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Página de Marcelo Sguassábia em Via Fanzine

 

Todos os textos:

Por Marcelo Sguassábia*

De Campinas-SP

Para Via Fanzine

© Direitos Reservados

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* Marcelo Sguassábia é redator publicitário e colunista de diversos jornais e revistas eletrônicas.

É colaborador de Via Fanzine.

   Seu blog: Consoantes reticentes. E-mail: msguassabia@yahoo.com.br.

 

  

Rewind Turbo Magic

 

 

Dias idos agora voltam: a ciência atesta e dá fé. Nosso produto é seu visto de entrada no reino dos tempos lindos, aqueles que deviam ser proibidos de não existirem mais.

 

Mantenha o aparelho junto ao corpo e aperte o power. Nenhum ajuste será necessário, a menos que não se acendam os leds indicadores após três minutos de conexão à tomada. É importante que o usuário não oponha resistência, forçando a permanência no presente mesmo que de forma inconsciente. Tal comportamento irá consumir, em minutos, toda a carga da bateria.

 

Em observância à legislação vigente, asseguramos a integridade física do usuário durante o trajeto, mas não nos responsabilizamos pelas consequências dos atos praticados enquanto permanecer em outras dimensões do tempo/espaço.

 

Intoxicações por comida estragada, eventualmente observadas no retorno, não serão cobertas pela garantia. Portanto, recomendamos que não coma nada enquanto estiver por lá - seja lá onde e quando for. Contenha o apetite, por mais delicioso que seja o aroma de torta de vó em tarde de chuva. Lembre-se que, ao retornar ao ponto de partida, estará trazendo no estômago um bolo alimentar de anos ou décadas. Assim, atenha-se sensorialmente aos planos auditivo e visual da experiência. Isso basta para que a busca insana das recordações perdidas vá se atenuando a cada nova viagem.

 

Marcelo Sguassábia© - 20/12/2014.

 

- Imagem: Divulgação.

 

 

*  *  *

 

A Síndrome dos Livros Ilegíveis

 

  

O DESBOTAMENTO

 

Como muitas das desgraças desse mundo, a síndrome dos livros ilegíveis foi se instalando de forma silenciosa e quase despercebida. Quando os títulos dos volumes começaram a sumir aos poucos das lombadas, muitos não deram importância, atribuindo o fenômeno à luz do aposento, à vista cansada ou algo do gênero. A manhã do dia seguinte invalidaria essas hipóteses, revelando que nada é tão ruim que não possa ser pior.

 

TODO LIVRO É QUALQUER LIVRO

 

Das pequenas estantes domésticas às prateleiras das grandes bibliotecas, os livros foram todos se tornando indistintos. Era preciso abri-los e iniciar a leitura para identificar a obra. Mas a desgraça maior viria algumas horas mais tarde: relatos de todas as partes do mundo informavam o gradativo desaparecimento dos textos, transformando os livros em cadernos de anotações, com centenas de páginas em branco.

 

AS TENTATIVAS INFRUTÍFERAS

 

Pensavam alguns abnegados que, enquanto houvesse um pálido traço de letra antes do inevitável apagamento, haveria tempo de pelo menos tentar reforçar a caneta o conteúdo. Mas a tinta recém-aplicada também apagava-se à medida em que ia sendo posta no papel. Esgotados pelo esforço inútil, os heroicos voluntários quedavam-se inconsoláveis, vendo o conhecimento do mundo ser tragado pelo nada e sem explicação plausível.

 

Outros disparavam feito loucos suas câmeras fotográficas sobre as páginas dos livros e documentos ainda não contaminados, tentando salvar o que pudessem da ruína para depois reproduzir seu conteúdo, quando o pesadelo passasse.

 

Donos de cartório desesperavam-se na impossibilidade de administrar o caos, assistindo as propriedades perderem seus proprietários, esposas perderem seus maridos, pessoas perderem nomes, devedores serem libertos de credores, testamentos se anularem por nada testamentar.

 

O CONTÁGIO

 

Da ausência de conteúdo nos livros deu-se em seguida a perda da função das letras, que tornaram-se formas gráficas sem significado algum. Um “s” continuava sendo um “s”, com a diferença de que agora não servia para nada. Olhava-se aquilo como a representação de uma minhoca, uma cobra, um pedaço de mola ou algo parecido. A epidemia do insignificado alastrou-se e infectou as bulas e rótulos dos remédios, que assim tornaram-se potenciais causadores da morte ao invés da cura, já que não mostravam o que eram nem que alívio ofereciam. A única e perigosa alternativa era a tentativa e erro na ingestão de medicamentos e dosagens, o que não raro resultava em óbito. Mesmo os mortos não escapavam à fúria destruidora de letras: no campo santo, já não se distinguiam nem os nomes dos finados, nem seus inspirados epitáfios. Tudo sob a terra se ajuntava em um genérico cadáver.

 

Marcelo Sguassábia© - 13/12/2014.

 

- Imagem: Divulgação.

 

 

*  *  *

 

 

CVVSV - Centro de Valorização da Vida do Salva-Vidas

  

 

- Pronto, Centro de Valorização da Vida do Salva-Vidas – CVVSV. Por favor, seja breve, pois nossas linhas estão congestionadas.

 

- Tô sem vidas pra salvar. Antes tivesse cem vidas pra salvar, tá me entendendo?

 

- Entendo sim. E como entendo. Você é o décimo sexto que liga hoje. Ontem foram trinta e cinco.

 

- Ninguém tá precisando ter a vida salva, moça. Mar calmo, banhistas felizes com Sundown 45 besuntado até no cofrinho, nenhum desavisado se debatendo na rebentação. Um tédio. Gosto de viver perigosamente, pra isso escolhi essa vida de salvar a vida dos outros.

 

- Relaxe, pense que poderia ser pior. E se tivesse que resgatar dez vovôs gordos e sem preparo físico se afogando ao mesmo tempo? Daqueles que levam melancia, torta de sardinha e papagaio pra praia, já pensou?

 

- Mas pelo menos eu me sentiria útil, ainda que conseguisse salvar um gordo só. Bem ou mal estaria honrando o salário no fim do mês. O duro é ficar tomando sol o dia todo naquela cadeira em cima da escada. Me sinto um usurpador, um verme sem serventia, um chupim do orçamento da prefeitura. A senhora, como contribuinte, não se sente explorada? Por favor, me ajude, faça alguma coisa.

 

- Meu amigo, por acaso a culpa é sua se está tudo bem? Você saberá cumprir o seu dever, caso aconteça alguma coisa. Por que você não faz um curso de aperfeiçoamento, um módulo mais avançado pra sua função? Sei lá, ou então abra-se a novas possibilidades de relacionamento... uma respiração boca-a-boca com alguém atraente do sexo oposto, sabe como é, salva-vidas também é gente.

 

- Sei, sei. Vem ver as coisas que me aparecem pra salvar, vem ver. Isso quando aparece, né. A praia aqui é de periferia, minha filha. É a maior relação dentadura por banhista da América Latina.

 

- Você também podia pedir transferência pra algum lugar com mar mais agitado, tipo aquelas praias de surfistas em Saquarema.

 

- Mais alguma alternativa?

 

- Temos sugerido com frequência a pintura de paisagens marinhas em aquarela. O único problema é o salva-vidas se distrair demais com o hobby e não prestar atenção ao serviço.

 

- Chega, essa foi sua última chance. Não me convenceu, o buraco no meu caso é mais embaixo.

 

- Pelo amor de Deus, mude de ideia. Se não por você, pelo menos por mim.

- Como assim?

 

- Nosso índice de reversão das tentativas de suicídio nos últimos seis meses é de apenas 4,9%. Caso não consigamos melhorar esta estatística, nossa equipe toda será demitida. Você não está mesmo querendo salvar vidas? Pois então, sua oportunidade é agora. Salve a nossa, moço!

  

- Jura que é verdade? Não está dizendo isso só pra dar uma levantada na minha autoestima? Este argumento está me cheirando a script decorado aí da equipe de atendimento.

 

- Onde você está no momento?

 

- Estou aqui, no meu posto de observação, falando do celular. Mas com um cano de revólver enfiado no outro ouvido. Tem até um pessoal lá embaixo olhando desconfiado pra mim.

 

- Calma, segura a onda.

 

- Bom, isso é tudo o que eu queria, se houvesse alguma pra segurar.

 

- Moço, olhe pra trás. Guardas-noturnos, ex-boxeadores, enroladores de bobinas de transformador, mulheres barbadas de circo e outros suicidas contumazes bem que gostariam de estar no seu lugar, só aí, de frente pro mar... considere-se um privilegiado.

 

- Poupe o seu latim para um caso menos perdido que o meu. Além do mais, meu crédito está acabando.

 

- Me dá seu número que eu ligo!

 

- Vai dar caixa postal.

 

Marcelo Sguassábia© - 06/12/2014.

 

- Imagem: Divulgação.

 

 

*  *  *

 

Demorando no box

 

 

EU SONHO COM STRUDELS NESSES MESES DE ALUCINAÇÃO. DAQUELES TRANSBORDANTES DE RECHEIO, TÃO GENEROSOS DE MAÇÃS E PASSAS QUE MELEM TODA A CAIXA DE BRITA NO S DO SENNA. STRUDELS QUE PASSEM RASPANDO NOS GUARD RAILS DE MÔNACO, DEIXANDO UM RASTRO DE CANELA E AÇÚCAR DE CONFEITEIRO. UNS TRINTA BÓLIDOS-STRUDEL, LINDOS E RELUZENTES. RUMINAREI UM A UM, E DEPOIS DE EMPAPUÇADO USAREI A BANDEIRA QUADRICULADA COMO GUARDANAPO.

 

- Ele vai ficar bom.

- O pior é que vai

- Apesar do coma, né. O cara é forte como um touro.

- Mas está imóvel. Imóvel, logo ele.

 

TOLOS, EU ESTOU ÓTIMO. QUEM ESTÁ EM COMA NÃO TEM CONSCIÊNCIA QUE ESTÁ. SE PENSO QUE POSSO ESTAR É PORQUE NÃO ESTOU. FALEM, FALEM MUITO. E PENSEM MESMO QUE EU VEGETO, PARA FICAREM BEM À VONTADE.

 

- Veja, Orthild, o contrato é muito claro. Em caso de óbito, o patrocinador honra o valor assumido até o final. Temos que mostrar perícia na manobra. A família não está em condições psicológicas de se atentar a esse assunto, e isso conspira a nosso favor. Ou ajeitamos a nossa vida agora, ou nunca mais.

- As procurações que temos dão conta de tudo?

- Penso que são suficientes.

 

BASTARDOS... O HOMEM LÁ DE CIMA, O DONO DE TODAS AS ESCUDERIAS, HÁ DE TIRAR A VIDA DE VOCÊS COM UM LOTE DE STRUDELS AZEDOS E COM VALIDADE VENCIDA..

 

- O queixo dele é grande mesmo, olha só. Não sei como cabia dentro do capacete.

- Não fosse pelo carro mais rápido, ele ganharia as corridas porque o queixo iria chegar na frente.

 

COMO VOCÊS SÃO MALDOSOS, TÃO CHEIOS DE HUMOR DE HUMOR INCONVENIENTE EM HORA IMPRÓPRIA. O QUEIXO É GRANDE PELA MASTIGAÇÃO COMPULSIVA DE STRUDELS. EM TODOS OS TREINOS CLASSIFICATÓRIOS, FIZ A VOLTA MAIS RÁPIDA ENTRE UM STRUDEL E OUTRO. E EU AGORA TENDO QUE ME CONTENTAR COM ESSE SORO. CHUCRUTES ME MORDAM.

 

- Tem hora que ele parece estar se mexendo.

 

MUITA, MUITA NEVE NA PISTA. VOAVA MONTANHA ABAIXO, COMO SE AO FIM DA PROVA HOUVESSE, NO LUGAR DE PÓDIUNS, DE CHAMPANHES E COLETIVAS, UMA BELA FORNADA DE STRUDELS FUMEGANTES À MINHA ESPERA.

 

- São espasmos inconscientes, ele não escuta nada. Nós precisamos ser mais rápidos agora do que ele foi a carreira toda. O ocorrido repercute cada vez mais na imprensa, o quadro se agrava e daqui em diante a contagem é regressiva.

 

 

QUATRO VOLTAS PARA O FINAL, TALVEZ TRÊS. UM STRUDEL DE OITO QUILOS, EM AÇO ESCOVADO, ME ESPERA SE CONSEGUIR VENCER... ESTOU PAGANDO PELA MINHA IMPRUDÊNCIA. DEVIA TER USADO PNEUS DE NEVE.

 

Marcelo Sguassábia© - 30/11/2014.

 

- Imagem: Divulgação.

 

*  *  *

 

Big brother sonoro

 

- Um diário fonado.

- Como assim, um diário fonado?

- Você liga um desses gravadorzinhos digitais e vai gravando tudo o que se passa. Eu disse tudo. Mas não um diário como os outros, onde alguém narra o que acontece de mais importante. É a vida gravada mesmo, um “Show de Truman” em áudio. Quando a memória do gravador estiver cheia, descarrego no computador e começo a gravar de novo, indefinidamente. Dia após dia, ano após ano.

- Ah, sei. Você desperta e vai dizendo: “abri os olhos, são seis e trinta, coloquei os dois pés no chão, primeiro o direito, depois o esquerdo, calcei os chinelos”...

- Pára, eu tô falando sério. Não é descrever o que rola, é viver com o gravadorzinho ligado. Como um “Big Brother”, mas sem as imagens. Olha só, agora mesmo estou gravando nossa conversa, que vai ficar pra posteridade. Veja aqui o bichinho escondido no meu bolso.

- Que idéia maluca. Pra que isso?

- Hoje pode parecer absurdo, mas imagine o valor de um documento assim pras próximas gerações. A sociedade do futuro saberá como era a vida das pessoas no século 21. Eu digo a vida íntima, o cotidiano nu e cru, entende? Nossos bisnetos herdarão uma relíquia de incalculável valor histórico. Nunca ninguém fez isso antes. Imagine se você pudesse ter acesso ao registro da vida da sua bisavó, minuto a minuto. Não seria sensacional?

- Isso inclui cada instante vivido, sem intervalos?

- Claro. Se editar, perde a credibilidade.

- Sei, e quando a gente estiver na cama? Vai que alguém rouba a traquitana e devassa nossa intimidade, pensa bem... Outra coisa, e na hora de ir ao banheiro? Entram até, digamos assim, as manifestações orgânicas de caráter involuntário? O barulho da descarga? As escovações de dente?

- Tudo, ininterruptamente, até o último suspiro.

- Que mórbido.

- Gravaremos o primeiro choro do nosso filho, os gritos na montanha russa, os rojões nos jogos da Copa, pessoas reclamando da fila que não anda, o motorzinho no dentista, a fala dos pedintes nos semáforos... não vamos mais correr o risco de não lembrar das coisas. O inventário detalhado da existência estará sempre à mão. Basta um “rewind” pra reviver os melhores momentos.

- Bom, já que é pra registrar, por que não faz isso em vídeo?

- É que aí a gente vai querer ficar arrumadinho o tempo todo. Quando uma câmera é apontada pra você, acabou a espontaneidade. Fora que o áudio vai mexer mais com a imaginação de quem estiver ouvindo lá no futuro. É como as radionovelas, só que uma radionovela real, que dura décadas. Se Deus quiser, né.

- Ok, suponhamos que você viva mais 50 anos. Será meio século de áudio estocado. Se algum louco se meter a escutar isso, vai perder 50 anos da própria vida pra ouvir o que você gravou. É preciso muito amor à sua pessoa ou à pesquisa antropológica, não acha não?

- Mas também não é assim. As 8 horas diárias de sono não seriam gravadas, porque aí não acontece nada mesmo. Seriam 16,6 anos de gravação a menos.

- Ah bom, aí já dá pra encarar a empreitada. São só 33 anos na escuta! Ora, tenha paciência.

- Repare que interessante metalinguagem: estou gravando você falando da gravação que a gente está fazendo. Maluco, né?

- Então, mas o problema...

 

(Neste momento, aparentemente, houve pane no gravador. Não há registro da continuação da conversa).

 

Marcelo Sguassábia© - 23/11/2014.

- Imagem: Divulgação.

*  *  *

 

Mundo cão

I

Foi uma alegria quando o Seu Totó apareceu com o humaninho em casa. Uma graça - de terninho, gravata e sapato preto de bico fino.

- Qual a raça dele, pai?

- Não sei direito, Lassie, mas parece que é lavrador. Estava abandonado num caminhão de bóia-fria. Que judiação, deu uma pena. Não resisti e resolvi adotar. Não era você que ficava me infernizando, pedindo uma humaninho? Pois então.

II

- Vamos ter que passar no human-shop pra comprar arroz e feijão pra ele, disse Dona Lulu.

- Não precisa ser no human-shop, querida. Hoje em dia tem seção de produtos pra ser humano em tudo que é supermercado. Podemos dar uma olhada no Cãorrefour, no Rextra ou no Cão de Açúcar.

- Nada disso, papito, melhor uma loja especializada. Aí a gente já aproveita e compra escova de dente, desodorante, talco de chulé, uns maços de cigarro e uma garrafa de pinga.

- É, e também não pode demorar muito pra vacinar, disse o Tobi. Paralisia infantil, sarampo, catapora, tétano...

- Pera aí, cachorrada, assim não é possível. Se for comprar tudo o que inventam pra criação de gente o meu salário na Purina não vai dar. Tem até psicólogo e academia de ginástica pra esses bípedes sem rabo. Não há dinheiro que chegue.

III

- Mami, olha só, o humaninho não pára de falar. O que será que ele quer latir com isso?

- Eu sei lá, o que eu sei mesmo é que não quero saber de bagunça aqui dentro de casa.

- E alguém pode me dizer se os humaninhos mordem?

- Ouvi falar que não, mas ficam mordidos quando estão sem dinheiro. Grana pra eles é a mesma coisa que osso pra nós, Lassie.

- Ah, isso é verdade, ô se é. Outro dia lá na escola o Pedro Pintcher apareceu com um saquinho de dinheiro. Aí a gente ficava jogando notas e moedas pro humano de estimação do Diretor. Ele saía correndo que nem louco atrás, precisava ver! E nem era adestrado, o danadinho.

IV

- Humanos também adoram televisão.

- Igual a que a gente tem aqui, com os franguinhos girando?

