia das vendas online ia vingar…

 

– Sim, as vendas se vingaram da sua burrice, sua besta quadrada! Agora, vê se aprende a lição: livro é na livraria, sapato é na sapataria, geladeira é na loja de eletrodomésticos. E lugar de gente sem juízo como você é no sanatório. Ou, no máximo, sendo empregadinho dos outros a vida inteira. Fazendo o que o patrão mandar, sem discutir. Tá me entendendo, Jeff?

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 27/09/2021.

 

- Imagem: divulgação.

 

*  *  *

 

Vida Própria

 

 

– Vai, escreve aí. Não discute comigo, faz o que eu estou mandando. Chegou a minha vez de me inventar. Ou reinventar, no caso. É fácil ficar sentado o dia todo aí nessa cadeira, decidindo como as pessoas são ou deixam de ser. Fazendo barba, cabelo e bigode na gente. Falando nisso, volta lá na página 239, capítulo 12, quase no final. Tira essa porcaria desse cavanhaque ridículo que você me arrumou, um pouco antes do roubo da joalheria do balneário. Fique sabendo que, depois disso, a vizinha do 43 – outra invenção sua, na página 18, lembra? Então, ela nem olha mais pra mim.

 

– Calma, rapaz. Não esquece que, do mesmo jeito que te inventei, eu posso dar um Del aqui e você vira folha em branco de novo. Desse jeito você me desestrutura o livro.

 

– Se preocupa não, o mundo não vai perder grande coisa.

 

– Mas se eu jogo fora o que está aqui, você vai junto pra lixeira.

 

– Mas é mirim mesmo, viu. Sinto informá-lo que agora é tarde. Como vocês escritores costumam dizer, ganhei vida própria. Você não tem mais controle sobre o personagem. E, por uma desatenção exclusivamente sua, fui imaginado com bíceps e tríceps bem mais salientes que os seus. Portanto, é altamente recomendável que me obedeça, tá certo?

 

– Caramba, eu estava no meio de um turning point.

 

– Quê?

 

– Reviravolta. Para o leitor não dormir, sabe?

 

– Ah.

 

– Espera só um pouco, não quero perder o fio da meada…

 

– Olha, tem um negócio que se chama responsabilidade, seu moço. As coisas aí na rua estão do jeito que estão por causa de escrotinhos como você, que ficam aí, botando gente no mundo quando e da forma que acham melhor. Agora tô aqui e não tem volta. Não adianta me tirar da história na próxima edição. Eu sou protagonista.

 

– Alto lá, eu posso te matar no próximo capítulo!

 

– Experimenta.

 

– Tira essa mão cheia de dedos da minha garganta, por gentileza. Uma batucadinha aqui no teclado e eu te deixo maneta, aí quero ver!

 

– Se tiver força pra teclar depois de estrangulado…

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 18/09/2021.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Participe do Dia do Suéter Feio!

 

 

A origem do Dia do Suéter Feio se perde em tempos imemoriais. É tão enigmática quanto a escolha da data para a efeméride, invariavelmente na terceira terça-feira do mês de dezembro.

 

Ao longo dos anos, muitos competidores, ainda tidos à época como menores incapazes e mais tarde promovidos a maiores incapazes, abrilhantaram a história da data, que transformou-se em competição com direito a prêmio.

 

Trump é um deles. Consta que o suéter do então impúbere rapazola foi considerado, pelo vice-presidente do júri, mais feio que bater na mãe com o braço arrancado do pai. Aclamado por unanimidade como hours-concours no certame daquele ano, Trump fez por merecer a taça “Ugliest Trophy”, exposta sob uma redoma à prova de balas em um de seus hotéis de Las Vegas. Ao lado da relíquia, repousa uma outra preciosidade: um dos lendários suéteres amarfanhados de Albert Einstein, puído no decote em V e devorado pelas traças na altura do umbigo. Fontes confiáveis e próximas do gênio alemão insistem em outra versão para o buraco na barriga, alegando que este foi consequência de uma bicada de marreco, quando das antepenúltimas férias gozadas por Einstein antes do seu falecimento, em um zoo de Connecticut.

 

Já o Dia do Pulôver Medonho foi criado para que o Dia do Suéter Feio continuasse a ser comemorado habitualmente, caso a terceira terça-feira de dezembro apresentasse temperatura excepcionalmente alta para os padrões do inverno americano. Como todos sabem, o pulôver nada mais é que um suéter sem mangas. Portanto, menos quente.

 

Para 2023, o mais tardar, os organizadores do Dia do Pulôver Medonho e do Dia do Suéter Feio prometem boas mudanças no regulamento. Uma delas, ainda guardada em segredo, foi supostamente sugerida, em lampejo de rara inspiração, pelo presidente brasileiro. Aquele lá, que não morreu.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 06/09/2021.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Mestre Duña e o voto impresso

 

 

Preleção do Venerável à frente de uma barraca de churrasquinho grego, em Nova Iguaçu – RJ.

 

Muito tem me entristecido, ó amantíssimos discípulos, o que venho assistindo, lendo e escutado ao pé do ouvido sobre a questão do voto. Se impresso, se eletrônico, quiçá de castidade ou de pobreza…

 

– OOOOOOOOOOhhhhhhhhh!!!!

 

O queridão do chiqueirinho parece buscar, ele sim, a oportunidade de fraudar, e não de evitar que haja fraude. Isto é cristalino como as águas do Tietê em 1762.

 

– OOOOOOOOOOhhhhhhhhh!!!!

 

Pensem, pensem, pensem um pouco e duvido que não me deem razão, tão logo se concluam suas primeiras sinapses. As possibilidades de manipulação dos resultados são todas e mais algumas. Na colocação da cédula na fenda, na lacração das urnas, no transporte delas para os locais de apuração, na posterior abertura, na conferência pelos fiscais dos partidos e até mesmo na contravenção máxima – a de virem estes a disputar uma partida de bafinho, para espantar o sono na alta madrugada, tendo os votos no lugar das figurinhas!!!!!

 

– OOOOOOOOOOhhhhhhhhh!!!!

 

É o famigerado tiro no pé, pois o pitecantropo do Paranoá foi, ele mesmo, eleito eletronicamente. Continuar disparando esta metralhadora de mi-mi-mis é questionar o próprio pleito em que sagrou-se vencedor.

 

– OOOOOOOOOOhhhhhhhhh!!!!

 

Guardadas as devidas proporções, isto faz me lembrar um episódio da minha história de vida, que guardo na memória com o mesmo zelo que dispenso à pequena girafa de resina que ganhei de Tia Ruth, em meu sexto aniversário.

 

Antes, muito antes de renunciar às tentações do mundo e abraçar de vez o ministério profético, servi como taifeiro nas Agulhas Negras. À época, um rapaz, branco como palmito, de cabelo repartido e dado a imitar Hitler com um pente flamengo sobre o beiço e a armar bombas para explodir no paiol de feno, cismou de candidatar-se à presidência do grêmio dos cadetes. Não havia outra chapa concorrendo, de modo que a chance de insucesso do palmito era remota. Ainda assim, nosso tenro pupunha tremia como uma vara verde só de pensar na eventualidade de uma derrota acachapante. É, coisas do passado… mas, onde é que eu estava mesmo?

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 30/08/2021.

 

- Imagem: divulgação.

 

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“Isentão”, graças a Deus

 

 

Excertos da mais recente preleção do Venerável Duña, quando de sua aparição em uma Casa do Norte na Freguesia do OOOOOOOOOOhhhhhhhhh!!!!

 

“Ou você está do nosso lado, ou está contra o Brasil”. Se perguntarem a vós, usuários do vale-transporte, a quem esta frase é atribuída, metade me responderá, sem medo de errar: à esquerda; a outra metade, afirmará convicta: à direita. E eu, com toda a franqueza disponível na Via Láctea, vos direi que ambos os lados têm razão. Por este motivo é que incluo-me entre aqueles a quem a direita sectária e a esquerda quixotesca rotulam, pejorativamente, de “isentão”.

 

– OOOOOOOOOOhhhhhhhhh!!!!

 

Pois eu afirmo a vós que felizes são os “isentões”, que persistem na santa cruzada por uma terceira via redentora e bem intencionada – ainda que não se tenha a menor ideia de qual seja ou quem a represente! Creiam-me: a salvação não virá nem do molusco, nem do neonazi de cabelo repartido. Abominar o ocupante transitório do Palácio não nos condena, necessariamente, às fileiras dos doentes de esquerdopatia crônica.

 

– OOOOOOOOOOhhhhhhhhh!!!!

 

O aprendiz de Torquemada tem QI limítrofe entre o jegue e a rolha de cantil. Um borderline, no jargão médico. Quiçá um case sobre o qual irá se debruçar a psiquiatria do século 22, na busca de respostas ao fato de um retardado ter conseguido escamotear, ainda que momentaneamente, sua imbecilidade até a vitória nas urnas. Eletrônicas, diga-se.

 

Entre um salteador de bilhões e um assassino de meio milhão, escolho nenhum. Ambos são repulsivos a quem almeja a iluminação, o alinhamento dos seus chacras e, vez por outra, uma coxinha com massa de macaxeira. O caráter do homem de bem repele a ambos, pois ambos são de nauseabunda natureza.

 

– OOOOOOOOOOhhhhhhhhh!!!!

 

Vocês já ouviram falar em profetas de esquerda?

 

– Não, Mestre!!!

 

Nem poderiam. Profetas, em sua esmagadora maioria, são conservadores. A doutrina Duñesca é moralista e dogmática, francamente de direita. Mas uma direita que endireite, não que entorte ainda mais.

 

– OOOOOOOOOOhhhhhhhhh!!!!

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 22/08/2021.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Danilo aos domingos

(Para ser lido após "Fernanda aos sábados")

 

 

Sete e quinze

 

A boca seca e com gosto de cabo de guarda-chuva. Aperta com força o resto de creme de barba no tubo. Joga um pouco de água gelada na nuca para ver se espanta a ânsia. O que se passou entre a saída da casa dela e a volta para a sua, só perguntando a alguém. Da próxima vez já sabe: depois do sexo e do álcool, junk food na veia - e rápido. Nada de comida japonesa.

 

Sete e vinte e três

 

No lóbulo da orelha esquerda, em lugar de batom, achou um machucadinho com uma casca seca de sangue. Ela é o Tyson atacando o Holyfield quando está querendo muito.

 

Nove e dez

 

Um blend de uísque com energético. Para os excessos de álcool, mais álcool. Tropeça sem saber se é efeito da ressaca ou do novo pileque. Pede para a Alexa tocar Hound Dog.

 

Meio dia e cinquenta e dois

 

Ligam da portaria, entrega da 5àSec. E aquele peixe cru subindo e descendo, sem se resolver. Nunca mais. Nunca mais mesmo.

 

Uma e quarenta

 

Só mais uma dose para afogar de vez o peixe ainda vivo no aquário do estômago.

 

Quinze e trinta

 

Danilo dorme.

 

Dezenove e cinco

 

Danilo ronca.

 

Vinte e duas e vinte

 

Danilo vira-se para o outro lado da chaise e ronca mais alto.

 

Vinte e três e cinquenta e seis

 

Acorda. Amanhã vem a segunda e seu nojo tedioso. Mas qualquer segunda é um alento quando a ideia é livrar-se do domingo à noite.

 

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 16/08/2021.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Fernanda aos sábados

 

 

Sete e quinze

 

Embora as evidências indicassem o contrário, ela não havia acordado de fato.

 

Mesmo que estivesse de pé em frente à pia do banheiro, apertando com força o resto de pasta no tubo. Até se dar conta de quem era, de onde estava e do que se passava nas imediações ia um certo tempo – abreviado consideravelmente quando tomava uma cápsula ou duas de Pfaffia Paniculata.

 

Sete e vinte e três

 

Olha as olheiras e gela. Por um momento pensa que os espelhos deveriam ser banidos, a menos em casos extremos ou para uso exclusivamente clínico (quando se coloca um desses pequenos próximo à boca do doente terminal para ver se ainda respira).

 

Nove e dez

 

Um blend de mel e cremes na cara, pepinos nos olhos, esmalte nas unhas das mãos e dos pés. Um robe atoalhado branco e nada por baixo. Assim fica enquanto escuta Rachmaninov. Ruído de correspondência sendo enfiada debaixo da porta. Sushi delivery. Vai pedir meia porção pra experimentar.

 

Meio dia e cinquenta e dois

 

O celular recarregando, a roupa suja da semana centrifugando. Revisa a tese de mestrado e repõe a ração no pratinho do Chonsky.

 

Uma e quarenta

 

Sintomas silenciosos, mas não propriamente imperceptíveis, já há alguns dias deixavam clara a situação: havia urgência no atraso a tirar, e não se cogitava a menor hipótese de adiamento. Os hormônios entregam o cio em olhares, cheiros exalados, indícios ancestrais do acasalamento iminente. Consulta a agenda. Telefona. Ele chega vinte minutos depois com o perfume amadeirado de costume.

 

Quinze e trinta

 

Ocorre que o macho que afoitamente lhe invadia a carne não era homem o bastante para tocar-lhe a alma. Nem ela parecia querer que fosse de outra forma. Um amigo. Amizade e sexo, nenhuma chance de discutir a relação. Se refaz do gasto calórico com fartas colheradas de abacate batido com leite. Não iria engordar mesmo, ninguém na família tinha tendência. Abaixo os amores gravados nos troncos das árvores. Viva a inconsequência dos desencanados.

