Salvador/BA:
Do abrigo ao umbigo
Filha de mãe solteira, meiga e linda, Vandinha era fisicamente
uma imagem da mãe. Saiu do tabuleiro e revelou-se estudiosa.
Por Roberio Sulz*
De
Alcobaça-BA
Para
Via
Fanzine
17/04/2016
Vandinha licenciou-se da Secretaria e assumiu a condição de “baiana”
para garantir o “ponto” e dar continuidade ao trabalho e à tradição da
mãe.
Leia também:
Últimos destaques de Via Fanzine
Logo depois das quatro da tarde, de terça a domingo, via-se Glaura no
Abrigo de Amaralina, em Salvador/BA. Seu tabuleiro de baiana, revestido
de linho branco, oferecia tudo que se pode esperar de uma autêntica
baiana acarajezeira. Morena, charmosa e impecavelmente vestida de
babados brancos e rendas. Emoldurava seu lindo rosto, turbante com
delicadas pedrinhas. Colares multicoloridos de todos os santos adornavam
seu pescoço e colo. Enfim, figura que já se fazia indispensável na
paisagem soteropolitana.
Cada freguês era seu admirador. Muitos não resistiam a jogar uma
cantadinha nem que fosse sob disfarçada timidez. Glaura recebia tudo
isso como afagos. Respondia com sorriso acanhado e simpático.
Nos seus vinte e poucos anos experimentou um romance de verão com
Wagner, rico industrial paulista. Engravidou-se, com prazer e paixão. Os
empreendimentos de Wagner em Camaçari forçavam-no a assídua presença e
curtição no território baiano. De repente, nunca mais apareceu, tampouco
reconheceu ser pai de Wanda.
Filha de mãe solteira, meiga e linda, Vandinha era fisicamente uma
imagem da mãe. Saiu do tabuleiro e revelou-se estudiosa. Concluiu curso
superior em artes cênicas na Universidade Federal da Bahia. Talentosa,
foi aprovada e nomeada para cargo de carreira na Secretaria de Cultura
da Bahia.
As duas moravam sob o mesmo teto, em Brotas. Não guardavam segredo uma
da outra, exceto por um pequeno baú que Glaura mantinha na gaveta da
cômoda, trancado a “sete chaves”, jamais tocado, nunca comentado. Era um
respeitado segredo da mãe.
Terríveis varizes nas pernas causaram a Glaura dificuldades na
locomoção. A cada dia, era mais rara no Abrigo. Corria sério risco de
perder sua vaga. Vandinha licenciou-se da Secretaria e assumiu a
condição de “baiana” para garantir o “ponto” e dar continuidade ao
trabalho e à tradição da mãe.
Não tardou a se engraçar com um jovem mancebo, diretor de uma grande
indústria em Camaçari. O romance evoluiu rapidamente. Chegou à proposta
de casamento com casa em Vilas do Atlântico, no litoral norte da
capital. Foi quando Vandinha resolveu confidenciar à mãe esse namoro.
Glaura achou que era hora de inaugurar um diálogo reflexivo sobre sua
experiência amorosa. Revelou à filha o que nunca dantes dissera sobre
sua origem paterna. Sem omitir um só detalhe da sordidez de Wagner,
falou sobre ferida e dor da decepção amorosa. Sentimento represado, nojo
e vingança. Força e arte de superação. Conselhos de cautela e
responsabilidade não faltaram. Por fim, indagou-lhe sobre o pretendente.
“De onde vem, para onde quer ir” e coisas assim.
Vandinha provocou tosse, engasgos, pigarro, respiração forte e até
lágrimas na mãe ao mostrar-lhe fotos sacadas com o namorado. Suco de
maracujá doce pronto na geladeira ajudou a aliviar o inesperado mal
estar.
Sentadas de mãos dadas, as duas se entreolhavam fixamente sob
inexplicável silêncio. Glaura levantou-se e trouxe do quarto entre os
braços o pequeno baú. Ritualmente, sentou-se novamente e o abriu
cuidadosamente. Pediu que Wanda examinasse e traduzisse, para si, a
impressão causada por seu conteúdo.
Entre pesadas joias de ouro maciço e brilhantes, fotos já um pouco
esmaecidas mostravam sua mãe acompanhada entre sorrisos e semblantes de
incontida paixão e felicidade. As fotos explicaram as joias e ambos
justificaram grandeza, simplicidade e garra daquela senhora.
O que não encontrava espaço nem forma na cachola de Vandinha era o
figurante das fotos. Retrato de seu namorado! Como? Versão real do filme
“Túnel do Tempo”? Emudecida, fitou a mãe por minutos. Chorou em soluços.
Reexaminou as fotos e ousou a obviedade:
- Meu pai?
- Sim.
- Meu namorado é meu irmão?
- Provavelmente.
Com relações absolutamente rompidas, Glaura só viera saber da existência
desse segundo filho, dez anos mais tarde, quando um anônimo lhe enviara
matéria jornalística de São Paulo – também guardada no baú - dando conta
do falecimento de Wagner, em acidente aéreo. Da nota obituária constava
como único herdeiro o filho Walter, curiosamente de igual idade de Wanda.
E, ainda, que os empreendimentos seriam tocados por seu pai, também
empresário, até a maioridade do herdeiro.
O anônimo – advogado - aproveitava a oportunidade para estimular Glaura
a pleitear judicialmente, em nome da filha, a integralidade da herança.
Fundamentava-se na suspeita de forja cartorial no registro do filho
Walter. Glaura apenas encaminhou sua curiosidade sobre o garoto.
Encabulou-se ao saber que ele nascera em Salvador no mesmo dia e
hospital em que tivera Wanda. E mais: que seu prontuário hospitalar fora
perdido e retificado, para constar (?) dele o registro de nascimento de
gêmeos fraternos.
Wanda e Walter encontraram-se, já com seus registros de identidade
(RG’s) na mão. Conferiram: pai, mãe, hospital, data e hora de nascimento
idênticos.
Ignoraram ganâncias e competição. Louvaram-se no amor e na fraternidade.
Acertaram-se. Tornaram-se, assim, amigos e bem entendidos sócios,
inclusive, vizinhos de residência no Condomínio Encontro das Águas.
Solteiros e indisponíveis, nunca se os notavam com namorado ou namorada.
Contudo eram sempre vistos juntos e animados em eventos sociais.
* Roberio Sulz é professor universitário; Biólogo, biomédico pela UnB;
M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. É colaborador de
Via
Fanzine.
Seu e-mail é
roberiosulz@uol.com.br.
- Imagem:
Divulgação.
Produção: Pepe
Chaves.
* * *
Rio Grande do Sul:
Taiã
Ao cair das tardes, voltou a dedilhar com prazer e sentimento sua viola.
Imortais canções
faziam-no soltar voz apaixonada. Fosse no alpendre de sua casa ou no
Centro de Tradições
Gaúchas - CTG Saudades da Querência - junto a seus conterrâneos e
parceiros de alegria.
Por Roberio Sulz*
De
Alcobaça-BA
Para
Via
Fanzine
24/03/2016
Capitalizado e experiente na produção rural, não tardou a verter alegres
lágrimas
ao contemplar seus quase infinitos verdejantes campos de soja.
Leia também:
Últimos destaques de Via Fanzine
Gaúcho de Santo Ângelo/RS, filho de imigrantes italianos, Pietro Sertori
tornara-se famoso por alcançar – ano após ano - invejáveis índices de
produtividade em suas lavouras de trigo e soja. Herdara do pai não
apenas a propriedade rural, mas também extraordinárias força, dedicação
e vontade para pegar no pesado. Os dois filhos, Tarso, já adulto e
Genaro, quase adulto, seguiam o bravo exemplo do pai.
Notícias de terras baratas e sucesso de conterrâneos migrados para Mato
Grosso e Rondônia nunca lhe entusiasmaram. Contudo, o falecimento
repentino de sua amada esposa causara-lhe profunda tristeza. Batera-lhe
vontade de mudar. Deixar para trás tormentas de lembranças e saudade.
Vontade de buscar novo futuro. Assim, não resistiu à excelente oferta de
negócio com suas terras gaúchas.
A exemplo de seus bem sucedidos conterrâneos, adquiriu vasta gleba de
terras no município de Poconé/MT. Assentou-se por lá, na zona rural, com
seus filhos.
Capitalizado e experiente na produção rural, não tardou a verter alegres
lágrimas ao contemplar seus quase infinitos verdejantes campos de soja.
Plantados sob moderna tecnologia, com implementos agrícolas de última
geração, sementes melhoradas, vigilante controle de pragas e ervas
invasoras.
Ao cair das tardes, voltou a dedilhar com prazer e sentimento sua viola.
Imortais canções faziam-no soltar voz apaixonada. Fosse no alpendre de
sua casa ou no Centro de Tradições Gaúchas - CTG Saudades da Querência -
junto a seus conterrâneos e parceiros de alegria. Dava gosto vê-lo
interpretando a música “Índia”. Era como se estivesse acariciando a
personagem, criada pelos paraguaios Asunción Flor e Ortiz Guerrero e
introduzida em nossos corações pelos versos de Zé Fortuna. Tamanho
sentimento terminou mexendo com o coração de Taiã. Jovem índia –
originária da tradicional tribo dos Beripoconés - cuja figura, sem
favor, dava forma e vida à canção.
De olho um no outro, Pietro e Taiã passaram a frequentar quase que todas
as tardes o CTG e atrair mais presenças. Ele com sua voz e viola, ela
com seus deliciosos caldos: verde, de feijão, de mocotó, de galinha
caipira e outros.
Pouco demorou para também compartilharem, as mesmas cuia e bomba de
chimarrão. Chegou a namoro sério, desaprovado pelos filhos, ainda
saudosos da mãe. Argumentavam também a larga diferença de idade do pai
para a namorada. Para completar, Tarso e Genaro preocupavam-se com o
fato de Taiã ter corneado e magoado Bagão ao trocá-lo pelo plantador de
soja. Bagão era jovem, de pouca alegria, nada simpático, vaqueiro do
Major Gurgel, criador de Nelore, em Poconé, vindo de Tocantins.
Como ninguém segura fogo de morro acima nem água de morro abaixo,
terminaram juntando as panelas e compartilhando o mesmo teto. Fato que
potenciou a irritação – ódio mesmo – do mal encarado vaqueiro.
Taiã – feliz da vida – sentia-se em casa. Curtia seu cotidiano entre a
implantação de jardim e pomar ao redor da casa e os afazeres domésticos,
com ajuda de cozinheira e lavadeira. Os caldos passaram a ser servidos
costumeiramente para a família e, ocasionalmente, para visitas.
A vida social da família girava em torno do tradicional churrasco de
fogo de chão, feito num domingo do mês, na fazenda, com a presença de
amigos. Além disso, atendiam-se a convites de amigos e eventualmente
marcava-se presença no CTG nas ocasiões de festas e reuniões sociais.
Para maior desgosto de Bagão, Tarso passou a namorar Gracinha, filha do
Major Gurgel. Uma bonequinha aos seus 18 anos. Genaro não tinha namorada
fixa. Flertava e “ficava” com umas e outras jovens prendas, colegas do
grupo de danças tradicionais gaúchas. Bagão, também dançarino do grupo,
nunca se sentira tão escanteado como então, pelo brilho social dos
recém-chegados Sertori.