- Claro que não, eles não raciocinam. Gostam de novela, grupos de pagode, programas idiotas de auditório e outras atrações onde as fêmeas humanas abanam os rabos e os machos ficam arfando, com as línguas de fora. Isso é o máximo que o QI deles alcança.

- Tobi, meu filhote, já colocou o jornal lá fora pra ele fazer xixi?

- Já coloquei agorinha, mas ele pegou o jornal e começou a ler. Vê se pode.

- Ué, tá negando a raça? Menos mal, enfim um humano se instruindo. Só espero que a leitura não se reduza ao horóscopo.

- E que nome vamos dar pra ele, heim? João, José, Antonio, Daniel, Orozimbo...

- Que tal Praxedes?

- Lindo.

- É, Praxedes tá legal.

V

Exausto com o alvoroço do primeiro dia, Praxedes se espreguiçou na casinha e tentou dormir, mas o sono não vinha. Ligou a TV que instalaram pra ele, no cercadinho. Como sempre, só havia pastor em todos os canais. Pastor alemão, pastor belga, pastor capa preta, pastor com pedigree, sem pedigree, filhotes, adultos. Zapeando pela programação, pôs-se a imaginar um mundo menos cão e mais humano, onde os animais domésticos fossem os cães e não as pessoas. E viu-se dono de uma próspera rede de pet-shops, morando numa casa de três andares e cheia de cachorros no quintal.

 

Marcelo Sguassábia© - 15/11/2014.

- Imagem: bonecofalconestrela.blogspot.com.

 

*  *  *

 

Delma não sabia

 

 

O que tem a dizer sobre as denúncias do esquema de propina na Petrobras, onde 3% de todos os contratos ficavam para o seu partido?

 

No que se refere a essa história da capa da Veja, eu devo dizer que... falar que o PSDB varre tudo pra debaixo do tapete. Falar do mensalão tucano, falar da falta de água em São Paulo, falar do desemprego no tempo do Fernando Henrique. Falar do escândalo das privatizações e da emenda da reeleição. Falar que no meu governo tudo mudou pra melhor, e que, com o projeto “Brasil Carinhoso”, milhares de famílias...

 

A senhora não respondeu à pergunta. Essas folhas aí que a senhora está lendo provavelmente eram a sua “colinha” para os debates... me parecem lembretes para orientá-la...

 

Ai, meu Deus, que cabeça a minha. Tem razão. Ai, ai, ai... Deixa eu pegar o papel certo aqui, só um momento... Então, no que se refere à resposta que você me pede, se eu disser que não sabia de nada dessa história, seria uma inverdade. Eu desconfiava, sim, mas não tinha provas ou não queria aceitar que estava cercada de Iscariotes os mais variados. É como uma mãe, que sabe que o filho está metido em tráfico de drogas mas no fundo acredita que ele só sai de casa pra ir à escola dominical, compreende?

 

E quanto a todas as outras acusações de corrupção e mau uso do dinheiro público, envolvendo ministros e assessores diretos?

 

Pois é, no que se refere a isso tudo a que você se refere, eu fiquei passada quando a coisa foi pipocando na mídia. Ensandecida, fui me aconselhar com o Suplicy, que em questão de honestidade está acima de qualquer suspeita. Cheguei no apartamento dele em hora imprópria. Estava muito ocupado, de robe de chambre e com o rosto besuntado de creme esfoliante, redigindo a nova versão do projeto Renda Mínima. Cheguei e já fui destilando minha ira. Senti que ele me escutava, mas não ouvia. Depois que contei meu dilema ético, ele virou pra mim, baixou um pouco os óculos e disse apenas, com aquele seu olhar de ET da terceira idade: “Delma, o nosso partido jamais faria uma coisa dessas. Ponho minha mão no fogo, ponho o meu projeto de lei no fogo, eu toco fogo no Supla se for preciso!”. Dito isso, ele passou mais uma boa demão de esfoliante nas orelhas e no nariz, e em seguida insistiu pra que eu lesse um whatsapp cheio de segundas intenções, que ele queria mandar para a Joan Baez, antigo e ilustre affair. Lembro que a mensagem falava qualquer coisa sobre renda mínima, de que ele queria ver a renda mínima dela, algo assim.

 

Ainda no que se refere a essa história, eu disse aos companheiros que, se as acusações tivessem fundamento, teríamos que procurar os culpados e cortar na carne. Nesse momento o Lulinha entrou aos berros no gabinete, não se sabe de onde, dizendo que podia cortar qualquer carne, menos a Friboi. Não entendi o que tinha a ver uma coisa com a outra, porque o rapazinho, que eu saiba, nunca lidou com esse negócio de pecuária e frigorífico. É quase uma criança, até outro dia mesmo só mexia com games.

 

Consta que seu comando de campanha enviou mensagens SMS aos beneficiários do Bolsa Família, afirmando que o benefício iria acabar caso o governo Delma não continuasse. É verdade?

 

No que se refere a isso, eu acho que quem tem celular pra receber SMS não precisa receber Bolsa Família. Ou seja, se o sujeito recebeu a mensagem, ele não era o público-alvo dela. Pensa bem, meu marqueteiro não iria ser burro a ponto de montar uma estratégia tão ilógica.

 

Qual a sua versão sobre o uso dos Correios para distribuição de propaganda política do PT?

 

No que se refere a essa questão epistolar, a grande verdade é que não tem nada demais nisso. Se o carteiro vai ter que ir na casa do cidadão entregar carta, já aproveita a viagem e entrega um papelzinho nosso. Que é que tem de mais? Veja bem, ninguém tá mandando o carteiro nas casas dos brasileiros e brasileiras só pra entregar a propaganda... Aí sim, seria safadeza.

 

Muitos analistas sustentam que o seu know-how no assalto aos cofres públicos vem dos tempos da ditadura, como assaltante de banco...

 

No que se refere a esse mau passo involuntário, eu era contra a ideia desde o começo. Mas fui coagida por um companheiro, vulgo Bola Sete, a participar. Acabei concordando quando me afiançaram que eu ficaria só na retaguarda e que o revólver era de espoleta.

 

Marcelo Sguassábia© - 08/11/2014.

- Imagem: bonecofalconestrela.blogspot.com.

 

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Vida de santo

 

 

Engana-se quem pensa que vida de santo é um infinito “dolce far niente”. Nem ao mais preguiçoso deles é dada a graça de ficar chupando chicabon eternidade afora. E aquele estereótipo de se recostar em nuvens, entre cânticos e cítaras, é mais coisa de anjo que de santo - e anjo de quadro barroco, idealizado e fora de contexto histórico.

 

Santo passa maus bocados, verdade seja dita. E nem por isso os devotos lhes tratam com o devido respeito, o respeito que o santo, justamente por ser santo, exige.

 

Por exemplo, esse estranho hábito terráqueo de entornar no mínimo 10% da cachaça no chão da venda, dizendo que é pro santo. Posso dizer com certeza que todos eles abrem mão da homenagem e passam muito bem sem ela. Se gostasse mesmo de água que passarinho não bebe, santo não seria santo. Muito pelo contrário.

 

Depois, tem outra: manda a Justiça Divina que, toda vez que se oferece algo pro santo, e não se especifica pra qual santo é o presente, a oferenda seja repartida por todos indistintamente. Vai daí que cada gole oferecido é dividido, em partes iguais, para a santosfera inteira. Sabendo-se que os santos são atualmente milhares, a cada um cabe geralmente uma gotinha de nada - e não é isso que vai desviar a santaiada do bom caminho. Até aí, nada de mais. Mas acontece que se a gente levar em conta que cada pinguço manda pra goela pelo menos uns três copos da marvada, e que só no Brasil temos milhões de alcoólatras, o estrago divino é grande, provocando em vários deles internações frequentes - quando não diárias. E as mais prejudicadas são as santas, que com um tiquinho de martini já estão trançando as pernas.

 

Outro problema sério são as imagens dos santos - tanto as pintadas quanto as esculpidas. Tem santo lá em cima que excomunga sem dó alguns dos displicentes artistas terrenos, pela falta de semelhança deles com as imagens que os representam. Esse tipo de episódio produz verdadeiras catástrofes estéticas. Outro dia mesmo toda a corte celeste saiu em passeata, com cartazes, faixas e gritos de guerra, protestando contra um lote de 250 estátuas de Santa Edwiges que saiu de fábrica com cara de Rita Cadilac. Um repulsivo sacrilégio, que merece punição exemplar. Para evitar novos contratempos, São Tomé propôs em assembleia a instituição do selo "Ver para Crer", que certifica a imagem beatificamente reconhecida, ou seja, aquela que tem a benção do respectivo santo e que guarda nítida semelhança com a sua figura dos tempos de carne e osso.

 

Além desse tipo de desrespeito, há também injustiças que agridem e irritam a turma de auréola. A maldosa e irônica expressão “Na descida todo santo ajuda” vem merecendo, de uns tempos para cá, um revide da parte dos ofendidos. Julgam eles que a frase denota uma certa acomodação, dando a entender que os santos têm braço curto e que não se empenham nas tarefas mais difíceis, onde só um milagre pode resolver a parada. “Não vamos ajudar mais na descida, ainda que o carro do sujeito esteja sem freio. Pois que se espafitem, aprendam a lição e vão para o inferno” desabafa um conhecido santo, que não quis se identificar.

 

Marcelo Sguassábia© - 1º/10/2014.

- Imagem: bonecofalconestrela.blogspot.com.

 

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Falcon no Cantareira

 

 

- É ele, eu tenho certeza. Tem aqui as iniciais do meu nome, que o saudoso Tio Zezo marcou a ponta de faca nas costas do boneco. Ter um Falcon, naquele tempo, era o sonho de consumo da molecada. Com essa marquinha aqui, se me roubassem na escola eu poderia provar que era meu. Velho Tio Zezo, era uma criança junto com a gente.

 

- Tá me zoando, meu. Não pode ser o mesmo boneco.

 

- Te juro. Olha, tá me vindo a cena toda na cabeça. Eu estava ali, perto daquele pneu de trator. O Rodriguinho, pentelho como sempre, me deu um empurrão, querendo me jogar pra dentro d'água. Eu consegui segurar o tranco, mas o Falcon acabou caindo e submergiu pra nunca mais. Quer dizer, até hoje, né. Eu tinha ganho de presente no Dia das Crianças, e o mergulho fatídico foi uns dois meses depois, num domingo quente perto do Natal. Meu pai estava pescando com o Motorádio do carro ligado, e me lembro daquele jingle tocando: "Quero ver você não chorar, não olhar pra trás..."

 

- Por essa época vocês tinham um Corcel II branco, né?

 

- Isso, e no painel tinha um imã, escrito "Papai não corra, não morra". Era começo dos 80, mas o imãzinho era dos 70, quando os carros eram inteiros de ferro. Se fosse nos carros de hoje, o imã não ia parar no painel. Acho que seria mais fácil eu ganhar 100 vezes na Megasena do que reencontrar meu amiguinho barbudo.

 

- Concordo. Inacreditável, e olha que o pescador nem era você. Olhando toda essa terra rachada, a impressão que dá é que abriram o ralo da represa. Achar carro, barco, sofá submerso, vá lá... Mas um bonequinho desse tamanho é demais. O que te fez pensar que ele estaria aqui, no mesmo lugar?

 

- Meu sexto sentido arqueológico, talvez. Além disso, estamos falando de um tanque, onde as coisas jogadas nele não podem ir pra outro lugar.

 

- O triste é ter que tirar a poeira dele, quando o mais lógico seria colocá-lo pra secar... Falcon da Estrela: o resgate. Que saga, heim?

 

- Nossa, olha lá. Um Aquaplay.

 

- Onde?

 

- Melhor dizendo, acho que tá mais pra Terraplay...

 

Marcelo Sguassábia© - 19/10/2014.

- Imagem: bonecofalconestrela.blogspot.com.

 

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A mancha no sofá de Abreu

  

 

Há várias hipóteses, pouquíssimas delas plausíveis, para a mancha no sofá de Abreu. Passados 49 anos ela continua lá, com a mesma cor e contornos, perene como o morro do Pão de Açúcar e cada vez mais disposta a desafiar a ciência. Sim, porque tudo indica que não há força cósmica nem reza brava que pareçam capazes de acabar com ela.

 

Surgida sem causa aparente nem testemunhas que atestassem o momento exato do seu aparecimento, o achado tem peculiaridades físico-químicas ainda não suficientemente compreendidas, com arranjos moleculares nunca antes observados em quaisquer matérias do planeta.

 

Essa intrigante incógnita desafia a comunidade científica e mobiliza pesquisadores de toda parte a buscar uma explicação satisfatória para o caso. Recentemente, teve lugar na sede de campo da Associação Comercial de Monjolos das Missões um debate aberto ao público, no qual especialistas de diferentes vertentes tentaram elucidar, à luz da numismática moderna, o intrigante fenômeno - só comparável, em termos de repercussão midiática, ao velório da viúva de Floriano Peixoto.

 

Como se sabe, Abreu é ávido consumidor de aipim, granola com raspas de coco e Gatorade sem gelo, itens que ingere separadamente às terças, quintas e sábados, e batidos no liquidificador às segundas, quartas e domingos. Indagado sobre o motivo de nunca fazê- lo às sextas, Abreu mostrou-se evasivo e pouco convincente, chegando a alegar razões de natureza religiosa para abster-se do consumo da ração habitual naquele dia da semana. Parece desprezível esse pormenor, mas foi a partir dele que os estudiosos do caso estabeleceram uma relação entre o aparecimento da mancha e a rotina alimentar da vítima. Deduziu- se que a mancha, por estar no sofá, tem 93,7% de chance de ter sido causada por guloseima entornada e que, assim sendo, poderíamos ter como afastada a hipótese dela ter aparecido numa sexta, dia que Abreu dedica ao jejum, conforme explicado acima.

 

Reconhecida pelo Guiness World Records como a mancha mais extensamente estudada na história da humanidade, a busca por “Abreu's Stain” é hoje uma das vinte mais solicitadas no Google mundial, e cogita-se recolher uma amostra da mesma para incluir na próxima cápsula do tempo a ser lançada ao espaço pela NASA.

 

Há cerca de três meses, sem causa aparente, a mancha de Abreu começou a demonstrar comportamento atípico. O mais atípico possível, em se tratando de uma mancha de sofá: tornou-se intermitente, ou seja, era visível num dia e invisível no outro. Munidos de câmeras ultramodernas, cinegrafistas mantêm-se a postos com suas lentes e luzes apontadas para a nódoa mais célebre do universo, esperando captar o momento de mudança do visível para o invisível, ou vice-versa. Espera-se para as próximas horas a divulgação de boletim com notícias atualizadas sobre o caso.

 

Marcelo Sguassábia© - 19/10/2014.

- Imagem: Public Domain Imagem/Divulgação.

 

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Ana Lógica

 

 

Logicamente, Ana levanta-se naquele dia do mesmo jeito que nos outros todos, maldizendo o cuco de madeira capenga que lá da sala diz que é tempo, que a vida urge e exige Ana de pé e de prontidão, a postos para matar o leão da vez.

 

De frente pra urna eletrônica, saca do sutiã a colinha que trouxe de casa com os nomes dos cabras menos ruins. Acha que aquilo é voto, tenta encontrar uma fenda na geringonça para enfiar o papel.

 

- Como é que é isso, seu mesário?

 

Feito o dever cívico, passa pela padaria em frente à igreja, com suas duas televisões de cachorro e dezenas de frangos girando. Lembra do dezembro à porta e seus piscas nos pinheiros, Ana dos gorros tricotados de Noel, logo só se vê e só se fala nessas festas de exageros, nesses tempos de advento onde o que menos importa é o menino redentor desse mundo de pecados.

 

As cartas atrasadas a remeter, as tampas de margarina a envelopar e enviar ao sorteio com a pergunta respondida, as agulhas de costura agora quase tão raras quanto as de vitrola, os lençóis no quarador, o necessário acato aos filhos que Deus manda (todos com a mecha de cabelinho guardada na gaveta da penteadeira). Ana e a lógica das palavras cruzadas na sala de espera e no aguardo do tempo de tintura no cabelo. Vai treinando, Ana, a sua menina mais velha nas prendas do lar, leva ela com você ao açougue e revela passo a passo o segredo do sucesso do seu lendário picadinho, o melhor do quarteirão - a começar pela alcatra moída duas vezes, sem um tiquinho de gordura, à moda da velha vó.

 

Acontecesse o que fosse, ela continuaria desse jeito – Ana de células, fluidos, anáguas, aquário de peixes na sala e fichas de orelhão no porta-níqueis. Tão analógica quanto o moinho do homem da garapa, a agenda da Tilibra e a fita cassete. Aquela que ainda pensa e vai morrer cismando que boleto sem autenticação mecânica não é boleto pago. Que pendura chumaço de bombril na antena da TV de tubo catódico um pouco antes da novela das seis, enquanto mexe o doce da vida amarga.

 

Marcelo Sguassábia© - 11/10/2014.

- Imagem: Public Domain Imagem/Divulgação.

 

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Junte-se a nós!

 

 

 

Chega de candidatos de ocasião, que dão as caras agora e que, findo o pleito, escafedem-se como ninjas em filmes de kung fu. Basta de aproveitadores com sua verborragia inflamada e estéril. Cheios de programas vazios, esses embusteiros se apresentam no vídeo com a mão espalmada, apregoando as cinco manjadas prioridades de governo: saúde, habitação, emprego, transporte e segurança. Quero fazer frente a esse engodo que caçoa da boa-fé do eleitor, e para tanto apresento propostas concretas.

 

Darei combate sem trégua àqueles que são contrários ao nepotismo saudável e desinteresseiro, ao cartorialismo firme e atuante, à legítima barganha de cargos públicos em todos os escalões, ao voto de cabresto a peso de mortadela e ao assistencialismo de fachada.

 

Atendendo a uma antiga reivindicação da sociedade organizada, azeitarei a máquina administrativa para que funcione a contento. Confiante em minha vitória nas eleições que se avizinham, já deliberei à minha futura equipe de assessores uma tomada de preços para importação do óleo de oliva da marca Gallo (com o perdão do cacófato), extra virgem, em caixas contendo 120 latas de 500 ml. Havendo excedente, o azeite será utilizado para regar as pizzas de minha legislatura, que sem dúvida serão muitas e de sortidos recheios.

