Anjos existem?
Quando os erros humanos
alteram o destino na estrada
Aventura na Serra da Canastra me proporcionou sensações agradáveis e
desagradáveis no lombo
de uma motocicleta Yamaha RX-125. Naquele dia, a fé imperou para que eu
retomasse o meu destino.
Por Pepe Chaves*
De Belo Horizonte-MG
Para
Via Fanzine
11/03/2017
Detalhes dos painéis da
Yamaha RX-125, modelo 1982, tendo ao fundo uma paisagem da Serra da
Canastra.
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Viagem à Serra da Canastra
Sem lenço, com documento, mas sem habilitação. Foi assim que em 1985,
com 20 anos de idade eu saia de Itaúna para me aventurar numa
motocicleta Yamaha RX-125 rumo ao Parque Nacional Serra da Canastra,
episódio que mesclou momentos de prazer e dor e que procuro me recordar
a partir de agora, com a máxima fidelidade possível.
Esta saudosa motocicleta vermelha com ano de fabricação 1982 foi a
primeira de cinco que tive até hoje e a comprei em parceria com meu
irmão de um grande amigo nosso. Apesar de ser um veículo às vezes
limitado para trafegar em rodovias, se mostrou bastante robusto na
estrada e, daquela vez, tudo teria sido perfeito se dependesse somente
da máquina, mas, erros humanos trouxeram alguns percalços marcantes pelo
meu caminho.
Com saída de Itaúna-MG, eu rompi aproximadamente 350 quilômetros para
chegar ao meu destino, a Cachoeira de Cascadanta, com seu poço “mágico”,
sua água límpida e seus 175 metros de queda livre. Situada dentro do
Parque Nacional Serra da Canastra,
esta
é a primeira grande queda do Rio São Francisco, próxima à sua nascente
em São Roque de Minas-MG. Para acessar a entrada do parque para
Cascadanta segui pela parte baixa da Serra da Canastra, passando pela
pequena e simpática cidade de Vargem Bonita, depois São José do
Barreiro, último ponto para abastecimento pela parte baixa.
A viagem de ida foi perfeita. A moto rodou muito bem, levando também uma
considerável carga de tralhas amarrada no bagageiro. Mantive sempre numa
média em torno de 90/110 km por hora na rodovia, mas chegando a alcançar
perto de 130 km/h em determinados pontos de descida.
Este autor
numa parada no trecho da antiga estrada de chão entre
Piumhi e o Parque
Nacional, atual rodovia MG-341.
Chegando a Piumhi peguei a estrada de terra (hoje asfaltada, e
denominada MG-341) com seus quase 100 quilômetros até a entrada de baixo
do parque nacional. A pequena máquina da Yamaha se portou muito bem
também na estrada de chão, vencendo todos os obstáculos de uma estrada
imprecisa e traiçoeira para aqueles pneus projetados para rodar no
asfalto. Mesmo não sendo uma motocicleta apropriada para estrada de
terra, eu estava acostumado a rodar com ela neste tipo de terreno e tudo
foi perfeito.
É muito bom quando nos aproximamos e podemos avistar ao longe o grande
maciço da serra, a chamada “canastra”, batizada assim por se parecer com
uma grande caixa retangular (canastra) que se ergue do chão.
Naquela época, pagava-se uma taxa diária e era permitido acampar próximo
à Cachoeira de Cascadanta, o que passou a ser proibido quando alguns
anos depois, uma forte tromba d’água na nascente causou um súbito
enchimento do rio que transbordou nas margens e carregou barracas,
pessoas e até veículos, não fazendo vítimas fatais por puro milagre.
Então, antes de isso acontecer, eu tive a felicidade de acampar a poucos
metros da límpida margem do “Jovem Chico” e ali passar três noites
maravilhosas, em meio a uma natureza incrível, com fauna e flora
exuberantes, trilhas e a água mais pura que já pude tocar, além das
belas noites estreladas com céu de brigadeiro. Era permitido levar
alimentos e fazer fogueiras (hoje não é mais) nas áreas de segurança
dentro da área de camping administrada por guardas florestais. Também se
podia deixar a reserva e sair pelas fazendas da região comprando
alimentos produzidos nestes locais, como queijo, ovos, frango, leite,
frutas, legumes, quitandas etc. Esta foi a primeira de duas viagens de
moto que fiz ao local, e uma das oito vezes em que estive no Parque
Nacional Serra da Canastra.
Cachoeira Cascadanta no
Parque Nacional Serra da Canastra.
