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Crônicas da Vida Real

 

Anjos existem?

Quando os erros humanos

alteram o destino na estrada

Aventura na Serra da Canastra me proporcionou sensações agradáveis e desagradáveis no lombo de uma motocicleta Yamaha RX-125. Naquele dia, a fé imperou para que eu retomasse o meu destino.

 

Por Pepe Chaves*

De Belo Horizonte-MG

Para Via Fanzine

11/03/2017

 

Detalhes dos painéis da Yamaha RX-125, modelo 1982, tendo ao fundo uma paisagem da Serra da Canastra.

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Viagem à Serra da Canastra

 

Sem lenço, com documento, mas sem habilitação. Foi assim que em 1985, com 20 anos de idade eu saia de Itaúna para me aventurar numa motocicleta Yamaha RX-125 rumo ao Parque Nacional Serra da Canastra, episódio que mesclou momentos de prazer e dor e que procuro me recordar a partir de agora, com a máxima fidelidade possível.

 

Esta saudosa motocicleta vermelha com ano de fabricação 1982 foi a primeira de cinco que tive até hoje e a comprei em parceria com meu irmão de um grande amigo nosso. Apesar de ser um veículo às vezes limitado para trafegar em rodovias, se mostrou bastante robusto na estrada e, daquela vez, tudo teria sido perfeito se dependesse somente da máquina, mas, erros humanos trouxeram alguns percalços marcantes pelo meu caminho.

 

Com saída de Itaúna-MG, eu rompi aproximadamente 350 quilômetros para chegar ao meu destino, a Cachoeira de Cascadanta, com seu poço “mágico”, sua água límpida e seus 175 metros de queda livre. Situada dentro do Parque Nacional Serra da Canastra, esta é a primeira grande queda do Rio São Francisco, próxima à sua nascente em São Roque de Minas-MG. Para acessar a entrada do parque para Cascadanta segui pela parte baixa da Serra da Canastra, passando pela pequena e simpática cidade de Vargem Bonita, depois São José do Barreiro, último ponto para abastecimento pela parte baixa.

 

A viagem de ida foi perfeita. A moto rodou muito bem, levando também uma considerável carga de tralhas amarrada no bagageiro. Mantive sempre numa média em torno de 90/110 km por hora na rodovia, mas chegando a alcançar perto de 130 km/h em determinados pontos de descida.

 

Este autor numa parada no trecho da antiga estrada de chão entre

Piumhi e o Parque Nacional, atual rodovia MG-341.

 

Chegando a Piumhi peguei a estrada de terra (hoje asfaltada, e denominada MG-341) com seus quase 100 quilômetros até a entrada de baixo do parque nacional. A pequena máquina da Yamaha se portou muito bem também na estrada de chão, vencendo todos os obstáculos de uma estrada imprecisa e traiçoeira para aqueles pneus projetados para rodar no asfalto. Mesmo não sendo uma motocicleta apropriada para estrada de terra, eu estava acostumado a rodar com ela neste tipo de terreno e tudo foi perfeito.

 

É muito bom quando nos aproximamos e podemos avistar ao longe o grande maciço da serra, a chamada “canastra”, batizada assim por se parecer com uma grande caixa retangular (canastra) que se ergue do chão.

 

Naquela época, pagava-se uma taxa diária e era permitido acampar próximo à Cachoeira de Cascadanta, o que passou a ser proibido quando alguns anos depois, uma forte tromba d’água na nascente causou um súbito enchimento do rio que transbordou nas margens e carregou barracas, pessoas e até veículos, não fazendo vítimas fatais por puro milagre.

 

Então, antes de isso acontecer, eu tive a felicidade de acampar a poucos metros da límpida margem do “Jovem Chico” e ali passar três noites maravilhosas, em meio a uma natureza incrível, com fauna e flora exuberantes, trilhas e a água mais pura que já pude tocar, além das belas noites estreladas com céu de brigadeiro. Era permitido levar alimentos e fazer fogueiras (hoje não é mais) nas áreas de segurança dentro da área de camping administrada por guardas florestais. Também se podia deixar a reserva e sair pelas fazendas da região comprando alimentos produzidos nestes locais, como queijo, ovos, frango, leite, frutas, legumes, quitandas etc. Esta foi a primeira de duas viagens de moto que fiz ao local, e uma das oito vezes em que estive no Parque Nacional Serra da Canastra.