 

O eleitorado da terceira idade terá acesso a um novo modelo de prótese, composto por arcadas lisas e inteiriças, ou seja, sem as repartições a que chamamos “dentes”. Uma peça é afixada no maxilar superior e outra no maxilar inferior. O efeito estético é avassalador, assemelhando-se ao que se vê na maioria dos personagens de desenhos animados. Além de facilitar a higiene bucal do idoso, essa revolução protética dispensa o uso de fio dental, desonerando assim os cofres públicos da compra deste item para os asilos. A fôrma do novo artefato já está pronta e o produto chegará aos postos de saúde em 3 tamanhos.

 

Implantação do “Halloween Tupiniquim” no calendário de festividades, com o objetivo de manter vivas nossas mais ricas tradições folclóricas. Com ele, diremos não ao imperialismo americano e suas bruxinhas babacas, marshmellows de variadas cores e cabeças de abóbora iluminadas. Os monstros ianques darão lugar ao Boi da Cara Preta, ao Saci, à Cuca, ao Boitatá e ao Chupa-Cabra. A gurizada, por sua vez, passará pelas casas à cata de doces típicos da nossa culinária, como o quebra-queixo, a pamonha e o pé-de-moleque.

 

Incentivos fiscais para pequenos produtores de mandruvá em cativeiro, projeto que acalento desde os tempos de vereança. Devo lembrar aos eleitores que a indolente lagarta, abundante em nossa região, tem eficácia comprovada na erradicação do escorbuto e de outras hipovitaminoses que assolam as populações desassistidas, especialmente as comunidades ribeirinhas.

 

Programa “Espana, Brasil!”, que prevê a produção de espanadores com pena de codorninha do mato. Toda a produção será escoada para acabar com o pó de países vizinhos, como a Bolívia e a Colômbia.

 

Se suas aspirações encontram eco em nossa plataforma de governo, junte-se a nós. Empunhe nossa bandeira, leve no peito nosso botom, convença seu vizinho ou colega de trabalho de que a nossa causa é a causa de todos. À vitória, companheiros!

 

Marcelo Sguassábia© - 28/09/2014.

- Imagem: Public Domain Imagem/Divulgação.

 

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O chulé nosso de cada dia

 

 

O chulé anda escasso, e não é de hoje. A culpa não é do governo, nem da sociedade organizada, nem dos anões inadimplentes e muito menos dos ambientalistas. Estes últimos, inclusive, há tempos vêm alertando que, se nada for feito, tudo o que nos restará será o mortal oxigênio. Alguns são mais pessimistas e dão o jogo por perdido, afirmando que agora é tarde e já não há mais nada a fazer, a não ser esperarmos, conformados, a morte por sufocamento.

 

Os bancos de chulé, quem diria, estão exalando lavanda, com a triste falta de doadores. É desanimador, mas compreensível. Quem, em sã consciência, vai renunciar a uma cafungada profunda na meia podre para doá-la a quem mais necessita? Ainda mais sabendo que a chance de ver o próprio elixir fedorento sendo desviado para contrabando é sempre muito grande...

 

Junto com o contrabando, seu irmão mais perigoso: o tráfico. Mais do que o crack, o ecstasy e a coca juntos, o estrago causado pelas quadrilhas de chulé é apavorante. Se até há poucos anos era comum encontrarmos, em toda família de classe média, pelo menos uns três chulezentos em plena e farta produção, hoje a realidade é bem outra. A falta do insumo faz surgir carradas de fornecedores vindos de miseráveis favelas, que não hesitam em matar ou morrer para para manter girando a bilionária indústria da contravenção.

 

O desabastecimento, na entressafra de inverno, veio complicar ainda mais a situação. Evidente que a produção de chulé cai junto com a temperatura, e essa constatação levou as autoridades a criarem a Funghi Run 20K – Grande Caminhada pela volta do Chulé. Mais de 44.326 pessoas participaram do evento, em desabalada carreira sob sol abrasador, num esforço sobre-humano para a geração de quantidades colossais de chulé de qualidade. Concluída a prova, os participantes arremessaram seus tênis e meias usados numa grande caçamba, próxima ao pódio. Entretanto, a quantidade de chulé coletada foi inexpressiva – justamente por conta do clima ameno demais.

 

A verdade é que caminhamos a passos largos para o racionamento, a menos que as pesquisas em andamento sobre o enxerto de glândulas sudoríparas nos pés traga resultados animadores em curtíssimo prazo. Confirmada essa perspectiva otimista, o projeto do governo é implementar algo parecido com os mutirões da catarata, onde são realizadas cirurgias em massa nos grandes centros urbanos.

 

Paralelamente, temos de reconhecer que a polícia tem feito sua parte. Na terça-feira última, desbaratou uma gangue de larápios que vinha aplicando o velho e manjado golpe do velório. Em choro fingido, os delinquentes iam percorrendo sucessivos velórios para afanar as meias dos defuntos. E ali mesmo, no local do crime, consumiam vorazmente o chulé do finado.

 

Cães farejadores também têm sido adestrados para rastrearem chulé em expedições de busca, com resultados satisfatórios. O que não isenta a polícia de alarmes falsos como o ocorrido ontem, quando uma matilha de pastores alemães confundiu o que seria um grande depósito clandestino de chulé com uma fábrica de queijo gorgonzola.

  

Marcelo Sguassábia© - 20/09/2014.

- Imagem: Public Domain Imagem/Divulgação.

 

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Angu à moda de dali

  

 

Ah, como foi flácido o fluir dos flocos de nuvens pagãs, ficar de joelhos e estalar artelhos dentro da redoma. Quis um cafuné despido de intenção para comer com pão no café da manhã. Mas não estava são, como nunca estarei - apenas maldizia em régua derretida e compasso de espera.

 

A cara metade a léguas daqui. A cara metida em downloads de lá. Teimo rabiscando sem mãos a medir nem pés a amparar, mesmo sabendo que nada restará exceto o jasmim de raras consoantes. Brancas, fofas, sem serifas que machuquem. Caem flutuando no texto e deixam-se ficar, sem mais o que fazer e dóceis de lidar.

 

Que nada, quimera, que sina, pintassilgos de resina nessa piscina de esperanto. Regrido aos idos das lascadas pedras, desvãos, lodos e escaninhos por toda a inadequada geografia. Acesso de riso no acesso da estrada, recém-asfaltada com pasta de anis e raspas de misericórdia.

 

É quando, de repente, tudo passa a destoar de Dostoievski. Incensa e chora, lamenta e geme. À beira do Sena, a chanson se esvai em acordes lácteos. Espana, gira em falso. Espanha, falsos Mirós. Descem carradas de mouses de esgoto a farejarem rotos e a soltarem arrotos sobre outros ratos. Entrementes, há mulheres lusas ainda muito quentes, moídas por engano na bacalhoada. Uma soneca no vinco do teu jeans, sob o embalo cômodo de Brothers in Arms. Sem mais delongas, estimo melhoras.

 

Marcelo Sguassábia© - 20/09/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

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Vascaína

 

 

Na capitania hereditária de Vasco Herculano Machado do Aleijão aconteciam coisas um tanto esdrúxulas. A greve dos sacis, reivindicando fumo de boa procedência para seus cachimbos, talvez seja a ocorrência mais conhecida, pela repercussão alcançada nos pasquins da época. O levante resultou, inclusive, na intervenção da Coroa Portuguesa para aplacar os exaltados ânimos dos Pererês, reunidos aos milhares em ruidosas passeatas sobre uma perna só.

 

Mas o incidente está longe de ter sido o único a merecer nota nos anais da história. Muito provavelmente, o maior de todos os rebus já registrados naquelas plagas coloniais se deu quando a referida capitania teve finalmente de tornar-se hereditária - por ocasião da

morte de seu donatário, o tal Vasco. A faixa de terra, que se estendia do litoral até a linha de Tordesilhas, era para o herdeiro um pepino maior que a Faixa de Gaza dos dias de hoje.

 

Financeiramente deficitária e atacada pelos índios caxinauás a cada oito dias, a extensa tripa era um matagal de fora a fora e exalava um odor incessante de carniça pela ausência de urubus na região, abatidos em massa pelo desalmado Vasco nas suas práticas de tiro ao pombo (como os pombos eram difíceis de acertar, Vasco achou por bem trocar de ave para facilitar-lhe a pontaria, daí a opção pelos urubus). Vasco Jr., em resumo, iria herdar um verdadeiro nó cego, o que o levou a abdicar da hereditariedade sobre a capitania. Não havendo outro português que se habilitasse a ficar com a encrenca, Juninho resolveu legar seus milhares de hectares à menos hostil das caxinauás que conhecia, uma tal Cunhapora Ceci, que há tempos lançava sobre ele uns olhares cheios de segundas intenções.

 

Cunhapora, flagrada após a caça vespertina cheirando lança em sua oca, agradeceu a Vasquinho o fato de lembrar-se do seu nome mas rejeitou a oferta. Entretanto, sugeriu a ele que propusesse a Inhauaterê e seus irmãos um bem fornido carregamento de espelhinhos em troca de serviços vitalícios de capina do território. Pelo menos assim manteria roçados os seus domínios enquanto, com um pouco mais de calma, engenhava uma solução adequada ao seu dilema.

 

Embora alguns dos irmãos de Inhauaterê demonstrassem sincero interesse na permuta, esta foi formalmente rejeitada pela maioria, que preferiu não trocar a rede pela enxada. Inconsolado e descrente da boa vontade humana, Vasco Jr. não vislumbrava outra saída a não ser repartir a capitania em pequenas sesmarias para cultivo de hortifrutigranjeiros.

 

Pelo tratado estabelecido, se suas terras não fossem lucrativas após determinado prazo, a Coroa Portuguesa poderia reaver a posse e mandá-lo à forca por justa causa.

 

Temendo essa possibilidade, Vasco Jr. retornou à mesa de negociações com Inhauaterê e Inhauaterê Mirim, seu filho, para elaborarem o estatuto da Alfamel, a Cooperativa de Produtores de Alfaces e Melões, a ser gerida por trinta mil japoneses dispostos a ganhar a vida a qualquer custo nas capitanias brasileiras. O que os nipônicos de então não imaginavam é que a maleita dizimaria, em apenas 17 meses, quase todos eles, enquanto a praga denominada Mandruvá da Alface faria o mesmo com suas hortas.

 

Vasquinho faleceu após duas outras tentativas fracassadas de fazer dinheiro com suas terras. E de arrumar um herdeiro para sua Capitania.

 

Marcelo Sguassábia© - 13/09/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

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De marca maior

 

 

O que será que faz o M do Mc Donald's, a curvinha da Nike, o jacarezinho da Lacoste serem o M do Mc Donald's, a curvinha da Nike e o jacarezinho da Lacoste? Na busca de uma resposta, homens de marketing divergirão de sociólogos. Que não necessariamente terão as mesmas convicções dos filósofos, cujos argumentos jamais convencerão os religiosos, que inspirados em seus dogmas travarão discussões acaloradas com os cientistas políticos. A celeuma se aprofundaria, ganharia a mídia e se transformaria num grande fórum de debates, certamente com o patrocínio da Coca-Cola, da Vivo ou da Volkswagen.

 

O fato é que as marcas estão aí, colossais e reluzentes, explícita ou subliminarmente a fincar suas bandeiras nas frágeis massas cinzentas.

 

Tenho um amigo, publicitário, que arranca todas as etiquetas visíveis de suas roupas. Entende ele que essa é uma forma de propaganda e, até onde sabe, jamais será remunerado pela veiculação. Então, tesoura nelas. Nem bem saem das lojas e as roupinhas de grife viram genérico. "Ainda se a roupa saísse de graça, vá lá, tudo bem. Até toparia a permuta" – diz ele. "Eles me dariam as calças, camisas e sapatos e eu sairia pra rua desfilando as marcas deles".

 

Tá certo que esse meu amigo é um tanto radical. Mas tão xiita quanto ele é aquele cara no extremo oposto, que compra a etiqueta e só depois é que repara no produto em volta dela. "Grifado" da cabeça aos piercings, o talzinho é um verdadeiro anúncio ambulante. Veste o que veste não pelo valor que atribui à indumentária, mas pelo status que supostamente darão a ele por se exibir com aquilo tudo.

 

O poder da marca é um caso muito sério. E vale tudo para garantir que ela abocanhe mais mercado. Até mesmo recorrer a obras-primas em domínio público, que à revelia de seus autores acabam virando sinônimo de marca. O que será que Beethoven pensaria se soubesse que aquela curta e genial sequência de notas, que alicerça sua Quinta Sinfonia, se transformaria no "pão pão pão pão" da Wickbold? Ou da sua "Pour Elise", comendo solta nas esperas telefônicas e nos caminhões de entrega de gás? Quando é que iria passar pela cabeça do autor de "O Sole Mio" que sua canção imortal viraria comercial de Cornetto? E por aí vai. "As Quatro Estrações", de Vivaldi, vendendo sabonete. O célebre "Aleluia" de Haendel, que já apregoou até remédio para prisão de ventre. A solene "Pompa e Circunstância", de Edward Elgar, por décadas reduzida à musiquinha do "Boa Noite Cinderela", antigo quadro do Programa Silvio Santos. A lista é interminável. Se bobear, "Águas de Março" daqui a pouco vira jingle de guarda-chuva, pra desespero do meu amigo xiita. Que, aliás, anda sumido. Deve estar desempregado.

 

Marcelo Sguassábia© - 06/09/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

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O Rei da Sarjeta

 

 

 

"Eu vou tirar você da sarjeta". Felizmente, quis o destino que ninguém dissesse isso quando ele era um zé ninguém. O que a princípio soaria como uma ação redentora e beneficente, no caso dele seria uma maldição. O infeliz que fizesse isso  privaria o mundo da oportunidade de testemunhar a saga de um dos mais bem-sucedidos empreendedores de que se tem notícia. Um homem que fez história com o suor de seu rosto e a originalidade de suas sinapses, cantadas em verso e prosa até mesmo em nossa literatura de cordel.

 

Claro, o começo foi duro. Da acanhada garagem da casa de seu tio, que limitava a produção a ridículos  11 metros de sarjeta/dia, Eustáquio passou para uma pista desativada de kart indoor, localizada na zona norte de Barbacena. Dali saíam ao menos 23.600 metros diários de suas vistosas e bem afamadas sarjetas, de variados acabamentos e tamanhos, para os mercados interno e externo. Isso em tempos de vacas magras.

 

O crescimento vertiginoso, no entanto, se deu com o lançamento da Mult Kolours, a linha de sarjetas coloridas - lampejo que lhe veio à mente em meio a um delírio febril de caxumba. Com ela, Eustáquio punha fim à ditadura do cinza nas nossas vias de pedestres. Sarjetas pink, verde-limão e azul-calcinha tomaram de assalto a paisagem urbana, fazendo despencar as estatísticas de suicídio junto à população e elevando-as entre os psicanalistas, psiquiatras e pastores messiânicos.

 

Depois veio a sarjeta esponja, lançamento com dupla função: absorver água da chuva em situações de enchente e evitar danos às rodas e calotas dos carros nas manobras de baliza. Dois anos após esse retumbante sucesso, a consagração internacional: Eustáquio vencia acirrada concorrência para a renovação dos seis quilômetros de sarjetas da célebre Avenida Champs- Élysées.

 

Não há como calcular ao certo o quanto o nosso rei faturou com um aplicativo recentemente lançado, com o nome de write rihgt. Com ele, o usuário recebe alertas, de dez a doze vezes ao dia, lembrando que sarjeta se escreve com j, e não com g. Levando-se em conta a frequência que o cidadão médio se vê forçado a escrever essa palavra, e a dúvida ortográfica que surge a cada vez que tem de fazê-lo, é claro que o programinha nasceu fadado ao sucesso - e chega à versão 4.2 com a exclusiva função do aviso de grafia em painéis de autorrádio.

 

Agora, o próximo desafio,  já nas mãos da equipe de engenharia de produto: a sarjeta falante, equipada de fábrica com dispositivos sonoros para alertar os pedestres cegos e daltônicos quando da mudança do sinal verde para o vermelho, e vice-versa. Mais de 400 municípios  brasileiros já demonstraram interesse pelo invento, que certamente alargará ainda mais as fronteiras do já extenso império de Eustáquio.

 

Marcelo Sguassábia© - 30/08/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

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'Felizes para sempre' uma ova!

 

 

O sujeito dá vida à gente, cria aquela história maravilhosa, diz que todos viveram felizes para sempre, põe um ponto final e se arranca. Nunca mais volta para ver o que aconteceu depois às suas indefesas criaturas, no mundo do faz-de-conta. Ora, quem põe filho no mundo tem responsabilidades a honrar. Como é que pode um autor se comprometer com a posteridade e colocar sua credibilidade em jogo, fadando seus personagens a um destino cor-de-rosa sem dar a eles meios para isso? Felizes para sempre, essa é boa...

 

Vejamos o drama do Prático, o porquinho precavido que construiu a casa de tijolos. Como o conto de fadas tinha que terminar logo, o suíno se viu forçado a correr com a obra e uma semana depois a casinha tinha infiltração, três grandes rachaduras que iam do chão ao teto e um fiscal da prefeitura todo dia batendo na porta, atormentando o proprietário por causa do Habite-se. Tão logo tomou conhecimento do infortúnio, o lobo voltou à casa e nem precisou soprar para que viesse abaixo. Em dois minutos já estava com os três leitões debaixo do braço. Pôs Cícero para engordar no chiqueiro, Heitor foi alocado nos afazeres domésticos da casa avarandada do malvado e Prático foi obrigado a travestir-se de veado e ganhar a vida com ofícios pouco familiares, entregando ao lobo todo o michê do dia. O curioso é que perante a opinião publica o lobo ainda posa de benfeitor, por ter tirado os porquinhos da indigência e dado a eles um abrigo digno. Dizem inclusive que fundou uma ONG, chamada “Lobo Bom”, que se dedica a difundir pelos reinos mais distantes os ideais da filantropia e da solidariedade.

 

Mas é preciso admitir que sorte pior teve a Cinderela. Antes que a tinta do original da história secasse sobre o pergaminho, começou o calvário da heroína. Horas após o suntuoso casório, quando o príncipe foi dar um cata na moça pra fazer neném, o salto do sapatinho de cristal esquerdo espatifou-se a caminho da cama, depois de patinar num resto de brigadeiro jogado ao chão por um convidado mais porco que Heitor, Prático e Cícero juntos. Além do cristal do sapato, quebrou-se também o fêmur da delicada Cinderela.