Voltando da festa de São Benedito – lá comemorada junto com os santos
juninos, ao invés de 5 de outubro, dia oficial do Santo – Tarso foi
assaltado na estrada deserta para a fazenda do Major Gurgel. Amarrado na
carroceria de sua camionete e Gracinha estuprada. Já liberto das
amarras, Tarso comunicou o fato ao pai, a seu irmão e ao Major Gurgel.
Logo acionaram a polícia local, mas nada encontraram no breu da noite.
Nem uma perícia mais meticulosa no local do crime, dia seguinte,
evidenciara qualquer pista do criminoso.
No auge da ira, o Major menosprezou a delegada local e incumbiu Bagão,
seu homem de confiança, a missão de descobrir o criminoso, prendê-lo e,
se oferecesse resistência, apagá-lo definitivamente.
Bagão aproveitou a oportunidade para apontar seu nariz no rumo dos
Sertori, especialmente para o jovem Tarso que acompanhava Gracinha
naquela noite.
O Major dava força a essa suspeita. Invejoso, nunca festejou a chegada,
tampouco o sucesso dos Sertori no agronegócio. O namoro de Gracinha com
um Sertori fazia-o morder a língua de ódio.
Pietro, homem pacífico, evitava confrontos e arrelias. Sua verve
artística fazia-o destacado astro local, sempre convidado a cantar,
recitar poesias, contar causos e dedilhar sua viola. Em pouco tempo
angariou a simpatia de quase todos os poconenses. Não gostou da
acusação contra seu filho, feita por Bagão, endossada pelo Major.
Procurou a delegada de polícia local, Dra. Cenira, esposa do Promotor
Teófilo Novaes, para expressar desagrado e pedir que a investigação
sobre o estupro de Gracinha fosse conduzida sob o rigor da lei e não sob
o calor emocional do Major. Muito menos com a participação de Bagão,
incompetente para esse serviço e declarado adversário dos Sertori.
Os dois depoimentos inicialmente tomados foram os de Gracinha e Tarso,
vítimas do ocorrido. Ambos declararam não ter a menor ideia de quem
teria sido o autor. Mas, ao detalhar o episódio, Gracinha disse ter sido
amordaçada com algo que lhe parecia ser uma camiseta de malha suada. A
delegada indagou se o cheiro do suor lhe parecia familiar. Ela respondeu
negativamente. Indagou aos dois, se estariam dispostos a fazer um teste
de comparação entre o odor percebido no ato criminoso e roupa suada de
algum suspeito.
Tarso respondeu ser possível, desde que se livrasse do resfriado que
pegara, por ficar desnudo naquela noite.
- Como assim, senhor Tarso, se o objetivo do estuprador parecia ser
imobilizá-lo para não intervir no crime? Indagou a delegada.
- Talvez para imputar-me a autoria, respondeu Tarso.
O depoimento de Bagão foi adiado duas vezes a pedido do próprio,
alegando razões pessoais. Nesse ínterim, Bagão preocupou-se
excessivamente em lavar e relavar suas roupas, usando inclusive
aromatizantes. Dra. Cenira soubera disso e incluíra a informação no
corpo do inquérito. Para evitar atrito com o Major, dispensou
temporariamente uma recomendável busca e apreensão nos aposentos de
Bagão, na casa do Major. Tentou, por outro lado, recolher vestimentas
artísticas por ele usadas no CTG. Debalde. Bagão já as havia removido
para lavagem. Se faltavam-lhe provas sobre a autoria do crime, sobravam
suspeitas direcionadas a Bagão.
A “boca miúda”, indagou a pessoas confiáveis sobre quem haveria de ter
uma roupa usada de Bagão, de preferência, não lavada. A conversa chegou
ao ouvido de Taiã, durante o almoço. Ela disse saber de uma amiga que
certamente ainda guardava camiseta e cueca de Bagão, provavelmente ainda
sem lavar. Tentaria alcançar essas peças e entregá-las a Pietro, para
fazê-las chegar às mãos da delegada. E assim procedeu. Pediu a Pietro,
contudo, excluí-la da obrigação de revelar o nome de quem lhe entregara
aquela roupa. O absoluto anonimato fora a condição imposta.
Gracinha e Tarso, convocados para reconhecer o cheiro da roupa, foram
taxativos ao informar que correspondia perfeitamente ao cheiro do
agressor.
Dra. Cenira, enfim, tomou o depoimento de Bagão. Não sem convidar
formalmente a presença do promotor Teófilo Novaes e mais dois cidadãos
comuns, escolhidos ao acaso na comunidade.
Durante a oitiva, Bagão, apesar de instruído e assistido por famoso
advogado criminalista local, patrocinado pelo Major Gurgel, mostrou-se
extremamente nervoso e vacilante em muitas respostas. Sobre o que fazia
e onde se encontrava na hora do estupro, apresentou - claramente
hesitante - três versões inconsistentes e contraditórias, com álibis
inverossímeis.
Bagão foi surpreendido e amarelou quando lhe foram exibidas a camiseta e
a cueca, juntadas anonimamente, ao inquérito. Indagado se seriam suas
aquelas vestimentas, negou de imediato. Mas a delegada chegou ao limite
da audácia. À vista de todos, cheirou a roupa e conferiu de perto ser o
mesmo odor que Bagão exalava no ambiente. Quase todos presentes
terminaram fazendo a mesma conferência e chegando à mesma conclusão:
havia forte identidade entre os cheiros do depoente e das peças de
vestuário ali apresentadas.
A oitiva foi concluída com a seguinte indagação, pela delegada:
- Senhor Alírio Braga (Bagão), foi o senhor quem estuprou Maria das
Graças Rangel, na noite de 5 de outubro e imobilizou Tarso Sertori, na
estrada de acesso à fazenda do Major Gurgel?
- Não! Respondeu secamente Bagão.
Ainda assim, a delegada pediu formalmente, através do promotor, a
detenção preventiva de Bagão, em razão da forte suspeição de ter sido
ele o autor do crime investigado. O advogado de defesa do suspeito –
acanhado - retirou-se do ambiente, informando que daria ciência ao Major
Gurgel sobre o conteúdo da oitiva e das fortes evidências de culpa de
Bagão. Aproveitava até para pedir desculpas em nome de seu patrono na
causa.
Abandonado atrás das grades, Bagão decidiu confessar o crime, mas pediu
para acrescentar detalhes. Primeiro, a infidelidade de Taiã, que –
tempos atrás - lhe pedira uma cueca suada para lhe servir de consolo nas
horas de saudades. Segundo, que, naquela noite, estuprara não apenas
Gracinha, mas, também, Tarso. E que este, a partir de então, passara a
lhe dispensar tratamento especial e atencioso, oferecendo-lhe
graciosamente mimos e presentes. Sempre rejeitados. Tarso segredara,
ainda, a Bagão, trazer guardado secretamente sob seu colchão, a camiseta
usada na ocasião para amordaçar Gracinha, como lembrança.
* Roberio Sulz é professor universitário; Biólogo, biomédico pela UnB;
M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. É colaborador de
Via
Fanzine.
Seu e-mail é
roberiosulz@uol.com.br.
- Imagem:
Divulgação.
Produção: Pepe
Chaves.
* *
*
No Pará:
O patuá
Um dia, terminado o comércio a bordo do navio de passageiros, retornaram
ao barco.
Surpreenderam-se
com a presença de uma moça bonita, atraente,
de cabelos negros compridos, a examinar as mercadorias.
Por Roberio Sulz*
De
Alcobaça-BA
Para
Via
Fanzine
22/02/2016
Por mais de ano, sempre ao navegar, via-se acompanhado daquele boto
carregando seu patuá.
Leia também:
Últimos destaques de Via Fanzine
Alfredo, extensionista, trabalhando junto a comunidades ribeirinhas do
Amazonas, acumulou muita história para contar. Não me saem da memória
seus interessantes causos d’água.
Falou-me de Vitório, cidadão tipo indígena, cabelos negros lisos quase
nos ombros, pele amorenada. Habilidoso nadador e navegador que vagueava
pelas comunidades ribeirinhas a vender mercadorias não perecíveis:
roupa, rádio, lanterna, sabonete, panelas, fogareiro, facão, enxada etc.
Fazia-se acompanhar sempre por Mugue, índio robusto, esperto conhecedor
das águas e treitas amazônicas. Era seu fiel navegador-ajudante. O
barco, bem modesto para o serviço de loja ambulante, bastava também aos
dois como dormitório. Mesmo quando atracado ou ancorado.
Como o
dinheiro em moeda corrente de sua clientela era escasso, praticava o
escambo. Recebia em pagamento produtos artesanais: peneiras, cestas,
arcos, flechas, cocares, colares feitos com contas e sementes, guaraná
em “pau” e ralado, castanha-do-pará, tucumã etc. Também produtos tidos
como medicinais: mirantã, miraruíra, carapanaúba etc. Vendia essas
coisas no porto de Manaus para negociantes de bugigangas artesanais e
nos barcos de passageiros em trânsito pelo rio Amazonas. Neste caso,
pedia permissão ao comandante do navio e atracava seu barco. Acompanhado
de Mugue subia a bordo, oferecia sua mercadoria e convidava os
interessados a conhecer sua tosca loja flutuante.
Um dia,
terminado o comércio a bordo do navio de passageiros, retornaram ao
barco. Surpreenderam-se com a presença de uma moça bonita, atraente, de
cabelos negros compridos, a examinar as mercadorias. Não a tinham visto
no navio, tampouco quando descera até o barco. Indagou e observou:
- O que
deseja, senhora? Vou desatracar. Não há mais tempo para compras! Já
comuniquei ao comandante do navio o procedimento de desatracar. Retorne,
por favor!
- Não
se preocupe comigo. Desatraque! Ficarei com você, enquanto permitir.
Vitório
nada entendeu dessa afirmação. Ainda confuso, decidiu apostar até onde
essa história ia chegar. Desatracou, recostou-se na proa em sua cadeira
preguiçosa, bebeu água fria da moringa e, para relaxar, sorveu uma
caneca de cauim com açaí. A moça não parava de examinar os adereços
pendurados em finas cordas coloridas de tucum. Escolheu um patuá
trabalhado em casca de castanha e pendurou no pescoço. Era o que Vitório
usava há anos e não estava à venda. Mas, não se importou em deixá-lo
enfeitar aquele lindo colo moreno.
Vitório
não se dobrava para qualquer mulher. Colocava sua independência
sentimental acima de qualquer tentação. Em Manaus, tinha um par de
namoradinhas fixas, mas, sem compromisso. Porém, neste caso, a cada vez
que mirava a moça, sentia-se fortemente atraído. Parecia um feitiço.
Inebriava-se com seu diferente e acentuado perfume de ervas silvestres.
Nem mais olhava para os lados. Tinha a vista fixa na apaixonante
estrangeira que lhe caíra a bordo como presente.
Ergueu-se lentamente. Em passos mansos, como um felino, caminhou na
direção da moça. Ela o recebeu com braços abertos e corpo morno.
Abraçaram-se, acariciaram-se, beijaram-se e, por fim, mantiveram-se em
colóquio de amor, por horas. Foram interrompidos pelo índio Mugue que
lembrava estar o dia terminando, a escuridão chegando e a necessidade de
achar uma enseada para ancoragem. Providenciariam também algo para
comer, geralmente peixe ou caça que traziam já cortados e armazenados no
freezer do barco.