Percalços no retorno
Tudo teria sido maravilhoso, assim como nas demais sete viagens que fiz
por aquelas cercanias. Mas, algo começou a dar errado quando do meu
retorno. Após ter saído do parque eu teria que rodar novamente os quase
100 quilômetros da estrada de chão (atual MG-341) até chegar à cidade de
Piumhi, onde eu tomaria a rodovia MG-050, no sentido BH, em direção às
cidades por onde deveria passar,
Capitólio,
Pimenta, Formiga, Divinópolis, Carmo do Cajuru e finalmente, Itaúna.
Antes de deixar o parque, comi um lanche como almoço naquele domingo
ensolarado, me preparando para pegar a estrada novamente. Saí do parque
no início da tarde e quando já havia percorrido cerca de 70 quilômetros
da estrada de chão, me distrai por um segundo em uma longa curva e vi
que não conseguiria fazê-la mais, pela velocidade considerável que a
moto se encontrava no momento. Lembro que via somente uma cerca de arame
farpado se aproximando rapidamente de mim pela direita e tinha que fazer
algo pra não cair em sua teia... Em fração de segundo, eu forcei a moto
para a esquerda e o tombo foi feio. Felizmente não quebrei nada, mas
sofri demais pelos momentos e dias seguintes. Com o tombo eu tive uma
distensão no pé esquerdo, que não podia sequer encostar-se ao chão para
apoiar o meu peso. Daí em diante eu virei uma espécie de Saci saltitante
com a perna direita. Mas, como se não bastasse, quando caí, a moto com o
cano de descarga quente após rodar dezenas de quilômetros, prensou a
minha batata da perna direta. Isso resultou numa grave queimadura de
quase um palmo de extensão na perna.
Lembro-me que as dores eram muito fortes após a queda, minha roupa
rasgou toda com o tombo, onde fui arrastado pela moto por alguns metros,
tendo ela, no final, parado em cima da minha perna direita. Não havia
socorro ou alguém por muitos quilômetros dali, todo dolorido, tive que
sair rapidamente debaixo da moto que me queimava. O pé esquerdo doía
demais, a princípio, pensei tê-lo quebrado, pois era impossível me
apoiar sobre ele. Mas a dor da queimadura na perna direta era
indescritível. Além disso, eu estava todo sujo de uma terra vermelha, a
ferida da queimadura estava coberta de terra, assim como as várias
escoriações sofridas nos braços e pernas.
Felizmente e por muita sorte, a moto estava funcionando perfeitamente e
eu mal podendo parar em pé, tive que ajeitar toda a carga e seguir em
frente, pois a noite já se aproximava e eu não via a hora de chegar a
minha casa. Alguns quilômetros mais adiante eu avistei um regato d’água
cortando a estrada de terra e ali parei sem sequer pensar na qualidade
da água para me lavar e trocar de roupa. Coloquei agasalho para
enfrentar a noite na estrada, faltava alguns quilômetros ainda para
chegar a Piumhi e pegar a MG-050. Mas, mal sabia eu que o pior ainda
estava por vir.
Detalhes da
cachoeira Cascadanta e de seu magnífico poço cristalino.
Pelo menos, mesmo com o pé esquerdo doendo incessantemente na altura do
tornozelo, isso não me atrapalhava para trocar as marchas da moto, bem
como a dor da queimadura na perna direita não me atrapalhava para
freá-la. Porém, minha calça roçava na queimadura, além de esta
permanecer na altura do motor quente e isso causava uma dor intensa.
Acabara de escurecer quando finalmente cheguei a Piumhi, rapidamente
peguei a MG-050 no sentido BH, segui ansioso para chegar a Itaúna. Em um
ritmo médio na estrada, calculei que a chegada se daria por volta das
21h30.
Mês de junho, noite fria, no lombo da minha RX-125 eu rasgava a MG-050 e
respirava gostosamente aquele ar gelado da estrada, tragava a neblina e
ia me enganando das dores a cada quilômetro vencido, com a esperança de
poder cair na minha cama nas próximas horas. Era tudo o que eu queria da
vida.
Mas, passados uns 15 quilômetros que eu havia deixado Piumhi, no meio de
um “nada”, me ocorreu mais um fato inesperado: o pneu traseiro furou e a
moto começou a rebolar. Parei no acostamento. Para piorar a situação, me
lembrei que eu estava com pouco dinheiro em espécie e trazia somente a
última folha de um talão de cheques na carteira.
