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Escola: o que escondem de você

 

Do editor: Esta coluna traz crônicas fictícias, mas baseadas em ocorrências reais nas escolas públicas brasileiras, pela transparência da ótica de um professor de classe. Nosso objetivo é dissecar a corriqueira vida escolar a partir das perspectivas de todos os envolvidos, e então, trazer à tona algumas situações impensáveis ou até bizarras ocorridas no ambiente escolar. Assim, de maneira construtiva estaremos tornando públicos alguns fatos destoantes do que se entende como uma instituição de ensino, levando-nos à reflexão de todos os aspectos que possam ser corrigidos ou melhorados na vida escolar brasileira.

 

 

Escola rural:

Pato e Renato

Não sei se era impressão minha, mas comecei a notar que a Cíntia, com aquela misteriosa timidez, estava dando umas olhadinhas para a Érica. Dias depois, algum sussurro dentro da sala: as duas estão namorando.

 

Por Sérgio Souza*

Para Via Fanzine

29/05/2020

 

Um dia, vi que elas estavam bastante inquietas. De repente, uma me pede pra ir ao banheiro. Autorizei.

 

Nono ano. Escola rural. Alunos entre quinze e dezesseis anos. Será que o povo de lá ainda está muito tímido, ingênuo, inocente? 

 

Tem sempre uma aluna, a melhor do colégio, que nos surpreende com alguma ruptura com os padrões. Foi o caso da Cíntia. (O fato é real. Os nomes foram alterados para preservar as identidades.) A Cíntia era a discípula que qualquer professor gostaria de ter. Educada, prestava atenção à aula, acompanhando o professor, com um doce sorriso nos lábios. E, quando chegavam as provas, tirava sempre total. 

 

Um pouco mais atrás, sentava-se a Érica. Também sorridente, sensível, até mais bonita que a Cíntia, porém, não tão adiantada quanto esta. Era descontraída. Queria era viver. Tirando o mínimo para a aprovação, ela estaria satisfeita. Também não amolava ninguém.

 

Não sei se era impressão minha, mas comecei a notar que a Cíntia, com aquela misteriosa timidez, estava dando umas olhadinhas para a Érica. Dias depois, algum sussurro dentro da sala: as duas estão namorando. Inclusive, uma passou a frequentar a casa da outra para estudar (?).

 

Ora bolas! “Pra mim, ó, fetepete”, como diria outra aluna de lá. Vou continuar dando a minha aula, tendo amizade com todo mundo. 

 

Um dia, vi que elas estavam bastante inquietas. De repente, uma me pede pra ir ao banheiro. Autorizei. Dali a uns segundinhos, a outra também pediu. Permiti, mas fiquei atento. Havia o pátio. Atrás dele, um matagal. Quando olho pela janela, vejo as duas no mato, agarradinhas e se beijando. (Bem melhor que estar na sala de aula – teriam pensado.) Discretamente, pedi a um aluno, de ilibada conduta, que as chamasse para mim. Elas voltaram.

 

Escrevi na mão e mostrei a elas: preciso falar com vocês depois da aula. 

 

Elas me esperaram. Eu apenas anunciei: Olhem, eu vi. Não repudio o namoro de vocês. É só não fazerem mais isto durante a minha aula; melhor, nem na escola, combinado? No mais, desejo-lhes felicidades. 

 

Ah!!! Mas a diretora não pensava assim. Ela era extremamente radical, moralista. Ficou sabendo só da metade, e já pôs a escola abaixo. Imediatamente: reunião com professores, supervisora, para decidirem qual seria o destino dessas duas devassas! A diretora esbravejou: - acredito que isto não aconteceu, e tomara que não aconteça, mas se um dia eu “ver” essas duas se beijando, eu vou dar na cara delas, na vista de todo mundo. Aqui eu não admito! E elas serão expulsas na hora.

 

A maioria aplaudiu a chefe, umas, porque tinham a mesma opinião, outras, simplesmente para bajulá-la. 

 

Um parêntese: a experiência tem mostrado que, quando um aluno é expulso, a família procura o juiz, e este ordena que ele volte a estudar, alegando que ele tem direito. Expulsá-las por aquilo poderia cair ainda em crime de constrangimento, preconceito, podendo agravar-se, caso a isso se somasse agressão física. Ainda mais, por uma educadora. Existem métodos adequados para advertir, educar.

 

Naquele momento, alguém interveio: mas, diretora, para tomar providência tão drástica, é preciso ter provas. Aí a diretora ordenou: - quero que todos vocês fiquem de sentinela. O primeiro que notar qualquer coisa de “errada’ entre as duas, me avise imediatamente, que eu vou realmente expulsá-las, fora o sermão que elas vão levar. 

 

Deu o sinal. Uma professora mais caladona, introspectiva, me esperou do lado de fora da escola, me chamou em particular e satirizou: 

 

- Nossa! Se a diretora soubesse então o que já acontece entre o Pato e o Renato, ela ia era enfartar, hein?  

 

- Ah, então você também já sabe? – perguntei. O Renato é mais doidão. O Pato já é mais culto. Morou na Espanha. Fala espanhol fluentemente. Ah, quer saber? Vamos preservar a integridade de todos.

 

- TUDO, EM NOME DO AMOR! – falamos juntos.

 

- Imagem: Divulgação.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine. Para visitar sua página exclusiva em Via Fanzine, clique aqui.

 

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Na sala de aula:

Mau cheiro enigmático

Ditão, um menino moreno, gordo, forte, foi se reajeitar na carteira, quando se ouviu, dali, um sonzinho meio estranho. A professora pegou-o com mau jeito e o levou à diretoria. Ele negou o tempo todo, alegando que o barulho foi da carteira. Em vão.

 

Por Sérgio Souza*

Para Via Fanzine

21/05/2020

 

Chega a diretora. Xinga, grita, esgadanha os cabelos. E, nesse movimento, um sonzinho meio misterioso se ouviu por ali.

 

Já lhes contei uma história desta escola, intitulada "Clima Pesado" [nesta página, abaixo]. Ainda bem que eu não falo que escola é, e ainda altero o nome das pessoas.

 

O episódio de hoje é, no mínimo, inquietante.

 

Oitava série. Uma docente se afastou por licença-maternidade. Foi para lá, com o fim de substituí-la, a professora Irani da Rocha Gomes. Nervosa, estressadíssima, até mesmo desequilibrada. Parece que pessoas assim atraem ainda mais problemas, você já notou isto?

 

Manhã bonita, fresquinha, o céu todo azulado. Para quebrar a harmonia, um mau cheiro se espalhou pela sala. A professora deu uma olhada geral, uma tossidinha, arrancou uma folha de caderno, colocou-a sobre o nariz e continuou escrevendo no quadro.

 

No outro dia, repeteco. Aí a mestra ficou braba.

 

- Até onde vai a falta de educação de vocês, hein?

 

- Não fui eu não. (Frase repetida por um a um dos presentes.)

 

Terceiro dia, quando ninguém esperava, eis aquela nuvem plúmbea e aterrorizante pesando de novo sobre o ambiente.

 

A mestra:

 

- Eu já tô quase adivinhando qual é o autor dessa falta de educação. É a mesma pessoa. O cheiro é o mesmo. (Aumentando a voz) Ah se eu descobrir! Melhor o engraçadinho ir parando por aí. (Bem gritado) Vocês ainda não me viram nervosa não, tá?

 

Talvez para desafiá-la, na próxima aula, o aroma foi mais intenso e duradouro... A mestra buscou a diretora, colocando-a de prontidão.

 

No dia seguinte, o Ditão, um menino moreno, gordo, forte, foi se reajeitar na carteira, quando se ouviu, dali, um sonzinho meio estranho. A professora pegou-o com mau jeito e o levou à diretoria. Ele negou o tempo todo, alegando que o barulho foi da carteira. Em vão.

 

- Descobrimos o porquinho da turma, diretora. É ele. Hoje todo mundo viu, quer dizer, ouviu e sentiu. Pode perguntar à turma.

 

- Ah, bem que eu já desconfiava. Então você está fazendo a sala da Dona Irani de privada, né? Amanhã você vem à escola, mas vai ficar três dias sem frequentar a aula dela. No horário, você vai ficar aqui na diretoria, copiando o Hino Nacional até cansar. Entendido?

 

“Ai, que alívio!” – murmurou a instrutora.

 

Só que, na próxima aula, sem o Ditão na sala, cai ali uma verdadeira bomba atômica. Já tinha gente desconfiando até da própria mestra. Mas na mesma hora, chega a professora de Química e desvenda todo o mistério: “Ah, é aquele produto, popularmente conhecido como peido alemão. Eu conheço demais o cheiro. Falta agora é descobrir qual é o engraçadinho que tá trazendo isso pra escola.” (Olhos voltados para o Ditão.)

 

Chega a diretora. Xinga, grita, esgadanha os cabelos. E, nesse movimento, um sonzinho meio misterioso se ouviu por ali. Alguém comentou baixinho lá atrás: - Ih, agora foi a diretora! Vou sair desta escola. Acho que é porque a merenda nos últimos tempos é só canjica com amendoim. A Dona Irani já estava arrependida de ter ido para lá. Só dava aulas de máscara – isto, antes dessa onda de coronavírus.

 

Um dia, o Adelmo, menino calado, educado, o qual tirava as melhores notas, esperou a hora de sair e entregou à Dona Irani um bilhete, pedindo-lhe que o lesse depois que ele virasse lá na esquina. Eis o teor:

 

“Professora, não castiguem o Ditão. Sou eu quem está causando todo esse mal-estar na escola. É que eu tenho uma terrível doença intestinal. Já fiz tratamentos com diversos médicos. Melhora, mas volta. O mais incomodado de todos sou eu. A senhora jamais terá problemas comigo. A partir de amanhã, não volto mais aqui. Vou mudar até de cidade. Mil desculpas. Adeus.”