 

A forçada quarentena da moça, devido à cirurgia para colocação de 16 pinos na perna, obrigou o fogoso príncipe a aplacar os hormônios junto a um sem número de donzelas do reino. Sem sex-appeal aos olhos do marido, Cinderela passou a ajudar as faxineiras reais na varrição e no enceramento do salão de baile. Hoje faz doces para fora, com a abóbora que sobrou da carruagem. Tenta com seu advogado tornar sem efeito a autuação da vigilância sanitária, que após análise bacteriológica julgou a referida abóbora imprópria para consumo. Enquanto aguarda decisão judicial, diversifica sua produção com outras qualidades de doces. Só não aceita encomendas para brigadeiros, por motivos óbvios.

 

Estes são apenas dois exemplos, dentre muitos que poderia citar, da orfandade a que nós, personagens, estamos submetidos. Abrace, leitor amigo, a nossa causa. Não caia no conto de fadas!

 

Assinado,

 

O Patinho Feio, que voltou a ser feio após 14 gloriosos dias com jeitão de cisne.

 

Marcelo Sguassábia© - 23/08/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

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Tô sabendo, brother

 

 

 

Guimarães Rosa

A mãe de um camarada meu disse uma vez que esse carinha aí escreveu uns baguio loko. Uns baguio mucho loko.

 

Caetano Veloso  ioi

Aquele veinho que cantava uma música uns tempo atrás aí, como é que era mesmo? Ah, aquela  assim: "mas não tem revolta não, eu só quero que você se encontre...". Mó da hora. Não tenho certeza, mas acho que essa é a única música que ele fez.

 

Chico Buarque

É outro veinho que eu vi na internet que fez setenta um dia desses. Ma ó, de boa, não sei com o que que o sujeito mexe, não.

 

Ruy Barbosa

Essa aí é a rua onde mora a Tati, uma mina que eu tava pegando.

   

Duque de Caxias

O nome da rua da mina que eu tô catando agora.

 

Machado de Assis

Um tiozinho barbudo e de oclinhos redondo, que inventou uma história que tem uns negócio de Capitu no meio, tá lá no resumão que o professor deu pra entrar na facul. Não lembro mais, já passei no vestiba e joguei a ficha fora.

 

Clarice Lispector

Essa aí eu conheço do facebook, só dá ela. Mas não adicionei.

 

Getúlio Vargas

Rola dar um google?

 

Dilma Roussef

Trampa lá em Brasília, zoaram com ela na Copa, tá ligado? Tem a ver com aquele cara que não tem um dedo... Putz, como é que é o nome...

 

Dom Pedro Segundo

É o filho do Primeiro. Mas quando baixei as fotinha dos dois pra um trabalho de escola, parecia que era o contrário. Sem zoeira, de boa.

 

Villa Lobos

Sei lá, perto de casa é que não é.

 

Cartola

Um cara que manda e desmanda no futebol. Nojo, veio. Partiu camburão pra prender esses truta.

 

Santos Dumont

A galera fala que é o pai da aviação. Também não é pra menos, pra construir um aeroporto daquele tamanho...

 

Pero Vaz de Caminha

Esse aí eu não sei o que faz porque eu acho que ele não deve fazer nada. Pelo nome, fica deitado o dia todo.

 

Marcelo Sguassábia© - 02/08/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

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Um homem e uma mulher:

70 anos depois*

 

  

Detalhe da foto célebre de casal se beijando em Times Square em 14/08/1945, quando foi oficializada a rendição japonesa,

que marcou o final da Segunda Guerra Mundial. Ele, um marinheiro. Ela, uma enfermeira. Não se conheciam.

Consta que, após o beijo, cada um seguiu seu rumo e nunca mais se viram. Fotógrafo: Alfred Eisenstaedt

 

- Você é o neto do marinheiro?

- Sim. E você deve ser a neta da enfermeira, certo? Vamos entrar. Sente-se.

- Como é que você me descobriu?

- Isso não vem ao caso. O que eu posso te dizer é que foram anos de investigações, pistas falsas, tempo perdido e até detetives envolvidos.

- Nossa...

- Indo direto ao que interessa: a foto dos nossos avós corre mundo afora em milhares de sites, jornais, revistas e o diabo a quatro. E olha que lá se vão quase 70 anos do clique histórico.

- Sim, mas e daí?

- E daí que em praticamente todas as enquetes mundiais sobre as fotos mais célebres de todos os tempos o registro dos nossos avós está sempre lá, encabeçando as listas. O retrato é tão famoso e reproduzido quanto o Chê de boina preta e o Einstein mostrando a língua. Percebe agora aonde quero chegar?

- O que eu sei é que vovó falava raramente sobre isso. Quando a foto começou a se espalhar, ela se reconheceu mas adotou uma postura discreta sobre o assunto.

- Vovô também. Mesmo porque já era casado na época, e a sorte dele é que os dois rostos, pela posição, não são facilmente reconhecíveis.

- Quando é que eles iam imaginar que a foto deles ia ganhar essa projeção toda? O tal de Alfred, o fotógrafo, eu não sei se ganhou dinheiro com isso. Mas com certeza nossos avós não levaram nenhum tostão. Vovó morreu devendo, coitadinha.

- Pois é este exatamente o ponto. Proponho que a gente entre com uma ação judicial conjunta, pra que possamos cobrar os direitos de uso de imagem daqui pra frente e requerer todos os atrasados por utilização indevida, ou seja, sem autorização dos fotografados. Os nossos avós, no caso. Em 2015, o final da Segunda Guerra completa sete décadas, e a foto será reproduzida à exaustão. Se tivermos os direitos sobre ela, podemos ficar ricos. E torrar o dinheiro juntos, se você quiser...

- Sei. Você está se saindo mais afoito que seu vovozinho marinheiro.

- Vovô tinha muito bom gosto e não beijaria qualquer baranga que passasse à sua frente. Sua avó devia ser um pedaço de mau caminho. Aliás, beleza parece ser de família. Você é linda, sabia? Que tal um revival? Netinho e netinha, repetindo a façanha 70 anos depois...

- Gosto dos ataques sem rodeios. Vem e me tasca logo um de língua.

 

O morador do apartamento vizinho aumenta o volume do rádio: “Rússia dispara míssil sobre território ucraniano e provoca reação imediata dos Estados Unidos. Especialistas em conflitos bélicos afirmam que pode ter início hoje a terceira guerra mundial.”

 

*Esta é uma peça de ficção.

 

 

Marcelo Sguassábia© - 26/07/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

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Piscina cheia

 

 

 

- Piscina é um negócio nojento mesmo. Se a gente parar pra pensar não entra numa de jeito nenhum.

- Ainda mais piscina de clube. Mas quem ligava pra isso? O que tinha que acontecer rolava aqui, em volta e dentro dela.

- Um caldo coletivo de bactéria, mas o que podia ser melhor que aquela vida irresponsável, cheirando a cloro? É, eu tinha cloro nos cabelos. Melhor ainda, eu tinha cabelos.

- Que graça tem hoje, com essa história de piscina em casa? Todo mundo tão isolado. Instrumentalizaram a piscina. Piscina serve pra não precisar ser sócio de clube.

- Lembro que você não tinha nenhuma estria ainda. Celulite, nem pensar. Pernas roliças, seios de pera. Ah, mulher, você era mais lisa e simétrica que os azulejos da Olímpica. Olha eles agora. Alguns soltos, muitos trincados, outros descorados, cheios de limbo verde.

- O que me comove é este seu transbordante romantismo.

- 1981, 82. Não havia como não olhar pra você, com aquele biquíni mínimo.

- Que depois eu acabei jogando fora, você não me deixou usar mais.

- Lógico. Aquilo ia bem na namoradinha dos outros. Quando te pedi em namoro já era pensando em casar. Nossa, você era pele e osso. Quase um desconforto te abraçar, Mirtes. Machucava.

- Me deixasse lá então, com meu biquíni mínimo. Se era mesmo essa faquir que você está falando, ninguém devia reparar em mim... nem você.

- Então, mas era uma magreza de modelo, esguia. Você era uma garça no meio das galinhas-d’angola...

- Na época você não me falava isso.

- Confete demais. Você se achava a última bolacha do pacote. Eu não repito nem pra mim os comentários da turma sobre você, antes da gente começar a namorar.

- Faz tanto tempo. Pode dizer agora, fiquei curiosa.

- Falar em confete, e os carnavais, heim? Muitos carnavais.

- “Quando por mim você passa, fingindo que não me vê, meu coração quase se despedaça...

- ... no balancê, balancê”. Você bêbado feito um gambá, mamando aquela garrafa de tubaína cheia de Fernet com pinga.

- Tubaína, Fernet... volta pra 2014, Mirtes. Espana esse mofo, aí.

- Quem começou com o flash-back foi você.

- Olha outra do arco da velha... flash-back!

- Cinco noites e três matinês. Como é que a gente aguentava eu não sei.

- Uma folia emendava na próxima. Ia curando a ressaca de um dia com a bebedeira do outro...

- Você não valia nada, Bruno. Aposto que não se lembra mais daquela terça gorda quando te flagrei no carro com a Soraya-vai-que-é-fácil. E a gente já tinha aliança de compromisso.

- Efeito da tubaína. A Soraya era galinha-d’angola, como as outras...

- Ah, tá. Me engana que eu gosto.

- Eu até que era comportado. Pior foi o Julinho, que colocou uma câmera de vídeo no vestiário feminino. As debutantes todas, nuinhas. A fita circulou a cidade inteira, fizeram não sei quantas cópias. Sorte que você não apareceu no clube aquele dia.

- Olha lá, os caminhões de terra chegando.

- De novo, a velha piscina cheia. Antes fosse de gente.

- Sente comigo esse cheirinho bom de bronzeador. Pelo que vivemos aqui. Pelo que não volta mais.

- Mirtes, dá uma olhada no nome da empresa pintado nos caminhões.

- Júlio Piedade Terraplenagem e Engenharia. Que é que tem?

- É o Julinho. É a última do Julinho.

 

Marcelo Sguassábia© - 19/07/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

 

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Teoria da Conspiração - A Versão Definitiva

 

Na verdade não se trata de uma teoria da conspiração, daquelas que (no caso da Copa) levianamente se forjam para denegrir um atleta ou o time todo, mas sim de um bem fornido balaio de absurdos, que aos poucos vai vindo à tona e ganhando espaço na imprensa - com provas irrefutáveis da veracidade de muitos deles. Por mais inacreditáveis que sejam.

 

Descobriu-se, por exemplo, que o tetraplégico que iria dar o pontapé inicial da Copa 2014, de quem ninguém viu a cara e nem o pontapé, era na verdade o centroavante Fred. Isso provocou a indignação de boa parte da torcida e da mídia especializada, que com razão se revoltaram pelo fato de um jogador do Tetra continuar como titular da equipe até hoje, passados 20 anos. As razões que motivaram a escalação do deficiente no time permanecem ainda obscuras, com os envolvidos desviando dos repórteres e evitando falar sobre o assunto.

 

Há também um fundo de verdade - de triste verdade - na afirmação de que foram Hulk e Davi Luis, aquela bizarra cruza de ovelha com ser humano, os únicos que empurraram o time nos seis horrorosos jogos em que a seleção desfilou seu futebolzinho Louis Vuitton. E realmente foi isso o que aconteceu, pelo menos no jogo contra a Alemanha. Foram coletadas várias fotos amadoras que confirmam essa versão, mostrando ambos empurrando ofegantes o busão verde e amarelo quando este sofreu pane a caminho do Mineirão, para disputar a fatídica semifinal. Esse esforço sobre-humano, que deveria ser gasto em campo, foi antes da hora desperdiçado no empurra-empurra da jabiraca.

 

Talvez não seja do conhecimento de todos, mas ainda nesse malfadado percurso do buzunga até o estádio belorizontino, houve uma parada de dez minutos para uma esticada de pernas, um alívio no mictório e o indispensável golinho de birita, para encarar mais tranquilo a fria muralha alemã.  Foi quando o Parreira flagrou o goleiro Júlio Cesar em meio a irrefreável impulso glutão. Já tinha mandado pra dentro dezoito olhos de sogra da marca “Da Nega”, produto sem registro no MS nem data de validade estampada na embalagem. Do ponto de vista da ação e reação, seria injusto inocentar a iguaria pelo efeito aparvalhado provocado no goleiro ao contemplar, bovinamente, as sete bolas entrando fáceis na sua meta.

   

A falta de ferro, cálcio, magnésio e proteínas na alimentação produziu um outro lamentável episódio, desta vez envolvendo o filho do desconhecidíssimo Neymar, o célebre Neymar Jr. Tais deficiências nutricionais explicariam muita coisa, inclusive o calção que caía a toda hora e mostrava a cueca do pobrezinho e sua estrutura corpórea mirrada. Um seguro indício de sérios problemas de inanição, sem dúvida. Retrato fiel da penúria que assola o nosso esporte e que faz com que craques desse gabarito continuem sendo craques apenas nas horas vagas, encarando a dura faina de frentista de posto de gasolina e de freguês cativo do Angu do Gosma Selvice Serv ME.

 

Marcelo Sguassábia© - 13/07/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

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A história é outra

 

 

É OUTRA

 

Nossa história começou lá no tempo do Zagaia, com a primeira oportunidade de contrabando. Eram 200 contêineres abarrotados de absinto de excelente qualidade, provenientes da Itália em conexão mafiosa chefiada pela Famiglia Corroccinne. A partir dessa experiência inicial, coroada de sucesso, nossa rede de contravenção se infiltrou rapidamente por toda a América.

 

Ano após ano, década após década, fomos nos aprimorando na requintada arte de trapacear sem levantar suspeitas.

 

Sabíamos muito bem aonde queríamos chegar e seguíamos em frente, com ousadia e determinação. Nos olhos, aquele "vidrado" indisfarçável de quem cheirou três carreiras seguidas de pó pra dar coragem de passar na alfândega sem dar muita bandeira, com os carregamentos de matéria-prima subfaturada.

 

O pequeno esconderijo da Avenida Leônidas Goulart Prado, que também centralizava o apoio tático e servia de depósito de muamba, fuzis e munição, acabou ficando pequeno para a dimensão dos nossos planos. Nossa audácia e expertise criminosa era admirada, éramos o assunto da vez nas celas das grandes cadeias.

 

Experimentamos um crescimento sem precedentes em nossos negócios. Só hoje, foram distribuídos mais de R$350.000 em propinas, cafezinhos, ajudinhas de custo, agrados e presentes dos mais diversos tipos para continuar acobertando a clandestinidade das nossas operações nos 5 continentes.

 

HISTÓRIA

 

Nossa história tem início na primeira década do século 20, nos porões de um dos tantos navios que traziam imigrantes da Itália para o Brasil. Viajando na terceira classe, Domenico Estrombotti e famiglia deixavam o velho mundo para fazer a América.

 

Ano após ano, década após década, fomos nos aprimorando e nos tornando referência em nosso segmento. Com uma visão clara do futuro, mas sempre inspirados pelos ideais dos primeiros tempos.

 

Sabíamos muito bem aonde queríamos chegar e seguíamos em frente, com ousadia e determinação. Nos olhos, a confiança e a expressão da fé inabalável em vencer os desafios - que foram muitos e grandes, mas nenhum deles maior que a crença no ser humano e na sua capacidade de se superar.

 

O pequeno escritório na Avenida Leônidas Goulart Prado ficou pequeno para o pioneirismo e a verve visionária que acompanhavam a empresa desde os seus primórdios. Menos de dois anos após a chegada ao país, a excelência de nossos artigos já estava consolidada, com forte presença nas prateleiras das grandes cadeias varejistas.

 

Experimentamos um crescimento sem precedentes em nossos negócios. Hoje, são mais de 350.000 toneladas de produtos para exportação com certificação internacional de qualidade, abrindo divisas para o país e elevando o nome da nossa empresa e do Brasil nos 5 continentes.

 

Marcelo Sguassábia© - 05/07/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

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Previsões para amanhã

 

 

Os garis de Copacabana não divisarão nenhum navio no horizonte, nem horizonte que recicle o lixo de suas vidas. A enfermeira de plantão lerá “As Intermitências da Morte” e acabará morrendo de tédio ao virar a página 153. Na sala ao lado, a caneta do médico falhará quando estiver prescrevendo Viagra ao paciente.

 

O velho Hermógenes do 302 irá cortar o cabelo, a barba, o bigode, a carne, o iogurte, os remédios e o talco para chulé porque a aposentadoria não vai dar pra tudo isso. Os milhares de japonesinhos que nascerem prematuros terão os olhos mais puxados para as mães que para os pais, e todos eles dominarão os recursos do novo Playstation antes de completarem dois anos. O carteiro receberá uma carta apaixonada, mas a remetente não será correspondida. O vestibulando fará teste vocacional e descobrirá que não presta pra nada.

 

O juiz da nonagésima vara sairá mais cedo pra pescar. A reforma agrária ganhará terreno e deixará os latifúndios em estado de sítio. Um relojoeiro da Região Metropolitana de São Paulo irá bater com as dez, um verdureiro de Mairiporã irá pro vinagre, alguma Inês será morta e uma doceira será cremada.

 

O leiteiro flagará a esposa dando de mamar para o encanador. A vendedora de panelas se casará com um cabo e ganharão de presente um conjunto inox de meia-tigela. Sem ter por que e com quem lutar, o almirante de esquadra dispensará as tropas e passará a Playboy em revista. O jornalista preservará suas fontes, mas investigará a fundo a greve dos chafarizes. Um padre de vocação vacilante largará a batina por culpa de uma fiel demasiadamente carismática.

 

O serial killer deixará digitais no Cereal Kellogg’s. O campeão de xadrez receberá como prêmio um xeque sem fundos. Os donos de livrarias venderão poucos exemplares de auto-ajuda, mas terão um bom retorno sobre “O Capital”. A vaca Mocha irá ruminar a dor de ver seu bezerro acompanhado de alface, queijo, molho especial, cebola e picles no pão com gergelim. Enquanto isso, as fábricas de mortadela abocanharão novas fatias de mercado.