 

Cachoeira Cascadanta no Parque Nacional Serra da Canastra.

 

Percalços no retorno

 

Tudo teria sido maravilhoso, assim como nas demais sete viagens que fiz por aquelas cercanias. Mas, algo começou a dar errado quando do meu retorno. Após ter saído do parque eu teria que rodar novamente os quase 100 quilômetros da estrada de chão (atual MG-341) até chegar à cidade de Piumhi, onde eu tomaria a rodovia MG-050, no sentido BH, em direção às cidades por onde deveria passar, Capitólio, Pimenta, Formiga, Divinópolis, Carmo do Cajuru e finalmente, Itaúna.

 

Antes de deixar o parque, comi um lanche como almoço naquele domingo ensolarado, me preparando para pegar a estrada novamente. Saí do parque no início da tarde e quando já havia percorrido cerca de 70 quilômetros da estrada de chão, me distrai por um segundo em uma longa curva e vi que não conseguiria fazê-la mais, pela velocidade considerável que a moto se encontrava no momento. Lembro que via somente uma cerca de arame farpado se aproximando rapidamente de mim pela direita e tinha que fazer algo pra não cair em sua teia... Em fração de segundo, eu forcei a moto para a esquerda e o tombo foi feio. Felizmente não quebrei nada, mas sofri demais pelos momentos e dias seguintes. Com o tombo eu tive uma distensão no pé esquerdo, que não podia sequer encostar-se ao chão para apoiar o meu peso. Daí em diante eu virei uma espécie de Saci saltitante com a perna direita. Mas, como se não bastasse, quando caí, a moto com o cano de descarga quente após rodar dezenas de quilômetros, prensou a minha batata da perna direta. Isso resultou numa grave queimadura de quase um palmo de extensão na perna.

 

Lembro-me que as dores eram muito fortes após a queda, minha roupa rasgou toda com o tombo, onde fui arrastado pela moto por alguns metros, tendo ela, no final, parado em cima da minha perna direita. Não havia socorro ou alguém por muitos quilômetros dali, todo dolorido, tive que sair rapidamente debaixo da moto que me queimava. O pé esquerdo doía demais, a princípio, pensei tê-lo quebrado, pois era impossível me apoiar sobre ele. Mas a dor da queimadura na perna direta era indescritível. Além disso, eu estava todo sujo de uma terra vermelha, a ferida da queimadura estava coberta de terra, assim como as várias escoriações sofridas nos braços e pernas.

 

Felizmente e por muita sorte, a moto estava funcionando perfeitamente e eu mal podendo parar em pé, tive que ajeitar toda a carga e seguir em frente, pois a noite já se aproximava e eu não via a hora de chegar a minha casa. Alguns quilômetros mais adiante eu avistei um regato d’água cortando a estrada de terra e ali parei sem sequer pensar na qualidade da água para me lavar e trocar de roupa. Coloquei agasalho para enfrentar a noite na estrada, faltava alguns quilômetros ainda para chegar a Piumhi e pegar a MG-050. Mas, mal sabia eu que o pior ainda estava por vir.

 

Detalhes da cachoeira Cascadanta e de seu magnífico poço cristalino.

 

Pelo menos, mesmo com o pé esquerdo doendo incessantemente na altura do tornozelo, isso não me atrapalhava para trocar as marchas da moto, bem como a dor da queimadura na perna direita não me atrapalhava para freá-la. Porém, minha calça roçava na queimadura, além de esta permanecer na altura do motor quente e isso causava uma dor intensa. Acabara de escurecer quando finalmente cheguei a Piumhi, rapidamente peguei a MG-050 no sentido BH, segui ansioso para chegar a Itaúna. Em um ritmo médio na estrada, calculei que a chegada se daria por volta das 21h30.

 

Mês de junho, noite fria, no lombo da minha RX-125 eu rasgava a MG-050 e respirava gostosamente aquele ar gelado da estrada, tragava a neblina e ia me enganando das dores a cada quilômetro vencido, com a esperança de poder cair na minha cama nas próximas horas. Era tudo o que eu queria da vida.

 

Mas, passados uns 15 quilômetros que eu havia deixado Piumhi, no meio de um “nada”, me ocorreu mais um fato inesperado: o pneu traseiro furou e a moto começou a rebolar. Parei no acostamento. Para piorar a situação, me lembrei que eu estava com pouco dinheiro em espécie e trazia somente a última folha de um talão de cheques na carteira.