 

O bilhete correu toda a escola. Cada um que lia, ao invés de censurar, tinha pena daquele tímido e raquítico menino. E todos viram como é complexo o trabalho de um educador e quão limitados somos para julgar.

 

- Imagem: Divulgação.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine. Para visitar sua página exclusiva em Via Fanzine, clique aqui.

 

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Merenda:

Arroz da escola, para os cães da diretora

Este fato, somado a tudo o que o circundou, não poderia deixar de ser denunciado, para que todos nós, cidadãos brasileiros, saibamos de absurdos que acontecem na nossa educação, e para onde vai o nosso suado dinheiro.

 

Por Sérgio Souza*

Para Via Fanzine

13/05/2020

 

Os animais são ótimos mesmo. O fato é que eles não pagam salários. De onde é que vem então o dinheiro para bancar cinismos assim e tanta irresponsabilidade?

 

Este fato, somado a tudo o que o circundou, não poderia deixar de ser denunciado, para que todos nós, cidadãos brasileiros, saibamos de absurdos que acontecem na nossa educação, e para onde vai o nosso suado dinheiro.

 

A escola, municipal, fica num bairro próximo ao centro de uma grande cidade da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Eu lecionava à noite, para os três anos do Ensino Médio: Português, Literatura.

 

A diretora, a qual aparecia ali apenas umas duas vezes ao mês, me surpreende, chegando e falando que tinha em mente um propósito. Queria montar uma peça teatral, cujo tema fosse drogas. Escolheu-me coordenador do Projeto. E o elenco seria composto por estudantes da noite e da manhã.

 

Falei da dificuldade que talvez encontrássemos, de reunir pessoas de um turno e outro para os ensaios. Sugeri então, em vez de uma peça, um filme. Assim, as cenas poderiam ser gravadas, nos horários mais adequados aos alunos. “Ótimo!” – concordou.

 

Parti então para o roteiro, depois ensaios... Até que chegara a hora de filmar. O cinegrafista seria um servidor municipal. Ficou marcada para uma sexta-feira, dez horas da manhã, uma reunião na Prefeitura. A diretora e eu iríamos combinar com o video-maker os principais pontos a destacar e as estratégias.

 

Cheguei ao colégio meia hora antes de partirmos para aquele órgão público. A diretora abriu a janelinha de sua sala, me viu, acenou-me cumprimentando-me e fechou novamente.

 

Não mais aguentando esperar, e vendo que já havia passado bastante do horário da reunião, resolvi ir embora. Nisto surge a irreverente:

 

- Vamos! Meu carro está ali embaixo. Mas primeiro vou à cantina.

 

Demorou bastante, aparecendo depois com uma enorme bandeja cheinha de arroz. Entregou-me a comida, determinando que eu me sentasse no banco de trás do carro, e que, se eu deixasse cair um baguinho lá dentro, ela me mataria.

 

Obedeci. Resignadamente. Queria ver até onde iria toda essa palhaçada.

Estacionou em frente à sua casa. ”Espere aí no carro. Vou chamar a empregada para pegar isso aí.” Aguardei do lado de fora.

 

Voltando, avisou que foi melhor eu não ter ficado no interior do veículo, se não, caso sumisse qualquer coisa, ela suspeitaria de mim. Respondi firme:

 

- Diretora, a senhora cometeu um grave erro: se não confiava em mim, não deveria ter-me aceitado naquela escola. Contudo, deveria formalizar a denúncia - e provar – até na Justiça, se preciso fosse.

 

Calada, pediu que eu entrasse. No entanto, logo estacionou e fez sinal para que eu descesse. Abandonou-me num lugar qualquer da cidade.

 

Em clima mesmo de provocação, ainda lhe perguntei:

 

- Diretora, mas afinal, e a reunião? Por que a senhora não quis ir?

 

Com seu sorriso cínico costumeiro, respondeu:

 

- Ah, na verdade eu não fui, porque eu não sei onde fica a Prefeitura. Além do mais, o principal eu já consegui: o arroz pros meus cachorros.

 

- Então, todo esse arroz, bonito desse jeito, a senhora tirou da escola, a fim de levar para os seus cachorros?

 

- Tiro todos os dias. E daí? Iria sobrar mesmo.

 

Conclusão: não deu valor ao cinegrafista, à empregada, a mim, aos atores, nem aos estudantes daquela acéfala instituição. Para ela, só interessavam seus cães.

 

Os animais são ótimos mesmo. O fato é que eles não pagam salários. De onde é que vem então o dinheiro para bancar cinismos assim e tanta irresponsabilidade?

 

- Imagem: Divulgação.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine. Para visitar sua página exclusiva em Via Fanzine, clique aqui.

 

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Artes cênicas:

No meio do caminho tinha uma pedra:

melhor poema de Guimarães Rosa

Fizemos um estudo, teatralizamos e filmamos. Os objetivos eram oferecer aos participantes uma oportunidade, para que mergulhassem um pouco mais no tema, além de obterem outras vantagens que a dramaturgia oferece.

 

Por Sérgio Souza*

Para Via Fanzine

07/05/2020

 

Não suportando aquela monotonia das salas de aula, cismei: vou fazer um filme sobre Guimarães Rosa. Já tinha em mãos algumas pesquisas de campo, que eu realizara em Cordisburgo, sua terra natal.

 

Quanta dificuldade para produzir um filme numa escola! Só que a gente faz isto – e faria ainda muito mais – pelo amor à Educação e à Arte.

 

Eu lecionava literatura em três colégios. Não suportando aquela monotonia das salas de aula, cismei: vou fazer um filme sobre Guimarães Rosa. Já tinha em mãos algumas pesquisas de campo, que eu realizara em Cordisburgo, sua terra natal, e em Itaguara, para onde o ilustríssimo se mudara, a fim de exercer a medicina. Faltava ainda ler dois de seus livros: Magma e Ave, Palavra. Li-os, como também li Relembramentos, de sua filha, Vilma Guimarães Rosa. Pesquisei mais.

 

Ah, esperem aí. Eu falei um filme sobre Guimarães Rosa? Desculpem. Eu estava era brincando. Para produzir uma película à altura desse gênio literário, seria preciso muito mais: capital, produção... Na verdade, fizemos um estudo, teatralizamos e filmamos. Os objetivos eram oferecer aos participantes uma oportunidade, para que mergulhassem um pouco mais no tema, além de obterem outras vantagens que a dramaturgia oferece: desinibição, experiência de falar em público e um contato com a arte cinematográfica.

 

Escolhi (em segredo) os alunos com melhor perfil. Convidei-os a participar. Quem aceitou deveria ainda submeter-se a um teste escrito sobre o Autor e a Obra. Forneci material. Teriam de acertar tudo. Aos aprovados, foi dado um curso sobre teatro e cinema, posição para câmeras... Só depois iniciamos os nossos treinamentos.

 

Vale destacar que as direções das escolas, além de não apoiarem o projeto, não permitiram ensaios nos estabelecimentos. Ensaiamos em praças públicas. E nenhuma diretora, nem supervisora, e quase nenhuma professora se interessou em conhecer, depois de pronto, o nosso trabalho. Ficamos, no entanto, recompensadíssimos! Quando o filme foi exibido, os alunos se explodiam em empolgação. Pediam que repetíssemos. Queriam cópias para mostrar a seus pais. O elenco era conhecido deles. Ali estavam seus amigos. Foi despertada em alguns uma louca paixão por fazer teatro ou por aprender mais sobre cinema. E encontramos a melhor maneira de fixar a aprendizagem sobre esse grande mestre da nossa literatura.

 

Agora, preparem-se! O diretor de um dos estabelecimentos iniciara uma briga comigo, afirmando que eu estava dando, aos alunos, informação errada. Ficara sabendo que eu havia informado a eles que Guimarães Rosa nascera em Cordisburgo. Protestou: “Ele nasceu foi em Itaguara!”

Sorrindo, respondi:

 

- Diretor, você é formado em Letras. Dê uma olhadinha nos seus livros (se é que ele os tinha). Você está meio confuso.

 

E vejam esta: já no decorrer dos ensaios, uma professora foi à minha casa e rogou que eu encaixasse os seus filhos no filme. Expliquei que os participantes fizeram testes, treinamento; que não era só encaixar. Ela insistiu, alegando que em casa poderia muito ajudá-los, porque conhecia tudo sobre Guimarães Rosa. “Tudo? Eu não conheço nem um milésimo.” – pensei. E ela: “Pra mim, o melhor poema de Guimarães Rosa é No meio do caminho tinha uma pedra”. Reagi:  

 

- Não é dele, é do Carlos Drummond de Andrade.

 

- É dele sim! Eu tenho ele num livro. Ah... Espere aí. Realmente, eu estou enganada. Do Guimarães Rosa é “Vou-me embora pra Pasárgada”.

 

- Desculpe, colega, este é do Manuel Bandeira.

 

Ao despedir-se, ela, meio sem graça, ainda falou que pelo menos um livro de Guimarães Rosa ela havia lido: Romeu e Julieta. (Menos mal. Pensei que ela ia falar A Bíblia.)

 

É, pessoal, esse conjunto de aberrações ouvidas durante essa nossa experiência cinematográfica daria outro filme. De humor, é claro. (Ou de terror!...)

 

- Imagem: Divulgação.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine. Para visitar sua página exclusiva em Via Fanzine, clique aqui.

 

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Folia escolar:

E o Carnaval continua

Súbito, uma notícia vem quebrar o ritmo da festa momesca! Chega a secretária, tira da roda um adolescente e sua prima, comunicando-lhes que recebera um telefonara, avisando que a avó deles acabava de falecer.

 

Por Sérgio Souza*

Para Via Fanzine

29/04/2020

 

E o carnaval continua: músicas, gritos, alegria, empolgação. A diretora nem ao menos saiu do baile, para abraçar os padecentes.

 

Vésperas de carnaval. De que os alunos mais gostam: de gritar, pular, ou de estudar? Eles vibram quando tem um feriado? E os professores? As supervisoras? As cantineiras? A diretora? Se as respostas forem sim, para que então existe escola?