 

O clarinetista errará a nota ao acertar as contas com a prostituta. E a prostituta, por sua vez, continuará ganhando a vida amando o próximo. Tire o cavalo da chuva: o Coelho, peixinho do chefe, será promovido a leão de chácara antes do cantar do galo. O secretário da receita passará a chefe de cozinha, por ordem expressa do cerimonial da presidência. O estado do aparelho de som passará de agudo para grave, se continuar a tocar os greatest hits de Chrystian e Ralf.

 

A bala perdida será encontrada no bolso do blazer do guarda Belo. Encostado à parede, o costureiro entregará os pontos. A praga daquele pestinha infestará todas as outras crianças do bairro. As mulheres mexicanas, para tornarem calientes seus casamentos, encherão de pimenta os tacos do quarto.

 

Agrônomos desenvolverão versões transgênicas da batata da perna, da planta do pé, da palma da mão e da flor da pele. Os projetos sairão finalmente do papel: uma borracha irá apagá-los impiedosamente. O referido papel será jogado às traças. Desprezado pelas traças, será lançado ao lixo, que será recolhido pelos garis de Copacabana.

 

Marcelo Sguassábia© - 28/06/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

 

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Encontrão marcado

 

 

Será mais ou menos como a mão de um gorila esmagando uma pulga. Avisar a população significa criar um pânico inútil, todos da Comissão B7 somos unânimes neste ponto. Se a Terra não sairá de sua órbita e a colisão é inevitável, é melhor que os sete bilhões de futuros cadáveres permaneçam ignorantes e felizes até o momento final. Não há o menor sentido em sofrer por antecipação.

 

Alguns poucos objetaram, argumentando sobre o direito de cada um em tomar suas próprias decisões nesse meio tempo, já que faltam ainda 16 anos para o fim de tudo. O livre arbítrio, no caso, seria necessariamente egoísta e insano. Um “salve-se quem puder” de proporções mundiais faria com que o caos reinante acabasse com tudo antes que o planeta se espatifasse. O apocalipse próximo justificaria qualquer comportamento antiético ou ato criminoso, sugar a intensidade de cada segundo da forma mais devassa e reprovável se tornaria a única lei possível.

 

Não há o que fazer, toda tentativa de defesa resultará inócua. Somado o arsenal bélico disponível, e contando que seja viável dispará-lo simultaneamente, provocaríamos um reles arranhãozinho na couraça do monstrengo. A destruição da raça humana seria tão instantânea que não haveria tempo nem para a dor, nem para a consciência do ocorrido. Melhor assim do que acabar em fome, tsunami, peste ou guerra, onde o extermínio é gradual.

 

A coisa (assim a chamamos até o momento) é aproximadamente 2,5 vezes maior que o sistema solar inteiro, e sua rota não admite probabilidade de desvio. Líderes religiosos do B7 chegaram a propor que a notícia seja divulgada considerando-se a catástrofe como uma possibilidade, não como certeza. Esse disfarce da verdade certamente mobilizará multidões de todos os países para uma grande corrente ecumênica de orações, rogando à mão divina um safanão no assassino.

 

Já alguns cientistas russos consideram seriamente a aplicação de telecinésia coletiva, ou seja, a suposta capacidade que temos de mover objetos pela força do pensamento. Outros sugerem uma tentativa mais privê, reunindo um seleto grupo de notáveis paranormais para a tentativa, liderados pelo hoje quase septuagenário Uri Geller. Qualquer que seja a modalidade adotada para a performance redentora, a Coca-Cola já garantiu antecipadamente a quota principal de patrocínio.

 

 

- Foto: AP Photo Nasa.

 

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Mal traçadas

 

- Oi.

- Pode falar.

- Falar o quê?

- Ué, você botou o travessão na frente. Travessão se usa quando a gente vai falar alguma coisa. Vai, desembucha.

- Até aí estamos quites, você também tá usando travessão.

- Usei pra responder. Tava quieto no meu canto, por mim ficava mudo e escondido como um tratado de química inorgânica numa biblioteca pública.

- É, você é mesmo de poucas palavras. Nem uma linha quinta-feira passada, nosso aniversário de namoro.

- Nem uma linha uma vírgula! Te deixei uma citação inteira, grifada em vermelho, você é que não reparou. Um trecho lindo da Adélia Prado. Admito que costumo falar pouco, mas antes monossilábico que prolixo. Muita gente fala, fala e não diz coisa com coisa.

- É uma indireta pra mim?

- Você e suas deduções. Entenda como quiser.

- Acho que está mais do que na hora da gente discutir a redação. Ainda não consegui engolir a exclamação que você soltou para aquela vogal saidinha.

- Caramba, isso foi lá no segundo capítulo. Nem lembrava mais disso.

- E depois tem outras coisas, que é bom que fiquem claras de uma vez por todas:

- Ih, Jesus amado, colocou dois pontos. Agora o discurso vai longe. Me poupe, pula uns oito ou dez parágrafos, esse texto eu já conheço. Vai direto pra última frase, vai.

- Ad commodum suum quisquis callidus est.

- Pode poupar o seu latim, não estou nem te escutando.

- Kalispera yassas den kataleveno akrivo.

- Definitivamente, o que você fala pra mim é grego.

- Olha, que tal parar com evasivas e encarar a realidade? Vê se cresce...

- Meu amor, aquela letra que você falou não faz meu tipo. Você sabe que eu prefiro as mais encorpadas, corpo 18 ou 20, como você. Nós nascemos um pro outro, morzinho. Vamos juntar os trapos e encher a casa de letrinhas de bula, heim?

- Casar com você? Tá bom... deixa eu terminar meu tratamento anti-serifa que você vai ver só eu desfilar lisinha por aí.

- Já sei, vai se transformar numa verdadeira Helvética Light Condensed.

- Pra você, um legítimo Bookman Old Style Extra Bold, eu tô de muito bom tamanho. Tá vendo o gato daquele G? Um que parece o KK, ali na linha de baixo... então, dizem que tá enrabichado por mim e que até fez um acróstico em minha homenagem.

- Não foi isso o que L disse pro meu til. A versão que eu conheço é bem diferente.

- Tá com ciúme, bem? Hã?

- O que me magoa é essa sua ingratidão. Eu te tirei daquela vida gramaticalmente desregrada, te levei pra morar numa obra decente, de autor famoso, com capa dura e nota de rodapé.

- Nem me fala, essa página eu prefiro rasgar. Foi um erro tão crasso que até o Pasquale comentou na coluna dele.

- Devia ter te deixado lá, jogada às traças naquele sebo de subúrbio, no meio da pilha de gibis do Bidu. Você renega a própria história.

- A história toda, não. Só alguns capítulos muito mal-escritos...

- De novo sendo reticente. Fala com todas as letras o que tem que dizer, poxa. Pra mim o que você quer mesmo é voltar pro Epílogo, aquele seu caso que acabou terminando mal, lembra?

- Lembro sim, foi no tempo em que você saía com a Resenha, a venenosa que falava muitíssimo bem da sua pessoa pra todo mundo.

- Agora chega. Com você não tem diálogo.

Marcelo Sguassábia© - 14/06/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

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O Face de 'caras'

 

 

Roberto Carlos curtiu a página de Friboi.

 

João Gilberto não confirmou presença no show “João Gilberto in Concert no Carnegie Hall”.

 

Caetano Veloso comentou o link de Gilberto Gil: "Ou não, Gil, ou não..."

 

O Grupo "Funcionalismo Produtivo" convidou Lenine para jogar paciência.

 

Narciso comentou sua própria foto.

 

23 de maio de 1999 foi o aniversário de Rubens Barrichello. Mande uma mensagem para ele.

 

Alex Atala adicionou uma pitada de pimenta do reino moída na hora.

 

Somar Meteorologia publicou um post em sua linha do tempo.

 

Linha do tempo de Alckmin garante que vai chover.

 

MST convidou Chitãozinho para jogar FarmVille.

 

Ronaldo Nazário começou uma amizade com Aécio Neves.

 

Narciso alterou sua foto do perfil.

 

23 pessoas curtiram a escalação de Luis Felipe Scolari.

 

Obama confirmou presença no evento "Mandela Funeral".

 

Obama publicou uma selfie na página "Mandela Funeral"

 

Obama enviou uma solicitação de amizade para a Primeira Ministra da Dinamarca.

 

Michele excluiu Obama de seus amigos.

 

Narciso publicou em sua fanpage: Me sentindo o cara.

 

Roberto Carlos comentou a publicação de Narciso: "Esse cara sou eu!”

 

Roberto Carlos cutucou Erasmo Carlos com um Toc.

 

Roberto Carlos ofereceu uma rosa para a mulherada do show.

 

Yoko Ono entrou no grupo "Beatles".

 

Grupo “Beatles” foi desfeito.

 

Monica Lewinsky esteve em White House com Bill Clinton.

 

Bill Clinton marcou o vestido de Lewinsky em uma foto.

 

Rubens Barrichello publicou fotos do seu aniversário de 12 anos.

 

José Dirceu convidou Genoíno para jogar Rouba Monte.

 

Kate Middleton foi fotografada nos jardins do Castelo de Windsor com a mesma gargantilha usada há 3 anos e 7 meses. 174.321 pessoas falando sobre isso.

 

Eike Batista comentou seu próprio status: "Pobre".

 

Padilha aceitou o pedido de amizade de Maluf.

 

Narciso compartilhou o link de Wanderley Nunes.

 

Michele alterou seu status de relacionamento.

 

#publicitárioesquartejador mencionou #partidos em seu depoimento.

 

Dilma curtiu Bolada, mas faz questão de esclarecer a origem dos recursos.

 

Ninguém curtiu uma foto em que Lula foi marcado.

 

Marcelo Sguassábia© - 07/06/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

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Vasos

 

 

Um vaso e sua flor-de-maio. A preferida do meu pai, por ser a favorita da minha avó, que poderia ser também o xodó da mãe dela. Difícil saber de onde remonta essa hegemonia botânica nos quintais da família. Vinga na sombra, no estio do outono, com pouco se basta.

 

Hoje outras flores nos vasos de bronze, sobre o granito marrom. Do pai, a cama permanente com vista para a serra. Dentro, crisântemos. Fora, o choro que dá rega - de tanto e tão sentido, sincero e derramado. Pai vaso eterno, de titânio. Recipiente e pilar do mundo.

 

Marcelo Sguassábia© - 31/05/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

 

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CHUVESP 

 

Atento à situação dramática pela escassez das chuvas, o Governo do Estado faz sua parte para minimizar o sofrimento da coletividade.

 

Caminhada "São Paulo clama por São Pedro"

 

Pretendemos reunir na Praça da Sé pelo menos dois milhões de pessoas neste grande manifesto cívico paulistano, ocasião em que marcharemos de braços dados clamando por torós infindáveis sobre a Cantareira.

 

Ovos de Santa Clara

 

Todas as cestas básicas dos funcionários públicos estaduais terão o acréscimo de uma dúzia de ovos. Na caixa, um livretinho com instruções mostrará como fazer com segurança e fé oferendas diárias a Santa Clara. Um capítulo especial abordará a colocação dos ovos em sacadas de apartamentos, sem riscos aos transeuntes nas imediações. Esperamos que a iniciativa privada siga o exemplo do Estado e incorpore também os ovos nas cestas de seus colaboradores.

 

Mulheres Solidárias

 

Nossa primeira dama, muito religiosa, terá também tarefa árdua na saga paulista pelo retorno das águas. Reunirá um total de quatorze influentes amigas, na Daslu, para rezarem um terço pela recuperação de nossas agonizantes reservas hídricas.

 

Dança Estadual da Chuva

 

Afixaremos cartazes em pontos de grande concentração de populares, com os passos da referida dança. Professores de educação física da rede estadual estarão a postos para orientar os interessados. Mesmo que cientificamente seja impossível atestar sua eficácia no incremento dos índices pluviométricos, não custa tentar.

 

Operação re-banho

 

Embora possa sugerir alguma ação da Secretaria de Agricultura do Estado, não se trata de nada ligado à pecuária. A ideia desta operação é que a água que iria para o ralo após o banho de cada um seja coletada por uma bacia sob os pés do indivíduo, para reutilização por outro membro da família.

 

Programa banho luminoso

 

Muitas das cidades paulistas possuem fontes luminosas em suas bucólicas praças. A água das mesmas, como é sabido, fica indo e voltando indefinidamente pelos chafarizes e bicos aspersores. É um gesto de cidadania aproveitá-la, seja para banhar-se ou encher panelas para o preparo de comida. Adicionalmente, o cidadão pode tirar fotos com fantásticos efeitos de luz para postar nas redes sociais.

 

Projeto Chora Santa

 

Quarenta ônibus da Secretaria de Turismo do Estado levarão romeiros munidos de canecas até Louveira, no santuário da santa que chora. Havendo derramamento do precioso líquido, este será coletado e solidariamente despejado pelos fiéis no Rio Piracicaba, quando da volta da excursão.

 

Picaretagem coletiva

 

A Secretaria de Esportes do Estado distribuirá picaretas entre os lavradores paulistas, promovendo assim um duplo benefício social: enquanto eles mantêm a forma física dando picaretadas no solo, muitos poços artesianos poderão concomitantemente ser abertos.

 

Panelaço

 

Sabemos que a água, quando aquecida, transforma-se em vapor, que por sua vez forma as nuvens que fazem chover. Assim, não custa cada um colaborar e botar água para ferver na cozinha de casa. Oportunamente comunicaremos pelos meios de comunicação de massa o dia e horário em que as panelas com água deverão ser fervidas simultaneamente nas residências. Se frustrada a tentativa, recomendamos desde já que a água remanescente nos recipientes seja sabiamente reutilizada.

 

Marcelo Sguassábia© - 24/05/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

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#Fake

 

 

Deu na "Folha": por US$5, é possível arrematar 4.000 novas amizades no Facebook; por US$40, 10.000 amigos curtem uma foto sua; por US$700, você leva um software para criar seus próprios amigos; por US$3.700, dá pra comprar 1 milhão de amigos no mundinho azul de Mark Zuckerberg.

 

Olooooooooooooooooooooko. Então vou investir logo US$ 3.700 no pacote Roberto Carlos, comprando um milhão de amigos. O mais caro e o mais completo, um milhão de miguitos no Face, que meigo. Ashuashuashuashua! #ummilhãoadicionados. Retorno em massa. O Google rastreando meu perfil de vinte Morumbis e me implorando parceria pra entupir minha página de anúncios. #vouficarricojá.

 

Mas pode bem ser que eles mesmos ou outros do naipe estejam por trás do golpe. A trollagem do século. Kkkkkkkkkkkkk. Naum tô viajando naum: imagina que o site que vende os bagulhos é deles, mas ninguém sabe. Eles faturam aquela grana no atacadão da amizade e depois dão uma de bonzinhos, colocam suas Corporations como vítimas da invasão dos seres inexistentes e dizem que vão processar os autores do atentado - que são eles mesmos. Vaza pra mídia. #deubuxixo. Ganham de tudo que é lado, como sempre.

 

Rsrsrsrsrsrs. E quem caiu na armação? #táferrado. Vergonha virtual. Só que enquanto o golpe não é pego, é nois na selfie. Bacana ter lá no perfil milhares ou milhões. #muitodahora. Tô até me vendo em outra vibe. Causei. Celebrizei, bró. Perfil lotado, ó que demais!

 

Mas e se alguém resolve fuçar naquela renca de amigos? Vem junto nome, foto e perfil da galera toda? #aêvacilão. Fora que vai ter neguinho a dar com pau querendo comprar amigo de baciada, pra não ficar por baixo. Todo mundo vai querer ter uns vinte ou trinta mil para arrotar network. Vão sacar a faketrua. #saidessaagora. Partiu pra explicar a história. Passar de 500 pra 15.000 em duas horas, tá na cara que é comprado. Pra ter seguidor assim, nem ressuscitando o John Lennon, nem descobrindo a cura da calvície, nem botando o Maluf pra ver o sol nascer quadrado. #vaidarbeó.

 

Enquanto isso, eu vou bombar. #eupravereador. Tô nem, amizade até a tampa, as mina pira, véi. #ProntoFalei.

 

Marcelo Sguassábia© - 17/05/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

 

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Querido símbolo da terra

 

 

Há mais podridão por trás da valorosa bandeira da República de Cargibeia do que seria razoável supor.

 

- O algodão utilizado na confecção obrigatoriamente deve apresentar atestado da região de procedência, ser cultivado com defensivo e fertilizante homologados pelo governo e fornecido em fardos de dimensões e pesos absolutamente exatos, determinados por legislação específica. As exigências são tantas que a não-conformidade acaba sendo a regra, fazendo com que milhões de arrobas de algodão sejam incineradas todos os meses pelos chamados "fiscais da bandeira", por não atenderem às normas exigidas antes do processo de fiação e tecelagem do nosso símbolo maior. É quando um novo e gigantesco lote de algodão é adquirido, outra vez reprovado, incinerado e assim sucessivamente - numa verdadeira sangria aos estoques reguladores da commodity.

 

- Quando prontas, um exército de mulheres passadeiras e dobradeiras é recrutado para acondicionar as bandeiras em contêineres oficiais adquiridos em licitação ilícita. Uma vez repletos, os contêineres seguem para um condomínio de galpões industriais, onde são estocados para suprimento conforme a demanda. Tais mulheres trabalham em regime de escravidão mas recebem gordos contracheques como servidoras estatutárias, dinheiro que por elas é forçosamente devolvido no ato do recebimento e em seguida desviado para utilização como caixa de campanha.

 

- Laudo microbiológico identificou traços de cocaína em 17 das 18 amostras de bandeiras recolhidas para análise, fato que sugere a utilização dos contêineres para armazenamento de outros e suspeitos produtos.

 

- Os mastros das bandeiras, para uso em salas de aula nas escolas públicas, deveriam ser confeccionados em madeira de lei da reserva indígena de Caixipó. A madeira de lei, na verdade, é um tanto quanto fora da lei, pois é desviada para contrabando. Os mastros acabam sendo produzidos em resina barata, de baixa resistência e durabilidade.

 

- Após instaladas, uma equipe volante executa os testes de desempenho por meio da USV - Unidade Simuladora de Vento, que nada mais é que um gigantesco ventilador de 4m de altura. Os técnicos da equipe desfraldam a bandeira, ligam a USV e analisam o comportamento da mesma tremulando, para aferir se causam o efeito cívico desejado.