Mugue
sabia da preferência de Vitório, que terminou sendo compartilhada pelos
três: peixe cru, cortado em tiras e temperado com sal, limão e folhas
aromáticas amazônicas. Beberam, em cuia comum, cauim com açaí.
Vitório
e sua hóspede decidiram dormir em redes próximas armadas em mastros da
proa. Mugue buscou seu aposento de sempre na cabine. Embora fosse hábito
dos navegadores dormirem despidos, naquela noite falou mais alto o
respeito. Vestiram-se com sungas. Aplicaram-se repelentes à base de óleo
de peixe. A visitante rejeitou o repelente, embora a nuvem de carapanãs
fosse ameaçadora.
Antes
do sono chegar, Vitório ainda cantarolou Carimbós e outras músicas
típicas da região.
Pela
madrugada, bateu suave e agradável brisa. Vitório acordou e jogou seu
braço sobre a rede da visitante. Surpreendera-se com sua ausência.
Levantou-se e a procurou por toda a embarcação. Nada.
Cabisbaixo, sem ter ideia do que acontecera, resignou-se. Tomou guaraná
ralado na língua do pirarucu e ordenou zarpar. Enquanto singravam águas
amazônicas rio acima percebeu um boto cinza brilhante a nadar quase
colado a seu barco. Fazia coreografias. Não tardou a notar no pescoço do
boto, seu patuá, aquele levado pela visitante.
Por
mais de ano, sempre ao navegar, via-se acompanhado daquele boto
carregando seu patuá. Falava com ele, cantava, dava-lhe peixe cru, batia
palmas e assobiava para suas piruetas e saltos à flor da água.
Certa
manhã, ancorado naquela mesma enseada em que perdera sua inesquecível
visitante, caiu em tristeza ao ver o boto boiando ao lado do barco.
Desceu a água, notou ter sido abatido com tiros. Fez-lhe carinhos,
chorou e levou-o para ser enterrado na margem. Voltou a bordo e viu
sobre sua cadeira de descanso, o patuá.
* Roberio Sulz é professor universitário; Biólogo, biomédico pela UnB;
M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. É colaborador de
Via
Fanzine.
Seu e-mail é
roberiosulz@uol.com.br.
- Imagem:
Divulgação.
Produção: Pepe
Chaves.
* * *
História de viagem:
Loreto
Ainda sob chuva forte, numa outra curva fechada quase paramos
para livrar-nos novamente dos fantasmas rodoviários, só vistos por ele.
Por Roberio Sulz*
De
Alcobaça-BA
Para
Via
Fanzine
21/11/2015
O
caminhoneiro não lhe parecia estranho, tampouco a cidadã que lhe fazia
companhia na cabine.
Lembravam gente conhecida de Arapiraca, mas, de antigamente.
Leia também:
Últimos destaques de Via Fanzine
Sentávamos – eu, Carlos Alberto, César e Loreto - à mesma mesa no
Restaurante Trapiche nos altos da Praia do Futuro, em Fortaleza/CE.
Fazíamos do jantar momento de descontração após um árduo dia reunidos
com dezenas de pesquisadores para avaliação de projetos de pesquisa
sobre fruticultura tropical. Loreto, pesquisador da Empresa de Pesquisa
Agropecuária de Alagoas, na área de citricultura, era conhecido não
apenas como bom e dedicado profissional, mas, também por contar causos
do sertão nordestino. Já havia escrito alguns folhetos de cordel.
Criativo, suas histórias sempre versavam sobre crimes, acidentes,
fantasmas e assombrações. Algumas vezes associando e interligando todos
esses elementos, para acentuar o arrepio do leitor.
Estávamos preparados – e até ansiosos – para ouvir mais uma inédita
arrepiante história da lavra de Loreto.
Contou-nos que, certa noite voltava a Maceió/AL, já cansado, de uma
viagem a Arapiraca - casa dos pais e sua terra natal. Pane em seu
automóvel, chuva pesada e lugar ermo, pedira e conseguira carona na
cabine de um caminhão de lenha, coisa que ninguém mais usava em seus
fogões. Pensava chegar a São Miguel dos Campos, uns trinta quilômetros
adiante, onde poderia contar com socorro mecânico – de um aparentado -
para resgatar o auto largado na estrada.
O caminhoneiro não lhe parecia estranho, tampouco a cidadã que lhe fazia
companhia na cabine. Lembravam gente conhecida de Arapiraca, mas, de
antigamente. Nada atrapalhava a acomodação dos três no banco inteiriço
do antigo Ford. Aparentemente, ainda muito eficiente em suas funções.
Por duas vezes, reduziu a velocidade à quase zero, sem o menor motivo.
Perguntei-lhe, curioso, a razão das freadas.
- É essa gente no meio da estrada. Querem que eu atropele um deles para
se vingarem com castigos.
- Não vejo nada, a não ser chuva - observei. Quem é essa gente?
- São almas dos que morreram em acidentes na rodovia. Ficam no meio da
estrada, nos lugares de maior ocorrência de acidentes. Se o motorista
passar em alta velocidade atinge-os e recebe, como revide, ofuscamento
da visão, sono, tontura e tudo mais que pode causar acidente. Mas, basta
passar por eles de farol alto e bem devagar, mostrando estar atento, que
nada acontece. Sei disso e fico velhaco para eles!
Ainda sob chuva forte, numa outra curva fechada quase paramos para
livrar-nos novamente dos fantasmas rodoviários, só vistos por ele.
Saltei em São Miguel, agradeci a carona e tratei de procurar meu parente
mecânico. O pedido de ajuda àquela hora da noite não foi bem recebido.
Nem atendido. Um dos argumentos foi a chuva grossa que caía e a estrada
cheia de curvas, com vasto histórico de acidentes fatais. Ofereceu-me
uma cama para pernoitar. Cama de capim, dura e sem travesseiro fez-me
passar a noite pensando em acordar. Ainda madrugada, clareando o dia,
embarcamos em sua Toyota de guincho. Na estrada registrou dois pontos de
alta frequência de acidentes. Eram os mesmos onde percebi a redução de
velocidade pelo caminhoneiro da véspera.
Meu carro teve que ser guinchado até a oficina. Lá recebeu conserto em
duas horas o que me permitiu prosseguir viagem até Maceió. Foi aí que me
dei conta de ter esquecido no banco do caminhão de lenha, uma pequena
carteira com os documentos de meu carro.
Em 30 de outubro, festa de aniversário da cidade - passado um mês –
voltei a Arapiraca. Sem muito assunto, contei a meu pai sobre o que me
ocorrera na última viagem. Inclusive, sobre os cuidados para não
atropelar fantasmas de acidentados. Falei, também, que o motorista do
caminhão parecia gente conhecida de Arapiraca. Tinha até cheiro de
tabaco curtido. Acrescentei outros detalhes de sua aparência, do
caminhão e de sua companheira de viagem.
Pai não costuma ligar para minhas histórias de crimes e fantasmas. Mas,
naquela oportunidade, ouvia-me com incrível atenção. Talvez, por se
tratar de personagem da cidade, onde quase todos se conheciam.
Falou-me: - Pelo que você contou, tudo indica que é gente de Pedro
Lontra. Porém, ele não teve filho homem, ele só deixou uma filha,
Mariinha, que mora na casa herdada dos pais. O fato é que ele e sua
esposa Gessy morreram, há mais de 20 anos, num acidente em que seu
caminhão de lenha bateu de frente com uma carreta de cimento, nessa
estrada para São Miguel. Os dois morreram na hora. Pode ser que tenha
irmão, fora do casamento, parecido com ele. Se você estiver interessado,
vá lá indagar a Mariinha.
Fui ao endereço indicado. Bairro pobre, rua não pavimentada. Na frente
da casa repousava a sucata do caminhão acidentado. Enferrujado, faltando
rodas e vidros, mas, muito parecido com aquele Ford que me dera carona.
Impressionado, só cumprimentei Mariinha, sem tirar o olho do caminhão.
Perdi a fala. Fui conferir detalhes do interior da cabine para me
certificar se seria aquele o mesmo caminhão. No banco estava - como que
à mostra – a carteira com os documentos de meu carro. Peguei-a e
afastei-me dali sem dizer palavra. De pernas bambas e vistas embaçadas.
* Roberio Sulz é professor universitário; Biólogo, biomédico pela UnB;
M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. É colaborador de
Via
Fanzine.
Seu e-mail é
roberiosulz@uol.com.br.
- Imagem:
Divulgação.
Produção: Pepe
Chaves.
* * *
Unha e carne:
Choca e Capi
Os mais velhos diziam que nasceram fêmeas por erro.
Se viessem ao mundo como meninos seriam mais bem compreendidas.
Por Roberio Sulz*
De
Alcobaça-BA
Para
Via
Fanzine
08/11/2015
No cinema e em qualquer circo que fosse montado em Oliveira,
Choca e Capi conseguiam burlar os seguranças e não pagar ingresso.
Leia também:
Últimos destaques de Via Fanzine
Dupla que se tornou inesquecível para quem viveu infância e adolescência
em Oliveira/MG, na segunda metade da década de 50. Os mais velhos diziam
que nasceram fêmeas por erro. Se viessem ao mundo como meninos seriam
mais bem compreendidas.
O fato de andarem sempre juntas não impedia que, de vez em quando, uma
estranhasse a outra. Conta-se que as duas trocaram cusparadas na cara,
mas nunca chegaram à agressão física. O quebra-pau e o rola-na-poeira
ficavam reservados para confrontos com os outros, sem distinção de
gênero. Não enjeitavam a briga com socos, pontapés, puxões de cabelo,
mordidas, dedo no olho e tudo mais. Podia vir um, dois ou turminha.
Choca e Capi não se acovardavam.
As brigas geralmente começavam quando chamavam a dupla de “marideiras”,
insinuando ser uma “marida” da outra. Ou, ainda, fofoqueiras, línguas
compridas etc. Outro ponto fraco era acusá-las de ladras de quintal
alheio. Isso porque foram flagradas furtando laranjas no sítio de seu
Olegário. E por aí.
Choca morava na Rua Coronel João Alves, em frente a uma casa de cata e
seleção de cafés. Capi morava nas proximidades do Colégio Estadual, na
Rua Chiquinho Campos.
Meninas mal afamadas na cidade! Até padre Rolim, em suas homilias
dominicais, falava delas, como exemplo de crianças malcriadas. Um dia
exacerbou em sua peroração e as chamou de endiabradas. Para quê! Domingo
seguinte, fizeram pipocar meia dúzia de bombinhas em pleno transcurso da
missa. O pai de Choca e a mãe (viúva) de Capi foram chamados às falas na
igreja. Isso só piorou as relações entre a dupla e o vigário.
Certo domingo, na missa das dez, na Igreja Matriz de Nossa Senhora de
Oliveira, padre Rolim conduzia a celebração, no formato tridentino, – em
latim e de costas para os fiéis – mirando apenas o altar. À direita do
altar, uma grande janela, aberta para ventilação, dava vista para o
pomar da casa paroquial. Estava prestes ao momento da consagração. Todos
os presentes silenciosos e contritos. Pela janela, viu Capi, escalando
seu mamoeiro, pisada no ombro de Choca. Pronta para surrupiar um belo
mamão já amarelo, no ponto de colheita. Era a fruta reservada por Padre
Rolim para seu desjejum, naquele domingo, após a missa. Não se aguentou,
projetou-se na janela e bradou um monte de palavrão para as ousadas
invasoras.