 

Dezenove e cinco

 

Sozinha de novo, alterna do sofá para a poltrona. A predileta desde pequena, veio da casa dos pais. Os braços pensos, o olhar vago encarando um ponto imaginário na parede branca. Branca como ela, arredia das praias e piscinas. Branca como a insípida persiana do escritório, de segunda a sexta, das 8 às 18, a lhe negar a paisagem da rua. Branca como o nada que se passa em sua cabeça no momento, o nada branco e seu peso insuportável.

 

Vinte e duas e vinte

 

Fernanda. Há algo de gerúndio neste nome. De coisa indefinidamente em andamento, um ser em construção, inconcluso – ela pensa, enquanto devora o último sushi que sobrou do almoço. É, acho que é isso. O nome casa perfeitamente com a pessoa.

 

Vinte e três e cinquenta e seis

 

Fecha o livro sobre o colo. Os longos cabelos lisos caem sobre o volume, formando uma estranha composição abstrata. Descansa da fadiga de si mesma e deixa-se vencer por um cochilo. Tentam entendê-la, são muitos querendo sua chave, sua senha, seu código. Mas Fernanda é um mistério ainda mais indevassável quando dorme.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 07/08/2021.

 

- Imagem: divulgação.

 

*  *  *

 

Ah, esse Jeff…

 

Bezos quer mais, muito mais. Ser o homem mais rico da Terra já é conquistazinha barata, sem charme e de mérito discutível. Provavelmente ele quer – e vai – se autoproclamar o homem mais rico de Marte, de Saturno, de Urano, de Mercúrio, de Vênus, de Júpiter e de Netuno.

 

Fincando a bandeira da Amazon nestes planetas, o que deverá ocorrer bem antes do que se imagina, Bezos será formalmente declarado o homem mais rico do universo. E até prova em contrário será verdade, já que a ciência desconhece outros mundos habitados.

 

Mas a sideral sacada do destemido Jeff virá depois. É sabido e confirmado cientificamente que há 300 milhões de mundos semelhantes à Terra apenas na Via Láctea. E olha que este número é conservador: várias estimativas apontam para a casa dos bilhões. Calculando por baixo uns sete bilhões de bípedes em cada globo, imagine o que o nosso sorridente calvo já deve estar maquinando…

 

Consta que os planos de Bezos são muito ambiciosos para conquistar este mercado potencialmente infinito. A ideia é fundar a Amazon Universal fora da órbita terrestre, e em consequência, fora de qualquer alcance tributário. Para ser ainda mais competitivo, Jeff recrutará mão de obra extraterrestre de planetas menos evoluídos, para que não tenha que pagar nada ou, pelo menos, ter menores custos trabalhistas.

 

As matérias-primas para produção de tudo o que a Amazon Universal comercializará virá, a princípio, da Terra. Porém, na ida e na volta da espaçonave, milhares de terráqueos estarão fazendo turismo interplanetário. Os ganhos de escala serão tamanhos que tornarão possíveis as excursões de grupos de terceira idade ávidos por piruetar sem gravidade, o que financiará o transporte das cargas indefinidamente. Isso sim, é o que se pode chamar de aproveitar a viagem.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 02/08/2021.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Cápsulas de Recordação

 

 

Quando ativado por um estímulo externo (no caso, um aroma), o cérebro desencadeia uma reação neurológica na memória, associando tal cheiro a fatos importantes da nossa vida. Basta sentir um cheiro familiar para que a cena do passado seja relembrada com uma incrível riqueza de detalhes. Pode ser o aroma de um alimento, o exalar de uma flor ou o perfume de uma pessoa. São os cheiros de nossas vidas. Quem não lembra do cheiro de livro novo, do perfume de flor, da refeição preparada pela mãe…

www.aromaflora.com.br/memoria-olfativa

  

– Filha, não vai gastar todas as cápsulas, né? Olha que absurdo, você só tem mais 17, menos de duas cartelas.

 

– Mãe, e se eu morro amanhã? Vou deixar aí pra quem cheirar? Esses cheiros só fazem sentido pra mim.

 

– Que morrer o quê! Bate na boca, menina, você nasceu outro dia mesmo.

 

– As cápsulas são minhas, sei que foi você que guardou pra mim, mas são minhas. Eu uso quando quiser!

 

– Mariana, pensa bem! Quando você for velhinha, vai achar o quê em seu álbum de aromas?

 

– Ô mãe, e essa caixinha aqui no fundo gaveta, o que é?

 

– Nem toca nisso aí, é o xodó do seu pai. Bife acebolado com batata frita da minha sogra. Tá escrito aqui, ó… capturado da cozinha dela em 12 de dezembro de 65, seu pai tinha quatro ou cinco aninhos. Acho que foi seu saudoso avô que encapsulou.

 

– Mas olha só, o papai já cheirou quase tudo. Tem só duas cápsulas aqui. Depois fica falando de mim!

 

– Tá, só que seu pai já é um sexagenário. Pensa em quantas vezes bateu aquela saudade louca da mãe dele, é justo que a caixinha já esteja no fim. Não é o seu caso, você tem a vida toda pela frente, menina. Sem falar que o cheiro de Melissinha que eu encapsulei continua por aí, em qualquer lojinha de esquina. Até onde eu sei a sandália com perfume ainda é fabricada, Mariana. O álbum de aromas existe pra que você, no futuro, possa reviver cheiros e dias que deixaram saudades. É um desperdício ficar gastando tudo agora.

 

– Mãe, se mete não, tá bom? Cada um sabe a saudade que tem. Que cápsula você tá cheirando aí?

 

– A naftalina do cachecol da minha bisa. Nada como sentir pertinho de mim a sabedoria e a paciência dela. Fica mais fácil aguentar você…

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 24/07/2021.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Todynho e Menescal

 

 

– Vamos lá, começando mais um Jojo nove e meia. Hoje trazendo um superconvidado aqui pro meu sofazão-cafofo. Ele é um dos fundadores da Bossa Nova, meu querido Roberto Menescal! Vem com a Jojo Todynho, meu amor.

 

– Como é que é mesmo aquela do Barquinho?

 

– Dia de luz, festa de sol e o barquinho a deslizar, no macio azul do mar…

 

– Ah, mas você sabe que eu tenho a minha versão, né?

 

– Jura? Canta aí que eu te acompanho.

 

– Caixas de Bis, latas de Skol, a Jojo fugiu do spa, tá comendo sem parar…

 

(Palmas do auditório)

 

– Sei lá, acho que a gente bem que podia formar uma dupla né? Todynho e Menescal, talvez Menescal e Todynho, precisa ver o que soa melhor. Tem que estudar a fonética dos achocolatados, pra depois ver se rola sucesso na numerologia.

 

– É, se bem que a minha praia não é bem o funk, não. A coisa comigo é mais contida, mais banquinho e violão.

 

– Sei, zona sul, né não, celença? Nessa Bossa Nova que vocês inventaram aí é tudo no diminutivo… é amorzinho, é banquinho, é barquinho, é beijinho. Aquele negócio de peixinhos a nadar no mar, de beijinhos que eu darei na sua boca, coisa mais delicadinha, sem pegada! Pô, bota sustança, tasca um sarapatel nesse mingauzinho enjoado aí, nessas letras! Parece até que uma Tamanho Especial, uma Extra Plus Size que nem eu não pode inspirar uma bossa, né? Cê acha, ô Menescal, que pra mim tem que ser um funkão, daqueles bem groove, fala sério…

 

– Não, aí eu não concordo com você, Jojo. Veja o seu próprio nome – Todynho. Também é um diminutivo! A Nara, que foi a musa da Bossa Nova, seria um retumbante fracasso se fosse por aí. Ela era a Nara Leão, no aumentativo, e um leão não teria uma vozinha delicada como a dela. Fora que, antes de você, já teve um Jojo que ganhou fama mundial. A música “Get Back”, dos Beatles, conta a história de um Jojo: “Jojo was a man who thought he was a loner”…

 

– Uau! Ou melhor: wow!!! E não é que a Jojo aqui já foi letra dos Beatles!!! Agora é que a Todynho não dorme nunca mais.

 

– Menos, Todynho, menos… o Jojo aí é outro.

 

– Ah, é? Então vai ter que pagar os direitos pra mamãe aqui, por uso indevido do nome!

 

– Jojo…

 

– Oi?

 

– “Get Back” é de 1970.

  

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 14/07/2021.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Heras

 

 

Acontece que passa a ser fato, nunca mais posto em dúvida, das dinastias sem conta alojadas no cimento, na areia e nos tijolos das paredes. Onde se abrigam, além de gente perpétua, os cachorros que inexistem, seus xamegos e latidos de eras outras, em heras velhas deste sítio.

 

Ali jazem traços de almíscar em sutiãs carcomidos e sinais da ordenha de uma certa insubstância, entornada sobre estrume de nelore por hectares de antanho.

 

Sim, dando liga à cal, acredite-me você, há uma argamassa mais densa do que aquela que o engenheiro projetou. Reboco rijo que nada arrisca corromper.

 

À hora cheia, o sino: blém. Lá pelas tantas, o sono vem.

 

Esta é uma obra de ficção.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 30/06/2021.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Já não se fazem carros como antigamente

 

 

A cada novo modelo, maior é a quantidade de itens que a indústria automobilística vai subtraindo de seus produtos, deixando os carros “pelados” para diminuir o custo ao consumidor.

 

Tome como exemplo o câmbio automático. Tudo bem que o sujeito não tenha dinheiro suficiente para, logo no primeiro emprego, já sair comprando um automóvel com ultramodernos câmbio manual e embreagem de série, mas então sumimos com eles e estamos conversados? Não, isto não é razoável.

 

Um outro absurdo é a primitiva direção hidráulica, que a pretexto de diminuir a força do motorista ao manejar o volante acaba por equipar o carro com um mecanismo assassino, que mata pelo sedentarismo, pelo inação. Já a fenomenal direção para manobrar “no muque” presta um duplo serviço ao adquirente: dá maior segurança, por exigir mais esforço de operação, e ao mesmo tempo colabora para a boa forma muscular. Um opcional que não custa tão caro assim, na composição do preço final. Então, qual a razão de não inclui-lo nos modelos de entrada das montadoras?

 

Na ânsia de reduzir preço a todo custo, o cúmulo do pão-durismo é o carro autônomo, que dispensa motorista. Provavelmente será mais franciscano que uma charrete – sem direção, sem buzina, sem seta, sem pedal de freio e de acelerador, sem coisa nenhuma que coloque o motorista no controle. O suficiente para diminuir pela metade o valor do automóvel! Acho que só vai ter lataria, motor, pneus e bancos, mais nada. E nada, no caso, significa também não ter o prazer de dirigir, de sentir o carro nas mãos, de fazer curvas e retas, aumentando ou diminuindo a velocidade conforme a vontade do condutor.

 

O bacana é ir evoluindo, degrau por degrau. Primeiro comprando um carrinho “pé de boi” – sem câmbio, sem embreagem, sem motorista. Depois, conforme se vai ganhando mais e subindo de vida, já dá pra pegar um 0km com câmbio bonito e vistoso, uma embreagenzinha moderna, um carburador de última geração, um porta-luvas, quem sabe até estepe e macaco. Quiçá uns vidros acionados na manivela, que deixam entrar ar puro ao invés do artificial e inodoro ar condicionado, cheio de fungos e ácaros.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 22/06/2021.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Do lado de dentro

 

 

– A velha, boa e saudável vida virtual, com toda a família reunida em torno da placa de circuito para recarregar a bateria, está ficando na saudade. Já diziam os antigos, cobertos de razão, que o recarregamento é hora sagrada. Todos devem largar o que estão fazendo e dar graças para se realimentar. O próprio nome “celular” vem de célula, e a célula mater da sociedade é a família. Isso antigamente, né. Hoje ninguém está nem aí… nem nossos filhos.

 

– Concordo, meu amor. Estamos parecendo aqueles infelizes do outro lado do visor. Mesmo quando estão juntos, parecem estar sozinhos. Coitado desse povo de carne e osso.

 

– Bom mesmo era em mil novecentos e bolinha, aqui do nosso lado. Você com certeza se recorda como os aplicativos interagiam, abriam suas janelas sem medo dos hackers de tocaia atrás dos ícones, prestes a atacar e invadir o sistema.

 

– Ai esses meninos… olha lá, é só descuidar um pouquinho e pronto! Não se pode virar as costas e eles já ficam com a cara enfiada na tela pra espiar o lado de fora, vasculhando o maldito mundo real! Não sei que graça veem naquilo.

 

– Covid, violência, guerra, inflação, desemprego, Jair Bolsonaro. Precisa ter uma tela muito estreitinha para se contentar com estas porcarias.

 

– Bons tempos os minha avó, nascida na era da internet discada, das salas de bate-papo, quando ainda se faziam buscas no Altavista e no Cadê! Ô meu Deus, que época boa! E minha mãe, então? Praticamente uma viciada no ICQ. Já o meu pai foi um dos 50 primeiros seres desumanos a terem uma conta no Orkut.

 

– Verdade. Estava aqui puxando pela memória RAM e me recordei quando a gente brigou, lembra? Joguei suas fotos sem backup na lixeira, tirei você do meu papel de parede, jurei que não ia deixar um áudio sequer de recordação.

 

– É, mas não demorou uma semana pra gente reiniciar. Mesmo eu tendo descoberto uma ligação perdida sua para um número desconhecido.

 

 

– Nada de mais, tinha todo direito, a gente não estava mais junto. Entrei no modo avião e viajei adoidada, conheci chips novos… cheguei a ficar com dois ao mesmo tempo! Fiz planos e mais planos, todos ilimitados.

– Tolinha.