 

- Quando mingua a farra com o dinheiro público, um novo Estado da Federação é providencialmente criado. A bandeira ganha uma nova estrela, e todas atualmente em uso são recolhidas e destruídas em grandes máquinas retalhadoras - estas sim adquiridas conforme o figurino, para não dar bandeira.

 

Marcelo Sguassábia© - 10/05/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

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Pergunte ao Duña

 

 

TENHO AS DUAS PERNAS GANGRENADAS, A AORTA ENTUPIDA E APENAS UM PULMÃO A PLENOS PULMÕES. E AGORA, DUÑA?

 

Agora, é bola pra frente. Segundo o Dr. Brown Rutherford, em seu aclamado estudo “Manifestações psicossomáticas no homem persa de meia idade”, o único tratamento possível é a antropotectomia, que consiste em extirpar do paciente o próprio corpo e colocar outro no lugar. Simples.

 

SAPIENTÍSSIMO MESTRE: O SENHOR É A FAVOR DO DESARMAMENTO?

 

Depende do porte da arma: pequeno, médio ou grande. As armas de porte pequeno são geralmente inofensivas, o que as torna sem efeito prático, nem mesmo para intimidação psicológica do bandido. Mais envergonham que protegem o proprietário. As de porte médio amedrontam quando muito os ladrões de galinha, geralmente munidos de armas de igual calibre e mais experientes em seu manejo que o cidadão pacato. Já as de grande porte estão todas nas mãos das quadrilhas organizadas, e o fato de possuí-las significa, consequentemente, que você é integrante de uma delas.

 

CARO DUÑA,

ANDO MUITO DESANIMADO NO TRABALHO. QUANTO MAIS ME ESFORÇO, MENOS SOU RECONHECIDO. TODOS DESPREZAM MINHAS OPINIÕES E MEU ASSISTENTE GANHA TRÊS VEZES MAIS DO QUE EU. GOSTARIA DE UM CONSELHO.

 

Recomendo a leitura do livro “Ossos do Ofício”, biografia do coveiro piauiense Benevides Denófrio Ramos. Em estilo claro e conciso, o autor discorre sobre o dilema de sua profissão à luz da doutrina positivista, de onde o leitor poderá extrair um verdadeiro bálsamo para a solução de seus problemas.

 

QUAL A IDADE IDEAL PARA CONTRAIR MATRIMÔNIO?

 

Um pouco depois da idade ideal para contrair patrimônio. Aliás, “contrair” não sei se é bem o termo. Melhor seria o oposto, “expandir patrimônio”. Casar hoje em dia exige estrutura financeira, meu filho.

 

EXISTE UMA ÁRVORE GENEALÓGICA DA FAMÍLIA DUÑA?

 

Não. O que se sabe é que a dinastia Duña é oriunda da Espanha. O ramo da família a imigrar para a América teve como patriarca Hector Duña, meu bisavô. Hector era casado com uma italiana, Filipa Cazzone. Transtornado com o sacolejo do navio que os trazia ao Brasil, meu bisavô morreu de enjoo, cabendo a Filipa a missão de disseminar a filosofia duñesca por essas plagas.

 

QUAL A ORIGEM DAS EXPRESSÕES “NEM QUE A VACA TUSSA”, “PODE TIRAR O CAVALINHO DA CHUVA”, “QUEM NÃO TEM CÃO CAÇA COM GATO” E “UMA ANDORINHA NÃO FAZ VERÃO”?

 

Macacos me mordam! É evidente que todas elas são de origem animal.

 

SOFRO MUITO COM MEU COMPLEXO DE INFERIORIDADE. ELE ME ATRAPALHA NAS TAREFAS MAIS CORRIQUEIRAS, COMO IR À QUITANDA OU DAR UM PASSEIO COM MINHA FILHINHA NO GLOBO DA MORTE. QUE FAZER?

 

Consultando meus alfarrábios, encontrei uma simpatia que talvez ajude no seu caso. Junte 1 e 1/2 colher (das de chá) de canjica dormida na geladeira, duas moléculas de hidrogênio mais uma de oxigênio (ou água pronta, se tiver aí na sua casa) e 3 penas de calopsita. Aqueça em fogo mais ou menos brando, espere esfriar e tome de um gole só.

 

VENERÁVEL DUÑA,

PASSO PELO MENOS 16 HORAS POR DIA JOGANDO “CARA OU COROA”. TENHO OBSERVADO QUE EM 21% DAS VEZES O RESULTADO É “CARA” E EM 79% “COROA”, O QUE CONTRARIA COMPLETAMENTE A LEI DAS PROBABILIDADES. A QUE POSSO ATRIBUIR ISSO?

 

A moeda está viciada. Leve-a a uma clínica de recuperação, onde terá a orientação adequada para restabelecer o equilíbrio e se livrar da dependência. De cara, posso garantir que a tentativa será coroada de êxito.

 

QUAL O SENTIDO DA VIDA?

 

Não me aborreça. Nem eu nem meus leitores temos tempo a perder com questões menores.

 

O SENHOR ESTÁ ME EXPULSANDO DAQUI?

 

Exatamente.

 

ASSIM, SEM MAIS NEM MENOS?

 

É. Agora dê o fora, tem mais gente querendo fazer perguntas.

 

OLÁ, DUÑA. ME DIGA UMA COISA: COMO EU FAÇO PARA ALCANÇAR A ILUMINAÇÃO?

 

Mantenha o interruptor de luz à altura de suas mãos.

 

JÁ TENTEI DE TUDO, MAS NÃO CONSIGO ACABAR COM MINHA INSÔNIA. O SENHOR TEM ALGUMA SUGESTÃO?

 

Tudo no universo está em contínua transformação. Olhe ao seu redor e perceberá que tudo muda, menos o papel da bala Chita e o repertório do Cauby Peixoto. Aproveite cada segundo não como se fosse o segundo, mas sim o último. Experimente o seguinte: reserve um tempinho em sua rotina para fazer o que realmente gosta: praticar ioiô, descascar rabanetes ou colecionar abotoaduras, por exemplo. Isso feito, pegue uma enxada e capine mato durante três dias seguidos. Você vai ver se o sono vem ou não vem.

 

SOU ACOMETIDA FREQUENTEMENTE POR EPISÓDIOS DE DÉJÀ VU, AQUELA SENSAÇÃO QUE A GENTE TEM DE QUE AQUILO QUE ESTÁ ACONTECENDO JÁ ACONTECEU. ISSO É UMA IMPRESSÃO SUBJETIVA OU É A PROVA DE QUE EXISTE REENCARNAÇÃO?

 

Nem uma coisa, nem outra. O problema é a sua cabeça mesmo. Já é a 23ª vez que a senhora me faz essa pergunta.

 

ESTOU ABRINDO UM RESTAURANTE VEGETARIANO. SERÁ QUE O DUÑA PODERIA DAR UMA SUGESTÃO DE NOME?

 

Que tal “Contra-Filé”?

 

Marcelo Sguassábia© - 02/05/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

 

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Aspone é para os fortes

 

 

Se finjo estar trabalhando, a câmera flagra e meu superior imediato pode me cobrar explicações sobre o que estava fazendo -  já que ele, por ser meu chefe, certamente sabe que eu não deveria estar fazendo nada, pois fazer nada parece ser a ordem natural das coisas nesse lugar. Se assumo a inércia, deixo comprovado em vídeo que não tenho porque estar aqui, que sou dispensável e devo ser dispensado.

 

Tenho uma sala só minha, o que torna impossível uma análise de rotina dos colegas para determinar um padrão de comportamento. Não há comparativo, nem como saber se estou acima ou abaixo da curva média de produtividade.

 

A câmera de segurança está bem às minhas costas e grava ininterruptamente. Qualquer tentativa que faça de vandalismo ou destruição da lente será captada. Tento transmitir um bom-mocismo de fachada, a coluna ereta no encosto da cadeira, o “Fale com a gente” da empresa o tempo todo na tela, a mão no queixo e o ar de quem está intrigado em busca da solução de algum problema, de um improvável e redentor problema.

 

Simular conversas ao telefone também é expediente inútil. O controle de ligações descobriria que o meu ramal não tocou hoje, nem ontem, nem nas últimas semanas, nem nunca. Uma interessante saída seria o celular, mas levá-lo ao ouvido dezenas de vezes por dia denunciaria desvio de atenção às funções, falta grave e passível de advertência.

 

Entre fazer nada e fingir estar fazendo alguma coisa há um hiato tênue, e é aí que tenho que me equilibrar para tentar me segurar enquanto posso. Mas não é fácil. Parece-me infinitamente mais estressante manter-me neste vácuo do que trabalhar de estivador 16 horas por dia. O estivador não tem o que esconder nem disfarçar, só tem a estiva pela frente e câmera alguma por trás.

 

No começo, tentei ser pró-ativo. Quando assumi minhas funções (?), há 11 anos, sugeri um layout novo para as cartas do jogo de paciência, talvez com um background customizado e até um sonzinho, para quebrar a monotonia. Argumentei que os joguinhos padrão que vinham com o sistema operacional não tinham muito atrativo, e acabavam por dispersar o foco do colaborador e minar seu interesse pela rotina de trabalho. Dispunha-me a acionar o departamento de TI para encampar o projeto comigo. Estou esperando até agora pela resposta à minha sugestão.

 

Não há saída além de rezar ou praticar meditação, tomando cuidado para que o sono não tome conta e tombe involuntariamente a minha cabeça sobre o  teclado ou me arrume um fio de baba, fatalmente captado pela câmera.

 

O melhor a fazer é posicionar-me imóvel, sentado à frente do computador, de tal forma que a câmera não capte o que está na tela e nem consiga definir se estou ou não digitando algo. Essa imobilidade de corpo e mente resulta em completa exaustão ao fim das oito horas regulamentares. Deixo o trabalho trêmulo de dores em todas as juntas, com os nervos em frangalhos e a respiração suspensa, sem saber ao certo o que viram de mim e como avaliaram o que viram. Se me deram o flagra de fazer ou de não fazer aquilo que não tenho a menor ideia do que deva ou não ser feito. Que me salve uma justa e providencial licença médica, mas para consegui-la tenho que me queixar. E prefiro não correr o risco.

 

Marcelo Sguassábia© - 26/04/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

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Quebrando os ovos

 

 

Duña, o veneradíssimo ser, honorável guardião da sapiência cósmica, toma a palavra e disserta vagamente sobre a Páscoa e seus cacaus, em depoimento exclusivo a Neca Versante.

 

"Vivi a ilusão do coelhinho até os meus 26 anos, quando me foi revelada, por um amigo vendedor de raspadinhas, a verdade nua e crua. Custei a crer que o peludinho de olhos vermelhos não era, nem nunca fora, entregador de ovos.

 

Como foi duro ver ruir o que me parecia, até então, um dogma indiscutível. Lembro-me como se fosse hoje do peso de sua mão direita no meu ombro, me consolando do baque, enquanto a esquerda, sem que percebesse, me batia a carteira a céu aberto e em plena praça. Não saberia dizer quem era mais FDP – o maldito vendedor de raspadinhas ou o farsante coelhinho das Lojas Americanas.

 

Caí em depressão profunda e me enfurnei no deserto de Atacama para um período sabático de reflexão e prece. Ao invés de encontrar os eixos, os entortei de vez. Como que numa espécie de efeito dominó, outras arraigadas crenças, fundadoras da minha personalidade e mais tarde da minha seita, passaram a ser alvo de incômoda desconfiança. E coloquei em xeque a existência de outros ídolos, como o boitatá, os elementais das minas, os anjos da guarda e o obeso mórbido que por essas plagas chamam de Papai Noel.

 

Mas era o mamífero orelhudo a desilusão da vez. Esmurrava o peito e dava fortes cacetadas na cabeça, me autoflagelando por ter sido tão crédulo, deixando-me enganar por tanto tempo. Pus-me a recordar a Páscoa do ano anterior ao da revelação fatídica. Cursava MBA a milhares de quilômetros de distância, mas isso  não era empecilho para desfrutar dos folguedos pascais junto a papai, mamãe e titia Verena. A passagem era cara, o ônibus judiado, o sujeito da poltrona ao lado tinha sérios problemas de regorgitamento e foram oito longas horas de infortúnio até a casa paterna. A tudo isso relevava, com a perspectiva do coelho e seus doces ovos, acalentando a sonhada possibilidade de flagrá-lo enquanto escondia seus tesouros deste marmanjo duñesco.

 

Findo o período sabático, equivalente a 214 programas do Raul Gil incluindo os intervalos comerciais, sacudi a areia grudada no traseiro e parti de Atacama com o firme propósito de iniciar meu apostolado em Sertãozinho. Não era fácil encarar serenamente tão ambiciosa empreitada. Os milhões de seguidores que tenho hoje reduziam-se na época a nenhum, e o golpe sofrido com o desencanto do coelho ainda não cicatrizara por completo. Mas ergui a cabeça e segui em frente. O resto é história, já fartamente documentada nas mais de três mil biografias sobre minha pessoa e meu projeto missionário".

 

Marcelo Sguassábia© - 19/04/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

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Curso de autoacupuntura à distância

 

 

Agradecemos seu interesse pelo nosso curso. A formação em autoacupuntura à distância é regulamentada por lei governamental e seu número de adeptos vem se multiplicando rapidamente nos últimos anos. Antes de preencher o formulário de pré-matrícula, algumas considerações são necessárias:

 

- Nossa instituição não se responsabiliza pelo mau uso das agulhas e suas consequências sobre a saúde do aluno.

 

- A cada módulo ministrado, o aprendiz deverá providenciar uma selfie com as agulhas aplicadas em seu corpo e enviar ao orientador. As aplicações que estiverem erradas serão corrigidas e remetidas de volta, com as indicações dos pontos certos.

 

- Uma vez ao ano, será realizada a prova presencial. O Coordenador Pedagógico sorteará uma doença e o aluno terá que aplicar as agulhas em si mesmo, sem olhar no espelho e submetendo-se à avaliação de banca examinadora formada por sete docentes.

 

- O primeiro jogo de agulhas para prática em domicílio será enviado à residência do aluno sem custo adicional. Cobraremos somente uma taxa de R$10,00 referente a plástico bolha.

 

- A cada semestre, haverá um acréscimo na mensalidade. Junto com o boleto, enviaremos um jogo extra de agulhas com os pontos certos para que o aluno possa controlar o nervosismo e pagar calmamente o que deve à faculdade.

 

- As aulas serão transmitidas ao vivo, em vídeo, de segunda a sexta, das dez da manhã às quatro da tarde, com quinze minutos de intervalo ao meio-dia para uma merenda com rolinho primavera e salada de broto de bambu. Visando sua comodidade, oferecemos um serviço de delivery para entrega de quentinhas na hora do recreio.

 

- Como os professores são todos chineses nativos, recomendamos que, simultaneamente ao curso de acupuntura a distância, o aluno faça também um Intensivão de chinês, disponibilizado pela nossa instituição e indispensável para perfeita assimilação do conteúdo.

 

- Somente após concluída a graduação em autoacupuntura, com duração de 32 semestres, pode-se optar pelo bacharelado em acupuntura propriamente dita, composto por 164 diferentes disciplinas ministradas ao longo de 48 semestres.

 

- Uma dúvida recorrente dos alunos, constatada no nosso SAC, diz respeito ao faturamento médio do profissional, após concluída a graduação. Como parâmetro básico, podemos dizer que gira em torno de R$ 0,00 (zero reais), já que estamos falando de autoacupuntura. A não ser que o acupunturista, ou seja, você, receba de você mesmo. Se assim for, é justo que você posteriormente devolva o dinheiro recebido para o paciente, para que ele, ou seja, você, tenha como pagar a próxima sessão.

 

Marcelo Sguassábia© - 12/04/2014.

 

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Brinquedobras

 

 

Segundo informações recebidas há pouco de nossa sucursal de Teresina,  prosseguem  em ritmo intenso as investigações da CPI recentemente instaurada para apurar as responsabilidades sobre a chamada Operação Estrela, levada a cabo pela alta inteligência da Polícia Federal.

 

Até o fechamento desta edição, ficou comprovado o envolvimento do Banco Imobiliário no esquema. Alguns de seus diretores já foram indiciados em inquérito, por suspeita de lavagem de dinheirinho de 500, 100, 50, 20, 10, 5 e 1 e de receptação, em seus cofres, de aproximadamente uma tonelada e meia de dados viciados, a serem utilizados para fraudar concorrências públicas para renovação da frota de helicópteros operados por controle remoto.

 

Membros do Ministério Público afirmam que há seguros indícios de conexão entre a compra dos helicópteros e o edital de licitação para operação do sistema de trenzinhos elétricos. Em relação ao Banco Imobiliário, pairam ainda suspeitas de compra, a valores muito acima do mercado, de uma refinaria de petróleo com embalagem violada, sem manual de instruções, sem o selo Abrinq - empresa amiga da criança e cheia de rebarbas nos cantinhos.

 

Quanto às denúncias, veiculadas ontem por diversos meios de comunicação de massa de modelar, alertando sobre a participação da construtora e incorporadora Lego nas irregularidades, o relator da comissão sugere que se proceda ao rito sumário de julgamento, ou seja, que os responsáveis sejam de imediato executados nas cadeirinhas elétricas que dão choquinho, mexem os bracinhos e funcionam com quatro pilhas médias. A mesma pena caberia, segundo ele, aos envolvidos no superfaturamento das obras de construção da via marginal na pista de autorama, escândalo cujo processo se arrasta há 3 anos e ainda se encontra sem perspectiva de julgamento em primeira instância.

 

Resta, por fim, descobrir até que ponto todas essas irregularidades podem ou não interferir nas outras CPIs ora em andamento: a da Galinha Pintadinha e a do Cubo Mágico. Investigadores e parlamentares tentam montar esse quebra-cabeça.

 

Marcelo Sguassábia© - 05/04/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

 

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Eu tenho muita coisa pra fazer comigo mesmo

 

 

Estar só e inerte é quase um incômodo. Um sentimento de culpa atormenta as pessoas quando não encontram alguma coisa para fazer. E alguma coisa pode ser qualquer coisa que não seja estar com elas. O fato de se encontrarem consigo as amedronta, o silêncio é confundido com inoperância e odeiam a possibilidade do ócio criativo como fomentador de ideias. É preciso dar sentido utilitário a tudo, pois tempo fazendo nada é tempo jogado fora.