 

Mas, como sou mineiro, e todo mineiro costuma ser tão prevenido como desconfiado, eu levava comigo um frasco de um produto chamado “Krylon”. Hoje chamado de “vacina de pneu” e com diversas marcas, se trata de um spray químico que se conecta na válvula do pneu furado e o enche com uma espécie de espuma, fazendo com que o pneu furado retorne ao seu volume normal.

 

Assim, eu poderia me arriscar seguir direto até Itaúna com o pneu “estancado”, ou parar num borracheiro e consertar o pneu em definitivo. Bom, decidi que a estrada me diria sobre isso, tão logo pudesse retomá-la... Apoiando-me com uma perna só e muito custo, coloquei a moto no descanso central, conectei a mangueirinha do produto ao bico do pneu e o esguichei, tanto, até o produto se acabar no frasco e o pneu ficar ali, murcho. Então vi que havia um rombo no pneu, bem no meio, com circunferência de aproximadamente uns três centímetros. Esse buraco não deixou o produto “inchar” dentro da câmara e assim vedar o furo. Na verdade, o erro foi todo meu, já que deveria ter verificado a integridade dos pneus antes da saída em Itaúna. Mas, deixei de fazê-lo por pura inexperiência.

 

Detalhes do tanque de combustível e da traseira com o bagageiro na Yamaha RX-125.

 

Passando a noite na beira da estrada

 

Estava ali, um corpo dolorido numa beira de estrada, no escuro total, ouvindo o incessante som de caminhões e carros passando em forma de faróis rápidos e sem poder fazer nada para sanar a situação. Jamais esperaria por algo assim. Nesta condição, de escuro, frio e incertezas, as dores físicas só pioram. Felizmente, era uma linda noite estrelada, mas serenava muito e o frio estava intenso.

 

Com a ajuda de uma lanterna, escondi a moto atrás das moitas de capim. Comi um resto de bolachas com patê que ainda havia e bebi da água que sempre carrego nas viagens. Isso já estava de bom tamanho, pois eu só queria “apagar” pra cessar as dores até o sol nascer.

 

Sempre saltando só com a perna direita, vesti todas as calças, shorts, blusas e meias que tinha na mochila. Desfiz a carga, peguei a barraca, abri, mas apenas estendi sua lona no meio de um mato de uns 70 cm de altura, amassando-o. Não tive paciência para montar corretamente a barraca ali, isso me exigiria muito esforço, eu estava exausto, física e psicologicamente. Apenas estendi a lona, me deitei calçado com tênis e me enrolei no único cobertor, torcendo para aquela noite passar rápido.

 

Entretanto, no meio daquele mato amassado (que afinal virou meu colchão) a poucos metros da curva de uma rodovia movimentadíssima, eu passei uma das piores noites da minha vida. Não conseguia dormir. Era a dor, aqui e ali no corpo; era o frio intenso; eram as dúvidas de como sair daquela situação ao amanhecer... Tentava dormir, mas vinham cenas do tombo na curva; a raiva do erro, da falha, o custo da distração. O pneu furado. Por que fui tão idiota e me submeti passar por tudo isso? Cobranças. Eu não me perdoava...

 

Mas o pior de tudo naquele lugar sombrio era o barulho dos caminhões passando a poucos metros da minha cabeça deitada numa beira de estrada, pois eu mal poderia me mover para adiante dali. Cada caminhão que passava minha mente traiçoeira sugeria que ele poderia errar a curva e passar por cima de mim. Não havia posição agradável, de todo jeito que me deitava o corpo doía. E ali deitado, obrigatoriamente de cara para um céu maravilhoso eu pude me esticar por algumas horas, vislumbrar os astros acesos e refletir sobre muitas coisas. Sem medo algum do que fosse, mas com o sono perdido por horas, fiquei ali pensando, até adormecer, quase ao raiar do dia.

 

Parte alta do Parque Nacional Serra da Canastra, este local se situa logo acima da cachoeira Cascadanta.

 

Solidão e muito sol

 

Sei que abri os olhos e o dia estava claro. Assustado, cai na real. Aquilo não era um sonho ruim. Como queria ter acordado no meu quarto naquele momento... Um sol quente já estava na altura de um palmo sobre o horizonte da serra. Levantei-me rapidamente correndo os olhos ao redor para ver se havia alguém me observando. Nada. Tudo ali era solidão. Ouvia-se somente o canto de pássaros e o barulho de motores vindos da estrada. Sentia que estava no meio de um “nada”, não havia fazenda ou ninguém por perto num raio de muitos quilômetros para frente ou para trás. Lembro-me que o último posto de gasolina que vi na estrada – e que poderia ser o meu socorro mais próximo - estava pelo menos uns oito quilômetros atrás, em direção a Piumhi. Mas eu sequer conseguia andar, ficar de pé já era muito.