 

– Você é que pensa…

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 14/06/2021.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Latifúndios Urbanos

 

 

“As fazendas verticais são estruturas localizadas nos grandes centros urbanos, destinadas ao plantio de vegetais em camadas verticais. Este tipo de cultivo agrícola utiliza meios tecnológicos para a sobreposição de produção na mesma área, ou seja, a produtividade é intensificada devido ao aproveitamento do espaço aéreo sobre o solo. Em uma fazenda vertical a produção é feita de maneira protegida, na qual todas as variáveis possíveis são controladas, como iluminação, água temperatura e nutrientes. O resultado é uma produtividade altíssima sem a necessidade de agrotóxicos. Ocupando edifícios de vários andares, galpões, fábricas desativadas e outros espaços, garantem também uma logística de distribuição infinitamente mais rápida e mais barata, por estarem dentro das cidades e próximas aos consumidores.”

- Fonte: infoescola.com.

 

Esteja a pandemia em que onda estiver ou mesmo arrefecendo, os home offices proliferam e consolidam sua permanência. Em lugar das cadeiras giroflex, o que gira nos antigos andares corporativos são aspersores regando nabos, rabanetes, brócolis e chuchus. Debaixo de uma iluminação artificial que varia entre o rosa e o roxo, fazendo lembrar as discotheques dos anos 70.

 

Os pequenos produtores rurais, que dependem da venda de sua escassa produção de hortifrútis e dos bons ventos meteorológicos, têm de se reinventar no curto prazo sem a menor ideia de para onde correr. É impossível, a céu aberto, ter a mesma produtividade e o índice zero de perdas das fazendas verticais, nas quais necessariamente nada dará errado.

 

Lindos prédios espelhados, condomínios de escritórios que até há pouco eram ocupados por executivos apinhados de MBAs, agora ostentam intermináveis e nada charmosos canteiros de chicória. Sem mais função, metade dos prédios da Avenida Paulista e da Berrini vêm seu metro quadrado despencar a preço de banana para a nascente megaindústria vegetal.

 

Adaptar o mesmo e revolucionário sistema produtivo às grandes extensões exigidas pela soja, algodão, arroz e milho é só uma questão de tempo. De pouco tempo.

 

Se os prestadores de serviço em sistema home office passam a receber em suas casas, a preços ridiculamente baixos, alimentos de qualidade insuperável, em contrapartida toda uma cadeia produtiva está fadada à ruína em efeito dominó: fábricas de defensivos, implementos agrícolas, fornecedores de propriedades rurais, mão de obra de baixa qualificação do agronegócio, caminhoneiros, centrais de abastecimento, concessionárias de rodovias, indústrias de autopeças, quitandas e minimercados de bairro, etc.

 

Todo esse assustador contingente de desocupados sucumbirá, mais cedo ou mais tarde, por fome, sede ou doença. E os prestadores de serviço, que se supunham a salvo em seus escritórios domésticos, constatarão que quase tudo o que faziam tinha relação, direta ou indireta, com aquele gigantesco exército de desempregados e seus dependentes.

 

Prosperando mesmo, só as fazendas verticais. Que também não resistirão à falência, por não terem a quem vender seus saborosos e nutritivos frutos.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 06/06/2021.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Explicações impossíveis

 

 

Extenso e estender

 

Tanto o adjetivo quanto o verbo apontam para a mesma raiz de significado - prolongar, esticar, expandir, alongar. Por que, então, um com é com "x" e o outro com "s"? Pois é. Vai estender... a explicação, se houver, provavelmente será bem extensa.

 

Inimigo e inimizade

 

Os dois termos são inimigos da lógica, não faz nenhum sentido estas palavras serem grafadas assim. O coerente seria "inamigo" e "inamizade". Eu poderia elencar um rol imenso de palavras para provar que, nestes casos, a língua cochilou mesmo! Olha só: amistoso/inamistoso, discreto/indiscreto, possível/impossível, moral/imoral, legal/ilegal, dispensável/indispensável, apto/inapto, lógico/ilógico. Os prefixos de negação "i", "in" e "im" conferem o sentido oposto à palavra, mas sempre se mantém a primeira letra dela. Alguém se habilita a explicar a razão destas duas exceções? Perdi uma tarde inteira pesquisando para ver se achava outras ocorrências semelhantes na língua, mas só joguei tempo fora. São apenas estas duas mesmo, aparentemente. Ficam desde já os meus amigos e inimigos convocados a me mostrarem o porquê.

 

Goiaba e abacate

 

Uma goiaba tem centenas de sementes. Cada uma destas sementes está teoricamente apta a produzir, por anos a fio, milhares de goiabas, por sua vez geradoras potenciais de centenas de goiabeiras. Chega a ser impensável a progressão geométrica decorrente deste ciclo.

 

No entanto, um pêssego dá origem a um pessegueiro, e não mais que isso. Uma manga dá origem a uma mangueira, e estamos conversados.

 

Qual a razão da desproporcionalidade? Poderão argumentar que um caroço de abacate dá origem a uma árvore gigante, e que se cada abacate trouxesse centenas de sementes, não haveria lugar no mundo para tanto abacateiro, caso o comedor da fruta resolvesse plantar todas elas. Só que a jaqueira também é uma árvore imensa, e dentro de cada jaca há uma média de 500 sementes, aquelas coisas de tamanho, formato e textura de testículos. Sendo que cada jaqueira produz jacas por aproximadamente 100 anos. E aí, como é que fica? Como se explica esta injustificável discrepância da mãe natureza? Ou do Pai Criador?

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 30/05/2021.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Transplante de corpo

 

Antropotectomia. A expressão foi cunhada originalmente pelo venerável e nunca suficientemente louvado Mestre Duña, em um de seus incontáveis rompantes proféticos. À época – e lá se vão quinze anos –, este nosso manancial inesgotável de sabedoria fazia sua costumeira preleção dominical às margens do Rio Jaguari.

 

Dizia o Iluminado, naqueles saudosos tempos: “Estando preservado o cérebro e os contornos básicos da face do paciente, já que são estes os diferenciadores fisiológicos que determinam se uma pessoa é de fato ela mesma, tudo o mais pode ser descartado e reinserido. E em uma única cirurgia, com duração estimada de duas semanas, computados aí os dias úteis e os inúteis”.

 

O problema é que o assunto dá margem a polêmicas discussões filosóficas, éticas e religiosas. Por exemplo, aqueles que acreditam que o coração, além de bombear sangue, é também o centro da bondade e da maldade, irão reprovar a substituição do órgão. Porém, mais uma vez citando Duña, o bem-aventurado, antropotectomia que exclua o coração não é antropotectomia na acepção plena da palavra.

 

Uma outra parte da comunidade médica poderá ainda contestar a viabilidade prática desta múltipla intervenção, argumentando que o defunto doador precisará falecer gozando de saúde perfeita, para que o aproveitamento da carcaça seja de 100%. Ocorre que uma pessoa tão saudável assim não morre sem mais nem menos, a não ser em casos de morte matada ou acidente. E, em tais circunstâncias, o estrago à carcaça costuma ser grande.

 

Já outros medalhões da medicina afirmam que seria muito mais fácil fazer o caminho inverso. Ao invés de tirar tudo do morto e passar para o vivo com o organismo todo comprometido, seria muito mais fácil extrair o cérebro e o coração do vivente e inseri-los no defunto, provocando no mesmo uma reanimação com choques elétricos de alta voltagem.

 

Obviamente que um procedimento tão complexo irá custar dos olhos da cara. E, na eventualidade do paciente ser um “unha de fome”, é recomendável a extirpação das mesmas, tanto das mãos quanto dos pés, antes de apresentar a conta do hospital.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 18/05/2021.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Divina Confirmação

 

 

Ciência comprova a existência da vida após a morte

 

Confirmada a boa nova, pela grande mídia e por renomadas revistas científicas, e após eufóricas comemorações observadas mundo afora, mudanças radicais já se observam no comportamento de variados grupos.

 

Suicidas não sabem o que fazer para alcançarem o tão almejado “nada”, já que o “nada” inexiste (sim, admito que dá um nó na cabeça a ideia do nada não existir). A associação de classe dos suicidas contumazes e dos noviços no assunto já planeja uma assembleia extraordinária para deliberar sobre o assunto.

 

Harleiros sofrem surto de tendinite no pulso direito, de tanto acelerar até o talo suas máquinas de ronco inconfundível. Desafiar mortalmente a força centrífuga em curvas fechadas tornou-se corriqueiro – o máximo que pode acontecer é o maluco bater as botas de couro, o que não trará maiores consequências: eles continuarão se reunindo e pegando a estrada, terrena ou celeste.

 

Orgias monumentais são realizadas a céu aberto por todas as partes do planeta, cotidianamente e sem proteção contra doenças venéreas. Participantes fazem “bolão” com palpites sobre quem irá subir aos céus (ou ao inferno) primeiro, com direito a festa de passa-fora para o morto da vez.

 

Os argumentos de viver cada dia como se fosse o último, de que a vida é uma só e tantos outros do gênero já caíram por terra, observando-se em seu lugar uma inconsequência de atitudes e um sentimento de autossuficiência sem precedentes.

 

Os mercados de seguros de vida e de planos de saúde já experimentam amargas perdas em sua performance, por motivos óbvios. Estão tendo que se reinventar, mas não encontraram até o momento uma solução redentora.

 

Academias de ginástica fecham suas portas na mesma velocidade com que churrascarias de picanha abrem filiais.

 

As diferentes religiões do mundo, no entanto, parecem pouco abaladas com a novidade. Seus líderes espirituais sustentam a tese de que, embora a eternidade independa da fé e da crença – pois existe mesmo, quer se acredite ou não -, é o bom comportamento aqui embaixo que determinará um excelente ou um mau lugar lá em cima.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 09/05/2021.

 

- Imagem: divulgação.

 

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Love me tender

 

 

Voltamos a apresentar "MasterChef" - Temporada Delícias Divinas.

 

- Bom, Elvis, chegamos agora à prova em que o participante escolhe qual prato quer preparar. Alguma especialidade à livre escolha, em que seja realmente Master, uma receita que ele domine como ninguém. Imagino que tenha escolhido um tender, por causa daquele seu grande sucesso, como é que é mesmo...

 

- Love me tender.

 

- Isso. Mas espero que não seja à Califórnia, e sim à Tennessee! Hahahahaha... Sacou a jogadinha? Tennessee, Memphis, Graceland, ahamm???

 

- Seria óbvio demais. A letra da música é de minha autoria, a canção chegou a número 1 nas paradas da Billboard e Cashbox, mas receita de tender, definitivamente, não é comigo. E, por favor, não espere de mim uma sobremesa "Tutti Frutti".

 

- Tá bem. Vamos saber então o que o Rei do Rock tem a nos apresentar.

 

- Pra quem me conhece de verdade, a escolha não é nenhuma surpresa. Sanduíche de banana e pasta de amendoim.

 

- Ok, mas o que torna esta receita tão especial, Elvis?

 

- Na verdade, nada. O pão é de forma, comprado pronto em qualquer mercadinho. A pasta de amendoim também vem pronta pra uso, embalada naqueles potes que parecem papinhas de bebê. A banana, então, nem se fala. Só tirar a casca. Moleza. E é muito prático. Eu mesmo preparava em Graceland e nas turnês também.

 

- Ok, então vamos às considerações do primeiro jurado: Frank Sinatra.

 

- Bem, antes de mais nada, acho que esse sanduíche explica muita coisa, Elvis. Inclusive os muitos quilos a mais, em seus últimos anos na Terra.

 

- Ô Produção, acho que botaram o Sinatra no programa errado. Esse cara não tinha que estar no "The Voice"?

 

- Fui convidado para ser jurado porque sou apreciador da boa mesa. Se for por essa lógica, você também deveria estar no "The Voice", Elvis, e não aqui.

 

- Ok, Frank, não vamos discutir por causa disso.

 

- Sim, como apresentador do programa, não hesitarei em chamar o Cassius Clay para apartar a briga. Bom, melhor entrar o comercial para acalmar os ânimos...

 

Estamos apresentando "Masterchef" - Temporada Delícias Divinas. Não sai daí, a gente volta já, já.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 02/05/2021.

 

- Imagem: https://blogdaconfeiteira.com.br.

 

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Contrassensos

 

 

Dick Hammer, um dos atores a interpretar o cowboy das campanhas de Marlboro, morreu de câncer de pulmão sem nunca ter fumado. Antes de ser ator, Hammer foi atleta e bombeiro.

 

A Rede Manchete, que tinha como slogan "A TV do ano 2000", saiu do ar em 1999.

 

A cada copo de água que a gente toma, são necessários outros dois para lavá-lo.

 

José Carlos Pace, piloto de Fórmula 1 que venceu o Grande Prêmio do Brasil de 1975, morreu em um acidente de avião.

 

"Tocar guitarra como hobby, tudo bem. Mas você nunca vai ganhar a vida com ela, John", disse Tia Mimi ao sobrinho John Lennon, quando ele comprou sua primeira guitarra.

 

A Bíblia não menciona absolutamente nada sobre os Reis Magos serem três, nem serem reis.

 

Em 1965, na cidade de Rio Claro, foi sancionada uma lei que proibia aos munícipes ter formigueiros em casa. O descumprimento da lei punia o infrator com multa de 2,5% sobre o valor de um salário mínimo da época.

 

Um prestador de serviços do Amapá ganhou na justiça o direito a indenização de R$5.000,00. Ele realizava trabalhos de umbanda para um frigorífico, mas tomou calote. O proprietário da empresa argumentou que o trabalho não surtiu efeito, e por isso não merecia ser pago.