 

Já eu, particularmente, acho que sou uma razoável companhia para mim. E não vejo a hora de trocarmos uma figurinha, sempre que temos oportunidade, para estreitarmos o vínculo.

 

Confesso que entre eu e mim ainda não há suficiente empatia, mas esse estranhamento é compreensível entre os que não se conhecem a fundo. Com o tempo tudo tende a melhorar, depois que formos morar juntos e dividir a escova de dentes. Pelo que li em alguns almanaques de autoajuda, a tendência é irmos nos afeiçoando a ponto de não fazermos mais nada a não ser que seja a quatro mãos.

 

Como disse no título, eu tenho mesmo muita coisa pra fazer comigo. De cara, o que nunca fiz e que me atiça desde os 8, mais ou menos: deixar um gravador ligado no criado-mudo para flagrar tudo o que falo dormindo, quando dou a sorte de pegar no sono. Mas me desanima a possível decepção de ouvir horas de grunhidos ininteligíveis, quando for conferir o resultado.

 

Há também algo de saneador e instigante na arrumação de gavetas. Dando uma limpa e organizando as da casa, a nova ordenação parece refletir nos armários da mente. O que favorece o relacionamento entre ambas as partes, ou seja, entre eu e mim.

 

Poderia citar outras centenas de formas de ficar mais íntimo de si. Inspirar pelo nariz e expirar pela boca, mastigar 64 vezes cada bocado de comida, aproveitar o tempo na ergométrica para fazer meditação, olhar para os detalhes do seu rosto (e não para o caminho da lâmina) quando faz a barba.

 

Presumo que, no meu caso, ajudaria bastante ir à cata das fotos que faltam de mim. Desde sempre, sou eu quem tira as fotos em todas as ocasiões. Quero procurar quem fez fotos minhas, sem que eu soubesse, compadecido da falta de registros de mim mesmo para a posteridade. Onde a minha foto batendo fotos dos outros? Quem cometeria, anonimamente, esse ato solidário?

  

Embora tentasse esconder de mim, eu sempre soube que Papai Noel não existia. E tão logo ganhei altura e idade suficientes para carregar um saco acetinado de brinquedos e meter na cara uma escrota barba de algodão, passei a ser o Santa Claus oficial da família. Sacanagem. Fingindo ser outro, deixava de novo de ser eu. E ia adiando sempre para o próximo Natal o presente mais cobiçado: dar-me embrulhado para mim mesmo.

 

Marcelo Sguassábia© - 22/03/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

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Momento do tempo

 

 

- Ouvi falar que escalaram o pessoal do horóscopo pra cobrir as férias da turma da previsão do tempo.

 

- É verdade. Os caras que redigem o horóscopo pra peixes, áries e touro pegam a previsão da região sul. Quem faz leão, sagitário e capricórnio fica com a região centro-oeste. E assim por diante. Daqui a pouco vão passar o comunicado oficial.

 

- Mas vai sobrecarregar os caras. E hora extra que é bom, nada. O Financeiro não libera. Por mais que seja divertido ficar inventando o futuro dos outros e o tempo que vai fazer, o trabalho é dobrado. Só se a gente pegar uns foquinhas, pra um freelance não remunerado.

 

- Não precisa. A equipe do horóscopo é boa de imaginação. Eles estão costumados a se virar com 12 signos, 5 regiões não vão fazer diferença. E ninguém tem que ficar preocupado caso acabe chovendo ao invés de fazer sol. Se o CPTEC/INPE, a Somar Meteorologia, o INMET, o Cepagri, o Climatempo e o escambau, com todos aqueles satélites erram sem parar, o máximo que pode acontecer é a gente acertar uma vez ou outra.

 

- Espera aí que eu tive uma ideia mais inteligente. Considerando que eles erram todas, e ultimamente tem sido todas mesmo, o negócio é a gente pegar primeiro o boletim deles e prever sempre o oposto. A nossa chance de acertar será altíssima. Por esse método de inversão, eu diria que é de quase 100%.

 

- Boa! E quanto mais a gente acertar, mais pessoas vão passar a ouvir o nosso programa, mais audiência a gente vai ter...

  

- E mais anúncios vão pingar.

 

- Pingar, não. Sem trocadilho, vai chover publicidade no "Momento do Tempo".

 

- De tanto errar, nos últimos meses os institutos oficiais têm sido inespecíficos. Podem reparar. Falam em chuvas isoladas variando de intensidade "em grande parte do país", camadas de nebulosidade se formando lentamente, frente fria das Galápagos que pode ser que chegue por aqui entre quinta e sábado da semana que vem, máxima variando entre 14 e 39 graus sei lá onde, coisas assim, que não tem como errar.

 

- Então, quando a previsão for inespecífica, a gente também fica em cima do muro. Zona de conforto, sem instabilidades, entende?

 

- É, faz sentido. Acho que vale mais a pena a gente implementar essa estratégia da inversão do que botar o povo da redação pra ficar inventando previsões sem pé nem cabeça. E, além de tudo, não dá trabalho. Inverteu, tá pronto. É só botar no ar.

 

- Só que a Rádio corre o risco dos institutos de meteorologia começarem a acertar. E aí, como ficamos?

 

- Acho que desse susto a gente não morre. Mas, se acontecer isso, vamos para o inespecífico. Até eles começarem a errar de novo, então voltamos para a estratégia de inverter as coisas. Simples e seguro. Se der tudo certo, periga até a nossa Rádio virar referência.

 

- Já pensou? Um monte de outras emissoras indo na cola do que a gente falar, sendo que o que a gente disser será uma fraude, já que divulgaremos o contrário da previsão científica... Vixe Maria...

 

- É o que se pode chamar de rigor jornalístico.

 

- Ô.

 

Marcelo Sguassábia© - 22/03/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

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Última vontade

 

 

- Como era da vontade do senhor Arquibaldo Calixto, e passados 30 dias do seu sepultamento, cabe-me agora abrir este envelope, à frente de todos da família, para conhecermos o destino que se dará ao seu espólio. Posso começar?

 

- Corre logo com isso, doutor, que eu já estou gastando por conta o que me é de direito.

 

- Aos dezoito dias do ano da graça de dois mil e … bla, bla, bla, bla, bla, bla. Ei, espera aí…

 

- O doutor tá ficando verde, a mão tremendo… o que está escrito nesse negócio?

 

- Ele… ele está dizendo aqui que deixou tudo… não é possível… deixou tudo para mim! Lendo para vocês, textualmente: “Meus filhos e minha mulher não são merecedores de consideração nem de coisa nenhuma, muito menos de herança”. Desculpem, não sou eu que estou dizendo, é o que está escrito aqui, o desejo do falecido. Que situação, a minha. O envelope estava lacrado, vocês testemunharam a abertura. Continuando: “O senhor Salustino, na qualidade de titular do cartório da cidade, vem demonstrando, perante a lei de Deus e a dos homens, que é um sujeito digno e de caráter incorruptível, qualidades que nenhum membro da minha família possui”. É constrangedor isso tudo, eu fico embaraçado…

 

- Continua, doutor.

 

- Bom, o texto avança e entra em pormenores que denigrem muito cada um de vocês. Acho que não é o caso de prosseguir…

 

- Começou, agora vai até o fim. Vamos ver até onde chegou aquele velhote filho de uma…

 

- Como vocês sabem, pela lei, eu sou apenas um executor testamentário, legalmente incumbido de fazer valer a vontade dos falecidos… Olha, eu posso ter recebido, por este testamento, a herança. Mas também posso abrir mão dela em favor de quem eu desejar. Menos da família Calixto, é claro, pois esta não foi a designação do morto. Ai, que situação!

 

- Então, o que o senhor pretende fazer?

 

- O que me parece correto, num caso desses. Penso em transferir o que me cabe em favor da Igreja, ou dos mais necessitados, alguma instituição de caridade. Não ficaria bem eu aceitar toda essa fortuna, ainda que esteja no meu direito. Só fazendas, são 16. Bom, vocês sabem tanto quanto eu o tamanho do legado.

 

- O senhor doutor está é se fazendo de santinho. Decerto vai providenciar uma triangulação, passando os bens para um orfanato, por exemplo. De comum acordo com o mentor da entidade, depois de um tempo faz ele doar tudo para a amante que certamente o velho tinha e não queria deixar no desamparo. Essa sacanagem deve ter sido combinada “de boca” com o velho, antes dele bater as botas. Essa é que é a verdade, não é? E o senhor doutor há de ficar com uma parte boa da dinheirama, em troca do servicinho prestado…

 

- Não fosse eu um homem justo e ponderado, já lhe teria arrebentado todos os dentes com essa insinuação difamante.

 

- O senhor não seria tão perverso. Além de me deixar sem um tostão, eu ainda ficaria banguela. É ruim, heim.

 

- Em respeito ao saudoso Arquibaldo, vou prosseguir a leitura. Bla, bla, bla… Ai, meu Deus do céu, essa não!

 

- Fala, desgraçado, que foi agora?

 

- Continuando o que o finado determinou: “Isso tudo o que eu escrevi até agora não vale nada. Sei que a leitura do testamento é presencial e em voz alta. Se até este momento da leitura ninguém da minha maldita família interromper para falar alguma coisa, minha herança será repartida, na forma da lei, entre os herdeiros legítimos. Mas, se alguém questionou alguma coisa, então o dono do cartório pode, de fato, ficar com tudo. E se assim for, que faça bom proveito.

 

Marcelo Sguassábia© - 15/03/2014.

 

Imagem: Divulgação.

 

 

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Polonaise

 

 

- Este ré bemol realmente está um atentado ao ouvido. Faz tempo que está desafinado desse jeito?

 

- Mais de ano. Vou deixando, evitando esbarrar nessa tecla quando toco, pra não acabar com a música.

 

- O problema é que agora não segura mais afinação. Vou ter que trocar a cravelha. Se o senhor me chamasse assim que notou que estava desafinado… Que curioso, nunca atendi cliente no carnaval. Ninguém chama pra afinar piano nesses dias. Já tinha até planejado uma semaninha em Teresópolis, com a família, quando o senhor ligou. Piano em casa já é raridade hoje em dia. Gente querendo tocar no carnaval, então… Pleyel, esse piano aqui é uma lenda.

 

- Tem quase vinte anos comigo. Estava encostado no porão de um convento. Uma das madres tocava de vez em quando. Ela morreu e o instrumento ficou parado, até que deu cupim e resolveram vender.

 

-  Personnalisé pour Frédéric Chopin!*

 

- Que foi que você disse?

 

- Aqui, escrito em grafite num selo, perto do pedal.

 

- Quer dizer o que isso aí, moço?

 

- Nada.

 

- Como assim, nada?

 

- Este piano não vale nada. As cravelhas estão todas estragadas, a madeira está que é só cupim, o marfim das teclas já vai começar a soltar…

 

- Do jeito que o senhor fala, não sobra muita coisa.

 

- Posso levar embora, mas pago pouco. A despesa que eu vou ter com o transporte é maior do que o preço de mercado dele.

 

- Mas é um Pleyel! Como o senhor mesmo disse, uma lenda…

 

- Um Pleyel destruído pelo tempo. A fábrica, inclusive, fechou as portas em novembro de 2013. Este aqui é apenas mais um, dentre duzentos e cinquenta mil produzidos na França, em mais de duzentos anos.

 

- E aquele negócio escrito no selo? O senhor arregalou um olho quando leu…

 

- Imagina, é só nome do funcionário que fez o instrumento. Um tal de Frederico. Do jeito que esse piano acabou ficando, devia ser um aprendiz na época.

 

- Ah.

 

- E aí? Vamos desocupar espaço?

 

- Oito mil e quinhentos reais.

 

- Pago no máximo três mil e setecentos.

 

- Tá bom, pode levar.

 

(Leva mesmo essa porcaria, seu trouxa. Se fosse um perito mesmo, teria percebido que o selo é falso, que foi envelhecido com betume e que o lápis que escreveu o nome de Chopin é coreano).

 

*Sob encomenda para Frédéric Chopin.

 

Marcelo Sguassábia© - 1º/03/2014.

Imagem: Divulgação.

 

 

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Enfim, fora da caixa

 

Pessoal da Criação,

 

Primeiramente, em nome da Diretoria, nossos parabéns a todos os envolvidos pela conquista da nova conta.

 

Estamos livres para propostas inusitadas, totalmente "fora da caixa", desde que estejamos atentos a uns poucos porém determinantes "polices", que nos chegaram hoje via email.

 

- Não podemos criar frases iniciadas com "NÃO", ainda que esta mesma já desobedeça à regra.

 

- Um dos chefes de engenharia de produto tem avô mulato, e consta que a agência anterior apresentou um anúncio com fundo escuro, considerada por ele uma peça subliminarmente criada com o intuito de depreciar a raça negra, de maneira geral, e a sua própria família em particular.

 

- Nada na cor azul deve aparecer, nem em mídia impressa, nem nas peças de mídia eletrônica, pois azul é a cor predominante do principal concorrente. Essa regra vale para todo e qualquer elemento - do céu nas externas dos filmes aos mínimos objetos de cenografia.

 

- Nada na cor verde deve aparecer, nem em mídia impressa, nem nas peças de mídia eletrônica, pois verde é a cor predominante do segundo maior concorrente.

 

- Nada na cor vermelha deve aparecer, nem em mídia impressa, nem nas peças de mídia eletrônica, pois vermelha é a cor predominante do terceiro maior concorrente.

 

- Layouts no estilo clean, contudo, também precisam ser evitados. O gerente comercial da linha de termocondutores bifásicos considera espaço em branco um desperdício de dinheiro, e que cada centímetro de anúncio deve ser aproveitado com conteúdo sobre o produto, os pontos de assistência técnica ou os valores e a missão da empresa - necessariamente nessa ordem de prioridade.

 

- Fontes com serifa, nem pensar. Sem serifa, pior ainda. Não existe uma tipologia a ser seguida, portanto podemos ficar à vontade para sugerir a que acharmos melhor para cada circunstância. Desde que respeitando o supra citado - nem serifas, nem falta delas nas letras.

 

- A cada 20 palavras de texto, no mínimo 5 serão citações do nome do cliente e/ou de suas marcas.

 

- Os produtos cuja comunicação estarão agora sob nossa responsabilidade em nada se assemelham a chocolates, cervejas, brinquedos, sandálias e outros comprados por impulso. Seus consumidores são racionais e avaliam unicamente custo-benefício. Assim, toda e qualquer comunicação deve obedecer o seguinte modelo de apresentação: nome do produto/função/tabela de aplicações/benefícios/endereço/telefone/site.

 

- As observações acima integram o primeiro dos cinco anexos recebidos. As obrigatoriedades dos outros quatro serão enviados em seguida.

 

Marcelo Sguassábia© - 22/02/2014.

Imagem: Divulgação.

 

* * *

 

 

Ele delegou

 

 

Que não se conteste a infalibilidade do Arquiteto Supremo: na sua concepção original, a obra era realmente perfeita, e vinda Dele não poderia ser diferente. Mas, pelo que a ciência moderna vem apurando, Ele foi obrigado a delegar. Até porque Ele tinha - e sempre teve - mais o que fazer. E perder 7 dias com a criação dessa poeirinha cósmica que é o nosso planeta seria muito desperdício, mesmo o Autor sendo eterno.

 

É claro que, passando a bola a terceiros e tendo apenas uma semana de prazo para entrega das chaves, não ia dar pra ficar perfeito. Mundo perfeitinho, sem retoques, precisa de pelo menos uns 20 dias pra ficar pronto. Daí pra mais. Mal comparando com o falível plano terreno, é como muito arquiteto que tem por aí: inventa as coisas, larga na mão de gente mais ou menos e depois não aparece para acompanhar a obra. Aí, dá nisso: seres humanos com duas orelhas em vez de três, um nariz só no lugar dos quatro regulamentares, pescoços com torcicolo, coração que falha, artéria que entope fácil, chulé, hérnia de disco…

 

Do ponto de vista geológico, depois de pronto, parecia até que estava tudo em ordem no mundo. Mas não deu 4 bilhões de anos e já começaram a pipocar os problemas. Por exemplo, a porção de terra que existe no planeta. No projeto, era pra ser um bloco só - inteiriço, liso, bonitão. Na pressa, o barro desandou e depois de seco acabou rachando e ficou do jeito que é hoje, esses imensos pedaços de chão com água passando no meio, que a humanidade acabou organizando na forma de continentes e oceanos. Em seguida vieram as rachaduras, aparecendo pra tudo quanto era canto. O pessoal que mora no mundo chama de terremoto. Se acrescentassem um pouquinho mais de argila e rochas firmes na mistura, talvez evitassem esse problema. Agora é tarde pra reclamar, porque garantia de construção é de apenas 5 anos, aqui e em qualquer outro ponto do Universo.

 

Matéria-prima de segunda parece ter sido a causa das estrelas cadentes, que na verdade não foram concebidas para cair, bem como dos barulhentos gansos – que se dependesse do Criador seriam tão mudos quanto os cupins.

 

Nuvem não era para ter, o céu foi criado para ficar sempre aberto e azulzinho. Porém, para que não precisasse chover nunca, o sol tinha que ser colocado num ponto muito mais distante, a fim de que o excesso de calor não interferisse no equilíbrio biológico. Sempre esbaforidos e correndo contra o relógio, os empreiteiros instalaram o astro-rei onde deu, sem atinar com as consequências. Resultado: derretimentos polares, desertificação, tsunamis, efeito estufa e um sem número de outras anomalias. A lua até que ficou no lugar certo, embora não tenha lá muita serventia. Consta que o projeto inicial previa três outras luas, formando uma espécie de colar satelital ao redor do globo. Hoje se sabe que a ausência do adorno se deu por desvio de material, que acabou indo pra outra obra de lua em andamento, no planeta Júpiter. Que aliás tem 17 luas oficialmente reconhecidas, todas aparentemente inúteis.

 

Marcelo Sguassábia© - 15/02/2014.

Imagem: quecoisaboa.com.br

 

*  *  *

 

Um de carne e dois de queijo

 

- Se você fosse assim, um grande vulto como diz, não estaria aqui vendendo pastel.

 

- Você fala de um jeito… vergonha é vender pastel ruim. O pessoal vem aqui comprar ouro com recheio de carne, queijo e palmito, meu amigo. Estou muito bem com meus 50 mil por dia.

 

- 50 mil reais?

 

- Não, 50 mil pastéis. A 3 reais cada um. Faz as contas.