 

Para ser justo, festividades podem realmente melhorar o convívio, a socialização. Um evento com músicas, danças, teatro, dá ainda a oportunidade aos estudantes de mostrar a sua arte. Ótimo! Educação e cultura devem andar juntas. Outros eventos acontecem, com o fim de angariar fundos para comprar um computador, ou uma máquina de xerox. Louvável também, já que o governo nem tudo oferece.

 

Entretanto, já vi mestras se reunindo e telefonando para um montão de pessoas influentes, para tentarem tirar a diretora e substituí-la por uma que dirigia outra escola. Tudo, porque aquela era alcoólatra. Assim, o colégio viveria em festas e bebedeiras. Era o que as docentes mais queriam.

 

Conclui-se que promover folias no recinto escolar pode garantir a permanência de uma diretora. Além do mais, dependendo da instituição, quem não bebe é discriminado - taxado de chato, antissocial.

 

Nesta linha, existem as festinhas meramente demagógicas, com vistas a fazer marketing pessoal. Parece que foi o caso de uma batalha carnavalesca, ocorrida na instituição.

 

Naquele dia, não houve aula. Só carnaval. A diretora era a que mais se pavoneava. Dançava freneticamente e desfilava com uma grande coroa de flores, visando a fixar ali a ideia de que era ela a rainha. A propósito, não se executavam as bonitas marchinhas carnavalescas, típicas da nossa cultura. Tocava-se funk, não importando as mensagens das letras ou o seu grau de torpidade.

 

E os alunos continuam dançando - em todos os sentidos...

 

Súbito, uma notícia vem quebrar o ritmo da festa momesca! Chega a secretária, tira da roda um adolescente e sua prima, comunicando-lhes que recebera um telefonara, avisando que a avó deles acabava de falecer. A avó, nesse caso, era a mãe. Eles haviam sido criados por ela.

 

Na secretaria, esses órfãos se desabaram. Caíram num contínuo pranto. A funcionária falou-lhes uma meia dúzia de palavras consoladoras e continuou, burocraticamente, o seu trabalho. Eu, que não havia nem entrado nessa dança, fui pra lá fazer companhia a eles.

 

E o carnaval continua: músicas, gritos, alegria, empolgação. A diretora nem ao menos saiu do baile, para abraçar os padecentes. Ao contrário, excedia-se em exibicionismos - naquela roda desumana. Mantinha-se firme em seu propósito: agradar à maioria, para, assim, garantir-se no cargo.

 

Bateu o sinal. Em vez de tomar meu ônibus, tomei o desses dois alunos. Uma professora zombou de mim, alegando que eu estava perturbado, porque tinha entrado no ônibus errado. Antes de entrar, alguém ainda me avisou que eu poderia não encontrar condução para voltar – já que os alunos em questão moravam em zona rural. Respondi: não interessa. O importante é que esses jovens saibam que ainda existe aqui alguém que reconhece o seu valor. Cheguei lá. A família ficou profundamente agradecida, reconhecendo o meu reconhecimento.

 

No dia seguinte, comentei com um professor sobre a insensibilidade da dirigente, a qual repudiei. Ele se opôs a mim. Defendeu a diretora, argumentando que a vontade de uns cem, que era festejar, deveria prevalecer sobre o drama de apenas dois.

 

Trepliquei, dizendo a ele que, se a diretora suspendesse imediatamente o festejo e incentivasse todos os estudantes a abraçarem os que naquela hora padeciam, ela valer-se-ia desse atro momento para exercitar com eles o senso de solidariedade e compaixão, bem mais importantes para a humanidade que qualquer forma de folia. Principalmente, neste tempo de incertezas em que vivemos.

 

- Imagem: Divulgação.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine. Para visitar sua página exclusiva em Via Fanzine, clique aqui.

 

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Baderna:

Eles iam tacar fogo na Escola

Os alunos jogaram carteiras para cima, foram à cantina, despejaram toda a comida no chão, quebraram copos, pratos, entortaram talheres, e seguiram metendo o pé em todas as portas, inclusive na do diretor, o qual foi obrigado a evadir-se.

 

Por Sérgio Souza*

Para Via Fanzine

23/04/2020

 

A luz voltou, a polícia chegou. Difícil para os policiais estava sendo identificar os culpados, uma vez que tudo se fez às escuras. Prometeram investigar.

 

Aconteceu numa cidade grande, da Região Metropolitana de Belo Horizonte. O costume da escola era este: o professor levava para casa a chave da sua sala, trazendo-a, quando voltasse.

 

O prédio compunha-se de dois pavimentos. No primeiro, ficava o Fundamental; no segundo, o Médio. Eu lecionava no Médio, portanto, no segundo andar. O acesso de um pavimento ao outro era controlado por um portão. Depois que alunos e professores subiam, este era trancado a cadeado. Ficávamos presos. Literalmente.

 

Uma noite, chego lá, faltando uns quinze para nove. Ia dar os dois últimos horários. Os primeiros, já os tinha dado em outra instituição. O que me assustou naquele momento não foi a balbúrdia dos alunos. Foi o silêncio. Ando por aqui, por ali, não vejo uma alma viva. Parecia um feriado, uma sexta-feira da paixão.

 

Enfim, encontro o diretor – o qual se assusta com a minha presença. Tudo assombroso naquele lugar. Perguntei-lhe:

 

- Cadê os alunos, diretor? Hoje não ia haver aulas?

 

- Ah... É... Realmente, os alunos foram embora. Pode ir também. Assine e ponto e vá.

 

Foi o que eu fiz. Regressei à minha casa com aquele enigma na cabeça.

 

Na noite seguinte, chego com meus alunos até a nossa sala. Quando vou abri-la, surpresa: faltava uma lasca na porta, deixando claro que esta havia sido arrombada. Alertei-os: vamos falar com o diretor, se não, ele pode achar que foi alguém da nossa turma.

 

O diretor estava ausente. Narrei o fato aos colegas, que se silenciavam a respeito. Uma professora resolveu contar-me toda a verdade:

 

- Ontem, antes de você chegar, as aulas transcorriam normalmente. De repente a força acabou. Os alunos jogaram carteiras para cima, foram à cantina, despejaram toda a comida no chão, quebraram copos, pratos, entortaram talheres, e seguiram metendo o pé em todas as portas, inclusive na do diretor, o qual foi obrigado a evadir-se.

 

Pior ainda: davam tapas, murros, chutes, em quem passasse por eles, deixando gente ferida, inclusive professores, que não podiam escapar (devido àquele cadeado, lembram?)

 

Não se sabe como, arranjaram quatro foguetes e os soltaram dentro do estabelecimento. (Dizem que era um código entre bandidos, pedindo reforços.) Segundo o relato, o que finalmente pretendiam era tacar fogo na escola.

 

Não deu tempo. A luz voltou, a polícia chegou. Difícil para os policiais estava sendo identificar os culpados, uma vez que tudo se fez às escuras. Prometeram investigar.

 

Em silêncio, montei minha estratégia. Uma noite, apareci por lá meia hora mais cedo, para planejar direitinho as minhas ações. Preparei-me e esperei pelo desafio.

 

Dali a uns oito dias, estou ali, concentrado em minha aula, quando a força acaba novamente. Mochila nas costas bem rapidinho, vou até o final do corredor, agarro em um cano de ferro, para água de chuva, que ia do teto ao chão. Fui escorregando por ele macio, aterrissando no pátio do primeiro andar, são e salvo. Coisa de cinema.

 

A vice-diretora viu e ficou doida:

 

- Que absurdo! Se fosse um aluno, já estaria completamente errado. Agora, um professor descer pelo cano?

 

Respondi-lhe com humor:

 

- Descer pelo cano é melhor que entrar pelo cano. A direção é que está errada em não promover a devida segurança nesta escola. Solidariza-se com as atitudes criminosas dos alunos. E o sistema educacional brasileiro, que vive passando a mão na cabeça de baderneiros.

 

- Imagem: Divulgação.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine. Para visitar sua página exclusiva em Via Fanzine, clique aqui.

 

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Prostituição:

A aluna que queria conhecer a zona

Por que a escola não faz um especial pra lá? Tanta gente querendo... Porém, se isto não acontecer, você pode me indicar alguns livros?

 

Por Sérgio Souza*

Para Via Fanzine

15/04/2020

 

 

O Diário de Marise, de Vanessa de Oliveira; Noites Ilícitas, de Edson Holtz Leme; Filha, mãe, avó e puta, de Gabriela Leite. Mas atenção! Não são obras pornográficas, ouviram? Elas mostram a realidade da vida.

 

Não sei se isto só acontece no Brasil, ou se aconteceria em outros países também.

 

Uma aluna do primeiro ano do Ensino Médio – vamos chamá-la de Jéssica - era a melhor, não só da sala, mas do colégio. Somadas a esse brilho, vinham a simpatia e a educação fina. E as suas redações? Maravilhosas. Ela revelou-me um dia que o sonho da vida dela era ser escritora. Para seu deleite, por vezes, eu lhe dava livros.

 

A turma era até boa. O Renato, de quem falaremos numa outra crônica, era mais doidão. Às vezes um pouco atrevido. Parece que o seu circuito sexual, duma hora pra outra, entrava em curto; pegava fogo. Era só.

 

Os alunos tinham bastante liberdade em falar comigo. Sabiam que eu era um bom ouvinte, jamais, um censor. Mesmo assim, fiquei surpreso um dia: estou eu a discorrer sobre o barroco na literatura, quando sou interrompido:

 

- Professor, posso lhe fazer uma pergunta?

 

- Claro.

 

- Mas não é nada relacionado à sua matéria não. Posso?

 

- Ué, se eu souber responder, tudo bem.

 

- Cê já foi na zona? (Logo a Jéssica!)

 

Não me desconcertei. Respondi-lhe que, quando mais jovem, quando eu tinha siso (o dente), mas não tinha juízo, sim. Mas por que você está perguntando?