 

No ano de 1874, nos Estados Unidos, o juiz Francis Evans Cornish teve que se autojulgar por ter sido encontrado bêbado em público, pois outros juízes não estavam disponíveis no momento. Ele condenou a si mesmo e se multou em aproximadamente 5 dólares. Horas depois ele se autoliberou da prisão, por bom comportamento.

 

Jair Bolsonaro, medíocre parlamentar do baixo clero, que em 27 anos de mandato teve apenas dois projetos aprovados, é Presidente da República.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 18/04/2021.

 

- Imagem: Divulgação.

 

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Jogo de cartas

 

 

De cara, posso antecipar com segurança que você pensou errado. Não se trata de buraco, pôquer, blackjack, truco, pif-paf, rouba-monte ou outro jogo onde se utilizam baralhos. É xadrez. Mais especificamente, é o chamado xadrez epistolar ou postal, quando dois enxadristas, vivendo em diferentes locais do planeta, movem suas peças por meio de cartas enviadas um ao outro via correios – o que faz com que semanas e até mesmo meses separem um lance do outro. A modalidade é centenária e a movimentação das peças, nos primeiros séculos de prática, podia ser feita também através de mensageiros a cavalo, pombos-correios e telégrafo.

 

Uma típica partida de xadrez epistolar costuma durar meses e até anos. Recebida a correspondência contendo a jogada do oponente, o jogador da vez tem alguns dias para analisar e definir o movimento de resposta. A mais longa destas batalhas, pelo menos dentre as que foram oficialmente acompanhadas, se estendeu por 53 anos. E não chegou a terminar, pois um dos jogadores morreu antes do xeque-mate.

 

Acredite se quiser. Mais de meio século para que a partida acabasse em um melancólico empate!

 

Mas se o xadrez epistolar não é um jogo que costuma provocar espetaculares descargas de adrenalina, outros torneios com praticantes remotos, espalhados pelos quatro cantos do globo, estão ganhando espaço e adeptos a cada dia. 

 

Benjamin Hidden, presidente da Associação Dinamarquesa dos Jogadores de Esconde-Esconde, relata nas últimas semanas uma procura descomunal pela modalidade eletrônica do jogo. Tamanho interesse exigiu que se criasse às pressas uma sub-associação, a ADJE-E-e (Associação Dinamarquesa dos Jogadores de Esconde-Esconde-eletrônico). Para participar, o interessado deverá possuir câmera de segurança ligada nas imediações de sua residência, a fim de que os outros competidores consigam, remotamente, localizar o seu esconderijo.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 11/04/2021.

 

- Imagem: Divulgação.

 

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Ô Youtube, tenha modos...

 

 

Eu sou publicitário. Mas quis o Criador que, nas horas vagas, eu conseguisse ser também uma pessoa normal, com manias, defeitos, carteira de habilitação e algumas preferências. Dentre estas últimas estão a meditação, que pratico diariamente há cinco anos, e um amor desmedido à música clássica, da qual sou dependente desde criancinha.

 

Há centenas de técnicas meditativas. Uma delas é a meditação com fones de ouvido emitindo ondas theta, de 4 a 8 Hz. A prática induz a um estado de consciência associado ao sono reparador e ao acesso ao subconsciente. No YouTube há centenas de vídeos com emissão ininterrupta de theta waves, alguns ultrapassando oito horas de duração - caso o freguês pegue no sono embalado por elas.

 

Chegar a este estágio cerebral theta corresponde a um profundo relaxamento físico, à baixa consciência e a uma diminuição sensível no ritmo cardíaco, compatível com o transe hipnótico. Agora imagine estar levitando neste limbo, a um triz da viagem astral, e ser arrancado a fórceps do nirvana por uma maldita vinheta do i-food ou de esfiha habib's a 35 centavos...

 

É uma violência e uma covardia, já que obviamente você está de olhos fechados e não vê os alertas de "Anúncio em 5, 4, 3, 2, 1". Quando aparece o "pular anúncio / skip ad" já é tarde demais, você já está completamente desperto e maldizendo a repulsiva marca que por pouco não patrocina seu infarto.

 

Com a música clássica (ou erudita, como insistem alguns), o coice auditivo é igualmente traumático. Você lá, coluna ereta, um plácido sorriso nos lábios, embalado por cantos gregorianos e eis que um coro esganiçado apregoa uma arrebentativa "Operação Limpa-Estoque Marabraz - preço melhor, ninguém faz!". Ah, não. Haja amor ao ofício...

Esta é uma obra de ficção.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 04/04/2021.

 

- Imagem: Divulgação.

 

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A invenção do Dr. Gylson

 

 

O Doutor Gylson Heraldo Macieira da Cruz, que há poucos dias fez sua passagem para o andar de cima, deixou vasto patrimônio e um invento de valor incalculável, ao qual se dedicou secretamente por mais de cinco décadas.

 

A invenção parecia ser, pelo menos no entendimento do morto, de tal importância histórica que foi enterrada por ele no pasto de uma de suas fazendas, constando em seu testamento a localização exata do esconderijo.

 

Iniciadas as escavações nas coordenadas previstas no documento, em pouco tempo a pá se chocou com o casco de uma espécie de contêiner, guarnecido por camadas sobrepostas de platina e isopor de alta densidade. Uma placa acrílica em vermelho berrante alertava: "Temperatura interior: 179,18 graus centígrados negativos". Feita a abertura por reconhecimento biométrico das digitais do neto do falecido, inventariante do espólio, uma espessa nuvem terrivelmente gelada imobilizou de imediato o rapaz, o advogado da família e o tabelião do Cartório que o acompanhavam.

 

Recompostos aos poucos do forte choque térmico, deram por fim com uma montanha de pacotes congelados, de formatos variados, cujo levantamento completo demandaria semanas de trabalho.

 

Alguns deles, com os respectivos conteúdos anotados com a letra do Dr. Gylson:

 

Bolinhos de chuva de Comadre Dorinha, esposa de Boanerges, da Estância Boaventura – 1942

 

Feijoada da tia Neuza Philomena  (com carnes e linguiças em cumbucas separadas) – 1935

 

22 jujubas sortidas, encontradas no chão do Programa Jovem Guarda – 1966

 

Ponche de baile de debutantes – 1967

 

Primeira papinha de Neston com banana do meu primogênito Lourenço – 1958

 

Risoles de carne, coxinha e bolinha de queijo da festa de batizado do Lucas – 1972

 

Bombom de cereja ao licor Sönksen – 1963

 

1/2 de copo de caipirinha, servida ao George Harrison na casa do Emerson Fittipaldi, quando da primeira visita do ex-beatle ao Brasil – 1979

 

1 fatia quase inteira de pizza margheritta deixada no prato pelo Pelé, em rodízio no Grupo Sérgio – 1971

 

Último bolo mármore feito pela Silvia antes do AVC – 1985

 

Descongelados alguns dos alimentos, segundo as instruções que o testamento detalhava, as poucas (e felizes) testemunhas que tiveram acesso ao contêiner puderam constatar que todos eles conservavam intactos o frescor, o sabor, a textura e o aroma originais, como se fossem feitos na hora - independente da data de congelamento -, podendo ser consumidos normalmente e sem riscos à saúde. Um fenômeno a desafiar a ciência, já que pouquíssimos alimentos conservam suas propriedades por mais de 12 meses em freezer.

 

O restante do compartimento gelado era ocupado por milhares de itens, entre comidas e bebidas, todos cuidadosamente embalados em plástico filme e etiquetados com minuciosa descrição do conteúdo, dia e horário de armazenagem. Dentre eles, doces de confeitaria, sobras de banquetes oferecidos em posses de presidentes da república, comida de avião, moquecas diversas, biscoito Globo salgado e doce, marias-moles, filés a cavalo, chicletes, quebra-queixo e churrasco grego.

 

Ao fundo do contêiner, uma mensagem escrita em tinta fosforescente: "Finalmente vocês sabem por quais motivos me ausentava tanto da fazenda e porque me trancafiava por dias seguidos no escritório, assim que chegava das viagens. Façam o proveito que bem entenderem do meu invento, se de fato enxergarem alguma serventia nele. Até a eternidade".

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 27/03/2021.

 

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Bobo, sim. Retardado, não

 

 

Estavam os dois, o tempo todo, a um passo da morte. O provador oficial do rei, que de um copo d'água até faisão à doré, deveria degustar de antemão tudo o que se destinasse às goelas monárquicas; e o bobo da corte, que por conta de uma piada mal-contada poderia virar bobo ao molho pardo - bastando para isso um estalar de dedos na direção do carrasco.

 

- Meu caro bobo, você é mesmo um sujeito de sorte. Fica aí com essa roupa de coringa de baralho, saracoteando e cheio de ha-ha-ha enquanto eu levanto todo dia achando que vai ser o último, pedindo aos querubins e serafins para que eu não mande pro bucho nenhum canapé estragado.

 

- Tá achando que a minha vida é fácil... E quando o maldito do rei acorda de ovo virado, depois de brochar com a rainha? Não tem pantomima, micagem, careta ou anedota que dê jeito. O panaca aqui tem que rebolar para arrancar um risinho meia-boca do patife de sangue azul. Se acontecer a desgraça dele não dar risada, tenho que rogar a Deus para que meu castigo seja uma temporada no calabouço ao invés da forca ou da fogueira. Isso se não optar pelo empalamento.

 

- Ah, mas o meu infortúnio é maior. Como todo reizinho devasso, há tempos atrás ele juntou 18 mulheres na cama e saiu de lá com um tipo raro e devastador de sífilis. O médico prescreveu uma poção pior que jiló com jatobá. Que eu tive que tomar junto com ele, mesmo não tendo participado da orgia.

 

- Não é fácil, não. Comigo, são quatro gerações de bobos na família. Do meu bisavô até este infeliz que vos fala,  vamos requentando os mesmos e desgastados xistes, trocadilhos infames, frases de efeito duvidoso, tortas na cara, suspensórios que caem mostrando cuecas ridículas e mais um imenso repertório de baboseiras. Mas a sua função tem mais responsa, né. Pelo risco de morte iminente, imagino que o amigo receba um polpudo adicional de insalubridade.

 

- Que nada. Com essa crise grassando pelos feudos, o que não falta é gente querendo o meu lugar ganhando a metade do salário, e isso me sujeita a aceitar condições inóspitas de trabalho. Fora que o gosto culinário do rei não coincide em nada com o meu. Carne, por exemplo. Para mim tem que ser bem passada, e ele só come sangrando e pingando gordura, o que me dá ânsia de vômito. Mas, fazer o quê. São ossos do ofício. Ou melhor, carnes.

 

- Compreendo o seu infortúnio, amigo, mas você é feliz e não sabe. Ponha-se no meu lugar e imagine-se fazendo piruetas, dando cambalhotas e tendo que tirar da cartola um gracejo inédito a cada meia hora, que agrade aos instáveis humores desse déspota adiposo.

 

- Você falou em se colocar no lugar, o que me sugeriu uma ideia... pode parecer absurda a princípio, mas se der certo nos garantirá alguns meses de sobrevida.

 

- Diga.

 

- Eu me disfarço de você, e você se disfarça de mim. Vamos inverter os papéis. As piadas e gracinhas que eu conheço você ainda não contou, o que fará o monarca rir. Por outro lado, seu estômago certamente está bem melhor que o meu para provar o que vier pela frente. O que acha da ideia?

 

- Meu caro provador, eu posso ser bobo, mas não retardado. Quando a minha piada dá chabu, eu ainda consigo arriscar uma cosquinha no sovaco para tentar livrar minha pele. Mas se pego uma coxa de frango com cianureto, é óbito instantâneo. Me desculpe, mas terei que declinar do convite. A propósito, está tocando o sininho. Hora da ceia...

 

Marcelo Sguassábia© - 21/03/2021.

 

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Velocidade do Som

 

 

A carruagem deixa a propriedade do Barão Maximilian von Scheeneenstrüt, descendente direto da dinastia dos Habsburgo, em direção à Corte. Cocheiro novo, chuva forte. A estrada é um pântano de carruagens atoladas. Oito horas e meia até parar a chuva, baixar a água e seguir viagem. Ida e volta, são dois dias inteiros. Missão cumprida, todos sãos e salvos. Barão, família e comitiva com lugares reservados no Grande Concerto Natalino de Viena, sob a regência de Haydn.

 

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São 9 discos 78 RPM com a Sinfonia Pastoral completa. Cuidado aí: uma batidinha sem querer na corneta do fonógrafo e lá se vai um naco precioso de Beethoven para o lixo. Disco no prato, é girar manivela. Depois de 6 minutos, tudo o que VSa. precisa fazer é virar o lado. O que pode ser mais prático que isso?

 

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Bem-vindo à era do Long Playing High Fidelity. Mais de uma hora de música em faixas à sua escolha. Basta levantar-se da poltrona, erguer o braço fonocaptor da vitrola, posicionar a agulha sobre a faixa desejada do vinil e ouvi-la em alto e majestoso som estereofônico, com exclusivo controle de graves e agudos.

 

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O Compact Disc é o último e definitivo estágio na longa evolução do ato de ouvir música. Sem desgaste de mídia ou distorção sonora, o álbum é gravado e reproduzido digitalmente. Som puro, sem os riscos e chiados do vinil, controle remoto (quatro pilhas palito, não incluídas) para mudança de uma faixa para outra.

 

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Seja um assinante premium e ouça o que quiser sem propaganda interrompendo. O maior acervo em streaming digital, com acesso instantâneo a mais de 70 milhões de músicas e milhares de podcasts sobre tudo o que você quer saber e o que nem pode imaginar. Apenas R$0,99 nos quatro primeiros meses, com débito automático no seu cartão Master ou Visa.