Voltou-se para a assembléia de fiéis, pediu desculpas e, com
dificuldades, prosseguiu o ofício. As meninas também só deram um tempo.
Assim que o padre virou as costas, colheram o mamão. Padre Rolim não se
conteve à ira. Pegou o bambu de acender e apagar as velas altas e saiu
com estola e tudo a fim de aplicar uma surra de vara nas molecas.
Debalde, a dupla já pulara o muro, carregando o mamão como troféu e às
gargalhadas.
Nunca mais o vigário incluiu Choca nem Capi em seus sermões.
Apesar de colecionar mais desafetos que amigos, havia quem gostasse da
dupla. A maioria – claro - torcia por seus infortúnios. Um declarado
desafeto (inimigo, na verdade) dessas meninas era Tatão, colega de
classe das duas, no Colégio Estadual. Tatão, um par de anos mais velho,
fazia o tipo alto e musculoso. Aceitava e levava adiante o confronto com
elas. E mais: sempre que podia, armava alguma contra elas e desmanchava
outras. Não perdia a oportunidade de, disfarçadamente na multidão, lhes
aplicar solenes cascudos, principalmente em Choca, a quem preferia
endereçar sua ojeriza. Recebia algumas pedradas – à traição - como
resposta.
No cinema e em qualquer circo que fosse montado em Oliveira, Choca e
Capi conseguiam burlar os seguranças e não pagar ingresso. Entravam por
debaixo da lona, no vácuo dos artistas, do pessoal de apoio etc.
Foi numa matinê dominical do Circo Garcia, que Tatão viu as duas
aboletadas, como princesas, num camarote, bem defronte ao picadeiro.
Tomou a oportunidade para vingar-se de uma pedrada na cabeça, ainda por
cicatrizar, recebida da dupla. Dedurou Choca e Capi aos seguranças (na
época, chamávamos essa gente de “mata-cachorro”) do circo. A dupla foi
vergonhosamente colocada para fora, aos puxões de orelhas e gemidos de
ai- ai-ai e ui-ui-ui.
Não ficou barato para o circo. Numa lotada sessão noturna de sábado, as
duas estavam lá. Era a apresentação do número dos cavalos árabes
adestrados. Cinco belos equinos rodopiando no picadeiro, sob o comando
de uma reluzente domadora que exibia difíceis acrobacias no lombo dos
animais em movimento. Holofotes concentrados no espetáculo. Choca e
Capi aproveitaram a penumbra na platéia. Aproximaram-se do picadeiro e
lá soltaram dois maços de bombinhas das mais fortes.
Para não falar da queda hilariante da domadora, foi cavalo para todo
lado. Animais defecando e urinando sobre circunspectos senhores de
gravata e madames em vestido comprido. Pavor geral. Mas, tirando alguns
arranhões e muita roupa borrada, nada de mais grave ocorreu, a não ser
pela transferência do espetáculo para o dia seguinte, com entrada franca
a todos.
Esclareça-se, por oportuno, que elas sabiam como juntar os pavios para
fazer explodir várias bombas ao mesmo tempo.
* Roberio Sulz é professor universitário; Biólogo, biomédico pela UnB;
M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. É colaborador de
Via
Fanzine.
Seu e-mail é
roberiosulz@uol.com.br.
- Imagem:
Divulgação.
Produção: Pepe
Chaves.
* * *
Uma paixão:
O Baixinho em Barbacena
Solteiro, namorador, Baixinho interessou-se por tudo naquele pedaço de
mulher.
Não tardou a colar um animado papo, cheio de anedotas, gracejos e
galanteios.
Por
Roberio Sulz*
De
Alcobaça-BA
Para
Via
Fanzine
14/10/2015
Para não perder o compasso do entusiasmo e enraizar de vez o
relacionamento,
combinaram brincar juntos o carnaval em Barbacena, a ocorrer dali a três
semanas.
Leia também:
Últimos destaques de Via Fanzine
Sempre ouvi com alegria e prazer as aventuras vividas pelo Baixinho.
Convidava amigos para nossos divertidos encontros no Líbanus. O melhor
dos estabelecimentos de cozinha árabe de Brasília, para um agradável fim
de tarde. Naquela oportunidade juntaram-se a nós antigos colegas do
Minas e Energia, Antônio de Castro - o Nonô - e Zezé Mendes, constantes
parceiros do bom humor. Nonô. Mineiro de Carmo da Mata e Zezé de
Itapecerica.
Entre um trago e outro, Baixinho contou um episódio que vivenciara
poucos meses após sua chegada a Brasília. Era janeiro. Baixinho já se
enturmara com colegas de trabalho e fizera amizades com frequentadores
do Clube Unidade de Vizinhança da Asa Sul.
Domingo de verão ensolarado, levava um animado papo na beira da piscina,
com seu amigo Gileno, de Barbacena, quando lhe foi apresentada Laila.
Segundo Baixinho, melhor ocasião não há para se conhecer uma ninfa.
Despida de roupas maiores e de acanhamentos, faz-se plena mostra e
atração. Quando merece, então...! Esse era o caso da moça à sua frente.
Prima da esposa de Gileno, Laila também era novidade nas relações
familiares de seu amigo. Professora de Geografia em Barbacena passava
férias em Brasília, para conhecer e curtir a nova capital.
Solteiro, namorador, Baixinho interessou-se por tudo naquele pedaço de
mulher. Não tardou a colar um animado papo, cheio de anedotas, gracejos
e galanteios. Saíram dali namorados, já com encontro marcado para a
noite: ouvir e dançar boa música, no Brasília Palace Hotel. Deodato (Eumir,
o mesmo que viera a fazer sucesso mais tarde no exterior) e seu
conjunto, com Berré na bateria, ofereciam excelentes arranjos e
repertório de universal agrado.
Ao final da noite, o chamego já havia virado “namoro firme”, com juras,
compromissos de fidelidade e outros decorrentes da fogosa emoção.
Baixinho fazia esse tipo: derretia-se com uma nova namorada. Novo amor,
nova paixão. Tanto que o fez - ainda que temporariamente – esquecer a
namorada, Carol, deixada no Rio à espera de seu regresso. Os encontros
tornaram-se diários para aproveitar os poucos restantes dias de Laila em
Brasília.
Para não perder o compasso do entusiasmo e enraizar de vez o
relacionamento, combinaram brincar juntos o carnaval em Barbacena, a
ocorrer dali a três semanas. Ela passou-lhe o endereço na Rua Quinze de
Novembro, número tal, em continuidade à Praça dos Andradas, num casarão
assim, assim... Disse não possuir telefone.
Baixinho foi levá-la à rodoviária. Despedida cheia de amor e saudade
precoce. Até lágrimas rolaram. A partir daí, não mais se comunicaram.
Sexta-feira, véspera do Carnaval, Baixinho se mandou de carro rumo a
Barbacena. Saiu cedinho e chegou ao por do sol. Hospedou-se em hotel no
centro da cidade para facilitar-lhe os deslocamentos a pé. Após o banho
restaurador da viagem, perfumou-se e dirigiu-se ao endereço dado por
Laila. Era de fato um casarão, desses elevados a um metro do rés do
chão, com janelões ao estilo colonial. Não vendo campainha, estando com
a janela da frente aberta, foi de palmas mesmo. Nada! Ninguém a
responder. Mas, ouviu abafados sons de voz feminina, com jeito de
cochicho. Após a terceira tentativa, a janela fechou-se bruscamente. O
endereço conferia, bem como a descrição da casa. O que estaria
ocorrendo?
Procurou o “Restaurante Molho Carijó”, muito comentado por Laila, em
seus momentos de encanto. Dissera-lhe ser frequentadora assídua daquela
casa, onde se servia inimitável galinha ao molho pardo com angu ou
talharim. Embarcou na pedida do talharim. Como guia, tomou uma
cachacinha de fabricação local e bebeu cerveja. Comeu ambrosia de
sobremesa, sem tirar Laila da cabeça. Já passava das nove horas. Sozinho
na mesa, zuniam por sua mente dúvidas, hipóteses e mais hipóteses.
A título de puxar conversa com o garçom e colher informações, resolvera
identificar-se como brasiliense solitário, por aquelas plagas, a fim de
experimentava o tão falado carnaval de Barbacena. Completou, dizendo que
fora ao restaurante, sob indicação da professora Laila, sua amiga
barbacenense.
Jaime, decano garçom de cabelos grisalhos e extraordinária simpatia,
chegou ao papo, mordeu a isca e, de pronto, discorreu sobre Laila,
“filha de seu Porfírio Ladeira”:
- Moça de boa criação, fina educação e admirada pela tradicional
sociedade local. Ainda ontem esteve aqui com seu noivo, Capitão Novais,
professor da EPCAR - Escola Preparatória de Cadetes do Ar. Estão de
casamento marcado para maio ou junho. Promete ser uma festança, já muito
badalada pela sociedade. Professora Laila até encomendou o vestido de
noiva em Belo Horizonte. Os cadetes do ar vão prestar aos nubentes
formais honras militares, perfilados em corredor, empunhando espadas e
tudo mais.
Baixinho perdeu o chão. Que maluquice! Exclamava sem voz. Bateu vontade
de voltar a Brasília dia seguinte. Absorto, mandou suas decepções às
favas e deu um tapa no desgosto.
Decidira ficar em Barbacena para curtir o carnaval, famoso por seus
blocos e cordões a desfilar pelas ruas de calçamento em pedra cantando
marchinhas, marchas-rancho e sambas tradicionais.
Apesar da zoeira em sua cabeça, dormiu bem. Sábado, já quase admitia ter
virado a página de Laila. Conversando com uns e outros, soube de um
animado e tradicional baile de carnaval no Clube Barbacenense. Não
havendo mais mesas disponíveis, pagou ingresso individual e partiu para
a alegria “solo”, com se diz atualmente. Escondia-lhe o rosto uma
máscara de palhaço. Vestia um camisão folgado em tecido multicolorido
brilhoso. Levava consigo, nos bolsos laterais, duas grandes ampolas
metálicas douradas de lança-perfume.
Para animar-se, brindou a solidão com uma introdutória dose dupla de
White Horse. Sem conhecer uma só alma no salão, brincava sozinho. De vez
em quando elegia uma “gata” desacompanhada para borrifar-lhe
lança-perfume. Era ousadia, mas costume não repreensível na época. Lá
pela meia noite, borrifou pela enésima vez o cangote de uma moça
fantasiada de vedete do teatro rebolado, com reluzente máscara negra.
Ela recebia, acolhia e respondia, com assentimento, a ousadia do
Baixinho. Brincavam, cantavam e pulavam animadamente, sob o teto
multicolorido de serpentinas pingentes. O conjunto musical era dos
melhores da região. Os músicos revezavam-se para não parar a folia.
Pistões, trombones, sax, tarol, bateria, cantores e muito jogo de luz. O
repertório de excelente gosto. Variava entre músicas antigas e da época,
contemplava marchinhas, marchas-rancho, frevos, sambas de enredo etc. O
alto som, sacudindo de energia o salão, não permitia diálogo com mais de
duas palavras. Foi aí que buscaram um canto menos sonoro, mais restrito
e discreto para levar aquele papo. Os dois removeram as máscaras
simultaneamente. Era Carol, a namorada que Baixinho deixara a esperar
por seu retorno no Rio.
De imediato, a surpresa de ambos se confundia com o prazer da
providencial companhia. Claro que, em ambos veio na ponta da língua a
indagação: “você por aqui”? Por conta de quê? O “deixa pra lá”, porém,
superou as caraminholas de ambos. Resolveram dar asas à alegria até
madrugada avançada.