Mas, como sou mineiro, e todo mineiro costuma ser tão prevenido como
desconfiado, eu levava comigo um frasco de um produto chamado “Krylon”.
Hoje chamado de “vacina de pneu” e com diversas marcas, se trata de um
spray químico que se conecta na válvula do pneu furado e o enche com uma
espécie de espuma, fazendo com que o pneu furado retorne ao seu volume
normal.
Assim, eu poderia me arriscar seguir direto até Itaúna com o pneu
“estancado”, ou parar num borracheiro e consertar o pneu em definitivo.
Bom, decidi que a estrada me diria sobre isso, tão logo pudesse
retomá-la... Apoiando-me com uma perna só e muito custo, coloquei a moto
no descanso central, conectei a mangueirinha do produto ao bico do pneu
e o esguichei, tanto, até o produto se acabar no frasco e o pneu ficar
ali, murcho. Então vi que havia um rombo no pneu, bem no meio, com
circunferência de aproximadamente uns três centímetros. Esse buraco não
deixou o produto “inchar” dentro da câmara e assim vedar o furo. Na
verdade, o erro foi todo meu, já que deveria ter verificado a
integridade dos pneus antes da saída em Itaúna. Mas, deixei de fazê-lo
por pura inexperiência.
Detalhes do tanque de
combustível e da traseira com o bagageiro na Yamaha RX-125.
Passando a noite na beira da estrada
Estava ali, um corpo dolorido numa beira de estrada, no escuro total,
ouvindo o incessante som de caminhões e carros passando em forma de
faróis rápidos e sem poder fazer nada para sanar a situação. Jamais
esperaria por algo assim. Nesta condição, de escuro, frio e incertezas,
as dores físicas só pioram. Felizmente, era uma linda noite estrelada,
mas serenava muito e o frio estava intenso.
Com a ajuda de uma lanterna, escondi a moto atrás das moitas de capim.
Comi um resto de bolachas com patê que ainda havia e bebi da água que
sempre carrego nas viagens. Isso já estava de bom tamanho, pois eu só
queria “apagar” pra cessar as dores até o sol nascer.
Sempre saltando só com a perna direita, vesti todas as calças, shorts,
blusas e meias que tinha na mochila. Desfiz a carga, peguei a barraca,
abri, mas apenas estendi sua lona no meio de um mato de uns 70 cm de
altura, amassando-o. Não tive paciência para montar corretamente a
barraca ali, isso me exigiria muito esforço, eu estava exausto, física e
psicologicamente. Apenas estendi a lona, me deitei calçado com tênis e
me enrolei no único cobertor, torcendo para aquela noite passar rápido.
Entretanto, no meio daquele mato amassado (que afinal virou meu colchão)
a poucos metros da curva de uma rodovia movimentadíssima, eu passei uma
das piores noites da minha vida. Não conseguia dormir. Era a dor, aqui e
ali no corpo; era o frio intenso; eram as dúvidas de como sair daquela
situação ao amanhecer... Tentava dormir, mas vinham cenas do tombo na
curva; a raiva do erro, da falha, o custo da distração. O pneu furado.
Por que fui tão idiota e me submeti passar por tudo isso? Cobranças. Eu
não me perdoava...
Mas o pior de tudo naquele lugar sombrio era o barulho dos caminhões
passando a poucos metros da minha cabeça deitada numa beira de estrada,
pois eu mal poderia me mover para adiante dali. Cada caminhão que
passava minha mente traiçoeira sugeria que ele poderia errar a curva e
passar por cima de mim. Não havia posição agradável, de todo jeito que
me deitava o corpo doía. E ali deitado, obrigatoriamente de cara para um
céu maravilhoso eu pude me esticar por algumas horas, vislumbrar os
astros acesos e refletir sobre muitas coisas. Sem medo algum do que
fosse, mas com o sono perdido por horas, fiquei ali pensando, até
adormecer, quase ao raiar do dia.
Parte alta do Parque
Nacional Serra da Canastra, este local se situa logo acima da cachoeira
Cascadanta.
Solidão e muito sol
Sei que abri os olhos e o dia estava claro. Assustado, cai na real.
Aquilo não era um sonho ruim. Como queria ter acordado no meu quarto
naquele momento...
Um sol quente já estava na altura de um palmo sobre o horizonte da
serra.