 

- Ah, porque eu sou doida pra conhecer uma zona; não pra me prostituir, é claro; para saber direitinho o que se passa lá dentro.

 

E o assunto pegou fogo: “Eu também!” “Eu também!” Até os alunos mais tímidos queriam participar da conversa.

 

- Quantos anos você tem, Jéssica?

 

- Mês que vem, faço dezoito.

 

- Quando fizer, você poderá ir. Todavia, vá bem acompanhada, para não ser confundida, né? Aliás, entendo perfeitamente. Você quer ser escritora, e isto pode trazer-lhe experiência e novas ideias.

 

E ela:

 

- Por que a escola não faz um especial pra lá? Tanta gente querendo... Porém, se isto não acontecer, você pode me indicar alguns livros?

 

- Ah, sim. Por exemplo, O Diário de Marise, de Vanessa de Oliveira; Noites Ilícitas, de Edson Holtz Leme; Filha, mãe, avó e puta, de Gabriela Leite. Mas atenção! Não são obras pornográficas, ouviram? Elas mostram a realidade da vida. Vocês, que já estão com idades na faixa dos dezoito anos – alguns aí até com mais -, não vejo impasse em lê-las. E a Gabriela Leite possuía um nível de escolaridade elevadíssimo. Exerceu cargo político, lutou corajosamente contra injustiças, e até crimes praticados contra meretrizes. É a obra que eu mais lhe indico.

 

Trouxe na próxima aula um conto meu sobre o assunto. Num instante, todos estavam a dramatizá-lo. Todo aluno queria ser o Gato da história.

 

Pra quê!? Comprei briga com a diretora e bajuladoras. Um massacre! Demonstrando não terem conhecimento de qualquer dessas obras, dispararam censuras contra elas e contra mim. Senti-me o Sócrates do nosso tempo. (Faltou só me obrigarem a tomar cicuta.)

 

Só sei que, de tanto criticarem, elas acabaram foi fazendo uma propaganda maciça do meu conto. Alunos de outras turmas, e até professoras de outras escolas, todos ficaram curiosos em conhecê-lo. As mestras disseram que iam trabalhá-lo em suas salas; que era importante os alunos conhecerem essa realidade da vida.

 

Agradeci à diretora e suas comparsas, alegando que elas acabaram foi fazendo uma boa pesquisa de mercado para mim; que se eu quisesse escrever sobre esse tema, saberia que as vendas estariam garantidas.

 

- Imagem: Divulgação.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine. Para visitar sua página exclusiva em Via Fanzine, clique aqui.

 

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Sem razão:

A diretora que gritava

 A Edna gritou com um aluno de uns vinte anos. Isto, no pátio, à vista de uns trinta espectadores. Ordenou que ele fosse embora. Ele tentava se explicar, ela gritava: “Pra casa!” “Sai!” Ele tentava de novo, ela de novo berrava: “Vai embora!” “Chispa!” Se ela tivesse tratado assim um cachorro, garanto que ele teria mordido nela.

 

Por Sérgio Souza*

Para Via Fanzine

1º/04/2020

 

“Pra pedir silêncio eu berro / Pra fazer barulho eu mesma faço.” [Rita Lee, Jardins da Babilônia.]

 

Ela era uma sofredora. E fazia os outros sofrer. Vamos chamá-la de Edna. Mulher forte, cheia de energia, muito trabalhadeira, porém, sangue quente, descontrolada. Alguns preferiam dizer que ela era bipolar. Ora dava presentinhos, ora maltratava a pessoa.

 

Mais um capítulo da educação brasileira, real, tirando a cortina do que escondem de você. Geralmente, no início do ano, vinha para nós uma ordem: “Não comentar nada do que virem de errado nas escolas.” Ora bolas, “quem não deve não teme”. Era o que pensávamos.

 

A Edna gritou com um aluno de uns vinte anos. Isto, no pátio, à vista de uns trinta espectadores. Ordenou que ele fosse embora. Ele tentava se explicar, ela gritava: “Pra casa!” “Sai!” Ele tentava de novo, ela de novo berrava: “Vai embora!” “Chispa!” Se ela tivesse tratado assim um cachorro, garanto que ele teria mordido nela.

 

O moço demorou uns três dias a voltar. Quando retornou, chamou-me num canto e revelou-me o que, naquela hora, passara pela cabeça dele. Estava decidido a ir em casa buscar um revólver e dispará-lo contra a agressora. Confessou-me que pegou o ‘berro’, colocou-o na meia, amarrou a calça embaixo para que ele não caísse. Ia saindo para o ato, quando viu seus pais dormindo. Aí ele pensou: “Não vou fazer besteira, pra não trazer mais desgosto ainda aos meus velhos.” Confidenciou-me que já percorrera o caminho do crime. Já havia ‘apagado’ um noutra cidade e cumprido pena.

 

Eu analisei com ele que estava errada mesmo a atitude da diretora. Entretanto, o que por direito lhe cabia seria entrar na Justiça contra ela. Jamais querer resolver tudo assim na bala. (Ele se mostrou bastante aliviado com o que eu lhe dissera.)

 

Agora vem outra faceta da história. Devido a esses urros, vários alunos e alunas foram perdendo o respeito por aquela cidadã. Ela acabava de gritar, alguém se manifestava:

 

- Ela é solteirona, ela tá precisando é de homem.

 

Outros afirmavam o equivalente, usando, contudo, expressões chulas:

 

- Ela tá precisando é de um bem grande (fazendo um gesto obsceno).

Ah, mas houve dia, quando a insatisfação foi geral. Uma professora seguiu até a sala dela, a fim de reclamar-se de uma aluna. Observação: terceiro ano do Ensino Médio, noturno, Educação de Jovens e Adultos. Idades variando entre vinte e cinco a cinquenta anos.

 

Face à reclamação, a diretora foi até lá, caminhando a passos muito rápidos, com aquele seu inconfundível tamanco, que também gritava. Chegou à sala, emitiu seu brado retumbante. Rebentou com a turma inteira. Nisto, uma senhora de uns quarenta e sete anos se defende: “Diretora, eu tô fora disto. Eu não fiz nada. Não mereço os xingamentos.” “Nem eu.” “Nem eu.” “Nem eu.” E aquilo ecoou por toda a sala. Ora, uma diretora educada conversaria apenas com a aluna sobre quem recaíra a reclamação, e resolveria ali com ela.

 

Mais uma curiosa reação: uma aluna de uns vinte e seis anos sai, vai falar com a moça da portaria, pessoa bastante simpática e acessível.

- Michele, todo mundo fala que a Edna tá precisando é de homem. Eu nunca vi ela com um. Acho que ela gosta é de mulher. Por favor, fale com ela que, se for o caso, eu tô à disposição dela, porque eu também gosto. Bem, e se ela ainda quiser pôr um dinheirinho na minha mão, eu aceito, porque eu sei que ela tem, e eu estou precisando.

 

Conclusão: As coisas não se resolvem bem, nem no grito, nem na bala. Sugestão: Que tal trabalharmos duro, em silêncio, e deixar que o nosso sucesso grite por nós?

 

- Imagem: Divulgação.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine. Para visitar sua página exclusiva em Via Fanzine, clique aqui.

 

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Reprovado:

Cláudia e Ramon

O irresponsável era pai solteiro. Às vezes, ele aparecia na escola, mas para ficar, cinicamente, passeando pelos corredores com seu filho num carrinho. Nem diretora, nem vice, nem ninguém o incomodava. Quando se cansava, dali mesmo ele ia embora.

 

Por Sérgio Souza*

Para Via Fanzine

27/03/2020

 

O Ramon queria, a qualquer custo, passar. Exigiu que eu repetisse a prova pra ele – o que também pouco adiantaria, já que ele não sabia quase nada. Não atendi.

 

Conheça, leitor(a), mais um dos tantos fatos intrigantes que ocorrem nas escolas – e que ninguém costuma revelar.

 

O Ramon era o pior aluno do colégio. Oitava série. Faltava muito. Quando aparecia, era pra bagunçar. Um dia, eu estava escrevendo no quadro. Quando virei para explicar a matéria, quase que meu olho tromba com um giz inteiro, lançado a toda velocidade. Quem teria jogado? Os incessantes risos denunciavam que era o Ramon.

 

O irresponsável era pai solteiro. Às vezes, ele aparecia na escola, mas para ficar, cinicamente, passeando pelos corredores com seu filho num carrinho. Nem diretora, nem vice, nem ninguém o incomodava. Quando se cansava, dali mesmo ele ia embora.

 

O fim do ano chegou. Dei a última prova. O Ramon nem foi fazê-la. Resultado: reprovado. Restavam ainda dois dias letivos.

 

Na aula seguinte, aparece o desregrado. E é aí que entra uma personagem emblemática desta história: Cláudia, a diretora.

 

O Ramon queria, a qualquer custo, passar. Exigiu que eu repetisse a prova pra ele – o que também pouco adiantaria, já que ele não sabia quase nada. Não atendi. Ele foi conversar com a Cláudia. Voltou avisando que ela queria dialogar comigo. Larguei a sala e fui. E ela:

 

- O Ramon afirmou que você é um péssimo comunicador. Que ele nem ficou sabendo que ia haver prova.

 

- Cláudia, eu sou um ótimo comunicador. Além de professor, sou músico, escrevo para jornal e participo de teatro. De mais a mais, eu faço é assim: aviso oralmente e ainda passo o recado no quadro.

 

- Ah, mas ele poderia estar distraído na hora. Quem não se distrai?

 

- Ele está sempre distraído. Só bagunça. Aliás, isto é quando ele aparece na sala. Você sabe melhor que eu. (E voltei ao meu posto.)

 

O Ramon foi novamente procurar a chefe. Depois retornou, informando que ela queria me ver outra vez. Compareci. E ela:

 

- O Ramon garantiu que você não avisou nada a ninguém.

 

- Cláudia, são quarenta e dois alunos na sala. Quarenta e um fizeram a avaliação. Isto não basta, para provar que a turma estava avisada?