Domingo, pelas dez da manhã, aliviaram a ressaca na piscina do Olimpic
Club, tomando água tônica com suco de lima da pérsia. Ganhavam fôlego
para a segunda noitada. Desta feita, nas ruas, integrados aos blocos e
cordões.
Segunda feira, a pedido de Carol, foram almoçar no “Restaurante Molho
Carijó”, aquele da galinha ao molho pardo. Bebiam vinho. Proseavam de
mãozinhas entrelaçadas. Trocavam beijos e carícias como dois pombinhos
apaixonados, quando adentrou o ambiente Laila e seu noivo. Orientado
pelo conhecido garçom Jaime, dirigiram-se para ocupar a única mesa
disponível naquele momento: bem ao lado onde estavam Baixinho e Carol.
Laila empalideceu-se ao ver seu amor brasiliense nos braços de outra.
Por outro lado, a surpresa tirou Baixinho das nuvens. Estremeceu seu
humor. Mas, não lhe fez perder a fleuma, nem a sensatez.
Os quatro entreolhavam-se como patetas. Mudaram de cor: brancos, azuis,
vermelhos e amarelos. Até baba corria por cada canto de boca. O Capitão
e Carol não faziam a menor ideia do que se passava. Mas, sentiram o peso
da atmosfera constrangedora que preenchia o ambiente. Laila, pálida e
trêmula, agarrava-se cada vez mais fortemente ao braço do noivo. Talvez
para não desabar. Ainda assim, teve força para quebrar o silêncio.
Timidamente, dirigiu-se a Baixinho, apresentando-lhe o Capitão:
- Este é meu noivo!
Baixinho educadamente ergueu-se da cadeira e apertou a mão do Capitão.
Ato contínuo apresentou Carol, igualmente como sua “noiva”, que também
se levantou para trocar beijinhos com Laila.
Tirando o risco da perda de fome e má digestão, a “saia justa” parecia
temporariamente equacionada. Não totalmente, porque Jaime, o solicito e
educado garçom, se ofereceu para juntar as mesas e sugerir a duplicação
do pedido do Baixinho – já encaminhado - para servir a todos. Complicou
ainda mais quando agradeceu à professora Laila pela indicação do
estabelecimento ao visitante Brasiliense.
Com isso, o Capitão achou-se ainda mais perdido no enredo. Sentiu
coceira na testa e desistiu do almoço. Convocou sua consorte para o
abandono do local. Laila mal se sustentava em pé. Amigos da sociedade
presentes ao restaurante estranhavam os passos trôpegos da moça e
olhavam a cena, cheios de curiosidade.
Baixinho concluiu seu almoço fazendo-se de inocente e forçando-se
parecer alheio aos acontecimentos. Curtiu o resto do carnaval com Carol.
Férias de junho, Laila estava novamente em Brasília, aos beijos e
abraços com o Baixinho.
* Roberio Sulz é professor universitário; Biólogo, biomédico pela UnB;
M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. É colaborador de
Via
Fanzine.
Seu e-mail é
roberiosulz@uol.com.br.
- Imagem:
Divulgação.
Produção: Pepe
Chaves.
* * *
Convocação da Seleção:
Lordão
Nutria esperança em compor a equipe técnica da Seleção.
O Presidente da CBF abriu o evento falando o que Lordão queria ouvir.
Por
Roberio Sulz*
De
Alcobaça-BA
Para
Via
Fanzine
12/08/2015
Lordão era ímpar. Sem conhecimentos teóricos, inaugurara
um inédito estilo de arrumação, postura e estratégia de jogo.
Leia também:
Últimos destaques de Via Fanzine
Naquele domingo ensolarado, reunidos dirigentes de federações
futebolísticas, cartolas, treinadores, atletas, emissoras de rádio e
tevê, jornalistas nacionais e estrangeiros. Todos com elevado interesse
na pauta: Seleção Brasileira de Futebol, inovação no estilo de jogar,
convocação da equipe técnica treinadora e dos atletas para disputar a
próxima Copa do Mundo. Embora também mascarados como novidades,
uniforme, grifes patrocinadoras e contratos com a mídia para divulgação
e transmissão dos eventos etc., já estavam previamente acertados nos
bastidores.
Lordão presente. Nutria esperança em compor a equipe técnica da Seleção.
O Presidente da CBF abriu o evento falando o que Lordão queria ouvir.
Execrava os formatos estruturais e de jogo experimentados até aquela
data. Criticava as equipes dirigentes das últimas décadas. Não se
acanhava em debitar a vergonhosa imagem do futebol brasileiro aos
desacertos, à incompetência e à falta de criatividade para surpreender
adversários, jogadores e espectadores. “Tudo o mesmo conjunto vazio de
sempre”, resumia em alto tom de voz. Quebrar tabus e tradições era
claro o recado para corrigir equívocos e desacertos que permearam o
selecionado canarinho nos últimos tempos.
Mesmo passando um pouco da idade atlética desejável, Lordão ainda
conservava seu invejável porte troncudo, musculoso. Com altura de
jogador de basquete, assustava qualquer oponente numa briga de tapas.
Muito mais merecedor do apelido “Hulk” que outra peça que andou vestindo
a camisa da Seleção. Sobressaíra-se como zagueiro central, tipo “xerife
de área”. Daqueles beques em que atacante e bola não passam em sua área.
No máximo, só um deles.
Incrivelmente, quase não cometia falta. Comentaristas esportivos
explicavam que era mais por temor do adversário à ousadia de
enfrentá-lo. Excelente líder organizador da defesa e de armação do
ataque, ele sabia exatamente onde e como cada ator deveria estar na
jogada: zagueiros, alas e volantes. Impunha-se com destemido rigor.
Esbravejava, xingava e aplicava vigorosas broncas, muitas acompanhadas
de puxões de gola da camisa e, literalmente, de orelhas, quando a
pixotada e desatenção assim mereciam. Portava-se como rigoroso técnico –
em jogo - no interior das quatro linhas. Em favor da eficiência e
eficácia, não titubeava em contestar o técnico na beirada de campo.
Lordão era ímpar. Sem conhecimentos teóricos, inaugurara um inédito
estilo de arrumação, postura e estratégia de jogo. Aparentemente pautado
na retranca. Até o chamavam de “retranqueiro”. Injustiça! Seu estilo
estava mais para o de “defesa com armação dinâmica”. Pressentia e
calculava, com precisão magistral, o dinamismo do avanço adversário.
Orientava sua zaga a antecipar (não obrigatoriamente adiantar) e
combater em bloco, sem cochilo, nem erro de tempo. Antevia o tipo de
jogada em andamento pelo adversário e – aos gritos de arrumação - não
lhe dava chance de concretizar.
A reunião continuava com a fala contundente do novo presidente da CBF,
arrancando aplausos e “muito bem” dos presentes.
Apertado ao extremo pelo intestino, Lordão erguera-se para aplaudir o
discurso. Não se aguentou e soltou uma bufa (pum) presa de horas. Para
seu azar, veio junto um “tolete” de uns doze centímetros que lhe
escorreu calça abaixo. Usava cueca “samba-canção”. Para evitar vexame,
abaixou-se e pegou o troço ainda encapado pela umidade. Disfarçou e saiu
em busca de um vaso sanitário, uma lixeira, uma pia, um canto atrás da
porta, um...
Carregava o “produto” camufladamente na mão direita. Ao tentar sair do
auditório foi intimado, pelos seguranças, a mostrar o que conduzia, com
tanto zelo. Negou-se e preferiu reingressar no salão. Notou uma
providencial varanda, de onde poderia atirar a coisa fora. Era um salão
de jogos onde a garotada jogava ping-pong, dentre outras coisas. Sua
entrada na varanda coincidiu com uma bola vinda em sua direção. Embora
tenha desistido de pegá-la, seu gesto - a carregar algo na mão - dava a
impressão de um louco tentando apoderar-se disfarçadamente da bola
perdida.
Os demais presentes não entendiam o comportamento ameaçador dos garotos,
tampouco sua fuga com a mão encostada na barriga. Reingressou no
auditório, naquele momento sob silêncio atencioso às convocações. Foi
quando o Presidente da CBF anunciou a convocação de Lordão para compor a
equipe técnica da nova Seleção, como “Atleta Treinador Adjunto”. Todos
buscaram com a cabeça o novo convocado. Em pé, com a mão melada e mal
cheirosa, fugia agora desesperadamente dos cumprimentos. Conseguiu ver o
sanitário masculino na outra extremidade do salão.
Sem se importar com as considerações negativas que certamente viriam dos
presentes, principalmente dos críticos, fez do corredor do auditório uma
pista de atletismo e chegou ao banheiro. Atrás dele um ror de amigos,
admiradores e curiosos. Enclausurou-se num cubículo reservado. Desfez-se
do produto e aproveitou para largar outros no vaso. Limpou-se, inclusive
a mão. Aguardou até que dissipasse a multidão que parecia em seu aguardo
por ali.
Quando saiu, o auditório já estava vazio. Ficaram poucos amigos que lhe
deram a triste notícia anulatória de sua convocação, por manifesto
desinteresse do convocado.
* Roberio Sulz é professor universitário; Biólogo, biomédico pela UnB;
M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. É colaborador de
Via
Fanzine.
Seu e-mail é
roberiosulz@uol.com.br.
- Imagem:
Divulgação.
Produção: Pepe
Chaves.
* * *
Dupla única:
Durval e Dorival
Durval, amazonense escolado no Rio, frequentador inveterado do Jóquei.
Dorival, mineiro de Paracatu, fala mansa, chegado ao pão de queijo.
Por
Roberio Sulz*
De
Alcobaça-BA
Para
Via
Fanzine
1º/08/2015
Sentavam-se, cerveja ou uísque com gelo, e partiam para o costumeiro
diálogo
permeado de risos. Não contavam anedotas. Faziam caricatura de fatos
verídicos.
Leia também:
Últimos destaques de Via Fanzine
Quem conheceu a dupla Durval e Dorival em Brasília ri sozinho enquanto
curte a saudade. O exercício íntimo da lembrança dos dois juntos,
sentados à mesa na praça de alimentação do Conjunto Nacional Brasília,
traz de volta a nossos dias os aposentados DD’s e toda sua eterna graça.
Mergulhado nessa convivência virtual, perdendo o foco no horizonte, fica
impossível resistir a, pelo menos, um discreto e silencioso sorriso.
Durval, amazonense escolado no Rio, frequentador inveterado do Jóquei.
Mais tarde, tornara-se um afável e divertido brasiliense. Dorival,
mineiro de Paracatu, fala mansa, chegado ao pão de queijo. Não
dispensava, sempre que podia, uma turnê por Las Vegas e por outras
plagas onde rodasse roleta e deslizassem cartas no pano verde.
Com quase 80, foram-se, ambos, para o além, há mais de década e meia.
Primeiro um, depois o outro, a chamado.
Sentavam-se, cerveja ou uísque com gelo, e partiam para o costumeiro
diálogo permeado de risos. Não contavam anedotas. Faziam caricatura de
fatos verídicos, alguns recentes outros remotos. Por vezes, eram eles
próprios, os protagonistas dos casos. Dificilmente repetiam a mesma
história. Guardavam um inesgotável arquivo. Incrivelmente, Durval
conseguia rir, mesmo com sua cara sisuda. De vez em quando um levantava.