Levantei-me rapidamente correndo os olhos ao redor para ver se havia
alguém me observando. Nada. Tudo ali era solidão. Ouvia-se somente o
canto de pássaros e o barulho de motores vindos da estrada. Sentia que
estava no meio de um “nada”, não havia fazenda ou ninguém por perto num
raio de muitos quilômetros para frente ou para trás. Lembro-me que o
último posto de gasolina que vi na estrada – e que poderia ser o meu
socorro mais próximo - estava pelo menos uns oito quilômetros atrás, em
direção a Piumhi. Mas eu sequer conseguia andar, ficar de pé já era
muito.
Para piorar tudo, aquela era uma manhã de segunda-feira, ou seja, eu
teria que trabalhar, mas claro, faltei ao trabalho sem justificar até
aquele momento, às 8h da manhã, pois deveria estar no serviço às 7h. E
num tempo sem celulares, meus pais também deveriam estar preocupados,
pois eu deveria ter retornado à noite passada. Então, encontrar um
telefone para avisar que eu estava bem à minha família e o chefe na
empresa era a prioridade. Mas, para isso, eu precisaria sair dali...
Juntei as tralhas, amarrei na moto e fui com ela para a beira da estrada
em busca de algum socorro. Mas, que socorro?
Mergulho desse autor em
um profundo poço na parte alta da Serra da Canastra.
Ali, naquela beira de estrada – lugar que nunca irei me esquecer - em
poucas vezes na vida, me senti tão à própria sorte. Eu estava em um
ponto no meio de uma descida e lá em baixo havia uma curva acentuada
para esquerda; o asfalto da acanhada MG-050 estava um “tapete”. Porém, o
sol subia rapidamente, o calor só aumentava naquele asfalto e minha água
acabara. Tentando uma forma de sair dali, eu fazia sinal aos veículos,
mas ninguém parava. Nem carros nem caminhões. Cada veículo que passava
apressadamente na minha frente ia matando as minhas esperanças e eu já
estava desistindo de acenar. Sentia-me um palhaço ali. Afinal, o que
mais, de pior estaria reservado para mim naquele dia? Ficaria ali o dia
todo sem comida até anoitecer de novo? Morreria ali por falta de socorro
ou inanição nos próximos dias? Tudo isso e muito mais vinha à cabeça.
Lembro-me que chegou a tal ponto naquele lugar, em que eu estava sem a
menor esperança, olhei profundamente para um céu azulíssimo e vazio,
gritando calado do fundo da alma: “Oh, Deus, ou seja, lá quem for, se
existe mesmo, faça alguma coisa, preciso de um milagre, senão eu vou
morrer aqui nesta beira de estrada, já mal consigo ficar de pé e o calor
e a sede aumentam...”. Este lamento soou como se eu transpirasse tudo o
que sentia emocionalmente ali, externando aquele sentimento de
esgotamento total, de uma luta incessante e impotente para apenas
retomar o meu destino.
Poucos minutos depois desse “descarrego emocional” vi surgir no alto do
morro a penumbra de uma motocicleta Honda CB-400 prata iniciando a
descida. Poderia ser uma esperança, aquela era a primeira motocicleta
que passava por ali, e de praxe, lembrei que motociclistas costumam ser
sempre solícitos em si. Ao se aproximar, percebi que o motociclista da
CB-400 me avistou ao lado da minha simplória moto, eu acenei e parou ao
meu lado. Ele perguntou o que aconteceu e eu expliquei. Conversamos uns
três minutos, mas não havia nada que ele poderia fazer por mim. Agradeci
por ter parado e ele seguiu no sentido BH. Aquilo me desanimou mais
ainda, o sentimento de frustração e abandono foi intenso demais naquele
momento... Eu estava arrasado na beira de uma estrada.
Em azul, o
trajeto de Itaúna-MG até o Parque Nacional Serra da Canastra.
Surge um fio de esperança
Enquanto
a CB-400 arrancava dali, eu vi surgir uma Yamaha DT-180 branca no alto
do morro. Mas depois do balde de água fria da CB-400 eu nem tive coragem
de fazer sinal para a DT-180 parar. E lembro-me que ainda pensei: “Se
uma CB-400 não pôde me ajudar, o que poderia fazer uma DT-180?”. Por
isso, entregue à própria desgraça, eu nem acenei para o cara da DT, que
passou do meu lado, olhou fixamente pra mim, eu apenas acenei positivo
com a cabeça e ele desceu pela rodovia, entrando na curva à esquerda ao
longo da descida. Mas, estranhamente, antes de completar a curva e sumir
da minha visão, a uns 300 metros de mim, ele parou
no acostamento,
exatamente no meio da curva, lá em baixo. Desceu da moto e ficou ali
como que a procurar algo que teria caído no chão. Vidrado no chão, ele
olhava daqui, acolá e eu gritei para ele: “Perdeu alguma coisa?”. E ele
me respondeu: “a viseira soltou”.