 

Estou a teimar em trabalhar, quando sai o Ramon e volta todo ofegante:

 

- A Cláudia insiste em querer conversar com você. Tá com uma raiva!

 

Fui e voltei. O Ramon inicia o seu espetáculo: vai à frente e começa a gingar e falar de costas, usando frases intimidatórias, como esta:

 

- Eu não quero ir pra casa com dúvida não! Cê tem que resolvê é agora, se vai ou não vai me passá. Aí é que eu vou sabê o quê que eu vô fazê.

 

Eu o desafiei:   

 

- Ramon, homem, que é homem, não fala de costas não. Por que você não fala de frente?

 

Ele virou preguiçosamente e perguntou:

 

- E aí, cara? O cara aí vai me passá ou não?

 

Respondi secamente:

 

- Não! Você tomou bomba!

 

A turma aplaudiu de pé. Ele foi escorregando as costas na parede e caindo, simulando um desmaio. Fim da aula e do ano.

 

A Cláudia me esclareceu tudo: apesar de ser casada e ter uma filha, ela estava apaixonada pelo Ramon. E nos cantinhos escuros da escola, quando não viam ninguém, eles se abraçavam e beijavam. E, se ele tomasse bomba, por certo, ele desapareceria de lá.

 

Analisemos. Ele, com dezenove anos, ela com quarenta... Será que ele a amava de verdade? Poderia até ser. Ou o malandro teria entrado nessa, por interesse financeiro, ou pensando em garantir a sua eterna aprovação? E se isto falhasse, ele sumiria do pedaço. (E o maridão?) 

 

- Imagem: Divulgação.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine. Para visitar sua página exclusiva em Via Fanzine, clique aqui.

 

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Viajando:

“Incoherencia en el aire”

A diretora era, então, autoritária, ditadora. Gritava com todo mundo; saía, largando gente falando sozinha... E ela se gabava de ser a única pessoa capaz de pôr ordem naquela casa.

 

Por Sérgio Souza*

Para Via Fanzine

19/03/2020

 

França! Emocionou-se ao contar que sentiu a presença de Nossa Senhora de Lourdes, quando esteve em sua cidade.

 

A diretora era disciplinadora! Todavia, não no entender de Carl Rogers ou de Paulo Freire. Carl Rogers, como sabemos, era defensor da liberdade para aprender; para ele, o aluno é o centro da aprendizagem. Paulo Freire, só de ler o título da sua principal obra, “Pedagogia do Oprimido”, já dá para vislumbrar a sua linha de pensamento. Professor e aluno seriam parceiros (livres de opressão, hierarquias); ênfase aos intercâmbios, um ensinando para o outro.

 

A diretora era, então, autoritária, ditadora. Gritava com todo mundo; saía, largando gente falando sozinha... E ela se gabava de ser a única pessoa capaz de pôr ordem naquela casa.

 

Paralelamente, dizia-se muito católica – por tradição familiar.

 

Uma noite, ela chega de repente à sala dos professores e anuncia:

 

- Gente, vou me ausentar por uns dias. Vou viajar, mas, pelo amor de Deus, não contem isto para os alunos não, se não, eles vão fazer a maior bagunça nesta escola. Falem com eles que eu adoeci e estou em casa me tratando; que brevemente, estou aqui de volta.

 

Realmente, desapareceu. Um dia, dois, uma semana, quinze dias...

 

Enfim, retorna a mestra: alegre, falante, refeita, revigorada. Foi descrevendo, com riqueza de detalhes, os países pelos quais passou, os lugares maravilhosos que encontrou. Como o catolicismo não poderia ficar esquecido, peregrinou pelas cidades-santuário. França! Emocionou-se ao contar que sentiu a presença de Nossa Senhora de Lourdes, quando esteve em sua cidade. Já em Portugal, não poderia deixar de visitar a Cova da Iria, onde está situado o Santuário de Nossa Senhora de Fátima. Chorou, revivendo o sonho das três pastorinhas, tendo a Virgem Maria diante dos seus olhos. “Fátima, hoje, está bem diferente do que foi na época. Uma porção de condomínios, hotéis de luxo. Tem recebido cerca de seis milhões de turistas anualmente.” Era o que noticiava, com radiante entusiasmo.

 

Na sequência, apresentou um cartão, com uma prece muito bela, que ela trouxe de lá. Foi lendo em voz alta, pedindo a todos que repetissem com ela. (E as aulas paralisadas, né? E os alunos bagunçando na sala, né?) Complementando o ritual, ofereceu, a cada um dos participantes, uma lembrança: um delicado terço azul, da cor do Céu. Católicos, evangélicos, ateus, todos ganharam o presente.

 

Uma professora, que a tudo assistia, com vago e merencório olhar, resolveu tirar uma dúvida:

 

- Diretora, logo antes de viajar, a senhora pediu que falássemos com os alunos que a senhora estava doente, em tratamento. Nós falamos. Mas afinal, a senhora esteve mesmo enferma?

 

A viajante do espaço deu uma risada bem alta e exclamou:

 

- De jeito nenhum! Nunca estive tão sadia. Melhor agora, depois desse belo passeio.

 

- Então a senhora perdeu os dias não trabalhados?

 

- Claro que não! Fui a um médico, queixei-me com ele de que eu estava meio cansada e querendo viajar. Perguntei-lhe se ele poderia dar-me uma licença, de uns quinze dias. Ele respondeu assim:

 

- Sem problema. Não é a primeira que eu dou, e sei que não será a última. (Foi só pegando o papelzinho e preenchendo-o para mim.)

 

Nos bastidores, a professora dos olhos de mar se dirige a outra:

 

- E, durante esse tempo, a escola ficou acéfala, não é, amiga?

 

- Acéfala sempre foi – ironizou a colega.

 

- Imagem: Divulgação.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine. Para visitar sua página exclusiva em Via Fanzine, clique aqui.

 

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Modelagem:

Confusão na aula de artes

É a vez do Lucas. Então, ele vai à frente e mostra para todos o que havia esculpido: um pênis. Ficou perfeito.  Algumas meninas coraram e até esconderam o rosto - com a mão meio aberta, é claro...

 

Por Sérgio Souza*

Para Via Fanzine

11/03/2020

 

A instrutora pegou o Lucas - com pouco jeito - pelo braço e foi levá-lo à diretora. Esta faltou só derrubar a escola em cima do menino. Os berros atraíram curiosos: outras docentes, a supervisora, a secretária, as cantineiras, o porteiro...

 

Dizem que em toda escola tem que ter cola. E parece também que tem que ter confusão. Os fatos a seguir são verídicos. Os nomes são fictícios. Garanto que, se um presidente e sua ministra soubessem do ocorrido, eles iriam ‘surtar’ (caso não desmaiassem).

 

Está a Rose, dedicada professora, em plena aula de Artes, para uma turma de sexta série. Os alunos levaram barro e estão a praticar. Ao final, foi dado um dever: cada um deveria fazer, em sua casa, uma escultura, mostrando-a na aula seguinte. Surgem dúvidas:

 

- Esculpir o quê, professora? Dá uma ideia – indaga uma menina.

 

- Cada um vai esculpir um objeto, representando aquilo de que mais gosta. Você é muito religiosa, por que não esculpe um anjo?

 

- E eu, professora? – pergunta um aluno.

 

- Ah, você gosta mesmo é de futebol. Que tal esculpir uma bola? Divida os gomos direitinho, pinte-os... Aliás, vocês todos, caprichem nos detalhes! Façam uma coisa o mais próximo possível da realidade.  

 

Aula seguinte. Cada aluno vai à frente exibir a sua obra de arte. Surge o anjinho (“Parabéns!”); a bola (“Ficou ótima!”), e outras coisas mais. A professora infla-se de orgulho pelos seus alunos. Até que...

 

É a vez do Lucas. Então, ele vai à frente e mostra para todos o que havia esculpido: um pênis. Ficou perfeito.  Algumas meninas coraram e até esconderam o rosto - com a mão meio aberta, é claro; outras, juntamente com os meninos, deram estrondosas gargalhadas. E quanto mais raiva a professora passava, mais os alunos riam.

 

A instrutora pegou o Lucas - com pouco jeito - pelo braço e foi levá-lo à diretora. Esta faltou só derrubar a escola em cima do menino. Os berros atraíram curiosos: outras docentes, a supervisora, a secretária, as cantineiras, o porteiro... “Vou ligar pra sua mãe e marcar com ela uma reunião amanhã ao meio-dia. Acredito que ela nem venha, pela vergonha que você está causando” – afirmou categórica a dirigente.

 

Dia seguinte: quinze para o meio-dia. Vê-se num dos corredores da escola uma linda dama, vestido verde, sapatos pretos, um show de elegância. A diretora vai até ela:

 

- Bom dia! A senhora é inspetora? Ou a nova secretária da educação?

 

- Nem uma coisa nem outra. Sou a mãe do Lucas.

 

- Ah, ótimo que a senhora tenha comparecido. É que seu filho cometeu uma falta grave nesta escola. Daria até expulsão, viu? (Resenha-se o acontecimento. Professora, supervisora, diretora, cada uma fala mais; mãe e filho só ouvem.) Até que deram voz ao menino-prodígio.

 

(Tremendo) – Por que você fez isto, Lucas? – interroga a diretora.

 

E ele:  

 

- Bem, a professora pediu que cada um fizesse algo de que gostasse, e eu gosto disto. Não vejo nada de anormal. (Oh!!! geral.)

 

(Diretora, bastante irritada.) – E a senhora sabia disto?

 

- Sabia. Ele está com doze anos e é homossexual desde os oito. Começou com um priminho dele. Ele me conta tudo.

 

- Que absurdo! E a senhora não falou nada com ele?

 

- Não. Respeito a opção dele. E olha, nós somos de Brasília. Já moramos em Paris, Londres e Amsterdã. Tivemos contato com as mais variadas manifestações artísticas. Obras, como a do Lucas, tenho certeza de que não seriam repudiadas na Europa. E achamos que o Brasil ainda está muito atrasado em termos de tolerância, respeito e aceitação. E saiba que a senhora não vai expulsar o Lucas.