Era para ir ao banheiro ou para um breve alívio às nádegas já
descarnadas pelo tempo.
Por ali passavam e cumprimentavam conhecidos e amigos, sempre convidados
à conversa. Miguelzinho, da Câmara, era parceiro e vítima eventual. Ria,
sofria na língua dos dois, mas, divertia-se junto. Carlos Coé, vítima
preferencial da dupla, às vezes, aparecia. Não gostava da “zoada” feita
à custa de suas desventuras. Mas, dava motivo. Sua vida errática, as
tentativas de enganação a incautos – especialmente estrangeiros - e seus
entreveros com a sogra, causavam-lhe, vez por outra, hematomas e
engessamentos diversos, explorados à exaustão pela dupla.
Durval tinha uma casa em Caldas Novas/GO, para onde ia e acolhia amigos
durante feriados prolongados. Sua maior diversão era o cassino. Naquele
ambiente, todos se conheciam e festejavam o reencontro. “De perdição” -
como dizem uns e outros – ali, só o dinheiro das apostas. A atmosfera
respirada mais se assemelhava a clube de fraternidade.
Foi retornando de Caldas para Brasília que a dupla protagonizou um dos
mais divertidos de seus casos. No acostamento da estrada, costumavam
parar à sombra de um pequizeiro, alguns metros adiante da barraca de
Adelaide, baiana, sempre de branco, adornada com babados, colares e
pulseiras. Eram fregueses tão frequentes que a baiana já lhes devotava
afeto, perguntando nominalmente pelas esposas, parentes e amigos.
Compravam polvilho (goma) para Dorival fazer seu “legítimo” pão de
queijo. A tenda de Adelaide tinha cobertura simples, montada apenas nos
fins de semana. Lona de caminhão apoiada sobre varas. Ainda que
brevemente temporária, ostentava num banco de madeira elevado – tipo
altar - imagens de São Jorge, Preto Velho e Yemanjá, Odoyá. Numa dessas
paradas, Durval saltou sozinho para a compra. Adelaide estranhou e
perguntou pelo seu Dorival.
- Morreu, disse Durval. Foi pro outro mundo.
Adelaide se benzeu, quase às lagrimas, alisou a cabeça da imagem de São
Jorge, rezou baixinho, concluiu a venda e Durval seguiu viagem. Mentira
de Durval! Dorival, ressaqueado, aproveitava para dormir no banco
traseiro do carro.
Quinze dias depois, fazendo a mesma parada, geralmente domingo à tarde,
desceram ambos do carro, sem trocar conversa. Maria José, esposa de
Durval manteve-se, como de praxe, no banco dianteiro do carona.
Antes do pedido, Adelaide riu para Durval e disse com ar de alegria.
- O senhor mentiu para mim de brincadeira; seu Dorival não morreu!
Durval, de imediato, replicou:
- Como não?
- Olha ele aí! Ela apontava, com certa dúvida.
- Realmente você é espiritualista e tem grande mediunidade. Consegue ver
pessoa que já morreu? Fantástico! Eu não tenho esse dom.
Dorival percebeu a molecagem e passou a bancar o fantasma. Calado ficou.
Fixaram-se, um no outro, os olhares de Dorival e Adelaide. Inspirado no
filme “O Sexto Sentido”, Durval dava cores ao surrealismo da cena:
- Se a senhora pode ver o Dorival, diga àquele pilantra que ele morreu
me devendo vinte mil reais e a viúva dele não quer me pagar. E pior: ela
ainda teve a cachimônia de me pedir ajuda para custear o enterro.
Dorival gesticulava negativamente com o dedo, mas não falava nada.
Também não ria. Mantinha a conveniente postura de um morto ambulante.
Adelaide ainda argumentou gaguejando que Dorival saíra do carro de
Durval e deixara a porta traseira aberta. Durval olhou para o carro,
nada falou e fez as despedidas de praxe. Dorival discretamente entrou no
carro pela porta logo fechada por Durval. Deitou-se para não mais ser
percebido. Pelo retrovisor, dava para ver Adelaide irrequieta andando de
um lado para o outro, abraçada à imagem do Preto Velho e se benzendo
continuamente. Os dois, mais Maria José, divertiam-se às gargalhadas,
lembrando as expressões faciais de Adelaide.
* Roberio Sulz é professor universitário; Biólogo, biomédico pela UnB;
M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. É colaborador de
Via
Fanzine.
Seu e-mail é
roberiosulz@uol.com.br.
- Imagem:
Divulgação.
Produção: Pepe
Chaves.
* * *
Rio Grande do Sul:
No circo
Solteirão, novato na casa dos quarenta, todo poderoso da organização,
não se acanhava em fazer corte para as damas da trupe, mesmo as casadas.
Por
Roberio Sulz*
De
Alcobaça-BA
Para
Via
Fanzine
21/07/2015
O “numero” das facas contemplava surpreendente final.
Leia também:
Últimos destaques de Via Fanzine
O Circo Internacional Cruzeiro do Sul fazia sucesso e amealhava gordas
bilheterias por onde passava. Seu fundador, nascido em Cruzeiro do
Sul/RS, mudou-se para a vizinha cidade de Lajeado, ainda criança. Filho
único, órfão de pai, garimpava trocados pelas ruas fazendo piruetas e
andando em pernas de pau. Circense por vocação, não perdia um só circo
plantado em Lajeado. Oferecia-se para prestar serviço em troca de ser
aproveitado, nem que fosse como coadjuvante ou apoio. Apesar de
talentoso, nunca conseguiu ser incluído definitivamente nas trupes.
Nas ruas, imitava o Chacrinha da TV. Microfone no pescoço e buzina
“fon-fon” na mão, repetia com sotaque e trejeitos repisados jargões:
“alô dona Margarida, como vai a sua vida...” Assim, se tornou localmente
conhecido como O Palhaço Fonfon.
Pequena propriedade herdada de seu pai, em Cruzeiro do Sul - outrora sem
valor - ganhou repentinamente bom preço, por conta da acelerada expansão
urbana. Já sem sua mãe, fez um bom negócio, conseguindo recursos
suficientes para comprar o que sobrara de um falido circo mambembe
regional.
Reciclou a trupe, contratou novos artistas, adquiriu nova lona,
geradores de energia e outros equipamentos. Arranjou até crédito
bancário para novos investimentos. Sob o regime de parceria societária,
atraiu bons artistas, dentre eles os “Irmãos Alvarez”, invejáveis
trapezistas guatemaltecos.
Fonfon era do tipo concentrador. Aceitava sugestões, mas não cedia
espaço na produção, tampouco na direção do espetáculo.
Solteirão, novato na casa dos quarenta, todo poderoso da organização,
não se acanhava em fazer corte para as damas da trupe, mesmo as casadas.
Suas tentativas em namorar a trapezista Isabelita foram desastrosas.
Flagrado ao tentar espiá-la na intimidade pelo buraco da fechadura, por
pouco não perde seu grupo guatemalteco. O ambiente na companhia ficou
turvo por semanas, até a morte de Isabelita num trágico acidente. Num
salto triplo, o trapezista aparador – seu tio – falhara fatalmente ao
tentar segurá-la. A rede de proteção maltensionada não amenizou o forte
impacto de cabeça no solo.
Lavada a tristeza do luto, Fonfon passou a assediar a jovem equilibrista
Dolores, filha e partner do pirófago e atirador de facas paraguaio
Garcez. A moça não conseguia esconder seu incômodo em dividir o mesmo
trailer com seu pai. Homem avesso ao banho, com insuportáveis odores de
querosene, mau hálito e temperamento. Embriagava-se com frequência. Isso
agravava uma já encardida antipatia entre Fonfon e Garcez. Fonfon não
despachava Garcez da companhia para não perder Dolores, seu xodó no
elenco.
Certa madrugada Dolores abandou seu trailer aos prantos. Foi acolhida
por Fonfon em seus aposentos.
A pedido, foi excluída de participação no “número” das facas. Com o
recrutamento e treinamento de uma nova partner e compromisso de Garcez
em abster-se do álcool, essa apresentação voltou a compor o espetáculo.
O “numero” das facas contemplava surpreendente final. A partner era
vestida em macacão inteiriço até a cabeça, amarrada contra uma roda
giratória de madeira. Sob movimento, Garcez atirava-lhe afiadas
machadinhas ao redor do corpo. A última machadinha, fingindo erro de
pontaria, era propositadamente direcionada ao centro da cabeça. Um grito
soava no sombrio ambiente. Líquido vermelho completava a simulação de
acidente fatal. Claro, tudo combinado e ensaiado. O macacão com gola
larga permitia à partner recolher a cabeça para baixo, de modo que a
machadinha na verdade atingia uma caixa vazia. A partner libertava-se
das amarras e do macacão, exibia-se bela, íntegra e fagueira. Dolores
conhecia bem esse papel, após centenas de apresentação.
Se infeliz com seu pai, pior com o patrão. Assim, lamentava Dolores às
colegas da trupe. Detalhando nojentos hábitos de seu companheiro,
confidenciava não mais suportar aquela convivência. Algo lhe assombrou
certa noite a ponto de buscar refúgio junto às trapezistas. Deixou claro
seu desejo de voltar à apresentação das facas com Garcez, desagradando
profundamente sua suplente que já se julgava inabalável titular.
A estreia em Caxias do Sul foi aberta com muito luxo e cores.
“Respeitável público...” Desfile de atores, figurino de bom gosto,
música e tudo para invocar alegria.
Na apresentação das facas - uma das últimas - Dolores, sorridente,
retomava seu posto. Bem maquiada, vestindo maiô azul, luvas prateadas e
sapatos de salto cravejados de strass. Tudo novinho e com muito brilho.
Apresentação impecável. No quadro final, iluminação em penumbra, como
programado, Dolores já aparece no macacão amarrada ao tablado redondo.
Os giros começam bem como os lançamentos de machadinha. O último
lançamento – como previsto - cravado na cabeça, assim como fora
ensaiado. Contudo, Dolores é libertada da vestimenta, desfalecida,
ensangüentada e nos últimos suspiros.
Peritos apuraram que a gola por onde a atriz recolheria a cabeça estava
estreitada, impedindo o procedimento de esquiva. Não se tratava de
acidente, mas de crime. As investigações, estendidas ao acidente
anterior com a trapezista Isabelita, mostraram ser aquele também um
crime premeditado.
Com a identificação, o julgamento e a prisão do (a, os, as) culpado (s,
a, as), o circo acabou!
* Roberio Sulz é professor universitário; Biólogo, biomédico pela UnB;
M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. É colaborador de
Via
Fanzine.
Seu e-mail é
roberiosulz@uol.com.br.
- Imagem:
Divulgação.
Produção: Pepe
Chaves.
* *
*
A viúva e o funeral:
Papo de arrepiar
Viúva, sem filhos nem parentes próximos,
dependia de terceiros para quase tudo.
Pagava os serviços, valendo-se da polpuda
pensão deixada pelo marido, oficial da marinha.
Por
Roberio Sulz*
De
Alcobaça-BA
Para
Via
Fanzine
13/07/2015
Esclareceu que toda aquela grana seria para custear despesas com seu
funeral,
incluindo a cremação e distribuição das cinzas em alto mar,
como fora feito com os restos mortais de seu marido.
