Olha a onça!
Por
Péricles Gomide Júnior
Crônicas e narrativas de Pancrácio
Fidelis
Publicada na Folha do Oeste, de 16/04/1950
Os Estados Unidos e Belo Horizonte podem ser, na opinião de
“O Cruzeiro” e outras revistas, os lugares onde acontecem as coisas mais
estranhas da face da terra, mas, senhores, como já estou cansado de
afirmar, o lugar mais divertido do mundo é esta terrinha onde nascemos.
Um equilibrista famoso atravessa o Brasil, de norte a sul,
fazendo piruetas sensacionais em cima de uma esfera de madeira,
estarrecendo o público com suas proezas no trapézio, lá no alto do
picadeiro, ou andando de patins no arame.
O famoso equilibrista vem dar com os costados em Itaúna e o
que acontece? Ali perto da farmácia do Dirceu, o homem sobra
espetacularmente da bicicleta de aluguel e amassa o coco de encontro ao
paralelepípedo!
O povo da terra o aplaude delirantemente, enquanto ele
procura o rumo da Santa Casa, esbanjando todo o repertório de nome feio
que juntara durante sua vida de circo ambulante. Já afirmei que as horas
mais bem vividas de minha existência são as que passo aqui nesta minha
terra. Aqui, a gente se diverte de fato.
Cheguei quarta-feira a Itaúna e resolvi assistir à
procissão de “encontro”. Descia calmamente a rua Antônio de Matos, para
ir de encontro a Procissão do dito. De repente, surge uma infinidade de
mulheres dando todo o gás pela rua acima, num berreiro de assustar até o
piloto do disco voador.
Pensei comigo: “Que procissão esquisita!”. As festas dessa
espécie a que já havia assistido eram sempre silenciosas. Dona Eponina
passa por mim como um bólido.
- O que é que há, hein? – perguntei.
- Será que o leão comeu o Lique? – perguntou ela, sem parar
de correr.
Lá embaixo, na mesma velocidade, surgem as moças que
representam a Fé, a Esperança e a Caridade. A Caridade entra na primeira
porta que encontra aberta; a Fé faz uma força tremenda para subir no
muro da Dona Joanica, mas não consegue. O muro é alto pra burro. A
Esperança corre para o boteco do Zé do Zidico, mas fecham-lhe a porta e
a pobre Esperança fica que nem uma barata tonta, sem saber pra onde
correr.
Lá vem Terezinha Saldanha, Maria Madalena, digo; deixou o
Cristo sozinho com o leão e, juntando a saia, galga em poucos segundos a
escada da casa do Abzay. Suas senhoras passam por mim arquejadas:
- Não é leão, não, cumadre, é onça!
- Pra mim não faz diferença, sai da frente... – responde a
outra.
Segurei um garoto que passava a cem quilômetros por hora e
perguntei:
- O que é que foi, chefe?
- Não sei e nem quero saber, me larga! – disse ele.
Aí um senhor, de suas oitenta primaveras, que abandonara a
bengala e fazia esforços inauditos para subir no poste, avisou:
- Fugiu um leão do circo!
Apavorado, corri na direção do velho.
- Não! Este poste é meu! – berrou ele. E se traçou à sua
propriedade. Lembrei-me do bueiro, ali defronte o açougue do Abzay e
corri para lá. Mas não pôde ser. O apostolado da Oração havia chegado
primeiro e só vi a cabeça de Dona Ladomila que avisou: “lotado”.
Fui lá para a barbearia do Bismarck, único lugar onde cabia
mais um, e as mulheres enxugavam todo o reservatório de água dele. Aí,
lembrando-me da “Crônica da Quinzena”, pus-me a ouvir os diálogos dos
homens e mulheres que ali se acotovelavam.
- O Padre José foi o único que não correu, hein? Que homem!
- O Senhor dos Passos também não correu, não...
- É, mas o Senhor dos Passos estava amarrado no andor!
- Aquele outro, o Padre Sílvio, já deve estar lá perto de
Divinópolis...
- Com aquela velocidade com que ele passou por aqui, já
deve estar muito mais longe...
- Que nada! Ele está com o Apostolado da Oração, lá dentro
do bueiro.
Duas senhoras suarentas e arquejantes comentavam, lá na
parede:
- A polícia tem que prender os homens do circo, não tem?