 

- Como assim?

 

- Eu mesma vou tirá-lo desta escola.

 

(E ao filho.) – Lucas, embora você não tivesse a intenção – eu sei -, você causou incômodo às suas mestras. O que você deve fazer?

 

Curvando-se perante uma a uma, o menino pede desculpas. Filho e mãe partem, deixando um rastro de mistério e perplexidade.

 

- Imagem: Divulgação.

 

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Transporte:

Chiquinho e seu burrinho

O Chiquinho era o motorista da van. Destoando de toda a tranquilidade ambiental, o Chiquinho era bastante nervoso, estressado. Teria uns vinte e sete anos. Sem saber, sua voz era engraçada. E os termos que usava? As frases? As constantes reclamações?

 

Por Sérgio Souza*

Para Via Fanzine

04/03/2020

 

Ao forçar a porta, ela trááá! Soltou na sua mão. O homem ficou azul. Parou. Arremessou aquela porcaria no meio do mato, e a viagem seguiu...

 

Antes de raiar o sol, nós, professores, já nos aprontávamos para ir trabalhar. No meu caso, eu caminhava uns quatrocentos metros e pegava a minha van. Fizesse chuva, fizesse sol, aqui barro, ali poeira, não podíamos esmorecer. Estávamos todos ali, valentes, denodados, cumprindo o nosso dever e confiando na educação, como instrumento de transformação, para um Brasil melhor. Profissão bonita. Distinta. Nobre. Alicerce de um país. (Pelo menos, nos discursos.)

 

Rumo à roça. Como de rotina, o veículo ia parando em diversos pontos para receber as professoras (em bem maior número que professores). Estrada de chão. Era bom. A gente se encantava com as belíssimas paisagens. Coqueiros. Sol raiando entre folhas. Aqui um lago; ali um riacho; além, uma cascata. Bois, por vezes, tomando a nossa frente. (Lá no fundo, a chaminezinha de um alambique.) Tudo bonito. Cenário de cinema.

 

Tudo bonito, para quem tem sensibilidade ou espírito poético. Quem é um tanto pragmático, só vê o lado utilitário das coisas – como ‘o homem sério que contava dinheiro’ (da Banda, ou do seu inspirador, O Pequeno Príncipe). Algumas professoras simplesmente dormiam; outras trocavam tudo aquilo por um cenário menor: seu celular; e havia as que falavam sozinhas, comentando sobre a novela da tevê. Em suma: a Natureza dava um espetáculo todos os dias - nenhum exatamente igual ao precedente - e quase ninguém o via. Principalmente o Chiquinho.  

 

O Chiquinho era o motorista da van. Destoando de toda a tranquilidade ambiental, o Chiquinho era bastante nervoso, estressado. Teria uns vinte e sete anos. Sem saber, sua voz era engraçada. E os termos que usava? As frases? As constantes reclamações?

 

Um dia ele virou um leão, quando o chefe lhe ordenou que, num certo ponto, desviasse a sua rota, para passar por um colégio bem distante. Sem saber pra quê, ele obedeceu. Chegando lá, era pra ele carregar diversos sacos de laranjas até a van, os quais iam ser transportados à outra escola. O Chiquinho endoidou-se:

 

- É isto? Não vou carregar não! Minha van agora virou burro de carga? Eu sou pago é pra fazer o transporte de alunos, até a escola tal. Eu não sou obrigado, nem a passar aqui neste estabelecimento, quanto mais, pra ficar carregando sacos de laranja.

 

A diretora ligou pra Secretaria de Educação e o motorista, querendo ou não, foi obrigado a carregar. Detalhe: seriam por todos os dias. Ele teria então de levantar uma hora mais cedo, pois, do contrário, chegaria atrasado à escola de destino. E ele: “Logo que eu puder, eu largo essa p***! Vou trabalhar por conta própria. É muito melhor.”

 

Ah, mais um detalhe: a van já estava bem velha, e as portas, bem enferrujadas. Imaginem a dificuldade de abrir e fechar aquilo ali, fosse para receber alunos, fosse para transportar aquele laranjal. Toda hora, motivo para um novo xingamento. E de risos para nós.

 

Um dia, ele resolveu dar carona para a avó de um dos alunos, a qual estava à beira da estrada. A porta abriu aos arrancos. A mulher entrou e comentou:

 

- Chiquinho, não demora essa porta arrancar na sua mão.

 

Profetizou. Um meio quilômetro à frente, o Chiquinho desceu para receber mais um aluno. Ao forçar a porta, ela trááá! Soltou na sua mão. O homem ficou azul. Parou. (Cena cômica: aquele ‘pantasma’, com a porta na mão, sem saber o que fazer.) Pronto! Arremessou aquela porcaria no meio do mato, e a viagem seguiu, sem porta mesmo. Ficou até mais ventilado, ou melhor, com ar condicionado.

 

Conclusão: quando, na vida, as portas não estiverem se abrindo para você, chame o Chiquinho.

 

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Homenagem:

Panela ‘véia’

Seria uma bela surpresa. Uma aluna da quinta série ia recitar um poema. Descobriram que a música predileta da diretora era Panela “Véia”, grande sucesso de Sérgio Reis.

 

Por Sérgio Souza*

Para Via Fanzine

26/02/2020

 

Chegou a hora! O povo já está chegando. O violeiro e a cantora já estão aí; também a menina que vai recitar e o grupinho de teatro. Olhem lá, já está chegando o prefeito...

 

 

Dia da diretora. Os puxa-sacos de plantão estão ansiosos para declarar-lhe, mais uma vez, todo o seu amor. Os preparativos começaram um mês antes. Tudo, escondidinho dela. Seria uma bela surpresa. Uma aluna da quinta série ia recitar um poema. Descobriram que a música predileta da diretora era Panela “Véia”, grande sucesso de Sérgio Reis. Sendo assim, contrataram um violeiro para tocá-la; e uma aluna do terceiro ano – que também adorava esta música - ia cantá-la. (Já estavam até antegozando, imaginando a empolgação da chefona.) Um teatrinho, de cunho moral, estava sendo ensaiado pelos estudantes da sétima série. Local do evento: salão nobre da escola, com capacidade para uns trezentos e cinquenta espectadores. Horário: 19 horas.

 

E os convidados? Ah, o primeiro a ser lembrado foi o prefeito. Ele; o presidente da Câmara; a secretária da Educação... E assim por diante, todos, para abrilhantarem, ainda mais, aquele nobilíssimo momento.

 

Já na véspera (não sei como), a diretora ficou sabendo da homenagem.

 

Chegou o dia! Chegou a hora! O povo já está chegando. O violeiro e a cantora já estão aí; também a menina que vai recitar e o grupinho de teatro. Olhem lá, já está chegando o prefeito (pegando na mão de todos, abraçando as criancinhas...). Um pouco depois, o presidente da Câmara; a secretária de Educação; professoras, alunos, todos, enfim. Já ia começar. Uns vinte minutos antes, a diretora havia sido vista na escola.

 

Todo mundo no salão. Palco, uma mesa florida e bem arranjada, com água para os convidados... Uma mestra, com um vestido de veludo preto, elegantíssima, sobe ao palco, fala alô, alô várias vezes para testar o microfone, o qual não queria funcionar (como tudo nas escolas)... Agora sim: “Boa noite, senhores e senhoras...” Fez a abertura do evento, e seguiu chamando as celebridades para comporem a mesa. “Agora, a nossa convidada especial, a Sra. Regina Albuquerque da Silveira, nossa querida e excelentíssima diretora.” (Palmas, gritos, assobios – bajulação total!). Convidamos a nossa diretora para também vir fazer parte da mesa. (Ela não aparece.) Segunda chamada... Terceira tentativa... Cadê a diretora?...

 

(A apresentadora) – Gente, a diretora sabia, não sabia?

 

- Sim. E ela estava na escola.

 

- Gente, o que pode ter acontecido. (Chamando um aluno da plateia.)

 

– Vai você, tenta localizar a Regina. Fala com ela que a homenagem já está começando.

 

Volta o aluno sem resposta.

 

(Alguém.) – Vamos ver no banheiro. Às vezes, ela passou mal (teve uma diarreia).

 

Olharam os banheiros, nada. “Será que ela então foi para casa, recusando a nossa homenagem?”

 

Olham daqui, olham dali, enfim, encontram a homenageada. Estava debaixo de uma mangueira, com uma aluna, chupando mangas.

 

Falam com ela da homenagem. Ela sai às pressas, chega ao local limpando a boca com a mão e passando no vestido. Tropeça no pé da mesa, derrama água no prefeito, e vamos em frente.

 

A apresentadora esqueceu-se de chamar a menina da poesia e os meninos do teatrinho – o que era comum acontecer. No entanto, lembrou-se da Panela “Véia”. A diretora começou cantando, juntamente com os cantores, e batendo palmas. Mas bruscamente se levantou e sumiu. Estranho, não é? Estranho para quem não conhecia a diretora. De regra, ela se comportava com uma cínica indiferença aos assuntos da escola. Não sabia nem onde ficavam as salas.

 

- Imagem: Divulgação.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine. Para visitar sua página exclusiva em Via Fanzine, clique aqui.

 

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Ocorrência:

Clima pesado

A escola era bem comentada na cidade. Principalmente, por acumular uma série de problemas sociais: bagunças, brigas, “bebidas ilícitas”, “drogas ilícitas”, “sexos ilícitos”...

 

Por Sérgio Souza*

Para Via Fanzine

19/02/2020

 

Eu sei é que a moçada vivia alegre, numa constante “alegria ilícita”.

  

Entrei. Dei bom dia. Nenhum aluno respondeu. Os discípulos estavam assim: uns com ares de risos, outros tensos, preocupados. Quando chego à minha mesa, algo me deixa estarrecido. Após um minuto de estagnação, deixo a sala de aulas e saio procurando a diretora. Em vão. Naquela hora, ela não estava. Tinha ido a um enterro.