 

Para piorar tudo, aquela era uma manhã de segunda-feira, ou seja, eu teria que trabalhar, mas claro, faltei ao trabalho sem justificar até aquele momento, às 8h da manhã, pois deveria estar no serviço às 7h. E num tempo sem celulares, meus pais também deveriam estar preocupados, pois eu deveria ter retornado à noite passada. Então, encontrar um telefone para avisar que eu estava bem à minha família e o chefe na empresa era a prioridade. Mas, para isso, eu precisaria sair dali... Juntei as tralhas, amarrei na moto e fui com ela para a beira da estrada em busca de algum socorro. Mas, que socorro?

 

Mergulho desse autor em um profundo poço na parte alta da Serra da Canastra.

 

Ali, naquela beira de estrada – lugar que nunca irei me esquecer - em poucas vezes na vida, me senti tão à própria sorte. Eu estava em um ponto no meio de uma descida e lá em baixo havia uma curva acentuada para esquerda; o asfalto da acanhada MG-050 estava um “tapete”. Porém, o sol subia rapidamente, o calor só aumentava naquele asfalto e minha água acabara. Tentando uma forma de sair dali, eu fazia sinal aos veículos, mas ninguém parava. Nem carros nem caminhões. Cada veículo que passava apressadamente na minha frente ia matando as minhas esperanças e eu já estava desistindo de acenar. Sentia-me um palhaço ali. Afinal, o que mais, de pior estaria reservado para mim naquele dia? Ficaria ali o dia todo sem comida até anoitecer de novo? Morreria ali por falta de socorro ou inanição nos próximos dias? Tudo isso e muito mais vinha à cabeça.

 

Lembro-me que chegou a tal ponto naquele lugar, em que eu estava sem a menor esperança, olhei profundamente para um céu azulíssimo e vazio, gritando calado do fundo da alma: “Oh, Deus, ou seja, lá quem for, se existe mesmo, faça alguma coisa, preciso de um milagre, senão eu vou morrer aqui nesta beira de estrada, já mal consigo ficar de pé e o calor e a sede aumentam...”. Este lamento soou como se eu transpirasse tudo o que sentia emocionalmente ali, externando aquele sentimento de esgotamento total, de uma luta incessante e impotente para apenas retomar o meu destino.

 

Poucos minutos depois desse “descarrego emocional” vi surgir no alto do morro a penumbra de uma motocicleta Honda CB-400 prata iniciando a descida. Poderia ser uma esperança, aquela era a primeira motocicleta que passava por ali, e de praxe, lembrei que motociclistas costumam ser sempre solícitos em si. Ao se aproximar, percebi que o motociclista da CB-400 me avistou ao lado da minha simplória moto, eu acenei e parou ao meu lado. Ele perguntou o que aconteceu e eu expliquei. Conversamos uns três minutos, mas não havia nada que ele poderia fazer por mim. Agradeci por ter parado e ele seguiu no sentido BH. Aquilo me desanimou mais ainda, o sentimento de frustração e abandono foi intenso demais naquele momento... Eu estava arrasado na beira de uma estrada.

 

Em azul, o trajeto de Itaúna-MG até o Parque Nacional Serra da Canastra.

 

Surge um fio de esperança

 

Enquanto a CB-400 arrancava dali, eu vi surgir uma Yamaha DT-180 branca no alto do morro. Mas depois do balde de água fria da CB-400 eu nem tive coragem de fazer sinal para a DT-180 parar. E lembro-me que ainda pensei: “Se uma CB-400 não pôde me ajudar, o que poderia fazer uma DT-180?”. Por isso, entregue à própria desgraça, eu nem acenei para o cara da DT, que passou do meu lado, olhou fixamente pra mim, eu apenas acenei positivo com a cabeça e ele desceu pela rodovia, entrando na curva à esquerda ao longo da descida. Mas, estranhamente, antes de completar a curva e sumir da minha visão, a uns 300 metros de mim, ele parou no acostamento, exatamente no meio da curva, lá em baixo. Desceu da moto e ficou ali como que a procurar algo que teria caído no chão. Vidrado no chão, ele olhava daqui, acolá e eu gritei para ele: “Perdeu alguma coisa?”. E ele me respondeu: “a viseira soltou”.