Leia também:
Últimos destaques de Via Fanzine
Fim de tarde sob o outono de chuva fina do Cerrado brasileiro. Eu, o
Baixinho e Sérgio Arnor, como costume, no “Libanu’s”. Dos poucos lugares
de Brasília onde se podia curtir a cachaça Canarinha, servida em
copinhos “flauta”, no centro do pires ornado por favinhos de limão
descascado e pitadas de sal. Baixinho preferia o chope escuro da Brahma
– diga-se - magistralmente tirado na casa, com temperatura e colarinho
irreparáveis. Os acompanhamentos, igualmente bem preparados: quibe,
kafta, babaganouch e homus tahine, com pão sírio fresco e azeite de
oliva.
Falávamos de tudo. Cada assertiva era arrematada com o toque
inteligente, oportuno, pilhérico e satírico do Baixinho e seu
característico sotaque carioca Zona Sul. Ele também não deixava nosso
encontro terminar sem um bom caso. Naquele dia, falou-nos de Dona
Cacilda, senhora nos oitenta anos, magérrima, de palidez sepulcral,
dentes ensebados e voz de fundo de pote. Figura arrepiante para não
deixar cabra cético sem crer em alma do outro mundo.
Dia chuvoso, Baixinho aguardava táxi no Conjunto Nacional, quando Dona
Cacilda, em igual situação, puxou “papo”. Alegava temor em seguir
sozinha para seu apartamento, na 304 Sul. Implorou-lhe companhia,
argumentando visão já embaçada e pouca firmeza no caminhar. Assumiria
inteiramente a despesa do táxi. Baixinho topou porque a figura não lhe
era totalmente desconhecida. Já a vira, por algumas vezes, na companhia
de sua tia Noélia.
Meio do caminho, Dona Cacilda abriu o livro de sua vida solitária.
Viúva, sem filhos nem parentes próximos, dependia de terceiros para
quase tudo. Pagava os serviços, valendo-se da polpuda pensão deixada
pelo marido, oficial da marinha.
Por insistente pedido, Baixinho acompanhou-a até seu apartamento,
deixando o taxi à espera. A viúva tagarelava o tempo todo e não dava
margem a uma despedida. Tampouco falava sobre o pagamento do taxi.
Baixinho escapou de um cafezinho oferecido. Contudo, não se livrou do
pequeno empurrão que lhe fez sentar no sofá. Mais uma vez, Dona Cacilda
lamentou sua condição de idosa sem parentes, nem herdeiros. Quase às
lágrimas, ressaltou não ter sequer alguém de confiança que pudesse
providenciar seu funeral, quando fosse o caso.
Baixinho foi tomado pelo braço, levantou-se e ouviu, em voz de cochicho,
convite para acompanhá-la até os aposentos. Lá, abriu cuidadosamente o
guarda-roupa, exibindo um vestido longo, preto, todo em renda.
- Cara, cruz credo! Por um instante, pensei que ela se enfiaria naquele
traje e se jogaria em oferta na cama. Exclamou Baixinho, fitando-nos
para retratar o pavor que sentira na ocasião.
Porém, não era essa sua intenção. O traje seria sua mortalha com a qual
pedia para ser enterrada. Atrás do vestido, na parede de fundo do
guarda-roupa, uma pequena placa frouxa de compensado camuflava um cofre.
Aberto, revelou guardar, dentre papéis diversos, maços de notas de cem
dólares americanos. Algo que ultrapassaria facilmente os vinte mil
dólares.
Demonstrando tristeza e desesperança, esclareceu que toda aquela grana
seria para custear despesas com seu funeral, incluindo a cremação e
distribuição das cinzas em alto mar, como fora feito com os restos
mortais de seu marido. Anotou num pedaço de papel o segredo para abrir o
cofre. Dobrou, envelopou, fechou e lacrou. Colocou-o no bolso da camisa
de Baixinho, sob recomendação de absoluto sigilo e guarda segura. O
envelope só poderia ser aberto na ocasião de sua morte.
Sentindo-se tonto e já bastante envolvido naquele enredo, Baixinho,
enfim, agradeceu a confiança e despediu-se. Ela pegou o telefone para
chamar o taxista costumeiro. Baixinho tentou falar-lhe do motorista que
os conduzira até o prédio e lá certamente continuava aguardando. Ela
demonstrou não se lembrar nem um pingo desse fato e, pior, nem de ter
ido ao Conjunto Nacional. Claro que também se esquecera do compromisso
de bancar o taxista. Mas deixa, pra lá! Consolou-se.
Desceu pronto para pedir desculpas ao taxista e retomar a “corrida” até
sua residência. Debalde, o táxi já não estava mais lá. O porteiro do
prédio informara ter dispensado o veículo e anotado o valor da
“corrida”. Era comum Dona Cacilda subir e se esquecer do táxi. Mas,
sempre que lembrada, deixava o valor com o porteiro, sem duvidar de seu
esquecimento.
Curioso com tudo aquilo, resolveu ligar para sua tia Noélia. Buscava
saber mais sobre Dona Cacilda. De pronto, foi informado tratar-se de
cidadã já bastante afetada por lapsos de memória e comportamento
variável. Seria capaz de, sem qualquer razão, relacionar-se intimamente,
à primeira vista, com certas pessoas e rejeitar peremptoriamente outras.
E mais, os sujeitos dessas relações poderiam ser facilmente apagados ou
trocados de posição em sua mente.
Com isso, resolveu abrir o envelope. Nada nele estava escrito. Dias
depois, foi intimado a comparecer à Primeira Delegacia de Polícia para
responder à denúncia de ter-se aproveitado de uma idosa para achacar-lhe
com proposta de venda de serviços funerais.
* Roberio Sulz é professor universitário; Biólogo, biomédico pela UnB;
M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. É colaborador de
Via
Fanzine.
Seu e-mail é
roberiosulz@uol.com.br.
- Imagem:
Divulgação.
Produção: Pepe
Chaves.
* *
*
Na boate:
Dia dos Namorados
O “Motel e Boate Rivoli”, de longe era reconhecido por dinâmico
luminoso que se alternava em forma e cores, querendo lembrar Las Vegas.
Por
Roberio Sulz*
De
Alcobaça-BA
Para
Via
Fanzine
15/06/2015
"Somos operárias do
carinho, do consolo, do aconchego e do refúgio.
Oferecemos nosso amor sem
preconceitos. Somos amadas,
por alguns minutos ou por
muitos anos, sem sabermos".
Leia também:
Últimos destaques de Via Fanzine
Margô construiu seu empreendimento com muito sacrifício. Quando novinha,
acompanhava caminhoneiros circulando pelas rodovias do Ceará.
Dificilmente concordava em ultrapassar as fronteiras do Estado. Nem se
afastar muito de Santana de Acaraú, onde nascera e crescera como garota
sem família.
A natureza fizera milagres ao preservar sua estonteante beleza e
graciosidade. Apesar das três décadas e meia na batalha.
O “Motel e Boate Rivoli”, de longe era reconhecido por dinâmico luminoso
que se alternava em forma e cores, querendo lembrar Las Vegas. Vinte
suítes em dois pavimentos ligadas por corredores e escadarias que
desembocavam num bem bolado salão de festas arredondado, apelidado
“Glande”. Pé direito com mais de seis metros, com mansardas para receber
a brisa marinha. O teto, rico em madeiramento radial espesso, bem
acabado e envernizado, era decorado com reproduções de peixes, redes,
tarrafas e outros objetos de pesca. No centro do telhado, uma claraboia
iluminada e colorida lembrava antigos vitrais. Sem erro, arquitetura e
decoração de bom gosto. Nas proximidades do bar, um pingente belo sino
de bronze, cujas badaladas anunciavam o início e encerramento de
atividades na Glande.
No dia dos namorados, as funções no ambiente só começariam a partir das
onze horas, com música ao vivo executada por conjunto musical com
acordeão, pistão, violão elétrico, rabeca, bateria e vocalista.
Antes disso, o tempo era reservado a uma tradicional solenidade
reproduzida anualmente naquela data: “Homenagem ao Amor Desconhecido”.
Participavam não apenas as “meninas” residentes, mas também ex-moradoras
que se deslocavam de suas casas, especialmente para aquela celebração.
Os fregueses mais assíduos também compareciam. Formavam uma plateia de
bem vestidos senhores. Alguns impecavelmente de terno e gravata. Quase
todos conduzindo flores e presentes – geralmente perfumes - para suas
preferidas “ninfas” - assim eram chamadas as damas da casa.
Três fortes badaladas anunciavam a chegada de um bolo sobre um híbrido
de padiola e andor. Em marcha nupcial, era conduzido por quatro
“ninfas”, vestidas sob branco absoluto, com flores de laranjeira
bordadas em suas tiaras, reluzentes em “strass”. Colocado cuidadosamente
sobre a mesa central, o bolo exibia o formato de uma grande margarida.
Inúmeras pétalas em glacê branco formavam um largo anel. Ao centro outro
bolo menor coberto de chantilly e açúcar cristal amarelo ouro, palitado
com dezenas de velinhas também amarelas. Baldes com champanhe em gelo
compunham a mesa central.
Outra forte badalada. Faz-se silêncio e Margô toma a palavra. “Somos
operárias do carinho, do consolo, do aconchego e do refúgio. Oferecemos
nosso amor sem preconceitos. Somos amadas, por alguns minutos ou por
muitos anos, sem sabermos. Por dever profissional, não podemos amar além
da efemeridade do encontro. Mas, somos gente, filhas de Deus, com
sentimentos de alegria e dor. Assim, dentre os que estiveram conosco,
sempre houve um, pelo qual nos apaixonamos. E, guardamos esse grande
amor represado a sete chaves. Com certeza, houve quem por nós tenha se
apaixonado também. Igualmente guarda esse sentimento em segredo, por
preconceito ou imposição social. Nada melhor que esta data para
lembrarmos do namorado e da namorada que não se podem declarar. Assim,
justificamos nossa celebração. Peço a cada uma das ninfas que se sirva
do bolo e da champanhe e compartilhe virtualmente com seu namorado
oculto”.
E assim se deu!
* Roberio Sulz é professor universitário; Biólogo, biomédico pela UnB;
M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. É colaborador de
Via
Fanzine.
Seu e-mail é
roberiosulz@uol.com.br.
- Imagem:
Divulgação.
Produção: Pepe
Chaves.
* * *
Pelos verões:
Dr. Moura
Médico famoso em Teófilo Otoni/MG, não dispensava o sol de verão de
Alcobaça. Descia no trem
da Bahiminas até Caravelas. Para completar a viagem, contava com a
jardineira de dona Edna.
Por
Roberio Sulz*
De
Alcobaça-BA
Para
Via
Fanzine
05/05/2015
Sob rigorosa dieta, distraía-se chupando cajus bem
maduros, levados consigo numa pequena cesta.
Leia também:
Últimos destaques de Via Fanzine
Bate saudades lembrar Alcobaça nos tempos em que o caminho para a Barra
era repleto de cajueiros. No verão, fazia gosto ver o colorido e sentir
o aroma dos cachos carregados dos grandes amarelos, vermelhos, pequenos,
doces rachadinhos e de outros tipos.
Vivíamos os tempos em que a cidade – ainda pequena – não recebia tantos
estranhos visitantes. A população conhecia – e muito bem - os que por
aqui faziam seu recanto de veraneio. Esquecer portas e janelas
destrancadas? Não se registrava a subtração de uma só agulha. Enfim, a
era e a atmosfera de uma sociedade segura, essencialmente familiar.