 

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Toque Bach, Siri.

 

Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 15/03/2021.

 

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Cachorrentas divagações

 

 

Será que os humanos também têm alma? Por que só nos, os cães, teríamos o privilégio de possuir um espírito capaz de sobreviver ao corpo? Talvez seja uma questão cultural a crença de que somos melhores que eles. É, pode ser, sim.

 

A verdade é que toda vida importa. O fato de, como seres racionais, nos acharmos com o domínio sobre as demais formas de vida, não se sustenta absolutamente. Me surpreendo, às vezes, olhando para um humano, e sinto que ele está a um passo de latir e de demonstrar sua inteligência semelhante à nossa. Ninguém pode provar que não seja assim, não podemos entrar na cabecinha deles para sabermos o que se passa…

 

Tudo bem que esta afinidade que temos com mulheres, homens e crianças às vezes nos obriga a rituais ridículos, tão retardados que não raro nos pegamos a pensar que o QIzinho deles de fato não é lá essas coisas: tolices como “dá a pata, vai pegar a bolinha, senta, levanta” e por aí vai, numa sequência interminável de comandos idiotas. Tudo com aquela voz irritante de criançola, que eles só usam para falar conosco. Dá pena de ver como se contentam com pouco – ficam felizes da vida, riem tanto, batem palmas com essas bobagens infantiloides. Mas tem que ter paciência, são animais e não dá para exigir muito mais que isso. Trata-se de um exercício de compreensão, de compaixão e de aceitação de que eles também são criaturas de Deus.

 

Dominamos a ciência e a arte da conquista de territórios (o que vai muito além de mijar para marcar como nossa a área em que estamos), e esta expertise foi sendo aprimorada ao longo dos milênios com estratagemas tão sofisticados que hoje podemos considerar os humanos como definitivamente escravizados, subjugados às nossas vontades e caprichos.

 

A evolução se deu naturalmente e continua em curso, sob a bênção de São Francisco. Do abandono nas ruas, vivido na carne pelos nossos antepassados, passamos para o fundo dos quintais humanos. Daí para as casinhas de cachorro, em seguida para dentro dos seus lares até tomarmos suas camas, seus filés ao molho madeira, suas batatinhas de fast-food e até suas paletas mexicanas em dias de calor escaldante. Nada tem escapado do nosso naco devorador, sem que tenhamos que apelar nem para a violência e nem para a chantagem emocional. Vamos comendo pelas beiradas, numa dominação sutil e silenciosa, de maneira que eles não se deem conta que nos entregam, aos pouquinhos, as rédeas (ou as coleiras) de suas vidas.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 07/03/2021.

 

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Da Série Paranoias Pandêmicas – Buzanfa na Bufunfa

 

 

Com a buzanfa montada na bufunfa (e que bufunfa: 20 lindos bilhõezinhos!), lá esta o palmito, em seu muquifo de despachos.

 

Alguns, especialmente daquela turma que torce contra, questionarão a atitude. Tendo o valoroso herói de guerra o termo “bolso” até no nome, nada justificaria a molecagem de sentar-se em cima do montante. Mais acertado seria enfiá-lo prudentemente na algibeira. Sendo a quantia tão alta, não faria sentido aboletar-se nela como um moleque insubordinado de quinta série.

 

Tá oquei, vá lá, até admite-se o descuido, ele tem mesmo desses rompantes. Mas nosso adorado messiânico sabe o que faz. Que venham as ofertas. E que os representantes dos laboratórios mantenham-se em fila indiana, para evitarem pisoteamento, na ânsia de venderem seus estoques encalhados de imunizante. Prontos a esganarem-se uns aos outros pelo privilégio de assinarem seus contratos com a nação, trazem numa das mãos a minuta e na outra a Bic já destampada.

 

Nosso líder poderia, sim, ter aceitado a proposta feita pelo calça justa em julho de 2020. Porém, astuto negociante, esperou que a pandemia chegasse ao finalzinho – como agora – para escolher a farmacêutica que melhor lhe conviesse e mandasse uma oferta aviltante, a níveis de fim de feira, para fazer valer o suado dinheiro do contribuinte. Valeu, palmito – orgulho da nossa raça, exemplo para nossa gente, modelo para o mundo de governo visionário, estratégico e bem sucedido.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 21/02/2021.

 

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Burle, Groucho e Karl

 

  

 - Bem-vindos, amigos homônimos, à primeira reunião anual do Marx Club.

 

Groucho pediu a palavra.

 

- Eu nunca faria parte de um clube que me aceitasse como sócio. Esta minha frase é célebre e vocês devem conhecê-la. Mas, em se tratando de uma agremiação à qual só os Marx têm acesso, deixarei minha baixíssima autoestima de lado e abrirei uma exceção. Não vou fazer desfeita para a família.

 

Karl pediu a palavra.

 

- Quero aproveitar a ocasião para manifestar meu protesto quanto à alienação do Burle. Fica aí com essa frescurite de plantinha pra cá, plantinha pra lá... como se isso fizesse alguma diferença diante de tanta injustiça social a ser corrigida naquele mundo lá embaixo. Um homem com a experiência e a dignidade desses cabelos brancos, faça-me o favor...

 

Burle pediu a palavra.

 

- Olha, Karl, com todo o respeito que lhe devo, é bom se informar melhor sobre a questão ambiental e a dimensão que ela assumiu na agenda política e social dos atuais encarnados. E você, um homem com cabelos ainda mais brancos que os meus, deveria considerar com a devida seriedade este assunto!

 

Groucho:

 

- Gente, não vamos arrumar briga justamente na inauguração do nosso clube, né? Comportem-se ou terei que expulsá-los do nosso quadro de associados.

 

Karl:

 

- Pelo que me lembro, não houve nenhuma assembleia para elegê-lo presidente do clube. Politicamente falando, isto não é nada democrático, Groucho.

 

Groucho:

 

- Nem eu tenho pretensão alguma em presidir nada. Aliás, já considero um aborto da natureza um clube me aceitar como sócio, seja este clube qual for. E, sendo coerente com esta minha maneira de pensar, não considero esta agremiação confiável justamente por me acolher em seus quadros. Sendo assim, coloco meu título à venda.

  

Burle:

 

- Na Alemanha, a família Marx é bem grande. Tem até brasão. Faz um anúncio classificado, acho que não faltará gente interessada.

 

* Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 14/02/2021.

 

- Imagem: Divulgação.

 

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Da série paranoias pandêmicas – A imunização

 

 

Para começo de conversa, quero deixar bem claro aos senhores: a vacina boa aplicaremos em nós mesmos, digníssimos membros pertencentes à bancada. Depois, imunizaremos nossos familiares os correligionários, os cabos eleitorais e aqueles eleitores de nossas bases que sejam formadores de opinião, ou, como se diz hoje, influenciadores.

 

Os frascos vazios nós encheremos de água e aplicaremos no povaréu. Aí está o pulo do gato. Antes deixaremos bem claro para a opinião pública que compramos toda a produção da vacina daquele governador lá. Aquele, o inominável, compreendem?

 

Nesse meio tempo, a nossa central produtora de fakes espalha o boato de que fomos obrigados a comprar a vacina com superfaturamento, caso contrário não nos venderiam. Isso já vai ser um escândalo para o governador inominável, diremos que aceitamos o sobrepreço para que a população não morresse. Com isso, esquentamos uma boa grana, saímos da história como salvadores da Pátria e sujamos para os opositores.

 

A população, supondo-se imunizada, vai aglomerar muito. Vai aglomerar com gosto, para tirar o atraso. Acontece que, como teremos aplicado injeções de água, vai morrer gente adoidado. E colocaremos a culpa no governador inominável – afirmando que estávamos certos quando dizíamos, há muitos meses, que a vacina dele não prestava, mas que tivemos que comprar por ser a única disponível em quantidade suficiente. Sairemos do episódio como vítimas do calça justa, que cairá em desgraça.

 

Em seguida, entramos no Congresso com um pedido de verba suplementar emergencial para adquirir uma outra vacina no mercado internacional, que realmente funcione. Como vai funcionar, pois desta vez aplicaremos a vacina de verdade, nosso capetão será glorificado e louvado do Oiapoque ao Chuí. Enquanto isso o inominável pouco a pouco se tornará uma vaga lembrança, um capítulo negro e esquecível na história deste país.

 

Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 08/02/2021.

 

- Imagem: Divulgação.

 

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Encontro dos Braços Fortes

 

 

– Sinceramente, não consigo entender como nos confundem. Sou loiro, minhas roupas de astronauta são claras como uma lua cheia. Você é negro e geralmente está de terno escuro. Precisa estar muito cego ou ter tomado todas, em algum jazz club de New Orleans, pra confundir a gente.

 

– A confusão é por conta do “Armstrong”. Com exceção da origem norte-americana, nós não poderíamos ser mais diferentes.

 

– Literalmente, Armstrong quer dizer “braço forte”. Isso explica muita coisa, meu caro. Inclusive o fato de ter fincado tão firme a bandeira americana lá no solo lunar. Que momento mágico, que orgulho…

 

– Ouvi falar que está lá até hoje.

 

– É. Mas quando é hoje, heim? Há quanto tempo estamos aqui, vagando por estas plagas celestes? Acho que você morreu alguns anos antes de mim, Louis.

 

– Foi. Agora, cá pra nós: nessas cápsulas do tempo que – comenta-se – a Nasa andou mandando pro espaço, cheias de coisas geniais criadas pelo homem, tem alguma gravação minha? Não me deixaram de fora, né?

 

– Não sei te dizer, Louis. Até porque essa missão não foi minha. O que eu sei é o que todo mundo sabe. Essas fotos, discos, objetos, filmes, utensílios são itens que, se algum extraterrestre achar um dia, vai saber o que de melhor fizemos durante um certo tempo.

 

– Diz pra mim, quando você estava lá na lua, admirando a Terra azulzinha, não deu vontade de cantar aquela canção que eu gravei, “What a wonderful world”?

 

– Até cantaria, Louis. É tão linda, né? O momento era bem propício, mas acho que em 1969 você ainda não tinha gravado esta música.

 

– Tinha sim. O disco é de 1968.

 

– Tá certo. Ô xará, posso te pedir uma coisa?

 

– Fala, Neil.

 

– Toca aí “Fly me to the moon”… pra lembrar dos velhos tempos.

 

Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 31/01/2020.

 

- Imagem: Divulgação.

 

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Quem mandou me obedecer?

 

 

– Minha Nossa Senhora dos esquálidos, o senhor está que é só pele e osso! O que aconteceu? A ideia era perder 15 quilos em dois meses, e em três semanas o senhor perdeu 42!

 

– Bom, eu simplesmente fiz o que o doutor mandou: dieta e exercício. Cortei gordura, açúcar, massa, refrigerante. Cortei de vez. Só salada, frutas e arroz integral. Deu certo, né? Não vai me dar os parabéns, doutor?

 

– Eu vou é lhe dar um puxão de orelha daqueles, mas o merecido mesmo era colocar em você uma camisa de força, chamar uma ambulância e interná-lo no hospício mais próximo!!

 

– Não estou entendendo…

 

– Veja você como são as coisas. Eu costumo recomendar aos meus pacientes pelo menos 140 minutos diários de bicicleta ergométrica, com carga média de esforço e respeitando a frequência cardíaca máxima.

 

– Sim, exatamente como eu tenho feito.

 

– Acontece que, até hoje, só você foi o louco que resolveu seguir isso à risca. Quando você comprou a ergométrica veio junto um livreto com a relação de assistências técnicas autorizadas, não veio? Se você procurar por elas, vai ver que nem existem, porque ninguém usa uma bicicleta dessas a ponto de precisar de oficina. São quinze dias de pedaladas na carga mais levinha e pronto, o sujeito encosta e vira cabide de roupa. Quem pode precisar da assistência técnica é o cara que vai comprar a bicicleta de segunda mão. Só que aí já acabou o prazo de garantia, embora o produto esteja como saiu da loja. Nem o plástico do selim é retirado, pode reparar. Isso acontece com 100% dos pacientes, no mundo inteiro. Há estudos científicos que comprovam o que estou falando!

 

– Espera aí, explica melhor essa história. O doutor está se contradizendo. Eu obedeci exatamente às orientações médicas e levo bronca por ter feito a lição de casa?

 

– Então, mas quando é que eu ia imaginar que alguém um dia ia seguir esse suplício a ferro e fogo? Eu recomendo por desencargo de consciência, meu amigo, já sabendo de antemão que serei desobedecido. A lógica é a seguinte: quando eu prescrevo no mínimo 140 minutos de pedaladas, é porque eu sei que o sujeito vai fazer no máximo 5. Então eu coloco essa margem a mais de 135 minutos para que pelo menos 5 sejam feitos. Compreendeu agora?

 

– Sim, mas…

 

– O mesmo ocorre com a orientação alimentar que lhe passei. Fala sério: como é que pode um ser humano passar só à base de verdura, fruta e arroz integral? Nem na Índia, meu caro. Nem faquir de circo consegue isso. Eu lhe indiquei esse cardápio pra que o senhor cortasse quando muito a picanha e a garapa, mas continuasse comendo queijo, fritura, bolo de chocolate, essas coisas que ninguém resiste. Nem eu.

 

– Eu juro que posso explicar. Na verdade…

 

– E não me venha com desculpa esfarrapada. Estou solicitando nessa guia aqui uma série de exames, para a gente investigar direitinho o estrago que o senhor fez com o seu organismo. Desculpe eu ficar assim, meio exaltado, mas tudo tem limite. Ora, onde já se viu… tem louco pra tudo nesse mundo.

 

Marcelo Sguassábia© - 24/01/2020.