E o rapaz ficou procurando a viseira por alguns segundos e depois me
gritou de lá: “O que aconteceu com você?”, ao que respondi: “Pneu
furado”. Ele então se esqueceu da viseira perdida, subiu na sua DT-180,
fez meia volta e veio em minha direção, parando no acostamento, atrás de
minha moto. Senti naquele instante uma sensação acolhedora e uma
esperança de poder sair daquele lugar voltou a reinar.
Ele desceu da moto, tirou o capacete e me cumprimentou, na adrenalina da
hora nem nos apresentamos e eu nunca mais me esqueci daquele semblante.
Parecia que o conhecia de algum lugar, mas tinha certeza que nunca o vi
antes. Era um rapaz comum, de pele clara, cabelos curtos e castanhos
claros com um pouco mais de corpo e talvez uns 10 anos a mais que eu.
Ele olhou o pneu furado e falou: “Vamos fazer um truque”. E aquilo me
deixou curioso.
Na maior boa vontade, ele foi tirando de uma mochila uma bolsa de couro
com todas as ferramentas do mundo das motos e foi me explicando: “Vou
tirar a sua roda e o pneu, vamos enchê-lo de capim, assim você vai poder
rodar até o próximo posto, quilômetros adiante, e consertar o pneu lá”.
De imediato pensei que se isso desse certo, aquele sujeito seria um
gênio. Nunca tinha ouvido falar de encher pneu com capim pra rodar até
encontrar socorro. Havia muito capim-navalha na beira da estrada, ideal
para ser usado como enchimento.
Mas logo veio a má notícia: quando ele viu o enorme rombo no pneu me
disse que por isso, essa técnica não daria certo, pois o capim vazaria
rapidamente. Aquilo foi mais uma grande frustração pra mim, naquele dia
em que a adrenalina era o meu alimento. Mas o rapaz, sempre solícito,
imediatamente propôs outra solução: ele retiraria a minha roda e me
levaria com ela na sua garupa até o posto anterior, retornando cerca de
oito quilômetros, onde havia uma borracharia. Eu disse que aceitaria,
mas que faria questão de pagá-lo pelo trabalho de retornar vários
quilômetros do seu caminho por minha causa. Ele se recusou a receber e
disse que faria isso com prazer. Eu não insisti, até porque tinha apenas
uma folha de cheque que deveria usar para consertar o pneu.
Enquanto tirava a roda, ele me contou que estava viajando de Viçosa-MG,
onde trabalhava, para Belo Horizonte e por isso passava por ali. Disse
que era mecânico, além de piloto de testes e funcionário da Yamaha no
Brasil. Contou que aquela DT-180 seria de um modelo a ser lançado no
próximo ano e que ele estava testando-a. Explicou-me sobre algumas
diferenciações dos modelos atuais e das boas respostas daquela nova moto
na estrada.
Lembro-me que ele falou: “Eu vi o cara da CB-400 saindo, ele te negou
ajuda, né?”. Meio sem jeito, eu disse que sim, aí ele disse: “Estes
caras da Honda são sempre assim...”. E rimos juntos. Ele contou que como
piloto de testes tomou vários tipos de tombos e quebrou quase todos os
ossos do corpo. Pegou o meu pulso e apertou levemente, dizendo: “Este é
o máximo de força que consigo apertar”. Segundo ele, devido às quebras
dos ossos, suas articulações agora eram muito fracas. No entanto,
sozinho e sem o menor esforço, ele tirou a minha roda, algo que eu teria
que suar muito pra fazer com as chaves que carregava naquela época.
Assim que ele tirou a roda traseira nós escondemos o que restou da moto
a poucos metros da estrada, mas em meio a moitas de capim-navalha com
mais de dois metros de altura. Não deixou de dar um frio na barriga
deixar a minha querida RX ali, mas alguns remédios eram mesmo amargos
naquela beira de estrada...
Subi na sua garupa e ele acelerou aquela (ainda fora de linha) DT-180
numa velocidade incrível, retornando sua viagem para trás, simplesmente
para me ajudar. Eu até hoje detesto estar em garupa de moto, seja de
quem for, mas confesso que naquela situação eu não senti nem um pouco de
insegurança na garupa daquele que seria o meu “redentor”, afinal, eu
estava em suas mãos ali.