 

A escola era bem comentada na cidade. Principalmente, por acumular uma série de problemas sociais: bagunças, brigas, “bebidas ilícitas”, “drogas ilícitas”, “sexos ilícitos”... Eu sei é que a moçada vivia alegre, numa constante “alegria ilícita”.

 

O educandário ficava na zona rural. Qualquer colégio, principalmente registrando conflitos, e distanciado de policlínicas e hospitais, deveria ter um serviço de ambulância para primeiros socorros. Esse não tinha.

Havia também os problemas cognitivos, pedagógicos, de relacionamento entre colegas de trabalho, de mães contra professoras, contra diretora, problemas de leitura, interpretação, e pasmem: até problemas de matemática. E um erro de cálculo pode acarretar graves consequências. Por acaso, você duvida?

 

Manhã de brumas, um enigma pairava no ar. Não conseguia entender o que teria acontecido naquela turma. Diretora e docentes também evitavam falar. Na cozinha, foi que uma cantineira me segredou, e eu vou contar direitinho pra vocês.  

 

A professora entra na sala. Dá um grave e inútil bom dia. Chega xingando! Ainda dirigindo-se aos alunos, inicia a esculhambação:

 

- Hoje é prova de matemática e, como vocês sabem, valendo vinte pontos. Garanto que a aprovação ou desaprovação de muitos vai depender do resultado de hoje.

 

– Psiu!!!... Cala a boca!

 

– Você aí também, o que está fazendo fora do seu lugar? Senta! Não vai demorar muito, eu vou tomar a prova de um punhado de vocês, rasgar, jogar no lixo e dar zero. (Parou, olhou com bastante austeridade, como se estivesse perguntando: “Posso continuar?”).

 

Conseguiu um raro prodígio: pôr os alunos calados e imóveis naquela instituição.

 

Ainda passando instruções, e voltando a cobrar disciplina, foi-se afastando..., lentamente..., até sentir que suas nádegas já tocavam a mesa. Deu de repente um pulo pra trás, a fim de bater sentada em cima daquele móvel. A mesa PLÁÁÁ! Sendo ela uma professora alta e horizontalmente avantajada - tudo isso, somado ao grande impulso tomado, não tinha como a mesa suportar. Foi um tombo espetacular. Voou pedaço de madeira pra todo lado, e a mestra ficou agarrada entre os cacos, sem conseguir se levantar para sair do labirinto.

 

Festa para os alunos! Gritos, assobios, gargalhadas. Foi comparável a um gol no futebol. Uns tiravam fotos, outros filmavam, os demais viravam as carteiras de pernas pro ar; brincavam de guerra com qualquer objeto que viam pela frente. Até que...

 

Entra a diretora! Gesticula, treme, berra, ameaça chamar a polícia.

 

Aparecem uns voluntários, levam a desastrada a um hospital, para ver se ela não tinha quebrado a bacia. Arre!

 

Por fim, não querendo acumular mais peso ainda sobre a desditosa mestra - que também tinha lá suas qualidades - cabe uma reflexão: se nesse pulo ela não soube calcular o peso do seu corpo, a velocidade, o ângulo, o impacto, a resistência do material, pode-se suspeitar de que ela não fosse assim tão boa em matemática. Nem em física.

 

Só sei dizer que ela nunca mais apareceu, nem ao menos na cidade. Dizem que se mudou para bem longe.

 

- Imagem: Divulgação.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine. Para visitar sua página exclusiva em Via Fanzine, clique aqui.

 

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Bonzinho:

O aluno que respondia a vinte e oito processos

Eu, querendo tirar as dúvidas da turma, e ele zuando o tempo todo. Depois, arranjou uma lanterna e danou a andar pela sala, lançando o foco de luz contra os olhos de cada um dos colegas.

 

Por Sérgio Souza*

Para Via Fanzine

12/02/2020

 

Parei a aula e pedi: Elton John, por favor, colabore. Bem gritado, ele respondeu: “Ô fdp, eu não te obedeço não. A única pessoa que eu aceito falar comigo aqui na escola é a Zizi.”

 

Esse era o cara! Todavia, temos muito que contar, e não vamos falar sobre ele agora.

 

Nessa escola, os melhores alunos eram aqueles que apenas trepavam na laje, furavam um buraquinho sobre a cobertura dos sanitários – que era de zinco – para ver professoras e alunas (ou professores e alunos – dependia do gosto) despidas(os), fazendo as suas necessidades, ou tomando o seu banho.

 

Ah, também não era tanto assim. Havia bons pupilos. Meninas têm tendência a ser mais caprichosas com o seu material.

 

Pois bem, quando fui para esse estabelecimento, a fama de alguns estudantes já chegara na frente. Tive a chance de conferir. Esses, diria meu primo, “davam diarreia em cabrito”.

 

Um deles – podia-se considerar – era o rei dos capetas. Tinha nome de um grande cantor inglês. Para não denunciá-lo nominalmente, vou tratá-lo por Elton John. Uns dezenove anos, oitava série atrasada. Uma professora, casada, desabafava-se muito comigo, queixando-se dele. Declarava que o tal, ali pelos corredores, quando não via mais ninguém, relava seu corpo no dela, passava a mão nela, convidando-a: “E aí, gata, quando nós vamos pra cama?” A importunada já havia reclamado com diretora, vice, supervisora... Nada.

 

Chegou o fim do ano. Faltando dois dias para o encerramento do período letivo, o Elton John não me dava sossego. Eu, querendo tirar as dúvidas da turma, e ele zuando o tempo todo. Depois, arranjou uma lanterna e danou a andar pela sala, lançando o foco de luz contra os olhos de cada um dos colegas.

 

Parei a aula e pedi: Elton John, por favor, colabore. Bem gritado, ele respondeu: “Ô fdp, eu não te obedeço não. A única pessoa que eu aceito falar comigo aqui na escola é a (vamos chamá-la de) Zizi.”

 

Fui atrás da Zizi. Quanto mais eu me queixava, mais ela escarnecia.

 

Chegou até a simular um desmaio, de tanto rir. Então, eu perguntei:

 

- Você está rindo de quê?

 

- Ah, cê tem o mesmo jeito de falar do meu marido. Cê parece demais com ele. Imaginando o Elton John te provocando assim, é o mesmo que eu estar vendo ele provocando o meu marido.

 

- Guarde só esta frase – avisei: depois de amanhã, haverá prova final.

 

Seu protegido não passará.

 

- E se ele tirar boa nota?

 

- Não vai tirar.

 

(Malandragem.) À noite, fui à casa dessa humilhada professora, e bolamos um plano. Dar uma prova com questões abertas, mais uma redação, valendo a metade dos pontos. Na redação, bastava a gente dizer: gostei ou não gostei, e dar a nota. Entendíamos que o Elton, de qualquer forma, não passaria. O Plano era para garantir.

 

Deu certo. De uma turma de trinta e dois alunos, oito não passaram, nem comigo nem com ela (dentre eles, o Elton).

 

Ao saber do resultado, a Secretária de Educação ficou doida: “É muita reprovação! Vocês têm que escolher pelo menos um para passar.” (Entenda-se: empurrar.)

 

A Zizi não perdeu tempo:

 

- O Elton, né gente. Conto com vocês.

 

- De jeito nenhum. Este nós não passamos mesmo!

 

Aí a diretora sugeriu: o “Tyson”, pode ser? Respondemos:

 

- Pode sim. Ele já nos contou que responde a vinte e oito processos na Justiça, mas, com a gente, ele é bonzinho.

 

- Imagem: Divulgação.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine. Para visitar sua página exclusiva em Via Fanzine, clique aqui.

 

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Episódio de Hoje:

O Elefantinho

Esta professora era boa. Até demais. Nem sempre se tem um apoio da direção para se fazer um trabalho de qualidade. E pode existir alguma coisa por detrás.

 

Por Sérgio Souza*

Para Via Fanzine

06/02/2020

 

Trajava uma calça jeans larga. Num movimento brusco que fez, a roupa desceu. Lá estava o elefantinho.

 

Esta professora era boa. Até demais. Nem sempre se tem um apoio da direção para se fazer um trabalho de qualidade. E pode existir alguma coisa por detrás. Por exemplo, quando uma instrutora começa a sobressair-se, a inveja às vezes se instala, podendo envolver até a diretora. Tenta-se então obscurecer aquele brilho. Outra estratégia é tentar gelar a pessoa que se destaca.

 

Em que pesassem todas essas adversidades, uma docente - vamos apelidá-la de Dag (Dagmar) - conseguiu realizar um trabalho excepcional com seus alunos.  

 

Dag era clara, bonita, cabelos parcialmente anelados, estatura um pouco abaixo da normal. O que mais salientava eram seus olhos. Exibiam-se pretos, brilhantes, reveladores de bastante inteligência – e de uma enigmática sensualidade. Teria uns vinte e sete anos. Casada com Rogério, engenheiro, com quem teve uma filha de uns sete.  Residiam em um apartamento, um pouco retirado da cidade.

 

Campainha toca. Abro a porta. Era um aluno, chegando à minha casa.

 

- Professor, preciso urgente conversar com você. Pode me dar um minuto da sua atenção? Preciso desabafar.

 

- Mas é claro! Robinho, você está com a aparência assustada. O que aconteceu? 

 

- O que aconteceu foi... foi... foi que eu fiquei com a Dag, a professora de biologia. (Mas, por favor, não espalhe isto, principalmente na escola, porque, como você sabe, ela é casada, e pode dar confusão.)

 

- Ficou como? Por exemplo, numa festa?

 

- Não, professor. Eu fui com ela pra cama.  

 

- Sério!? Com a Dag? Mas como isto sucedeu?