 

E o rapaz ficou procurando a viseira por alguns segundos e depois me gritou de lá: “O que aconteceu com você?”, ao que respondi: “Pneu furado”. Ele então se esqueceu da viseira perdida, subiu na sua DT-180, fez meia volta e veio em minha direção, parando no acostamento, atrás de minha moto. Senti naquele instante uma sensação acolhedora e uma esperança de poder sair daquele lugar voltou a reinar.

 

Ele desceu da moto, tirou o capacete e me cumprimentou, na adrenalina da hora nem nos apresentamos e eu nunca mais me esqueci daquele semblante. Parecia que o conhecia de algum lugar, mas tinha certeza que nunca o vi antes. Era um rapaz comum, de pele clara, cabelos curtos e castanhos claros com um pouco mais de corpo e talvez uns 10 anos a mais que eu. Ele olhou o pneu furado e falou: “Vamos fazer um truque”. E aquilo me deixou curioso.

 

Na maior boa vontade, ele foi tirando de uma mochila uma bolsa de couro com todas as ferramentas do mundo das motos e foi me explicando: “Vou tirar a sua roda e o pneu, vamos enchê-lo de capim, assim você vai poder rodar até o próximo posto, quilômetros adiante, e consertar o pneu lá”. De imediato pensei que se isso desse certo, aquele sujeito seria um gênio. Nunca tinha ouvido falar de encher pneu com capim pra rodar até encontrar socorro. Havia muito capim-navalha na beira da estrada, ideal para ser usado como enchimento.

 

Mas logo veio a má notícia: quando ele viu o enorme rombo no pneu me disse que por isso, essa técnica não daria certo, pois o capim vazaria rapidamente. Aquilo foi mais uma grande frustração pra mim, naquele dia em que a adrenalina era o meu alimento. Mas o rapaz, sempre solícito, imediatamente propôs outra solução: ele retiraria a minha roda e me levaria com ela na sua garupa até o posto anterior, retornando cerca de oito quilômetros, onde havia uma borracharia. Eu disse que aceitaria, mas que faria questão de pagá-lo pelo trabalho de retornar vários quilômetros do seu caminho por minha causa. Ele se recusou a receber e disse que faria isso com prazer. Eu não insisti, até porque tinha apenas uma folha de cheque que deveria usar para consertar o pneu.

 

Enquanto tirava a roda, ele me contou que estava viajando de Viçosa-MG, onde trabalhava, para Belo Horizonte e por isso passava por ali. Disse que era mecânico, além de piloto de testes e funcionário da Yamaha no Brasil. Contou que aquela DT-180 seria de um modelo a ser lançado no próximo ano e que ele estava testando-a. Explicou-me sobre algumas diferenciações dos modelos atuais e das boas respostas daquela nova moto na estrada.

 

Lembro-me que ele falou: “Eu vi o cara da CB-400 saindo, ele te negou ajuda, né?”. Meio sem jeito, eu disse que sim, aí ele disse: “Estes caras da Honda são sempre assim...”. E rimos juntos. Ele contou que como piloto de testes tomou vários tipos de tombos e quebrou quase todos os ossos do corpo. Pegou o meu pulso e apertou levemente, dizendo: “Este é o máximo de força que consigo apertar”. Segundo ele, devido às quebras dos ossos, suas articulações agora eram muito fracas. No entanto, sozinho e sem o menor esforço, ele tirou a minha roda, algo que eu teria que suar muito pra fazer com as chaves que carregava naquela época.

 

Assim que ele tirou a roda traseira nós escondemos o que restou da moto a poucos metros da estrada, mas em meio a moitas de capim-navalha com mais de dois metros de altura. Não deixou de dar um frio na barriga deixar a minha querida RX ali, mas alguns remédios eram mesmo amargos naquela beira de estrada...

 

Subi na sua garupa e ele acelerou aquela (ainda fora de linha) DT-180 numa velocidade incrível, retornando sua viagem para trás, simplesmente para me ajudar. Eu até hoje detesto estar em garupa de moto, seja de quem for, mas confesso que naquela situação eu não senti nem um pouco de insegurança na garupa daquele que seria o meu “redentor”, afinal, eu estava em suas mãos ali.