Dr. Moura (nome fictício) era um desses queridos veranistas, com casarão
nas proximidades da Igreja. Só a chegada de sua família alterava a
população local. Nove filhos. Ainda trazia cozinheira e babá.
Médico famoso em Teófilo Otoni/MG, não dispensava o sol de verão de
Alcobaça. Descia no trem da Bahiminas até Caravelas. Para completar a
viagem, contava com a jardineira de dona Edna, esposa do colega dr.
Almiro. Sem ela, sobrava para Nininho ou Honoratinho a honra de
transportar a ilustre clientela. Apesar de bem cuidados, eram veículos
precários. Nem mais alternativas. A travessia do rio era feita em
grandes canoas, remadas por “Sinoca”, Lindolfão ou Pedro Preto, chamados
ao serviço com fogos de artifício.
Em Alcobaça, dr. Moura gostava – e muito – de compartilhar com amigos
cachacinhas puras ou traçadas em botecos da praia e do porto. A cada ano
trazia novidades para degustação com os confrades de copo. Também era
por esses costados que reencontrava colegas de profissão – Dr. Pedro
Barbosa, Dr. Darcy e muitos outros. Festejava efusivamente o abraço com
amigos locais, admiradores e gente de sua vasta clientela, geralmente
prenhe de gratidão, com sobra de razão.
Dr. Moura não era um médico a mais no universo. Clínico geral, não por
falta de conhecimento e experiência em várias especialidades. Cirurgião
de mãos precisas. Ginecologista e obstetra preferido. Dominava, com
desenvoltura, conhecimentos sobre doenças tropicais. Autodidata,
dedicava-se diuturnamente à atualização profissional, mormente sobre as
ocorrências médicas mais comuns na região.
Sobre a saúde dos alcobacenses trocava ideias com Benedito,
“farmacêutico prático”, radicado há mais de vinte anos na cidade. Vindo
das brenhas pernambucanas – só -, tinha dr. Moura como amigo fiel,
inclusive para confidenciar particularidades secretas. Foi quem lhe
ensinara a aplicar injeção e lhe presenteara - anos mais tarde - com um
completo estojo de seringas de vidro e agulhas hipodérmicas alemãs.
De fina educação, atendia, com igual atenção e carinho pobres e ricos –
ricaços, diga-se. Jamais cobrava qualquer centavo dos pobres
necessitados. Tinha a medicina quase como um sacerdócio.
Difícil dizer como dr. Moura era mais respeitado e louvado. Médico,
chefe de família, cidadão popular, companheiro e, para variar,
respeitável biriteiro.
Foi essa sua última faceta que certamente o retirou de quase tudo e
todos. Aos cinquenta e seis anos, já diabético e hipertenso, foi
diagnosticado com cirrose hepática incipiente.
Proibido de tocar em bebida alcoólica, tornou-se pessoa vigiada dia e
noite. Sua esposa, dona Julia, não piscava no zelo e patrulhamento para
cercear possíveis tentações alcoólicas do marido. Os amigos passaram a
ser recebidos em casa, para evitar escapadas.
Quando em Alcobaça, por conta da atmosfera praiana, as tentações
aumentavam e a vigilância redobrava. Depois da caminhada matinal,
sentado à sombra de um largo guarda-sol, na praia, extasiava-se com o
horizonte. Na fresca da brisa curtia leituras de Jorge Amado, Eça de
Queiroz etc. Ouvia as rádios Nacional, Tupy e Inconfidência, pelo
receptor de ondas curtas. Sob rigorosa dieta, distraía-se chupando cajus
bem maduros, levados consigo numa pequena cesta. Eram frutos
selecionados e colhidos fresquinhos, por ele mesmo, na companhia de dona
Julia, dos exuberantes cajueiros da Barra.
Domingo de sol brilhante, após a missa das sete, presidida por Frei
Elias, maré baixa, mar manso e liso como um espelho, lá estava dr. Moura
no sombreiro com sua costumeira cestinha.
O primogênito Júnior – já também médico - clinicava em Governador
Valadares. Não desgarrava do pai nas férias alcobacenses. Fazia-se
acompanhado da esposa e de um par de filhos miúdos a curtir a extensa
areia dourada.
Observava, a curta distância, o pai em alegre solidão, a saborear
gostosamente cajus. De repente, dr. Moura levanta-se e dirige-se à água.
Chama à atenção seu passo trôpego e cambaleante. Logo é amparado e
conduzido à residência. Dá para sentir seu hálito alcoólico.
Mas, como? Nada de garrafa ou frasco a seu lado. Só a cestinha, com dois
cajus restantes e o romance Quincas Berro d’Água. Júnior examinou e
provou os cajus. Encharcados de cachaça.
A rígida vigilância não permitiria dr. Moura à artimanha de injetar
pinga nos cajus. Quem o fez, foi a mando e às escondidas, inclusive com
trato sobre a marca nos frutos encharcados.
* Roberio Sulz é professor universitário; Biólogo, biomédico pela UnB;
M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. É colaborador de
Via
Fanzine.
Seu e-mail é
roberiosulz@uol.com.br.
- Imagem:
Divulgação.
Produção: Pepe
Chaves.
* * *
Uma figura:
Tito Santarém
Partia
para a várzea. Jogava descalço ou, no máximo,
com uma
velha e surrada alpargata, com sola de sisal trançado.
Por
Roberio Sulz*
De
Teixeira de Freitas-BA
Para
Via
Fanzine
22/04/2015
Nêgo
ficara sabendo que tanto o Remo como o Paysandu buscavam “sangue novo”
para
recompor seus plantéis. Haviam perdido muitos de seus craques para
clubes do Sul.
Leia também:
Últimos destaques de Via Fanzine
Tito nascera de parto caseiro, filho de pescador que tinha uma pequena
banca na Feira do Peixe, na orla do Rio Tapajós, em Santarém/PA. Era
ali que seu Pedro comercializava o produto de seu trabalho. Tito -
malandro desde criancinha - não se dava aos estudos nem se oferecia para
ajudar o pai. O caso dele era jogar bola. As pelejas aos sábados eram
aguardadas e comentadas durante toda a semana. Logo sábado, dia de
grande movimento na feira!
Era dia que seu Pedro o convocava compulsoriamente para descamar e
destripar peixes na banca. Ao meio dia em ponto sua colaboração era dada
como encerrada. Nem passava em casa para almoçar. Comia ali mesmo, peixe
frito, espetinho, pastel e mata-fomes diversos. Isso acompanhado de açaí
no caldo de cana.
Partia para a várzea. Jogava descalço ou, no máximo, com uma velha e
surrada alpargata, com sola de sisal trançado. Na época de seca,
ocorriam torneios nas praias de Alter do Chão. Ocasião de festa para
Tito.
Mesmo com apenas 16 anos de idade, agia como um verdadeiro capitão.
Reclamava da arbitragem, das faltas desleais. Até do uniforme mal
cuidado por seus companheiros e pelos adversários. Rigoroso líder nos
bastidores, isto é, na beirada do campo. Reservava horários para seu
time, organizava tabelas de torneios etc. Escalava e vetava árbitros. Em
suma, futebol de várzea em Santarém, necessariamente passava por Tito.
Não perdia um só programa de João Álvaro – Cartaz Esportivo - na Rádio
Clube do Pará. Também era ligado em Abílio Couceiro, da Rádio Marajoara.
Torcedor declarado do Clube do Remo, desde que este se sagrara campeão
paraense em 1960.
Dentre os inúmeros amigos e companheiros de bola, havia um maior e
melhor. O Nêgo. Veterano e experimentado em Belém, chegou a pertencer ao
elenco de jogadores reservas do Tuna Luso, sem nunca ter alcançado a
posição de titular. Fazia o papel de treinador do time de Tito. Foi esse
grande amigo quem o incentivou a tentar carreira de jogador profissional
em Belém.
Nêgo ficara sabendo que tanto o Remo como o Paysandu buscavam “sangue
novo” para recompor seus plantéis. Haviam perdido muitos de seus craques
para clubes do Sul. Soprou animação em Tito para tentar uma oportunidade
na Capital e deu a dica: pegar um ita e desembarcar em Belém, expondo-se
ao máximo com chuteiras penduradas no pescoço. Foi assim que fizera anos
atrás e deu certo.
Seu Pedro não botou fé no sucesso dessa empreitada. Mas, pensou: “se o
moleque não sabe mexer com outra coisa, vamos apostar”. Custeou a
passagem e ainda colocou uns trocados no bolso de Tito. As chuteiras,
doadas por Nêgo, sobravam nos seus pés. Mesmo assim receberam generosas
mãos de graxa, escovação e novos cadarços. Ao experimentá-las como colar
em seu pescoço, ficou difícil suportar o chulé nelas encarniçado. Mas,
era o que tinha...
Nêgo fez questão de fazer-lhe companhia e iniciá-lo nos macetes da
Capital. Assim, lá se foi Tito. Alpargatas nos pés, chuteiras no pescoço
e um embornal a tiracolo com poucas peças de roupa. Nunca havia viajado,
a não ser em pequenos barcos de pesca e na carroceria de caminhões com
sua equipe de futebol. Ansioso, nem conseguira dormir a bordo no trajeto
noturno.
Desembarcou do ita em Belém com o vagar necessário à planejada
exposição. Girava a cabeça para os lados como autoridade pretendendo ser
notada por populares. Chegou a reembarcar para descer novamente em
grande estilo. Nada! Nenhuma viva alma a se interessar por aquele jovem
mancebo. Nêgo também se decepcionou com o descaso.
Depois de repetidos muxoxos, foram parar na casa de Zé Galinha,
ex-goleiro do Tuna, contemporâneo de Nêgo. Zé ganhara o apelido por sua
incrível afinidade com “frangos”, no ofício. Banharam-se e saíram em
busca de gente influente do ramo futebolístico. Treinadores,
empresários, dirigentes, chefes de torcida organizada. Até camelôs de
porta de estádio. Alguém haveria de conhecer e se interessar por Tito.
No quinto dia, vendo sua farinha em declínio, Zé Galinha resolveu juntar
seus esforços à peregrinação dos visitantes. A contragosto, levou-os até
Maurão, ex-treinador do Paysandu que passara a viver de emprego público,
como segurança de um deputado federal. Cidadão agigantado, mal educado,
grosso e deselegante ao falar. Razão da arrelia entre os dois.
Maurão – poucos sabiam – guardava oculto o sonho de ser empresário de
atletas. Ouviu atentamente o currículo de Tito declinado por Nêgo.
Resolveu apostar sem conferir. Logo inventou uma destacada liderança
política de Nêgo e do pai de Tito junto à comunidade de pescadores de
Santarém. Argumento suficiente para contar com a influência do
parlamentar junto à Diretoria do Remo.
Recomendado politicamente e acertadas as comissões junto ao “empresário”
Maurão, Tito logo passou a treinar no Clube do Remo com o nome de Tito
Santarém. Virou craque. Dois anos depois, seu passe foi comprado por um
time de São Paulo. Maurão faleceu antes de auferir os dividendos dessa
milionária transferência. Nêgo passou a ser seu empresário, por história
e justiça.
* Roberio Sulz é professor universitário; Biólogo, biomédico pela UnB;
M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. É colaborador de
Via
Fanzine.
Seu e-mail é
roberiosulz@uol.com.br.
- Imagem:
Divulgação.
Produção: Pepe
Chaves.
|