Ele me deixou no tal posto da borracharia. Desci da moto com a roda na
mão direita, ele me estendeu a mão esquerda e falou: “Muito prazer,
Gabriel”. E num aperto de mão canhoto e fraco, eu disse a ele: “Prazer,
Pepe. Muito obrigado, vá com Deus”. Ele sorriu, fechou a viseira do
capacete - sim, a suposta viseira que ele disse ter perdido quando parou
naquela curva... E se foi.
A resistente e saudosa
Yamaha RX-125, modelo 1982,
exemplar idêntico ao
narrado nesta crônica.
De
volta pra casa
De longe vi um borracheiro me olhando com aquela roda na mão e fui à sua
direção. Sol a pino, hora do almoço e a fome começava a pegar naquele
instante. Havia ali, a borracharia, um posto de combustível e um
restaurante. Deixei a roda para o borracheiro verificar e fui
rapidamente ao restaurante onde havia um telefone público. Ali eu
comprei algumas fichas telefônicas e liguei para o serviço de meu irmão,
pedindo a ele para avisar meus pais sobre os imprevistos e também me
comuniquei com a minha empresa.
Ao retornar, o borracheiro me disse que aquele pneu não teria como ser
reaproveitado e ele não tinha nenhum usado para me ceder. Eu teria então
que tentar uma corona para voltar mais seis quilômetros, até Piumhi, e
lá tentar comprar um pneu com minha única folha de cheque. O pouco
dinheiro que eu tinha no bolso seria a conta para pagar o serviço do
borracheiro na recolocação da câmara e do novo pneu.
Meu espírito já estava preparado para enfrentar mais uma dolorosa
via-sacra sobre uma perna só, quando eu vi estacionar no posto um
caminhão baú seguindo no sentido BH. Fui até o motorista, era um gaúcho
esguio e louro, de meia idade, muito gente boa que me disse estar
seguindo para Belo Horizonte. Expliquei a ele sobre minha situação,
disse que ele passaria pelo trevo de Itaúna, e perguntei se poderia me
levar até lá com minha moto no seu baú. Propus pagá-lo o que seria hoje,
uns R$ 100,00 pelo serviço, explicando que só tinha a última folha de
cheque. Ele disse que havia espaço para colocar a moto no baú e aceitou
prontamente a minha proposta. Assim, pude usar o dinheiro que gastaria
com o borracheiro para almoçar junto com gaúcho e seguir a viagem mais
tranquilo.
Saímos do posto e paramos na beira da estrada, oito quilômetros adiante,
onde a moto estava escondida sem a roda traseira e entre as moitas de
capim-navalha. Meu medo, era de chegar no local e não encontrar a moto
escondida. Mas felizmente ela estava lá. Como eu mal conseguia ficar de
pé,
ele,
praticamente sozinho, colocou a moto dentro do baú do caminhão.
Conversamos a viagem toda e quando eu vi já estava chegando o trevo de
Itaúna. Ele entrou no trevo e me deixou bem defronte à GT Motos, situada
ainda na rua Silva Jardim, oficina da qual eu era cliente. Eu agradeci
ao gaúcho, entreguei-lhe a última folha de cheque assinada e desejei boa
viagem. Na oficina, disse que meu irmão passaria lá até o final da tarde
para resolver sobre o novo pneu.
Sai de lá mancando e por muita coincidência encontrei meu irmão na rua,
a poucos metros dali, confirmando a ele tudo que tinha se passado. Com
passos cambaleantes e ainda sem poder apoiar o pé esquerdo
completamente, eu segui pela longa avenida Jove Soares, onde morava,
para finalmente poder tomar um banho digno e dormir por algumas boas
horas.
Essa experiência que teve passagens boas e ruins dentro de uma viagem de
motocicleta, me deixou o aprendizado de uma lição: mesmo se tudo der
errado deverá sempre haver uma saída. E o que salvará um homem nos seus
momentos de aflição, não será necessariamente a sua crença religiosa,
mas algo que a extravasa e apesar de invisível, me foi provado que
existe: a sua fé. E como vimos, eu cheguei a duvidar da minha fé. Mas
foi aí que esta sufocou a minha dúvida.
Obrigado, Gabriel, que você esteja sempre bem.
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Pepe Chaves é editor do diário digital
Via Fanzine
e da ZINESFERA.
- Imagens: Arquivo VF, Parque Nacional Serra da
Canastra, Yamaha/divulgação, Google Maps.
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