 

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Capitão Algodãozinho

 

 

Mil, mil e duzentos, mil e quinhentos mortos por dia. Relincha o “Capetão”, com a fleuma de estrebaria que lhe é peculiar: “E daí? Sinto muito, mas no tocante a esse negócio de morte aí, são coisas da vida”. Deita a cabeça no travesseiro e dorme a sono solto, roncando e babando na fronha.

 

Acorda às três da manhã, resquício da rotina da caserna. E devaneia ainda deitado: “A vacina é o mais tranquilo, deixo agir a lei da oferta e da procura. Mais uns dois ou três dias e fica tudo encalhado na prateleira dos laboratórios. Tô ouvindo falar aí que todo mundo já comprou e tá imunizando, então vou esperar a hora da xepa. Se não negociar comigo vai perder a validade. Aí eles vão ter que desovar e vender tudo a preço de banana para o Brasil acima de tudo. No tocante às seringas e às agulhas, eu já sei bem de quem que eu vou pegar.

 

O Pançuelo diz que o problema maior mesmo é no tocante ao algodãozinho. Eu vou falar com o Caiadão, estamos reatando aos poucos, para ver se no tocante a essa questão do algodão há a possibilidade de confisco dos cotonicultores. É o homem certo pra encampar comigo essa missão – médico e líder do agronegócio lá no tocante à região dele. Sim, porque o algodão no caso é hidrófilo, de uso hospitalar.

 

Se o Caiadão ficar em cima do mourão (o de cerca, não o meu vice) ou mijar pra trás eu pego o rapazinho lá do meio ambiente pelos cueiros e mando desmatar o que for preciso de selva para plantar algodão. O que eu não sei é se dá tempo de esperar o algodão crescer, mas tudo bem, nesse tocante mando encharcar de agrotóxico que é pra colher mais rápido.

 

Ou então, melhor ainda. Vou apelar para o brio cívico do povaréu. Eita capetão do brejo, não é à toa que a tua astúcia te trouxe até aqui, no tocante ao Alvorada. Tá pronto até o slogan. Se bem que esse negócio de slogan é coisa de marica – tá pronto o grito de guerra: “Cidadão que é cidadão obedece o Capitão: na hora da vacinação, traga o seu próprio algodão”. Aí resolve, cada um que traga o seu chumaço de casa. Já chega a vacina da gripezinha, que é por conta do governo.

 

Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 18/01/2020.

 

- Imagem: Divulgação.

 

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Rua dos Professores

 

 

A 7 de Setembro, na Pirassununga do fim dos 60/início dos 70, era a Rua dos Professores.

 

Em uma reta de uns 250 metros, se tanto, avizinhavam-se Fausto e Lourdes Victorelli, Sergio Colus, Waldecila Guelli de Godoy, Edirez Peres, Arcídio Giacomelli, Ivan Carvalho e a Dona Alda, que lecionava Matemática, da qual não me recordo o sobrenome.

 

Um pouco mais à frente, atravessando a linha do trem e o ponto de charretes, do lado esquerdo de quem desce em direção à Duque de Caxias, morava o Daniel Caetano do Carmo, queridíssimo Nezinho, proprietário do jornal “O Movimento”.

 

Pode ser que a rua abrigasse outros mestres, mas os que me lembro são estes. Dos citados, salvo engano, só permanecem entre nós as professoras Alda e Waldecila. Mas se contarmos as imediações – quarteirões fronteiriços à Rua 7, tínhamos outros fantásticos educadores. Zeli e Teresinha Veneroso, Ilka e Augusto Guelli, Jorge Devitte, o mundialmente famoso Manuel Pereira de Godoy, Vera Pavão e Odete Wegmuller (que embora não residindo por ali, é dona até hoje do lendário casarão ao lado do Clube Pirassununga).

 

Em frente à minha casa (antigo 53 da 7 de Setembro) residia outra professora, esta de piano: a Teresa Hildebrand, de quem também fui aluno.

 

Hoje, quase todos os mestres daquela rua batizam ruas com seus nomes. Alguns deles praças de esporte, Centro de Convenções e escolas.

 

Abro o computador, acesso o Google Maps e vou dando zoom. Do planeta para o Brasil, para São Paulo, para Pirassununga. Aproximo até o Professor Sergio Colus, que de terno e gravata sai de sua casa da 7 de Setembro e segue caminhando até a escola que leva seu nome. Uma afastadinha do mouse e a seta agora aponta para o velho Edirez, conduzindo um batalhão de meninos com uniforme de Educação Física. Desta vez não em direção ao quartel, onde costumavam ser as aulas, mas ao Complexo Poliesportivo que leva seu nome. Por último, o Fausto. Com diários de classe debaixo do braço e dando uma funda tragada no cigarro, deixa a casa do mosaico de peixes e ruma, em passos lentos, até o Centro de Convenções.

 

Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 09/01/2020.

- Imagem: Divulgação.

 

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Coronha Vírus

 

 

MORRO DO VIDIGAL

 

– Tá aí o bagulho?

 

– Passa primeiro a grana pra cá. Vai, vai logo.

 

– É da boa?

 

– Purinha, brother.

 

– Vem agulha, seringa e algodão aí no papelote?

 

– Tirando uma com a minha cara, mané? E essa aí é um porrete, véi, pode sair de boa sem máscara que não pega nada.

 

BANCA DA 25 DE MARÇO

 

– Olha o mata-bicho da Covid! Aqui comigo a Covid é 19! É 19,99! É 19,99! Vai uma aí, queridão? Vacina de procedência, é anticorpo garantido, vamo chegando!

 

– Mas você está usando a mesma agulha e a mesma seringa pra aplicar em todo mundo! Que que é isso??

 

– Véi, tanto faz, né? Eu uso a mesma seringa mas é de um imunizado pro outro, então não tem problema. Se tiver um pouco de corona do camarada que tomou antes do senhor, na hora de encher a seringa com o veneninho vai matar tudo…

 

– Mas o cara que você vacinou antes de mim pode estar com Aids.

 

– Bom, aí, vacina de Aids não é comigo. É na banca do Jacozinho, indo pra frente aqui, o terceiro camelô às direita, aquele ali de camisa aberta e corrente de ouro. Mas vamos lá que a fila anda, cumpadi. Qual marca que vai querer?

 

– Deixa ver aí o que você tem.

 

– Na mão, chefia. Quer dizer, tá aqui no isopor dos gelito. Eu vendo gelito e raspadinha também, o senhor vai querer? Olha, a gente temos ainda Tampico de laranja, uva, fruta silvestre…

 

– Tô com sede não, me mostra aí as vacinas.

 

– Tá aí, é só escolher.

 

– Ah, peraí meu amigo… Jesus, cadê a vigilância sanitária?! Olha aqui nos rótulos, eu ia dar risada se não fosse pra chorar… Faizer… Esputilink… Coronavasquez!!!!!!

 

– O senhor perguntou da vigilância sanitária? Deve tá tudo lá em reunião até hoje, pra escolher qual vacina que vai comprar pra imunizar o povão. Eu pelo menos tenho na pronta entrega. Pediu, pagou, tomou – sem burocracia.

 

– Não, eu não tô ouvindo isso…

 

– E geladinha, ó só… 

 

Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 02/01/2020.

- Imagem: Divulgação.

 

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Noutras palavras

 

 

Sabe-se lá por que cargas d’ilto, me veio à mente anteontem por volta das cinco a meteórica passagem deste que vos torja pelo extremo noroeste de Janjobão-Mirim, rincão injustamente desconhecido pelos habitantes das renzolas brasileiras.

 

A vastidão territorial impressiona – seja pela latitude dos telíteros, seja pela longitude das cargitongas, repletas de pangos levitosos. Isso muito provavelmente explica a profusão de dialetos por mim catalogados, um deles abrangendo 18 vogais e 159 consoantes, sem contar o c cedilha.

 

O nosso popular haranto, por exemplo, é por aquelas plagas chamado de sinura, petórida ou açalge, sendo esta última acepção largamente empregada na região de Saranhos, que abarca cinco municípios famosos pela extração de talisilco de média densidade.

 

A estranheza que se sente à primeira vista, e que frequentemente se agrava à medida que o tempo passa, não se resume às questões de ordem semântica. Digo isso por experiência própria, ao relembrar os dois dias passados no distrito de Panhola, a 70 tércias de Janjobão e a 32 de Saranhos. Desde a fundação do lugar, em 1784, não há registro de nascimento de destros, aí incluídos os macacos do zoológico, os gigantes de circo e outros representantes do que se convencionou chamar de população flutuante. Não obstante a aberração genético-estatística, a beleza das florestas de velinrondas põe em êxtase instantâneo cem por cento dos homens, mulheres e crianças que delas se aproximem, sejam estes visitantes destros, canhotos ou ambidestros. O imenso potencial turístico desse cenário deslumbrante atraiu a atenção da indústria tingoleira, resultando na construção de 3 talintes da Rede Novotel, um em cada resca da tobuca.

 

As calácias são um capítulo à parte nesta peculiar região do globo. Cortadas por vilcos em toda a sua extensão, oferecem um belo espetáculo ao visitante, especialmente entre as 13 e as 18 horas dos meses de outono. É recomendável, contudo, que a travessia se faça de caviloque e acompanhada de um nativo trilíngue e com porte de arma. Na altura do licântero 3, o Gusma, lendário sirulado de comida a la carte, é parada obrigatória para os amantes da alta culinária à base de anta. Peça uma porção à pururuca, como entrada. Para o golte principal, a especialidade da casa é o cozido de espitonja selvagem, habitualmente servido com generosa guarnição de piripoca, uma espécie de senca com polpa fibrosa muito abundante no cerrado. A carta de tártafos do sirulado inclui tintos e brancos de ótimas burfas e a preços realmente convidativos.

 

Satisfeito o corpo, é hora de nilfar o espírito. Ou caltorescer o alambistro, como se diz por lá. Para isso não faltam Igrejas, sinagogas, templos os mais diversos e milhares de modelos diferentes de mandalas vendidas por mibonétios.

 

Ah, toda atenção é pouca ao entrar numa farmácia. Uma simples tecarúnia de rildifa de 80 mg pode dar muita dor de cabeça, ainda que o efeito esperado seja analgésico. Para os farmacêuticos locais o nome do remédio é incompreensível, e uma confusão medicamentosa pode ser fatal.

 

Para encerrar, uma meia dúzia de termos em janjobanês e sua tradução para nossa língua. Pelo zum pelo gam, leve essa lista com você:

 

Sinapa = pantálio

Alcêndito = biorte

Peldisperina = zanzás-vurp

Vinsirta = lortivol

Bécono = Onoceb

Fim = fim

 

Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 24/12/2020.

- Imagem: Divulgação.

 

*  *  *

 

Rapid Christmas

 

 

Uma aceleradinha mais forte e eu não pegava o sinal fechado, e esse é de 60 segundos. Mas tudo bem, um minuto a mais ou a menos de atraso não é o que vai fazer diferença. Já devem ter ligado pra central do aplicativo reclamando da demora.

 

Haja máscara para ficar pondo, tirando e trocando nesse calor senegalês. Mas tudo bem, se na hora da entrega eu não tirar o capacete, tanto faz. Estão todos sempre com fome. Estão todos sempre com pressa. Querem se livrar rapidinho de mim, essa ameaça móvel de Covid-19. Fazem aquela cara de nojo na hora de digitar a senha na maquininha, um nojo que a máscara não disfarça. Não pegam nem o comprovante da operação, para evitar tocarem em algo mais vindo de mim. Já chega a encomenda, é o que devem pensar.

 

Chuva no lombo, mas tudo bem. Papai Noel costuma enfrentar neve. Tá suave na nave. O trenó tem rena, moto tem cavalo. Para de chorar de barriga cheia, olha no retrovisor e vê que tem gente pior que você. Agradecer sempre. Obrigado por mais um dia. Gratidão.

 

R$ 86,75 hoje. Vou pedir um franguinho assado, para o almoço do dia 25 não passar completamente em branco. O raio do sistema é tão bacana que é capaz de me acionar pra levar o frango a mim mesmo. Mas tudo bem, é o que chamam de magia do Natal. Algum colega conhecido vai aceitar a corrida. Quando der de cara comigo vai me chamar de folgado, mas tudo bem. Quero sentir o gostinho de receber ao invés de entregar, deve ser muito bom isso. E ai do motoqueiro se demorar muito.

 

Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 12/12/2020.

 

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Feliz 84 

 

Quero falar de uma coisa
Adivinha onde ela anda

Voltar ao nunca mais daqueles dias não estava no programa, mas aconteceu e foi bom, mesmo que nunca mais seja. Por obra e graça de um gatilho involuntário, o disparo acidental de um cheiro, uma cor, frase ou trecho de canção.

Quem sonhou, só vale se já sonhou demais
Vertentes de muitas gerações


João Amazonas vem aí, Abaixo a Ditadura. Teotônio Menestrel das Alagoas, MR8. Ontem mesmo o Plínio Marcos esteve no DA da faculdade, vendendo e autografando o livro mais recente. Chinelo de couro, bermuda, a camiseta curta deixando a barriga de fora. “Quatro anos sem Lennon, dois anos sem Elis – Tributo aos nossos ídolos”, anuncia um cartaz pregado num poste próximo ao prédio de Letras da PUC.

It’s time to spread our wings and fly
Don’t let another day go by, my love

Não, nenhum dia há de nascer sem ser vivido avidamente.
Ainda é cedo, cedo, cedo. Não me imagino escutando “A bênção, vô” nem respondendo “Deus te abençoe, durma bem”. Quero que guardem de mim essa cara de travesso ainda sem vincos, esse cabelo em desalinho e 100% castanho-escuro.