 

- Nossa! Tá de brincadeira…

 

- Tendo em vista que 100% da humanidade considera o pastel frito a iguaria das iguarias, e sendo eu o autor do melhor pastel do mundo, não tenho do que reclamar… Meu amigo, a verdade é que muitos buscam a Deus, mas a maioria acaba cansando, baixa um pouquinho a expectativa e vem buscar pastel comigo.

 

- Mas…

 

- Ainda assim, fazem pouco do nosso ofício. Por exemplo, quando as pessoas usam a expressão “fritar pastel” no sentido figurado, querendo significar algo realizado às pressas, que se faz de qualquer jeito. Nada tão longe da verdade, pelo menos no meu caso. Se bem que, por outro lado, eu até acho bom que os outros pasteleiros “fritem pastel” mesmo, assim eu me sobressaio ainda mais. Existem pastéis e existe o meu pastel, compreende?

 

- E a garapa da sua banca? Vai me dizer que também é a melhor do sistema solar?

 

- É a única à altura da minha obra-prima. Mais cremosa, impossível. Tem Certificação ISO desde 2002 e título de patrimônio imaterial da humanidade, pela Unesco.

 

- Espera aí, eu acho que…

 

- E digo mais: tá vendo aquele quadrinho do lado do alvará da prefeitura? É o autógrafo do Paul McCartney. Quando veio aqui pediu só de palmito, porque é vegetariano. Depois de se entupir, tirou foto com os empregados e saiu com dois rolos de massa de pastel debaixo do braço. Toda quarta, às quatro e meia da manhã, o Alex Atala aparece na minha barraca. Disfarçado, mas vem. Pede sempre dois de carne, um de palmito e se empapuça de garapa direto no bico da jarra, nem pede copo. Outra freguesa firme é a Glorinha Kalil. Mas essa eu nunca vi, a gente entrega a encomenda em casa. O Caetano, quando vem fazer temporada em São Paulo, liga pedindo uma boa remessa pro camarim dele. Aliás, numa das nossas conversas ele jurou que a minha banca fazia parte da letra de “Sampa”, mas no fim ele teve que tirar porque não dava rima…

 

- Mas você concorda que eles não admitem publicamente o vício do pastel, certo?

 

- Olha, você pensa o que quiser. Sua inveja não vai diminuir minha fama e nem minha autoestima. No tempo em que você está aí me atirando pedra, a assessoria da Dilma me manda torpedo pedindo pra entregar duas dúzias no salão do Wanderley Nunes, pra Presidente dar uma forrada enquanto corta o cabelo.

 

- Tá, no seu caso a distinta freguesia é distinta mesmo. Então porque não faz uma versão “select” da banca, com pastel de caviar e Prosecco?

 

- Porque ia ser um fiasco. A graça está na comida suburbana, no delito que a celebridade comete comendo de pé, com o sol castigando a carcaça, mosca pousando no nariz e correndo o risco de ter uma intoxicação alimentar por causa do vinagrete vencido. Se você quer saber, usar palito de dente é quase um fetiche sexual pra esses endinheirados. Aqui eles ficam mais à vontade que no banheiro das casas deles. E ainda tem a perspectiva de serem pegos pelos paparazzi, o que aumenta a adrenalina da empreitada. Eles gostam de correr perigo… e aí, mais um de queijo?

 

Marcelo Sguassábia© - 08/02/2014.

Imagem: quecoisaboa.com.br

 

*  *  *

 

Looping

 

 

Cristais bisotê: a primeira coisa em que reparei, assim que consegui abrir os olhos. Já tinha ouvido falar em Experiência de Quase Morte, aquilo me parecia isso. Espirais, túneis, uma força puxando para a grande luz.

 

A mulher muito linda, refletida nos cristais. Mas desconhecida. Nada que me lembrasse, nela, um ente querido já morto me recebendo. Eu poderia estar sonhando no quarto exalando éter. Ou me ambientando ao outro lado. Importava saber. Era justo, era eu no limbo.

 

- Foi muito tempo na passagem. Você não se deu conta de quanto, ela diz.

 

Normal. Costelas se descamando, hematomas esparsos, normal. E barba.

 

- Todos chegam assim, com essa cara de Moisés.

 

Tentei olhar para os cristais, querendo um reflexo de mim. O carrinho de montanha russa. Descarrilou. Ouço a notícia na TV do quarto, envolto em gesso e calafrios. Mas e a moça dos cristais? Quem? Descarrilei, morri ou alucino em observação?

 

Água, um jato forte ensopa os meus andrajos. Já sei: estou na montanha russa e passo pela água no final da volta, muitas montanhas russas são assim. Nem morto, nem em observação. Ainda estou no brinquedo, a alucinação está acontecendo pelo excesso de adrenalina.

 

Assusta o limbo de saber-se ou não no limbo. Assusta e cansa a imprecisão. Random, bola de pinball. Alguém maior que você, dono de você, tentando manter a bolinha pontuando. Game Over? Quando você se põe na minha pele morta-viva, estilingado no caos, puxando um ar que não infla e sem alento que baste, sobram apenas perguntas. Mais e difíceis perguntas. Tento coçar as costas. O gesso não deixa.

 

Marcelo Sguassábia© - 1º/02/2014.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

*  *  *

 

Ribamares

 

Ribamar não deve nada a ninguém, este é o fato. Por mais que conspirem e tentem envolvê-lo em imbróglios difamantes, sua ficha permanece incólume. Tão alva e inatacável quanto a consciência dos verdadeiros inocentes.

 

E olhe que tentam com afinco manchar seu nome, que já batiza dezenas de ruas, viadutos, postos de saúde e unidades de estocagem de macaxeira espalhadas pelo nosso Estado. Sim, as tentativas diárias de desmoralização se multiplicam de maneira estonteante, atingindo não só o Ribamar político, mas também alguns de seus xarás apadrinhados.

 

Um exemplo recente foi a insinuação desmoralizante contra Ribamar Leocádio, neto de um fiel correligionário, lotado como assessor de gabinete nível sete desde outubro de 2010. Pesa contra ele a denúncia de jamais ter comparecido ao seu local de trabalho, para tomar posse e assento. Imaginem o pandemônio que ia ser se todo nomeado cismasse em ocupar seu cargo na capital federal? Assistiríamos a um overbooking trabalhista sem precedentes!

 

Percebam que não é Ribamar Leocádio que está lotado no gabinete, é o gabinete que está lotado de gente valorosa como ele. São dezoito Severinos, dois outros Ribamares com problema de obesidade e cinco Raimundos Nonatos dividindo uma salinha de quatro por quatro e meio. O quadro catastrófico assim se desenharia, se todo mundo fosse de fato pegar no batente. Felizmente, a grande maioria fica na praia, mandando ostras goela abaixo e bebericando guaraná Jesus.

 

Pois é, minha gente, esses arroubos de heroísmo ninguém vê. Para mostrar essa atitude abnegada, essa demonstração de cidadania e de espírito público, a Rede Globo não envia nenhuma equipe de reportagem.  É claro que toda essa gente do agreste preferiria estar em Brasília, se esbaldando em ar condicionado, ao invés de ficar salgando a bunda na praia debaixo de um calor senegalês. Na verdade esses servidores pensam primeiro na pátria e evitam os nefastos efeitos da superlotação, que poderiam culminar em tragédia e, consequentemente, em gastos emergenciais aos cofres do Estado.

 

Aí me vem a oposição com mais uma infâmia,  fazendo injusto alarde sobre a licitação para compra de meia dúzia de toneladas de lagostas, destinadas ao trivialzinho  variado do Palácio onde a filha de Ribamar governa exemplarmente.

 

Temendo o desgaste político junto à opinião pública, o governo determinou o cancelamento da compra. E o que acabou acontecendo? Ao abrirmos mão do processo licitatório, tivemos que comprar lagosta no mercado informal, sem garantia de origem e em condições discutíveis de armazenamento e conservação.

 

O produto foi servido em coquetel oferecido a uma comitiva de empresários chineses, que estava em nosso Estado para fechar um grande negócio de fornecimento de catracas de motocicleta. Estragada, a lagosta à Thermidor provocou intoxicação alimentar severa nos membros da comitiva, que assim que obtiveram alta hospitalar retornaram à China sem assinar contrato algum. Se gasto com lagosta de qualidade, o dinheiro retornaria ao governo multiplicado por mil, cinco mil, dez mil, sei lá…

 

Então por que, pergunto, a perseguição política aos nossos queridos representantes? Por que o linchamento midiático? Ora, vão cuidar de suas vidas e deixem o(s) Ribamar(es) trabalhando sossegados.

 

Marcelo Sguassábia© - 25/01/2014.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

 

*  *  *

 

Bate-bola

 

 

COM NERO

 

Time de futebol

Botafogo

 

Filme

Quanto mais quente, melhor.

 

Cidade

Lavas

 

Música

Me chama

 

Uma paixão

Joelma

 

Um trauma

Hidrantes

 

Um ditado

Onde há fumaça, há fogo.

 

Jogo

Queimada.

 

Prato favorito

Macarrão ardente

 

Sobremesa

Doce de coco queimado

 

Sonho impossível

Extintor de água.

 

Bebida

Whisqueiro

 

Elemento Químico

Fósforo

 

Livro

Os segredos do Churrasco.

 

Cigarro

Aceso

 

Pneu

Firestone

 

Cor

Cinza

 

Desenho animado

Os Brasinhas do Espaço.

 

Programa de TV

Tela Quente e Temperatura Máxima.

 

Roupa

Só de queima de estoque

 

Lugar mais estranho onde já fez amor

Escada de incêndio.

 

Viagem

De foguete

 

Amar é

Não deixar o desejo apagar

 

Defeito

Ter o pavio curto

 

Desejo

Tocar cítara tão bem quanto toco fogo.

 

COM DELFIM NETO

 

Carro

Renault Selic com câmbio flutuante

 

Passeio

Circuito das Águas, com desconto na fonte.

 

Investimento

Poupe seu tempo e economize espaço no jornal. Duas perguntas já está bom.

 

COM GIL GOMES

 

Comida

Presunto

 

Música

Ronda

 

Filme

Corra que a polícia vem aí

 

Livro

Memórias do Cárcere

 

Teatro

Uma facada

 

Uma virtude

Garra

 

Um crime hediondo

Morte seguida de estupro

 

Passatempo

Xadrez

 

Roupa

Fórum

 

Sonho de consumo

Cela ampla e luxuosa, com requintes de crueldade

 

Lugar legal

O Instituto Médico

 

Carro

Envenenado

 

Situação econômica

Enforcado

 

Cartão de Crédito

Roubado

 

Cachorro

Policial

 

O que incomoda

Prisão de ventre

 

Filosofia

Sorria. Você está sendo filmado

 

Acabou

Que pena

 

COM BEETHOVEN

 

Carro

No concerto. Só andava em ré.

 

Instrumento

Hein?

 

Instrumento!

Hein?

 

Instrumentoooooooo!!!!!

Ah sim, instrumento. Surdo.

 

Fruta

A Nona

 

Lugar

 

Desodorante

Moderato

 

Relógio

De cordas

 

Comida

Bis

 

Cachorro

Bravo!

 

O que anda ouvindo

Hein?

 

COM SHERLOCK HOLMES

 

Música

Adivinhe

 

Hobby

Investigue

 

Cor

Deduza

 

Filme

Sou suspeito pra falar

 

Uma pista

Rodovia dos Bandeirantes

 

Quem é o culpado

Ele

 

Ele quem?

Elementar

 

Objeto de desejo

A Lupa do Oliveira

 

Prato preferido

Comida álibi

 

Caso insolúvel

Água e óleo

 

Carro

Siga-o

 

Ídolo

Conan. O Doyle, não o Bárbaro.

 

Amigo de valor

Meu caro Watson

 

Filosofia

Agora tudo se encaixa

 

Um ditado

A primeira impressão digital é a que fica.

 

Uma dúvida

Nenhuma. Foi o mordomo.

 

Animal

A gata Christie

 

Finalize o interrogatório

Pergunta pro Nero se ele tem fogo pro meu cachimbo.

 

Marcelo Sguassábia© - 18/01/2014.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

*  *  *

 

 

Discutindo a relação

 

 

- Alô, Ego? Aqui é o Alter.

- Walter?

- Não, Alter mesmo. Alter-ego. O seu, pra ser exato.

- Olha, eu estou em trânsito. Posso retornar mais tarde a ligação?

- Não, não pode. Seu rato filho da mãe. Pústula, desgraçado, hipócrita… tratante, desalmado, usurpador… não vai se defender, não?

- Absolutamente. Desconheço a razão dessa ofensa descabida e não costumo me influenciar pela opinião dos outros.

- O problema é que eu sou você. E bota problema nisso.

- Nesse caso, eu exijo ser apresentado formalmente a mim pra continuar a conversa. Não é do meu temperamento me abrir com estranhos, ainda que esse estranho aparentemente me seja tão íntimo. A voz, pelo menos, é igualzinha a minha. Impressionante.

- Tudo bem, então vamos marcar um encontro. Na minha mente ou na sua?

- Nenhuma das duas. Território neutro. Talvez entre o hemisfério direito e o esquerdo do nosso amigo em comum, o que me diz?

- Mas ali, bem na fronteira, ninguém fala coisa com coisa. Vamos ficar lá, feito dois idiotas. Só sentindo, sem articular nada.

- Não mistura sentimento nessa história. Não sentimos nada um pelo outro, até porque estamos falando agora pela primeira vez.

- É, mas eu sou uma criação sua.

- Olha, você deve ser fruto de alguma distração minha, isso sim. Um mau passo. Não me lembro de ter criado nada tão sem graça e inconveniente.

- Desculpe, mas foi o que você conseguiu arrumar. Cada um tem o alter-ego que merece.

- Ok, agora sejamos práticos. Por que ligou pra mim?

- Queria um pouquinho de reconhecimento e consideração. É péssimo pra auto-estima ser o outro o tempo todo. Ponha-se no meu lugar, tente entender como me sinto. Você só me aciona quando não quer ser você mesmo, em situações de escape. Eu não passo de um dublê.

- Desencana, passa o mico pra frente. Cria um alter-ego pra você. O alter do alter, que tal? Só torce pra ele não te ligar no meio da tarde com conflitinho existencial, querendo discutir a relação…

- Tá me chamando de fraco? Fraco foi você em me criar pra se esconder de você mesmo. Eu não pedi pra nascer.

- Nossa, é mesmo? Que rebeldinho sem causa. Está querendo o quê, casa, comida, roupa lavada, carteira assinada, fundo de garantia?

- Só o direito de greve, de vez em quando,  já estava bom.

- Pois por mim eu já te dava o auxílio-funeral, seu bosta. Morra agora, e de morte trágica.

- Não me conformo…não é possível que eu, tão mais interessante, seja obra sua. Mas tudo bem. O pai do Einstein foi sem dúvida menos brilhante que ele.

- Não esperneia, não. Aceite sua insignificância. Saiba que você sempre será o outro, um subproduto do original. Alguém que só existe graças a mim. E isso se eu de fato te reconhecer oficialmente, porque por enquanto eu só estou escutando você dizer quem é e presumindo que isso seja verdade. Mas quem me garante que você não é um impostor?

- Esta dúvida eu tiro de você rapidinho. Sei milhares de coisas que só nós dois sabemos. Tenho como provar minha autenticidade, ou seja, o triste castigo de ser você.

 

Marcelo Sguassábia© - 11/01/2014.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

*  *  *

 

Memorabília americana

 

 

Paletó à bolonhesa

 

Sim, é certo que até hoje se discute de onde e de quem partiram os disparos. O que não se discute é o fato de que é mesmo de JFK a carne moída respingada nos ombros do motorista que conduzia o presidente pelas ruas de Dallas. Mais de 50 anos depois, o sangue de Kennedy permanece tão reconhecível geneticamente no paletó quanto o esperma de Clinton no vestido daquela mocinha, frequentadora assídua do salão oval.

 

Perambulando pelo mundo com o laudo de DNA debaixo do braço, o filho do dono da relíquia promete para breve o lançamento de um blazer styled by Stella McCartney, com estampas reproduzindo fielmente as manchas de miolo espatifado do modelo original. Estima-se que pelo menos um em cada quatro cidadãos americanos deverá abrir espaço em seu closet para a nova peça, que já nasce cult e objeto de desejo até mesmo entre os não apreciadores de molho à bolonhesa – caso do vegetariano pai da estilista.

 

Após o desfile de apresentação da novidade prêt-à-porter para convidados, autoridades e imprensa internacional, o histórico paletó será leiloado, com lance mínimo presumido de três milhões e seiscentos mil dólares. O citado lance inicial só perde para as pantufas utilizadas por Abraham Lincoln na Guerra Civil Americana, bordadas artesanalmente com motivos cherokees, item arrematado por um magnata saudita de identidade até o momento desconhecida.

 

Módulo lunar de papel alumínio

 

O homem esteve, de fato, na lua? Definitivamente, não. Em www.afraudedoseculo.com.br os crédulos de plantão irão encontrar evidências contundentes do maior embuste de que se tem notícia, que por décadas vem logrando toda a humanidade.

 

Mas a verdade vai aos poucos aparecendo, não por bombásticas revelações, mas graças a pequenas peças de quebra-cabeças que, coletadas aqui e ali, vão formando o nada edificante quadro dessa falcatrua histórica.

 

Veja o caso de Thelonious W. J. Donaldson. Residente no Colorado e funcionário aposentado da agência espacial norte-americana, Thelonious guarda na garagem de sua casa, junto a um velho cortador de grama John Deere e a um feixe de tacos de golfe, exatos quatrocentos e sessenta e cinco cilindros de papelão – desses onde são enrolados papel alumínio. Afirma Donaldson que esse entulho acumulado tem valor documental incalculável, pois as folhas que os envolviam confeccionaram o módulo lunar da Missão Apolo 11.

 

Segundo testemunhos de funcionários da própria NASA na época, e que preferem não ser identificados, o trabalho era feito por três pessoas. Uma ia desenrolando o papel alumínio dos rolinhos, outra ia desamassando imperfeições na superfície e uma terceira afixava com fita adesiva as folhas metálicas no suposto módulo. Um procedimento tão cientificamente embasado quanto a montagem de alegorias na Marquês de Sapucaí.

 

Marcelo Sguassábia© - 03/01/2014.

 

- Imagem: Wikimedia commons.

 

 

 

 

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