- Deixa eles prender o leão primeiro, depois nós cuida
disso.
- Meu Deus – lembrou um homem -, eu deixei a Dilurde
sozinha em casa!
- Minha sogra também ficou sozinha...
- E se o leão for lá?
- Azar dele!
Esperei algum tempo, mas a curiosidade foi maior do que o
medo e sai novamente à rua. Havia, ainda, muita mulher correndo. Uma
senhora, já ferida, não resistiu mais à corrida e sentou-se exausta no
passeio da casa do Lique, choramingando!
- Eu não agüento mais, já perdi até o rumo da jardineira de
Santanense. Os homens não podem deixar a vaca me pegar, no estado em que
estou, ai, ai...
Nisto, passou um rapaz conhecido e a senhora perguntou-lhe:
- Cadê a vaca brava, hein, Januário?
- Não é vaca, não, Dona Sinhana, é onça!
- ONÇA?! Bom, de onça eu corro!
Apesar de haver perdido o rumo da jardineira, a senhora
ferida chegou lá em Santanense meia hora antes da condução. Maria
Madalena, digo Terezinha Saldanha, desconfiada, espichou a cabeça lá em
cima do alpendre do Abzay e perguntou a alguém que passava:
- Ei, cadê o leão?
- Você é Maria Madalena? E correu? Que vergonha! Onde está
sua fé?
- Fé? A última vez que vi a Fé, ela estava doida pra subir
no muro aí defronte. Cadê o leão?
- Sei lá.
- Posso descer?
- Por mim, pode. Mas a hora que o leão passar por aqui,
seria bom você perguntar a ele também.
Encontrei-me na rua Silva Jardim, com os valentes diretores
do jornal "Folha do Oeste".
- Onde é que tem leão, hein?
- No mato.
- Não tem leão solto aí na cidade? Leão, no duro mesmo? Já
comeu alguém?
O Piu [editor-chefe] surgiu lá em baixo:
- O Zé do Zidico veio lá do circo. Falou que, de lá, não
fugiu nenhum bicho.
- Uai – entrou o Guaracy –, de onde que veio esse leão,
então? O Dr. William tá aqui...
- Você fez algum discurso hoje, Laurito? – perguntou o Heli,
inocentemente.
Lá no botequim do Zé do Zidico, depois de tudo serenado,
quando se positivou a não existência de nenhum leão e que tudo não
passara da imprudência de um “pinguço”, começou a roncação de papo:
- Pois eu apanhei foi pedra – afirmava um valente -, não
corro de homem e muito menos de bicho!
- Que nada, Caubi, eu te vi correndo rua acima, como se
todos os diabos do inferno tivessem correndo atrás d’ocê!
- Foi porque eu não achei pedra por aqui. Só fui encontrar
lá perto da Santa Casa.
- Porque não teve tempo de agachar pra procurar...
Chegou a maior autoridade no assunto, o domador do circo. A
turma logo fez uma roda em torno dele.
- Quando houver animal selvagem solto na cidade – afirmava
ele -, me chamem. Estou habituado, desde criança, a apanhar leão a laço
e onça a braço. Já fui várias vezes à África apanhar bicho dessa espécie
e isso pra mim é café pequeno...
Um dos assistentes veio de mansinho por trás dele e deu um
urro em sua direção, imitando uma fera. O valente domador, que já
visitara a África várias vezes, pegando onça a braço, foi se aninhar lá
em cima da prateleira, junto às garrafas de pinga. E desceu de lá
“onça”, querendo brigar com qualquer um que aparecesse na sua frente,
sem ver cara ou tamanho.
Se isso tivesse ocorrido em qualquer outro lugar do mundo,
haveria inquérito, prisões, processos infindáveis, o diabo... Mas, aqui
nessa terra, todo mundo achou divertidíssima a aventura e só se refere à
Procissão de Encontro, como a “procissão do leão”.
E todos estão doidos para chegar a “Semana Santa” do ano
que vem, na esperança de haver mais disso.
* * *
Ler crônicas
'Eu afirmo, sempre, que Itaúna é o
lugar mais divertido do mundo.
Asseguro, com a mais absoluta
sinceridade que me envaideço quando
declaro onde nasci e me orgulho,
infinitamente, desta terra'.
Péricles Gomide Júnior
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