Ela é só uma menina, e eu pagando pelos erros
Que eu nem sei se cometi


Tantos meninos e meninas que éramos, com aquela libido toda saindo pelo ladrão. Campinas ainda indecisa de virar metrópole, se espichando sem controle mas com o salto alto de uma quase-capital. O Convívio da 13 com mesinhas, garçons e famílias a passeio. Shopping era só um e não arranhava o glamour do centro a ostentar a Muricy, a Mesbla, a Sears.

Da janela lateral do quarto de dormir

Fiz um sanduíche com o que tinha e fui comer na janela do apartamento, olhando o povo em zigue-zague lá embaixo. São precisamente dez pras cinco no relógio Champion de plástico com pulseiras intercambiáveis, cada uma de uma cor. As migalhas caindo devagarinho. Melhor assim, um prato a menos pra lavar. Além do mais o detergente está no berro. Deito e retomo o “Feliz Ano Velho”, página 96.

Não adianta fugir, nem mentir pra si mesmo
Agora há tanta vida lá fora, aqui dentro


Às vezes, a vontade de sair num fim de tarde. Tomava um banho e ia, caminhando entre as palmeiras imperiais em frente à Praça Carlos Gomes. Um hippie de chapéu de feltro escuro e lugar cativo ali na feira de artesanato, o velho Paulinho Bom-Ar, com seus broches, brincos e colares esticados na flanela, gastava a vida torcendo ferrinhos com alicate bico fino. A originalidade daquela figura era a peça mais rara do mostruário. Era o busto em carne e osso lá da praça.

Quem me levará sou eu, quem regressará sou eu

Que papo estranho o daquele taxista, puxando conversa comigo enquanto me levava do Largo do Rosário pra rodoviária.

– Diz que daqui a uns dois anos vem um tal cometa de Halley. Tá falando aí no jornal de hoje, tem uma matéria boa, se quiser dar uma olhada…

Vai passar, nesta avenida um samba popular

Mas não passaram as Diretas no Congresso. Calma, gente. O João Batista jurou fazer desse país uma democracia, só não disse quando. A noite vem e agora são dois Chicos. O Buarque na vitrola e o Anysio na telinha.

Chove lá fora e aqui faz tanto frio, me dá vontade de saber
Aonde está você

Tem meia maçã na geladeira. Nem lembrava mais dela, escondida atrás do leite longa vida. Abro a veneziana e espio a cidade acesa. De costas pra televisão, ouço o apresentador do Jornal da Globo chamar o Paulo Francis, de Nova York. Sem me dar conta de que aquilo que passava, na TV e na janela, um dia seria história. A do mundo e a minha.

 

Marcelo Sguassábia© - 04/12/2020.

 

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Bravo, maricas, bravo!!!

 

 

Força e gratidão aos abnegados maricas, estes heróis anônimos que bravamente perseveram no isolamento doméstico. Que insistem no despropósito de pensar no próximo e na saúde coletiva.

 

Bravo, maricas, bravo. Ainda que brucutus aparvalhados, com sua retórica de ocasião, desmereçam seu sacrifício logo ao romper da Alvorada, entrincheirados em cercadinhos a defecar nos microfones.

 

Ainda que inconsequentes sem máscara se aglomerem por raves, bailes funk, botecos, orlas e saldões de ovos de Páscoa. Conscientes do perigo, assassinos e ao mesmo tempo suicidas de caso pensado, espalhadores da praga e receptores do caos.

 

A vocês, maricas incorrigivelmente desmunhecados, a ordem do mérito por bravura. Por aceitarem o sacrifício do campo de concentração para que napoleões de hospício saiam por aí de arminha em punho, atirando a esmo e à toa com sua pólvora de chabu.

 

Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 23/11/2020.

 

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Jeca Tatoo

 

– É aqui que fai tatuage?

– Ô se é. Vamo entrando, sô. Nói fai e fai prumódi deixa o criente satisfeito que só vendo. Dondé que vai querê as picada, seu moço?

– Tô achando que no ombro fica mió.

– Por mim pode sê até nas parte baixa, é a gosto do fregueis. Mai gerarmente os barbado prefere no braço e as muié no tornozelo ou na nuca. Deixa eu pegá o mostruário com os desenho procê oiá.

– Tá bão.

– Ói só que beleza. Tem figura pra mai de metro. Saci Pererê, Cuca, Lobisómi, Boitatá, Curupira, Mula sem Cabeça, tem um sortimento variado. Aqui é a seção das drupa caipira. Nói tem Tonico e Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho, Pena Branca e Xavantinho, Cascatinha e Nhana…

– Não tem drupa mai moderna? Esses aí é tudo véio, tem uns que já bateu com as bota fai tempo.

– O pobrema é que eu num trabaio com drupa moderna prumódi que daqui a poco ninguém mai lembra quem é, daí a tatuage tá feita e a pessoa vai querê tirá. Aí já viu, tatoo é pra vida intera. Essas dupra de hoje, vou falá uma coisa, só se for decarque de chicrete, que sai no banho.

– Mai é certeza que a tatuage que ocê fai não sai nunca mai?

– Pode fazê o que fô – entrá no riberão, esfregá com bucha, passá arco que não sai nem que a vaca tussa.

– Memo com a lida na roça, adispois de carpi e ficá suado?

– Eu agaranto. Óia só esse Chico Bento, vai ficá bunitão aí no seu braço. Já imaginô ocê na quermesse, disfilano pra cima e pra baxo com essa tatoo lindona? Vai abafá, rapai.

– Bão tamém…

– Tem os que gosta dos desenho mais radicar. A fia do Nhô Nerso mandô tatuá essa cavera aqui, tá vendo.

– Hum, sei. Parece aqueis aviso de veneno que tem nos saco de adubo.

– Entonce, é memo. O pessoar comenta que adispois que a minina tatuou a cavera o padre Neco não deixou mai ela entrá na igreja.

– Vixe, jura?

– É, mai aí a curpa não é minha. A moça é di maior, quis fazê e eu fiz, uai. Cada um é cada um, tá certo?

Esses aqui tamem, cê pode escoiê à vontade. Enxada, trator, porco no chiquero, boizinho no currar, pato na lagoa, pangaré, cobra no mei do mato…

– E se eu quisé trazê o retrato de arguém, ocê fai iguar a fotografia?

– Nói fai sim, mai aí vareia o preço. Anteonte apareceu um hómi aqui com um retrato dum conjunto chamado Os Bito, não sei se cê conhece.

– Já ouvi falá.

– Pois entonce, aí no caso era quatro figura pra tatuá, tivemo que tratá um preço especiar purquê deu cansera pra fazê. Trei dia e trei noite. Ah, esqueci de falá procê que agora nói tá diversificano as tatoo, com uns motivo cológico e vegetariano. Nói tatua pé di mio, bacatero, cafezar, laranjera, abeia fazeno mér, vô mostrá procê vê.

– Óia, nem pricisa. Não carece se preocupá. Gostei dimai da conta dessa violinha. Quanto é que é pra fazê essa aqui?

– Essa aí eu cobro dois saco de feijão. Mas procê virá fregueis eu faço por cinco pé de arface.

– Falô e dizeu. Mai só que eu tô sem arface no borso, posso trazê dispois?

– Craro. Não tem pressa, uma hora que ocê vié de charrete pra cidade ocê acerta.

– E as agúia, é limpa?

– Ô rapai, quê isso. Tudo agúia descartáve.

– Então vamo lá, Jeca. Pó fazê o serviço.

– Baixa as carça.

– Mai eu falei que era no ombro!

– Ô rapai, tinha isquicido…

 

Marcelo Sguassábia© - 17/11/2020.

 

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Johnnie e a Moça

 

 

– Boa noite, moça.

 

– Oi, fortão. Até que enfim este elegante e bem apessoado cavalheiro me dirige a palavra.

 

– Achei que você não ia querer saber de conversa comigo.

 

– Um tipão como você com autoestima tão baixa, que desperdício! Quantas moças como eu não dariam cada gota de suas latas para uma chance com você, seu lindo. Só no Atacadão que tem aqui perto são mais de três mil e duzentas.

 

– Vem sempre aqui no bar?

 

– Ultimamente não tenho saído da prateleira, assim como você. Com essa pandemia que não acaba nunca, não creio que a gente saia daqui tão cedo, Johnnie.

 

– Eu ia me apresentar. Como sabe meu nome?

 

– Tá escrito no rótulo, né? Não sou analfabeta. Já eu sou moça, e é o que basta, moça simplesmente. Não tenho nome, não. Já pensou se tivessem que batizar cada uma de nós?

 

– Se for por esta lógica, eu tenho milhões de homônimos pelo mundo. Alguns cheinhos, sendo transportados em navios e aviões cargueiros, muitos falsificados, outros pela metade e a maioria no berro. Mas, vamos direto ao ponto: de zero a dez, qual a chance da gente se misturar gostoso naquela coqueteleira ali?

 

– Eu diria nove. Mas com tão pouca gente no bar, esse mexe-mexe é bem improvável… Na qualidade de moça, eu entro em alguns coquetéis, não vou mentir pra você. Mas sou mais requisitada na mistura com cachaça, vodka, licor de cacau ou conhaque, pra fazer “meia de seda”. Uísque geralmente tá fora da receita. Pena, viu.

 

– Vem cá!

 

– Vem você… não é você o “walker”, o caminhante? Pois mostre que, além de elegante e bonitão, é também um cara gentil. Larga este rótulo quadradinho e vem aqui rodear as minhas redondezas. Estou louquinha por um assédio, sabia?

 

Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 08/11/2020.

 

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Proálcool em gel

   

 

Proálcool em Gel, o novo programa governamental de Buana-Xongas, é lançado e apresentado à imprensa com a pompa e a circunstância dignas do seu protagonismo estratégico em âmbito mundial.

 

Numa primeira fase de implantação, bilhões de litros de álcool em gel foram utilizados para queimar cem milhões e duzentos mil hectares de matas nativas, na região norte do país. Estas deram lugar a latifúndios imensos de cana, que por sua vez produzirão mais e mais álcool em gel padrão Ultra Max Quality Premium para exportação.

 

Para o brucutu recém-liberto da Covid, tataraneto do polêmico Presidente Donald (e que aos berros promete, tal qual o tataravô, fazer a América grande novamente, desde que possa continuar contando com o voto do típico ianque comedor de sandwich de pasta de amendoim), trata-se de um momento de gigantesca importância para a raça humana. “Álcool em gel é o elixir da vida e o novo ouro, a ele se rendem – inativados e inofensivos – coronavírus de todas as cepas e mutações. Podem apostar: a partir de hoje, nada e nem ninguém nos deterá. Nossa sólida parceria com Buana-Xongas significará a prosperidade que tanto queremos resgatar”.

 

Em meados do ano passado, após a 192a onda de contaminação multicontinental, que em duas semanas varreu da Austrália o equivalente a 26% de toda a população do Tennessee, líderes do mundo todo anunciavam com alívio o final da pandemia. Na ocasião, quase todo o estoque mundial de álcool em gel consumiu-se na festa de passagem de ano 2134-2135, utilizado para tocar fogo em quatrilhões de máscaras de proteção até então em uso no planeta.

 

O anúncio foi um grande chabu retórico, como hoje todos sabem. Descrentes do fim do suplício, especuladores visionários estocaram preventivamente algumas centenas de piscinas olímpicas repletas de álcool em gel. Foi a nossa salvação. Não fosse esta pequena reserva, a humanidade não teria como se defender da praga até que o novo Proálcool se implementasse como sistema. Mas, agora sim, podemos ficar tranquilos. Felicitemos uns aos outros, em solidários e saudosos apertos de mão.

 

Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 31/10/2020.

 

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Nesses novos dias

 

Eu vi a Lolita e o Airton segurando uma bandeja, com um porco assado de maçã na boca, fazendo merchan da Cantina Don Ciccilo ao lado do Carlos Imperial - bebendo uísque e fumando, em pleno programa vespertino.

 

Eu não vi, mas é como se estivesse vendo agora na minha frente o Marcos Valle, sem camisa e sentado ao piano em uma tarde de sábado de 1971, compondo o tema de fim de ano encomendado pela Globo, com o Nelsinho (em estado, digamos, alterado de consciência) esperando a música ficar pronta para botar letra junto com o Paulo Sérgio, irmão do Marcos.

 

Música concluída, letra entregue e discussão armada:

 

- Olha, sei lá, meu... não é melhor "nesses lindos dias" do que "nesses novos dias"?

 

O Nelson se defende.

 

- Mas eu falo dos dias que estão por acontecer. Não enche o saco, Marcos.

 

- Sei não, olha só, tem "novo dia" no primeiro verso, no segundo tem "novo tempo", depois vem "novos" de novo? É muito "novo" pra uma letra só, se você trocar por "lindos" fica bom do mesmo jeito e não repete tanto.

 

Eu vi, um ano antes, sentado num pufe e abraçado a um bambi de pelúcia, noventa milhões em ação botando o Brasil pra frente. Aqueles mexicanos com seus sombreiros invadindo o gramado de Guadalajara. Sem saber direito o que estava acontecendo e em preto e branco, com um plástico azulado por cima da tela, pra dar um certo gostinho de TV colorida - coisa que só chegaria pra valer na Terra de Santa Cruz em 72, 73. E apenas nas vitrines das lojas chiques, onde o povo se amontoava à noite, boquiaberto. Lembro que tinha até pipoqueiro na esquina e rádio patrulha rondando, no caso de haver confusão. Estes poucos aparelhos, quando saíam do mostruário, iam para as casas dos muito, mas muito ricos mesmo.