 

- Terminada a aula, ela foi atrás de mim. Parou o carro, abriu a porta, sugeriu que eu entrasse e seguisse com ela até o seu apartamento, para ajudá-la com umas caixetas de livros. Achei aquilo meio estranho, mas fui. Chegando lá..., ela começou a acariciar o meu rosto, depois o meu peito, e revelou que sempre tivera atração por mim; que estava excitada e “afim” de fazer amor comigo. Fiquei perplexo, vendo bruxinhas e estrelinhas por todos os lados.

 

- E o seu marido?

 

- Fique tranquilo. Aquele besta está viajando.

 

Confesso que topei, pensando mais nas boas notas que ela pudesse me dar. Contudo, ela soube tornar o momento fascinante. Som, sexo, chocolate e muito vinho.

 

Dias depois, chega à minha casa o Alex. Contou-me uma história parecida, só que, desta vez, acontecida com ele. (Campainha toca.) Era o Robinho. Estranhou ali o Alex. Desconfiou que ele estivesse contando similar história, com aquela luxuriosa senhora. Os dois entram em franca discussão, cada um ansiando por arrogar-se a autoria daquela ousada lascívia, afirmando assim a sua masculinidade.   

 

- Como é o apartamento dela? – indagou Robinho.

 

O Alex foi descrevendo-o, não se esquecendo nem dos porta-retratos: um, do casamento; outro, da filha.

 

(Robinho) – Agora é que eu quero ver se você ficou mesmo com ela: me dá um detalhe do corpo dela, algo muito especial.  

 

(Alex) – Um elefantinho. Ela tem um elefantinho tatuado no traseiro.

 

Dias depois, na escola, a Dagmar agachou-se para colocar alguns objetos no seu escaninho. Trajava uma calça jeans larga. Num movimento brusco que fez, a roupa desceu. Lá estava o elefantinho.

 

- Imagem: Divulgação.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine. Para visitar sua página exclusiva em Via Fanzine, clique aqui.

 

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Efeitos do álcool:

Segunda-feira, eu não trabalho!

Houve dia, quando a diretora e a vice me chamaram à diretoria. Deram em mim uma bronca, da qual jamais vou me esquecer. Contaram que já havia três reclamações de professoras contra mim, o que era endossado pela direção.

 

Por Sérgio Souza*

Para Via Fanzine

23/01/2020

 

Nessa noite, o alcoólatra “invertebrado” apareceu. Ele foi duplamente homenageado. Da parte dos alunos, recebeu um lindo buquê de flores, com um cartãozinho, apontando-o como o melhor mestre da instituição.

 

Eu era novo na escola e na cidade. Estava ali, havia uns dois meses. Fui pra lá muito vibrante. Cheguei até a compor um hino em homenagem aos estudantes – o qual nunca publiquei.

 

Os alunos vibravam na minha sintonia. Chegavam alegres, bem dispostos... Comentavam, reiteradamente, sobretudo com seus pais, a respeito do recém-chegado professor e das inovações que ele apresentava, dando um novo colorido àquelas aulas, antes opacas e desestimulantes – segundo eles.

 

Houve dia, quando a diretora e a vice me chamaram à diretoria. Deram em mim uma bronca, da qual jamais vou me esquecer. Contaram que já havia três reclamações de professoras contra mim, o que era endossado pela direção.

 

- Qual o teor das reclamações? – indaguei.

 

- Todas nós achamos que você está querendo aparecer demais aqui na escola.

 

E seguiram com termos, cada vez mais humilhantes – o que não ficou de graça, pois apresentei as minhas considerações. Uma delas, que eu era concursado e tinha meu direito de trabalhar. Se não fosse ali, que fosse em outro colégio. (Depois, soube que a diretora e a vice não eram concursadas).

 

No outro dia, a diretora foi mais direta comigo: “Não queremos inovações; segura a disciplina e trabalha o feijão com arroz mesmo.” Aí é que eu descobri que meu jeito inovador estava incomodando; e o quão competitivo era esse ambiente de trabalho.

 

Agora, estamos na van escolar. Por rotina, o veículo ia parando em pontos predeterminados, para ir recebendo professores. Numa segunda-feira, a van estacionou num desses pontos, e a turma gritou:

 

- O Gilberto (nome fictício) não vai hoje não.

 

Próxima segunda, idem.

 

Quando a situação se repetiu pela quarta vez, o motorista indagou:

 

- O Gilberto mudou de horário?

 

- Não. É que, no domingo, ele bebe demais, e, na segunda-feira, ele não consegue ir trabalhar - esclareceu uma das docentes.

 

Aí, eu interferi:

 

- E a diretora não sabe disto não?

 

- Psiu! Caladinho aí! Você está na cidade há pouco tempo e não conhece as pessoas. Depois, converso com você em particular.

 

No mesmo dia, essa outra educadora me revelou que dito professor era amasiado com o irmão da diretora; que ele era escandaloso; que fazia o que queria na escola, porque a diretora tinha medo dele. “Quanto às suas faltas, quando ele não arranja um atestado médico, ele assina o ponto assim mesmo.”

 

Eu trepliquei:

 

- Não deve ser só isto não. Fica a impressão de que ele esconde um segredo da chefe, e ela tem rabo preso com ele.

 

Fim de ano. Formatura. Cerimônia numa igreja. Nessa noite, o alcoólatra “invertebrado” apareceu. Ele foi duplamente homenageado. Da parte dos alunos, recebeu um lindo buquê de flores, com um cartãozinho, apontando-o como o melhor mestre da instituição. Das mãos da diretora, um belíssimo ramalhete de rosas, elogiando-o e agradecendo-lhe pelos bons serviços prestados.

 

Eu e aquela professora, que havia conversado comigo em particular, entreolhamo-nos; entressorrimo-nos; evadimo-nos dali.

 

- Imagem: Divulgação.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine. Para visitar sua página exclusiva em Via Fanzine, clique aqui.

 

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Na escola:

Um terrível caso de preconceito

Encontrei-me com a vítima. Revelei-lhe tudo. Ela confessou que já havia sofrido preconceitos naquele local. Avisei-lhe que, caso ela quisesse entrar na Justiça, poderia contar comigo, como sua testemunha.

 

Por Sérgio Souza*

Para Via Fanzine

17/01/2020

 

"Gente, espero que vocês deem bomba na A. M. N, para forçá-la a sumir daqui. Não queremos prostituta nesta escola".

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Região Metropolitana de Belo Horizonte. Escola pública. Alunos, professores e uma dirigente (a supervisora). A diretora mesmo raramente ali aparecia. E, quando chegava, era para atrapalhar. Exarava frases humilhantes e mostrava-se completamente alheia aos interesses do colégio. Reciprocamente, 90% dos alunos nem sabiam que ela era a “diretora”.

 

A dirigente era arrogante, autoritária. Também se deleitava com lançar frases ofensivas a quem visse pela frente. Em suma, este era o cartão de visita da escola.

 

Quantos cursos, congressos, seminários!... Temas bonitos, como “Tolerância”, “Combate ao Preconceito”, “Harmonia na Diversidade”, com destaque ao conviver com as diferenças: de gênero, cor, religião... Tudo pensado para os alunos, é claro. E os educadores? Será que eles dão sempre o melhor exemplo? Vamos ver?

 

A. M. N., vinte e dois anos, aluna desse estabelecimento. Mãe de dois filhos, sendo solteira. O pai dessas crianças sumira no mundo, deixando a mãe com toda a responsabilidade.

 

Fim de ano. Reunião. A dirigente toma da palavra e determina:

 

- Gente, espero que vocês deem bomba na A. M. N, para forçá-la a sumir daqui. Não queremos prostituta nesta escola!  (Dirigindo-se à professora de biologia.) – Fulana, posso contar com você?

 

- Pode sim. Sem problema.

 

(À professora de matemática.) - Sicrana, com você também?

 

- Sim. Vou ter é que fazer um arranjo aqui, porque a aluna seria aprovada. Vou passar um corretivo no diário e alterar uma das suas notas mais antigas. Creio que assim ela não desconfiará.

 

E todos foram concordando, até que chegou a minha vez. Protestei:

 

- De forma alguma! Ela é a melhor aluna que eu tenho. (E era.)

 

- Mas é prostituta! E uma fruta podre no caixote apodrece as demais!

 

- Diretora, não fica bem uma educadora tratar um ser humano por fruta podre. Além do mais, ela não é prostituta. É uma lutadora. Trabalha de dia e estuda à noite, para dar conta de si e dos filhos.

 

- Ah! Tá querendo me dar lição de moral? Você gosta é de defender quem não presta. Para mim, mãe solteira é sinônimo de prostituta.

 

- E se fosse? A escola não é pública? Qualquer meretriz, caso queira, tem todo o direito de estudar aqui. Ela também não paga impostos? E o que justifica impedir uma pessoa de buscar mais conhecimentos? E enfim, a escola existe é para abraçar, orientar, ajudar a crescer.

 

Um professor interveio:

 

- Concordo com você, mas desde que ela tivesse um bom comportamento, não é mesmo?

 

- Bom comportamento é obrigação de todos: de alunos, professores, diretores. É o que eu não vejo nesta reunião. O que eu presencio são crimes: preconceito, falsidade ideológica, humilhação e constrangimento. Se a aluna viesse a saber do que está sendo tramado contra ela, poderia entrar na Justiça. Além das punições individuais, poderia esta escola ser até interditada. (As pessoas foram recuando, desistindo de suas ações e ficando boazinhas...)

 

Ainda naquele dia, encontrei-me com a vítima. Revelei-lhe tudo. Ela confessou que já havia sofrido preconceitos naquele local. Avisei-lhe que, caso ela quisesse entrar na Justiça, poderia contar comigo, como sua testemunha. Ela preferiu mudar-se de escola. Não a vi mais.  

 

Os alquimistas aconselhavam a “evitar qualquer relação com príncipes e pessoas de temperamento sórdido”. Foi o que eu fiz. O ano acabou. Ali não voltei mais.

 

- Imagem: Divulgação.

 

* Sérgio de Souza é professor, músico e articulista. É colaborador de Via Fanzine. Para visitar sua página exclusiva em Via Fanzine, clique aqui.

 

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