 

Ele me deixou no tal posto da borracharia. Desci da moto com a roda na mão direita, ele me estendeu a mão esquerda e falou: “Muito prazer, Gabriel”. E num aperto de mão canhoto e fraco, eu disse a ele: “Prazer, Pepe. Muito obrigado, vá com Deus”. Ele sorriu, fechou a viseira do capacete - sim, a suposta viseira que ele disse ter perdido quando parou naquela curva... E se foi.

 

A resistente e saudosa Yamaha RX-125, modelo 1982,

exemplar idêntico ao narrado nesta crônica.

 

De volta pra casa

 

De longe vi um borracheiro me olhando com aquela roda na mão e fui à sua direção. Sol a pino, hora do almoço e a fome começava a pegar naquele instante. Havia ali, a borracharia, um posto de combustível e um restaurante. Deixei a roda para o borracheiro verificar e fui rapidamente ao restaurante onde havia um telefone público. Ali eu comprei algumas fichas telefônicas e liguei para o serviço de meu irmão, pedindo a ele para avisar meus pais sobre os imprevistos e também me comuniquei com a minha empresa.

 

Ao retornar, o borracheiro me disse que aquele pneu não teria como ser reaproveitado e ele não tinha nenhum usado para me ceder. Eu teria então que tentar uma corona para voltar mais seis quilômetros, até Piumhi, e lá tentar comprar um pneu com minha única folha de cheque. O pouco dinheiro que eu tinha no bolso seria a conta para pagar o serviço do borracheiro na recolocação da câmara e do novo pneu.

 

Meu espírito já estava preparado para enfrentar mais uma dolorosa via-sacra sobre uma perna só, quando eu vi estacionar no posto um caminhão baú seguindo no sentido BH. Fui até o motorista, era um gaúcho esguio e louro, de meia idade, muito gente boa que me disse estar seguindo para Belo Horizonte. Expliquei a ele sobre minha situação, disse que ele passaria pelo trevo de Itaúna, e perguntei se poderia me levar até lá com minha moto no seu baú. Propus pagá-lo o que seria hoje, uns R$ 100,00 pelo serviço, explicando que só tinha a última folha de cheque. Ele disse que havia espaço para colocar a moto no baú e aceitou prontamente a minha proposta. Assim, pude usar o dinheiro que gastaria com o borracheiro para almoçar junto com gaúcho e seguir a viagem mais tranquilo.

 

Saímos do posto e paramos na beira da estrada, oito quilômetros adiante, onde a moto estava escondida sem a roda traseira e entre as moitas de capim-navalha. Meu medo, era de chegar no local e não encontrar a moto escondida. Mas felizmente ela estava lá. Como eu mal conseguia ficar de pé, ele, praticamente sozinho, colocou a moto dentro do baú do caminhão. Conversamos a viagem toda e quando eu vi já estava chegando o trevo de Itaúna. Ele entrou no trevo e me deixou bem defronte à GT Motos, situada ainda na rua Silva Jardim, oficina da qual eu era cliente. Eu agradeci ao gaúcho, entreguei-lhe a última folha de cheque assinada e desejei boa viagem. Na oficina, disse que meu irmão passaria lá até o final da tarde para resolver sobre o novo pneu.

 

Sai de lá mancando e por muita coincidência encontrei meu irmão na rua, a poucos metros dali, confirmando a ele tudo que tinha se passado. Com passos cambaleantes e ainda sem poder apoiar o pé esquerdo completamente, eu segui pela longa avenida Jove Soares, onde morava, para finalmente poder tomar um banho digno e dormir por algumas boas horas.

 

Essa experiência que teve passagens boas e ruins dentro de uma viagem de motocicleta, me deixou o aprendizado de uma lição: mesmo se tudo der errado deverá sempre haver uma saída. E o que salvará um homem nos seus momentos de aflição, não será necessariamente a sua crença religiosa, mas algo que a extravasa e apesar de invisível, me foi provado que existe: a sua fé. E como vimos, eu cheguei a duvidar da minha fé. Mas foi aí que esta sufocou a minha dúvida.

 

Obrigado, Gabriel, que você esteja sempre bem.

 

* Pepe Chaves é editor do diário digital Via Fanzine e da ZINESFERA.

 

- Imagens: Arquivo VF, Parque Nacional Serra da Canastra, Yamaha/divulgação, Google Maps.

 

- Produção: Pepe Chaves.

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