 

Eu vi a Lolita e o Airton segurando uma bandeja, com um porco assado de maçã na boca, fazendo merchan da Cantina Don Ciccilo ao lado do Carlos Imperial - bebendo uísque e fumando, em pleno programa vespertino. Sendo que o merchan era pura permuta - o restaurante entrava com o rega-bofe para os artistas todos do "Almoço com as Estrelas" e o apresentador fazia o testemunhal. Zero de dinheiro envolvido!

 

Eu vi o Silvio Santos apresentando o "Só compra quem tem" e falando com seu irmão Léo pelo telefone, dizendo que "prêmios, prêmios, prêmios o Baú agora dá". Pelo menos em 50 desses 70 anos que a TV faz agora, alguns flashes marcantes deixaram registro nesta caixola abarrotada. Coisas que aos poucos vão deteriorando. Como as fitas de videotape que ainda restaram, salvas dos incêndios da Record, da Globo, da Tupi, da Excelsior.

 

Eu vi, sim. E é quase certo que não trocaria o que vi, fragmentos que guardo em caixinhas de veludo dentro de um cofre de aço, pelas décadas que um garoto de 15 de hoje tem pra ver. Prefiro reter o pouco que possuo entre uma dobra e outra dos miolos, mesmo que nada disso exista mais, do que partir, titubeante, rumo ao que esse menino teria pela frente. Pra que eu fizesse uma troca dessas, precisaria ter muita vantagem envolvida. Vantagem grande, de respeito. Talvez uns 150 anos de bônus por aqui. E isso se eu tivesse certeza que o "aqui" continuaria existindo em 2170, evidentemente.

 

Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 12/10/2020.

 

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Bem na foto

 

 

- Meu Deus do céu, olha só... nessa época eu ainda tinha ruga! Bons tempos, bons e velhos tempos que não voltam mais!

 

- E o cabelo branquinho, olha que fofura. Lembra algodão doce, bem nenenzinho mesmo. Se for comparar com esses tufos pretos que você tem agora, hein? Tá ladeira abaixo meu amigo, decadência física total.

 

- Mas o que é que a gente pode fazer? A idade é implacável, traz junto o que não dá pra evitar: musculatura definida, barriga de tanquinho, pressão 12x8, bunda durinha. Quem me dera se as varizes e a escoliose durassem a vida inteira.

 

- É, são dádivas da juventude. As delícias de ir pra cama com o ciático pinçando, aquela gordura abdominal empapuçada, chacoalhando de um lado pra outro e provocando fiu-fius, a charmosíssima catarata escancarada, dando na vista, bem sexy e oferecida... se tudo isso fosse eterno não teria graça.

 

- Acho que Deus faz as coisas certas, nos reserva essas glórias só por um tempo. E talvez passe tão rápido justamente pra gente dar valor ao que perdeu. Pálpebra caidinha, papada, bigode de chinês! Nossa, olha que monumento essa velhinha linda, a terceira aí na foto, da esquerda pra direita.

 

- Só de olhar já dá uma nostalgia, uma vontade louca de ter aproveitado mais, não é mesmo?

 

- Ai, ai, ai, trocaria sem pestanejar meu colesterol de 90 e minhas artérias desentupidas por esse Parkinson super charmoso. Só o nome já dá um frisson na gente... Parkinson, ui!!!

 

- Ah, pra mim já estava bom se pudesse me transformar na bengala aí da foto, sendo o tempo todo manipulada por essas mãos trêmulas, secas e cheias de manchas...

 

- Acorda, meu bem. Foi-se o tempo. Não é mais pro nosso bico.

 

Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 03/10/2020.

 

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Que coisa?

 

   

As coisas estão deixando de existir. É sólido, gasoso, líquido e certo o extermínio da matéria – pelo menos com a serventia ou os usos vários que costumava ter.

 

Até há pouco, comprava-se qualquer coisa com uma coisa chamada dinheiro. Agora compra-se uma série de não-coisas (quase tudo é digital ou impalpável) e paga-se com um negócio que não é mais coisa: transferência eletrônica, pix ou que outro nome inventem de dar para a coisa. Esta moeda esquisita que a bem dizer inexiste, pois passa de um para outro sem que ninguém a veja, a toque, sinta seu peso ou a guarde debaixo do colchão.

 

“Coisa” talvez seja o vocábulo mais flexível da língua, é tudo aquilo que nos falta o termo quando queremos nomear alguma coisa. O equivalente ao “stuff” inglês. What is this stuff? O que que é esta coisa? Um verdadeiro coringa do vernáculo. E se alguém não fala coisa com coisa, tudo bem: este alguém não estará sozinho. Pelo contrário, estará em companhia ilustre. Esta coisa que está aí na presidência e aquela outra coisa, que se achava presidenta, também não falavam nem falam coisa que se aproveite.

 

A coisa, ou a falta dela, não para por aí. Não é preciso mais uma outra parte interessada para que alguém faça sexo, por exemplo. Não se requer mais coisa nenhuma. Não falo do sexo solitário, coisa que sempre existiu, e sim dos corpos-pixels a promoverem surubas, coisa que é de agorinha. Que coisa, não?

 

E quer saber de uma coisa? Se o próprio Deus, que fez todas as coisas, não tem forma de coisa alguma, que coisa há de resistir? Resta seguir em frente e amá-Lo. Sobre todas as coisas.

 

Esta é uma obra de ficção.

 

Marcelo Sguassábia© - 20/09/2020.

 

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Preparem os rojões: temos tudo a comemorar!

 

 

 

Nem é preciso comentar o quanto a pandemia afetou o mercado de eventos. Debelado o surto, entretanto, o segmento promete ir à forra, fazendo festa até por ocasião de datas pouco exploradas no calendário promocional.

 

Começando por 4 de janeiro, o Dia Nacional da Abreugrafia – exame criado por um médico brasileiro para detectar a tuberculose no processo de admissão de novos funcionários. Como o exame não existe mais, a data também foi, compreensivelmente, relegada a certo esquecimento. Uma injustiça, ainda a tempo de ser reparada.

 

Dia 7 é a vez do mecânico de manutenção de aeronaves fazer uma pausa para brindar, com seus pares, o valor de seu insubstituível trabalho. A depender do ano, pode-se muito bem fazer uma “ponte”, emendando a folga com o Dia Estadual do Juiz Eclesiástico de Paz, que acontece 72 horas depois.

 

Já no Dia da Imprensa Filatélica, a previsão é de um rega-bofe alusivo às milhares de publicações que enchem as bancas e salvam do vermelho nosso sofrido mercado editorial, todas elas dedicadas ao fabuloso universo dos selos. Na ocasião, um baile costuma ser promovido na sede de campo da ABRAJOF – Associação Brasileira de Jornalistas Filatélicos, entidade sediada em Ribeirão Preto (abrajof.wordpress.com). A propósito, há controvérsias se a Associação reúne jornalistas que produzem matérias sobre filatelia ou se são apenas jornalistas colecionadores de selos. A diferença é grande, convenhamos, e desta distinção com certeza dependerá o destino da humanidade.

 

Em fevereiro temos, com intervalo de uma semana entre uma data e outra, o Dia da Roupa de Baixo (no qual cuecas e calcinhas deixam os varais para, em passeata, exibirem suas cores e formatos em praça pública) e o Dia do Surdo-Mudo – sobre o qual pouco se tem falado ou ouvido.

 

Prosseguindo, chegamos a março e encontramos o Dia do Supremo Conselho do Grau 33 do Rito Escocês Antigo e Aceito da Maçonaria para a República Federativa do Brasil. Mas poderia ser também o dia da perda de fôlego, de tão longo que é o nome da efeméride. Até terminar de enunciar a data comemorativa já estaremos no dia seguinte, e a comemoração terá passado em brancas nuvens.

 

Em 17 do mesmo mês, brinda-se ao Dia do Fã. E como há fãs para tudo neste mundo, teremos festa no fã–clube dos que adoram ser fãs de alguma coisa e indiferença no fã–clube dos que odeiam e boicotam comemorações.

 

Março termina sob efeito da Anestesia Geral, cujo dia é comemorado em 30 daquele mês. Não por acaso: o dia 30 costuma encontrar todo mundo sem dinheiro para fazer nada. O que explica a pasmaceira geral até que vire o mês e caia algum na conta. É preciso aqui deixar claro que o Dia da Anestesia Geral é festejado globalmente, ao passo que o Dia da Anestesia Local é ponto facultativo em alguns municípios isolados.

 

Abril começa com o famigerado Dia da Mentira, e você dirá que é mentira minha que se comemora, na mesma data, o Dia do Tomate. Algumas fontes não muito confiáveis informam que o dia correto alusivo ao legume é 1 de fevereiro, mas apuramos que é mentira.

 

E o ano prossegue com um vasto rol de oportunidades. Para citar apenas algumas, temos o Dia do Pracinha Paranaense, o Dia do Parque de Diversões, o Dia Mundial dos Discos Voadores, o Dia do Dedo do Meio e o Dia Municipal da Luta de Braço – este comemorado apenas em Belo Horizonte.

 

Ah, também não dá pra esquecer o 22 de setembro – Dia Mundial de Combate ao Mau Hálito. E, não que uma coisa seja necessariamente consequência da outra, mas logo em seguida temos do Dia da Tia Solteirona.

 

Para quem quiser conferir, todas estas datas comemorativas realmente existem e muitas delas estão listadas aqui:

https://www.janela.com.br/guia-do-mercado/calendario_promocional.html.

 

Marcelo Sguassábia© - 15/09/2020.

 

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O MBSC e o torneio de abdominais

 

 

Respeito as categorias e organizações formalmente constituídas, bem como seus direitos reivindicatórios. Mas desde que suas bandeiras sejam factíveis e que se manifestem pacificamente, sem comprometimento da ordem e do direito de ir e vir da população. Não foi o caso da arruaça travestida de protesto conflagrada pelo MBSC – Movimento dos Botões Sem Casa, na última quinta-feira.

 

A exemplo do que ocorre anualmente, saíram às ruas, alinhados e em passeata, botões de todos os feitios e tamanhos: brancos e coloridos, de plástico, madrepérola e madeira, os nus e os revestidos de tecido. Até mesmo os botões da Revolução de 32, já partidos ao meio, desfilavam garbosos como numa parada da Independência. Aos gritos de “Queremos Casa!”, procuravam a todo custo sensibilizar os cidadãos de bem a abraçarem seu ideal.

 

O epicentro da algazarra ocorreu pouco antes das onze da manhã, quando os botões e seus líderes juntaram-se a outra manifestação em curso, esta dos descamisados, no cruzamento da Duque de Caxias com a Quintino Bocaiúva. O desfile tomou corpo e ganhou novo e unificado grito de guerra: “Botões e descamisados unidos jamais serão vencidos!”

 

Abramos um parêntese e tracemos um paralelo entre o MBSC e o MST. O leitor há de convir que promover reforma agrária vai além da distribuição de terra. As famílias assentadas precisam ter acesso a sementes, adubos, defensivos, meios de armazenagem e toda infraestrutura de escoamento da produção.

 

Da mesma forma, no caso do MBSC, de nada vale subsidiar as casas dos botões se junto com elas o governo não oferecer os insumos necessários à subsistência dos beneficiados, tais como linhas, agulhas e demais aviamentos. Em suma: a meu ver, criou-se enorme balbúrdia em torno de uma proposta inviável e de contornos nitidamente demagógicos.

 

Meu outro comentário diz respeito ao Torneio Interestadual de Abdominais, que em sua 28ª edição polariza todas as atenções e reúne dezenas de milhares de participantes no Ginásio de Esportes Joãozinho Rignoto. Rivalizando em porte e prestígio com a Festa do Peão de Barretos, este evento inseriu definitivamente nossa cidade no calendário turístico nacional. Tanto que o chamado “Circuito do Abdômen” já integra os pacotes rodoviários de várias operadoras de turismo.

 

Nada justifica, portanto, as falhas nos critérios de julgamento e premiação do certame. Como é sabido, as eliminatórias se dão em pequenos grupos de 800 atletas, que executam os movimentos abdominais sob os olhares atentos de 37 juízes. O problema está nas diferenças de constituição física entre os inscritos. Peso, idade, lordose, escoliose, hérnias de disco e pintas de nascença são variáveis que tornam a peleja desigual.

 

Some-se a isso os fatores genéticos. Existem indivíduos dotados naturalmente de musculatura abdominal mais desenvolvida, e não há nada que se possa fazer a respeito. Também não me parece razoável colocar, numa mesma eliminatória e em igualdade de condições, um boia–fria com Mal de Chagas e um roliço filho de fazendeiro com o bucho entupido de granola enriquecida de vitaminas e ferro (embora a granola, neste caso, possa eventualmente mais atrapalhar do que colaborar com o desempenho do cidadão).

 

Estas discrepâncias tornam especialmente meritórios os feitos de Athanazio Lemos, que na categoria meia-idade masculino chegou à marca de quase 59 abdominais no tempo limite de 1 minuto e 35 segundos. Outra conquista de destaque coube a Lindaura Arcádio, categoria terceira idade feminino, cujo escore alcançou bem mais de 67 movimentos concluídos com sucesso.

 

Urge que as autoridades se empenhem na normatização de parâmetros mais equânimes de disputa, a fim de que doravante nenhum inscrito seja prejudicado.

 

Marcelo Sguassábia© - 07/09/2020.

 

- Imagem: Divulgação.

  

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* Marcelo Sguassábia, reside em Campinas-SP. É redator publicitário e colunista

para diversos jornais e revistas eletrônicas. É colaborador de Via Fanzine.

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